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19/06/2020 A coerência no diálogo entre precedentes do STF - JOTA Info

ICMS

A coerência no diálogo entre precedentes do STF


Tributação das operações com software e franquias à luz da intersecção da ADI nº 1.945 e do RE nº 603.136

DANIEL DE PAIVA GOMES


LUIZ GUILHERME DE MEDEIROS FERREIRA

18/06/2020 06:50

Ministra Cármen Lúcia negou pedido do PT. Crédito: G.Dettmar/AG.CNJ

Recentemente tivemos dois importantes julgamentos sobre operações com


intangíveis perante o Supremo Tribunal Federal: um deles já encerrado (RE nº
603.136) e outro se encontra pendente de julgamento de nitivo (ADI nº 1.945), já
contando com o voto da relatora, Ministra Cármen Lúcia, e do Ministro Fachin.

Chama especial atenção o fato de que os dois Ministros que votaram


favoravelmente à tributação do software via download por ICMS, na ADI 1.945,

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acompanharam o relator no RE 603.136 no entendimento de que contratos de


franquia são passíveis de tributação por ISS.

O objetivo deste artigo é tentar relacionar a ratio decidendi esposada nestes


precedentes, de modo a conciliar os entendimentos expostos ou, alternativamente,
evidenciar a contradição entre ambos conjecturando possíveis efeitos.

O Recurso Extraordinário nº 603.136, analisou a legitimidade da incidência de ISS


sobre os contratos de franquia. O resultado do julgamento xou a seguinte tese: “É
constitucional a incidência de Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS)
sobre contratos de franquia (franchising) (itens 10.04 e 17.08 da lista de serviços
prevista no Anexo da Lei Complementar 116/2003)”.

Apesar de o acórdão ainda não ter sido publicado, já se pode ter uma boa ideia dos
principais argumentos que fundamentaram a conclusão pela incidência de ISS sobre
os contratos de franquia, a partir da disponibilização do voto condutor proferido pelo
Ministro Relator Gilmar Mendes.

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A íntegra do voto do Ministro Relator Gilmar Mendes evidencia que “de acordo com o
entendimento do Supremo Tribunal Federal, o ISS incide sobre atividades que
representem tanto obrigações de fazer quanto obrigações mistas, que também
incluem uma obrigação de dar”.

Sem prejuízo de uma nova re exão sobre o tema após a publicação do acordão, o
voto do referido ministro evidencia que o STF não teria abandonado totalmente o
conceito de serviço restrito às “obrigações de fazer”.

É que, ao reconhecer a constitucionalidade da incidência de ISS sobre os contratos


de franquia, o Ministro Gilmar Mendes entendeu que o ISS incidiria sobre atividades
enquadradas como “obrigações de fazer”, mas também rmou entendimento pela
incidência do imposto municipal sobre as obrigações mistas (hipótese em que
existe um fazer e um dar indissociáveis), desde que previstas em Lei Complementar,
já que, neste último caso, existiriam obrigações de fazer aliadas a obrigações de dar.

Por outro lado, a ADI nº 1.945 analisa a (in)constitucionalidade da lei mato-


grossense nº 7.098/9, a qual prevê que incide ICMS sobre a transferência de
software padronizado via download. Liminarmente e por 6 votos a 4, o STF entendeu
que o conceito de mercadoria também abrange bens incorpóreos, não estando
restrito apenas aos bens tangíveis.

O julgamento de mérito da ADI nº 1.945 foi iniciado em 2020, sem que haja, por ora,
conclusão. Ademais, ainda não foi disponibilizada íntegra do voto da Ministra
Carmen Lúcia, relatora da ADI nº 1.945. Sem prejuízo, as informações existentes até
o presente momento evidenciam que referida julgadora reconheceu a legitimidade
da incidência de ICMS sobre o download de software, pressupondo-se que o
conceito de mercadoria não seria restrito aos bens corpóreos, abrangendo também
os intangíveis, tendo sido acompanhada pelo Ministro Edson Fachin. O julgamento
da ADI nº 1.945 foi interrompido por conta do pedido de vista formulado pelo
Ministro Dias Toffoli.

A não disponibilização do voto gera curiosidade sobre como teriam sido enfrentados
argumentos importantes contrários à tributação pelo ICMS, como a inexistência de
transferência de propriedade, e, portanto, ausência de circulação jurídica na cessão
de uso de software, bem como sobre a não con guração do conceito de
“mercadoria” no aspecto de sua tangibilidade.

Não obstante, a prevalecer o entendimento da Relatora na ADI 1.945 (pela incidência


do ICMS nas operações de software via download) como seria possível harmonizar
deste entendimento com o julgamento do RE nº 603.136, que prevê a incidência de

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ISS sobre os contratos de franquia?  Estes precedentes devem ser coerentes entre
si?

A nossos ver, ambos precedentes tratam, em última


análise, da tributação sobre a cessão de direitos,
sendo assim, a gura-se razoável que a tributação
destes dois tipos de ofertas (contrato de franquia e
licença de uso de software) seja uniforme.

Ou seja, não poderiam ser admitidas contradições entre o racional xado no RE nº


603.136 (franquia) e aquele que venha ser plasmado de forma de nitiva na ADI nº
1.945 (software), sobretudo quando se veri ca que os contratos de franquia e de
licença de uso de software são similares em sua substância, já que ambos versam
sobre a cessão de direitos.

De acordo com o artigo 2º da Lei nº 8.955/1994, a franquia empresarial é o sistema


pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente,
associado ao direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou
serviços e, eventualmente, também ao direito de uso de tecnologia de implantação e
administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo
franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, que
caracterizado vínculo empregatício. Por sua vez, o artigo 9º da Lei 9609/98 prevê
que o uso de programa de computador no país será objeto de contrato de licença.

Ambos os contratos estão descritos nos subitens 1.05, 10.04 e 17.08 da lista anexa
à Lei Complementar nº 116/2003 como serviços tributáveis pelo ISS[1].Veja-se que,
nos dois casos (franquia e direito de uso de software), a materialidade principal
subjacente aos negócios jurídicos é a cessão de direito, em um caso, aquele
referente ao uso de um programa de computador, e no outro, ao uso da marca ou
patente, associada ao direito de distribuição de produtos e serviços.

Interessante notar que na hipótese de operações com software, as licenças de uso e


de comercialização constituem dois contratos típicos autônomos (artigos 9º e 10 da
Lei nº 9.609/1998) e independentes, ao passo que, no contrato de franquia, múltiplas
cessões de direitos (Marca, Patente, Distribuição) fazem parte de um plexo conjunto
e unitário de obrigações.

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Teoricamente, tendo sido reconhecida nos autos do RE nº 603.136 a legitimidade da


incidência de ISS sobre os contratos de franquia (o que implicaria no
reconhecimento da legitimidade da incidência de ISS sobre contratos de cessão de
direitos), deveria ser reconhecida, necessariamente, quando do julgamento do RE nº
688.223, a legitimidade da incidência de ISS sobre os contratos de cessão ao direito
de uso de software.

Porém, uma leitura mais atenta do voto do Ministro Gilmar Mendes permite concluir
que a mera multiplicidade de cessões de direito (marca, patente, distribuição de
serviços e mercadorias), todas dentro do campo das “obrigações de dar”, não seria
su ciente à sujeição ao imposto municipal.

O traço decisivo à sujeição dos contratos de franquia ao ISS parece ter sido a
conjugação de obrigações de dar (múltiplas cessões de direito) com obrigações de
fazer, que também integram o contrato de franquia. O voto é expresso e contundente
ao citar o artigo 3º, inciso XII da lei de franquias, que cita diversas prestações de
serviços (obrigações de fazer) como integrantes do contrato de franquia, como:
supervisão de rede, treinamento, orientação etc.

Este poderia, a princípio, ser o fator distintivo e harmonizador entre a incidência de


ISS sobre franquias e a não incidência de ISS sobre software (conforme se infere do
início de julgamento da ADI nº 1.945); visto que, embora ambos tratem em essência
de cessões de direito, no caso das franquias há também a coexistência de
obrigações de fazer atreladas às obrigações de dar.

Entretanto, parece-nos que, também por este prisma, existe uma grande
similaridade entre contratos de franquia e licença de uso de software. Explicamos: a
lei de software, também de forma cogente, estipula obrigações de fazer ao
licenciante de forma indissociável da cessão de direito de uso. Ou seja, aqui há
também uma obrigação de fazer que necessariamente integra o contrato de cessão
de uso por expressa disposição legal. Referimo-nos aos serviços de suporte técnico.

Veja-se neste sentido a íntegra do capítulo III da lei de software:

CAPÍTULO III: DAS GARANTIAS AOS USUÁRIOS DE


PROGRAMA DE COMPUTADOR
Art. 7º O contrato de licença de uso de programa de computador, o documento
scal correspondente, os suportes físicos do programa ou as respectivas
embalagens deverão consignar, de forma facilmente legível pelo usuário, o prazo de
validade técnica da versão comercializada.
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Art. 8º Aquele que comercializar programa de computador, quer seja titular dos
direitos do programa, quer seja titular dos direitos de comercialização, ca obrigado,
no território nacional, durante o prazo de validade técnica da respectiva versão, a
assegurar aos respectivos usuários a prestação de serviços técnicos
complementares relativos ao adequado funcionamento do programa, consideradas
as suas especi cações.

Parágrafo único. A obrigação persistirá no caso de retirada de circulação comercial


do programa de computador durante o prazo de validade, salvo justa indenização de
eventuais prejuízos causados a terceiros.

Como se vê, também no caso das operações com software existem obrigações de
fazer destinadas àquele que licencia diretamente ao usuário nal, ou seja, àquele
que cede a licença de uso.

A se considerar o racional esposado no julgamento sobre franquias, haveríamos de


entender que o contrato de licença de uso de software também possui natureza
mista, conjugando obrigações de dar (cessão de direito) com obrigações de fazer
(serviço de suporte técnico). Diferente seria o caso da mera cessão da licença de
comercialização, pois a obrigação de fornecer “suporte técnico” é daquele que
contrata diretamente com o usuário nal.

Dessa forma, seja pelo prisma da materialidade principal de ambos os contratos


(cessão de direitos), seja pelo prisma da coexistência de obrigações contratuais
mistas (obrigações de dar e obrigações de fazer), cremos que haveria uma
necessária convergência entre a tributação dos contratos de franquia e de licença de
uso de software.

Porém, por mais intuitiva que possa ser a expectativa de um julgamento uniforme
para ambos os casos, vivenciamos um contexto de verdadeira insegurança jurídica
devido à possiblidade de a conclusão do julgamento da ADI nº 1.945 rmar
entendimento pela legitimidade da incidência de ICMS sobre o download de
software.

Neste cenário, talvez a única mitigação possível para tamanha contradição seria a
restrição dos efeitos da ADI nº 1.945 aos fatos geradores anteriores à Lei
Complementar nº 116/03. Dessa forma, poder-se-ia considerar que, ante o vácuo
legislativo anterior à Lei Complementar nº 116/03, seria possível a incidência de
ICMS sobre o download de software.

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Obviamente, tal circunstância, a nosso ver, não seria apta a superar importantes
argumentos contrários à incidência do ICMS no caso, como a intangibilidade da
oferta, a ausência de “mercadoria” e a inexistência de “circulação jurídica”.

Porém, caso tais argumentos não prevaleçam no deslinde nal da causa, o fato de
os efeitos do julgamento da ADI nº 1.945 serem limitados até o advento da Lei
Complementar nº 116/03, ou, ainda, caso fosse xada modulação de efeitos desta
decisão, a sensação de insegurança jurídica seria mitigada, do ponto de vista
pragmático.

Outro aspecto importante dessa discussão é seu efeito sobre a evolução da


tecnologia. Vale a pena colocar em perspectiva também o estágio atual das ofertas
de software, com a prevalência de contratos em nuvem no formato SaaS – Software
as a Service.

Neste tipo de contrato, ca ainda mais clara a multiplicidade obrigacional e a


intersecção da materialidade principal, cessão do direito de uso, com obrigações de
fazer inerentes, como serviços de armazenamento e processamento que viabilizam
o acesso à funcionalidade principal do software.

Assim, diante do julgamento isolado da ADI nº 1.945, desconectado das outras


ações sobre software pendentes de julgamento no Supremo, há o risco de que o
software via donwload seja sujeito a incidência do ICMS, enquanto que o software
em nuvem, quando analisada sua tributação à luz do RE nº 603.136 (franquias), seja
sujeito ao ISS.

Esta hipótese, a nosso ver, é perigosa. Isso porque, equivaleria a admitir um


tratamento tributário diferenciado das operações de software a depender do modo
como disponibilizado o acesso à referida utilidade ao usuário. Se licença pura por
meio de download, incidiria ICMS. Por outro lado, nas hipóteses de computação em
nuvem (que inexoravelmente possuem camadas de serviços como processamento
e armazenamento), incidiria ISS. Admitir a modi cação da tributação do software
devido ao modo como é disponibilizado o acesso ao usuário equivaleria a admitir a
total ausência de neutralidade do Sistema Tributário Nacional.

Sobre este ponto, vale lembrar que, de acordo com a OCDE – Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico, no comentário 14.1 à sua Convenção
Modelo para Evitar a Bitributação da Renda e do Capital, o “método de transferência
do programa de computador não é relevante. Por exemplo, não é importante se o
usuário acessa o software por meio de uma cópia física ou por meio de
download”[2].

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Estas provocações têm um único intuito: sensibilizar o julgador quanto às cautelas


que devem ser tomadas relativamente à evolução jurisprudencial do con ito de
competência entre ICMS e ISS nas operações de software, de modo que seja feito
um diálogo coerente entre os diversos precedentes que analisam esta temática,
mantendo-se um sistema seguro e, sobretudo, neutro.

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[1] 1.05 – Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação.

10.04 – Agenciamento, corretagem ou intermediação de contratos de arrendamento


mercantil (leasing), de franquia (franchising) e de faturização (factoring).

17.08 – Franquia (franchising).

[2] OECD. Model Tax Convention on Income and on Capital: Condensed Version 2017,

OECD Publishing, Paris, p. 281-282. Disponível em:


http://dx.doi.org/10.1787/mtc_cond-2017-en Acessado em 10/05/2020.

DANIEL DE PAIVA GOMES – Mestrando em Direito Tributário pela FGV Direito SP. Sócio da área de
Contencioso Tributário em Vieira, Drigo e Vasconcellos Advogados.
LUIZ GUILHERME DE MEDEIROS FERREIRA – Bacharel em Direito pela Universidade Mackenzie,
Especialista em Direito Tributário pela - PUC/SP, Ex-Conselheiro do CARF, Coordenador do Comitê de
Tributação da Brasscom, Advogado em São Paulo.

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