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ENSAIO SOBRE

A TRINDADE*

UENE JOSÉ GOMES**

A
experiência cristã sempre foi marcada pela intensa possibilidade de pensar a fé.
Nos tempos de vida, que se nos apresenta, estes questionamentos não são menores.
Dentre os inúmeros processos que pressupõem a necessidade de crenças a realidade
da própria condição do Divino em sua relação com a vida humana é um constante exercício
de imaginação e aceitação. Nós igualmente, à semelhança com inúmeros companheiros/
as desta época também nos deparamos com essa possibilidade. Ao encontrarmos através
de uma releitura o tratamento sobre a Trindade1 não tivemos dúvidas da possibilidade de
realizar um ensaio que pudesse emitir possíveis considerações que indicassem o quanto o
tema possui de envolvimento para todos os que se aproximam dele.
O tema da Trindade é um conteúdo envolvente e desafiador: engana-se quem pensa
que não sabe nada a respeito e muito mais equivocado estão, os que acham que já saiba tudo
sobre o assunto. Vários autores já trataram e continuam pensando e comentando sobre
este pressuposto de fé. Não seria exagero elencar uma bibliografia extensa demonstrando
todo este processo. No entanto optamos por fazer uma leitura pontual e a partir de um
autor. O porquê desta escolha não se justifica como sendo pelo critério de maior facilidade.
Ao contrario entendemos que pode até parecer presunçoso dar tanta ênfase a pensamentos
exclusivos. Porém ao fazer e refazer a leitura deste texto, em épocas distintas, percebe-se que
a intensidade de tratamento que aí se expressa não diminuiu de intensidade levando-nos a
pensar uma proposição que seria a de apresentar extensivamente estas considerações através
deste ensaio e posteriormente poder retomá-lo a partir de outras opiniões.

* Recebido em: 26.10.2016. Aprovado em: 22.11.2016. Texto-memória solicitado por Ivoni Richter Reimer,
via e-mail.
** Mestre em Ciências da Religião. Professor na PUC Goiás. Pedagogo. Teólogo, com formação livre em
Filosofia. E-mail: uene@pucgoias.edu.br 

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TRINDADE QUE CONTINUA A NOS ENCANTAR

O pensamento de Boff, sobre o tema é determinado e muito ilustrativo tem por


preocupação tratar teologicamente o assunto e o faz com maestria. Seria retórico inclusive e
até ser considerado por demais parcial apresentar uma coleção de elogios ao texto. Não que o
mesmo não mereça, mas o que de fato nos é pedido é que façamos a identificação das prin-
cipais ideias bem como uma possível consideração sobre a leitura teológica e comunitária do
texto. Que é o que tentaremos realizar a seguir.

A OBRA E OS SEUS CONTEÚDOS

Com uma expressão de sentido acadêmico pode-se afirmar que o texto tem um
caráter didático; o autor vai conduzindo o leitor, literalmente, pelas mãos, para fazer com que
este possa se achegar visualmente até ao centro das ideias e valores que a Trindade possui; com
os mais variados argumentos se preocupa em informar e esclarecer quanto a todos e quaisquer
elementos que fazem parte do referido conteúdo e os seus aspectos comunitários.
Reconhecemos que pela grandiosidade que este texto possui ineficaz seria o exer-
cício de apenas resumi-lo ou descrever na forma de uma resenha. Frente ao conteúdo infor-
mamos que a opção de abordagem foi a de realizar uma análise sobre parte do mesmo e neste
sentido reconheceu-se o quanto seria difícil e complexa tal escolha, pois a intensidade que o
autor tratou cada uma das etapas exigiria enorme maestria para se trabalhar este exercício sem
comprometer o propósito intencionado. A seguir indicaremos que tópico foi este e apresenta-
remos introdutoriamente uma visão geral da obra para depois nos determos sobre o objetivo.
A escolha que fizemos procurou encontrar o elemento temático que melhor pudesse
expressar a intensidade da obra e a referida relação deste conteúdo como o propósito de se
cursar esta disciplina. Assim como a formação que ocorre, no exercício que realizamos, é para
convalidar o bacharelado em teologia esta escolha bem se articula com o item V – quinto – A
SANTÍSSIMA TRINDADE NO IMAGINÁRIO TEOLÓGICO. Como informamos ante-
riormente, antes de tudo realizaremos uma consideração geral sobre o conteúdo.

COMO REFLETE BOFF SOBRE A TRINDADE?

A obra está muito bem articulada em um total de 15 grandes eixos temáticos,


inicia-se com uma curiosa redação introdutória, em que a reflexão do autor está voltada para
a abordagem: da solidão do um à comunhão dos três. Onde em outros cinco níveis de aná-
lise ele discute desde a questão de como se dá a fé até o exercício de como esta é explicada;
tratando a seguir sobre a Trindade enquanto mistério de inclusão; compondo com a seguir
com a informação de que o melhor conceito de Deus é a ideia que Ele unifica a três únicos e
conclui com duas informações fortes: a primeira de que as palavras mais escondem que reve-
lam sobre o tema da Trindade e a segunda ideia é a de que frente ao tema é melhor o silêncio
da contemplação.
O conteúdo, apresentado na unidade I, está diretamente sinalizando um grande pro-
pósito no qual o título da coleção, em que este texto está que é Teologia e Libertação. Este capí-
tulo traz em seu título a lógica deste pensamento: NO PRINCÍPIO ESTÁ A COMUNHÃO.
O olhar atento do autor não é para levar o leitor ou estudioso à vivência de equívocos na fé; ao
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contrário ele diz que o tema da Trindade é sim um modelo singular que deve ser aplicado na
sociedade para que esta seja livre; que as experiências desintegradas também cultuadas sobre a
realidade da ideia em Deus são fruto da visão equivocadas que temos em nossos olhares indivi-
dualistas; explica também que até a fé no conceito do mono pode nos enganar; inferindo sobre
as consequências deste modelo na aplicabilidade política do uno que pode levar a uma prática
de autolatria; por isso ele enfatiza a dimensão integradora das três pessoas divinas.
A II unidade apresenta o processo de como se deu a o processo de revelação da
Trindade. Iniciando com dados sobre a doutrina e sobre a realidade; continuando com uma
expressão terna e espiritualizante sobre o tema do toque de Deus, reconhecendo a ação de
Jesus e do Espírito Santo como contatos físicos conosco; refletindo a seguir sobre Jesus en-
quanto filho revelador bondade da infinita do Pai, associado a dois simbolismos: o primeiro
é o político, em que está associado ao Reino e o segundo é familiar, sendo que Deus é apre-
sentado como Abba, paizinho de infinita bondade; tratando ainda de Jesus enquanto filho
eterno encarnado.
Uma sequência desta unidade que acabamos de descrever, ainda apresenta o enredo
da vida e ações de Jesus enquanto espaço de eclosão e revelação do Espírito Santo; tratando a
seguir da descrição de como historicamente a percepção permite encontrar traços de como o
Espírito Santo igualmente revela o Filho e o Pai; identificando através de expressões presentes
nos textos do Novo Testamento sobre o início de uma consciência de crença e culto ternário
ou trinitário; concluindo a unidade com uma associação de como também no Antigo Testa-
mente já havia a preparação aonde iria se revelar está vivência de fé na prática do cristianismo.
A unidade terceira trata dos esforços para se compreender a verdade sobre a Trinda-
de. Boff a apresenta em três distintas etapas. A primeira: debate sobre o processo ou caminhos
que equivocadamente existiram sobre a trindade; o tema do modalismo ou três figuras divi-
nas aparecendo como sendo Deus; a temática do subordinacionismo, onde Jesus e o Espírito
Santo são colocados como sendo inferiores a Deus; e o triteísmo, onde a tese era a imagem de
três deuses coexistindo simultaneamente.
Uma segunda etapa desta unidade trata sobre a trajetória informando como os te-
ólogos foram criando uma linguagem mais coerente enquanto caminho para a compreensão
sobre a Trindade. Neste estágio o autor buscou na construção do pensamento que praticou
os pais da teologia cristã uma lógica demonstrativa de como santos e teólogos trouxeram
suas contribuições. A começar com Santo Agostinho, falando sobre a Trindade econômica;
deteve-se em Orígenes, quanto a sua exposição sobre a Trindade enquanto dinamismo de
comunicação.
Ainda dentro deste raciocínio teológico também é detalhada a contribuição de Ter-
tuliano, que para Boff é apresentada sob a seguinte ênfase: “una substantia, tres personae” (p.
73) que assim é interpretado pelo autor: “baste-nos captar sua intuição e o rigor terminológico
introduzido, pois serviu de modelo para toda a evolução posterior”. (p. 73). Significando que esta
contribuição é reconhecida como a principal criação da linguagem sobre a Trindade, numa
visão ortodoxa.
Trabalha ainda nesta mesma unidade com a contribuição dos capadócios, que re-
conheciam existir nas vivências da Trindade um “jogo de relações”. Já o conceito de Trindade
enquanto mistério é tratado no pensamento de Agostinho de Hipona, que afirmou reconhe-
cer na Trindade “pessoas como sujeitos respectivos e eternamente relacionados”. Encerra esta etapa
tratando do pensamento de Santo Tomaz de Aquino que afirmou sobre Deus: “é uno e trino”.
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A terceira e última parte desta unidade é a reflexão em torno das palavras e das for-
mulas que existiram ao longo dos tempos sobre a trindade: “uma natureza e três pessoas”. As
ideias que definiram o que o que deveria ser denominado e distinto em Deus; o que represen-
taria a união em Deus; o que indicava ideias confusas ou esclarecidas nas palavras e expressões
nominativas sobre Deus e encerrando a unidade terceira o tratamento sobre o debate sobre
hipóstase e pessoa e sua equivalência.
A totalidade de abordagens que o autor discutiu na unidade IV é muito expressiva
e significante, pois tratou da COMPREENSÃO DOGMÁTICA DA TRINDADE SAN-
TÍSSIMA, analisando cinco pontos de vistas: os pronunciamentos oficiais do magistério; As
três tendências na sistematização trinitária; o jogo de linguagem trinitário: explicação dos
termos-chaves; as regras de sintaxe para um correto discurso trinitário e as conclusões, que são
definidas em sete pontos que registramos a seguir, como representação da unidade.
Estas sete proposições a seguir expressão a definição do que a ortodoxia defendeu e
definiu sobre o conteúdo trinitário ao longo dos séculos:
a) “Sobre a primeira pessoa da Trindade: é Deus pai, criador onipotente do céu e da terra,
princípio sem princípio e origem da vida comunitária”;
b) Quanto “a segunda pessoa da Trindade: É o filho, eternamente gerado pelo pai, não sendo
por isto criatura”... (p. 127)
c) Sobre “a terceira pessoa da Trindade: É o Espírito Santo que procede, como de um só prin-
cípio, do Pai e do Filho, sendo consubstancial a eles, igualmente adorado e glorificado”...
(p.127)
d) “A quarta proposição se refere às propriedades e às missões salvíficas das divinas pessoas”...
(p.127)
e) “A quinta trata da distinção entre as divinas pessoas na esfera intradivina”. (p. 127)
f ) A sexta proposição descreve a realidade da “comunhão que vigora entre as três Pessoas
Divinas”. (p. 128)
g) “A sétima proposição diz respeito ao caráter de mistério da revelação trinitária”: ... ... “Esse
mistério, mesmo revelado, permanece mistério” (p. 128).
Como já foi informado passaremos a unidade SEXTA, que tratou da doutrina tri-
nitária numa situação cultural que foi se modificando. A realidade das épocas com suas na-
turais modificações e seus efeitos sobre a realidade da doutrina trinitária é o primeiro aspecto.
No segundo conjunto de reflexões presentes nesta etapa o autor fala de caminhos para os fieis
continuarem próximos e buscando a trindade que são: prolongando e aprofundando sobre a
tradição; entendendo a importância do conceito sobre pessoa; o reconhecimento comunitário e
social da Trindade e novo e representativo enfoque que recebe o nome atribuído pelo autor de
nos darmos conta da “teologia transexista do Deus Pai maternal e do Deus Mãe paternal”. (p. 153).
A unidade Sétima é a mais humana e comunitária parte desta obra, pois trata da
Comunhão Trinitária, enquanto base para uma libertação social e integral das pessoas e de
todos os indivíduos. Enfatiza primeiro, a partir da ideia de que Deus é a referência do viver
eterno, por isto a vida está diretamente ligada a Ele e por consequência, buscá-lo é a vivência
da autorrealização eterna. Uma segunda abordagem é o reconhecimento de que Deus é co-
munhão infinita e a explicação: analíticas, filosóficas e teológicas corroboram e ratificam tais
pressupostos.
Continuando o tratamento que o autor apresenta na unidade sétima duas outra
ideias são destacadas: a pericorese que significa a interpenetração de cada uma das pessoas da
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Trindade: o Pai está no Filho e no Espírito, o Filho está no Espírito e no Pai e o Espírito está
no Pai e no Filho, dando destaque na ideia da união trinitária, nas relações sempre ternárias
entre as três pessoas com a ideia de inclusão em que a Trindade está em tudo e em todas as
coisas e uma última abordagem é sobre essa comunhão comunitária enquanto crítica e inspi-
ração para toda a sociedade. Não como crítica, mas como inspiração toda a Igreja é motivada
a perceber essa mesma força e modelo; mais comunitária e menos hierárquica; mais do serviço
do que do poder; mais igualitária do que piramidal; mais fraternal do que competitiva; mais
afetuosa do que reverencial.
A partir da oitava unidade até a décima quinta o autor apresenta a relação de espi-
ritualidade que o tema trinitário possui. A ideia do louvor e glória passa a ser o tratamento
mais próprio que o fiel deve vivenciar com relação ao seu conhecimento pleno sobre a Trin-
dade que modifica de modo a transformar a sua vida. A glória ao Pai, origem e fim de toda a
libertação; a glória ao Filho, mediador da libertação integral; a glória ao Espírito Santo, motor
para a libertação integral; tratando da relação eterna e incriada da Trindade, pois esta sempre
existiu imanente desde o princípio; para a liberdade e a vida abordando o agora e sempre em
um percurso histórico em que cada um e ao mesmo tempo todos consigam se reconhecer
neste mesmo e grande projeto salvífico.
As ideias presentes nas duas unidades que encerram a obra dão a tônica do sentido
pleno do elemento esperançoso que a Trindade possui: Pelos séculos dos séculos ela se expres-
sa na criação e a criação no amor da Trindade; Amém é o título da décima quinta unidade e
onde o autor enfatiza que a totalidade do mistério se encontra num fragmento e é possível
afirmar que em qualquer fragmento existe a expressão singular e representativa da totalidade
que a força trinitária possui.

RETOMANDO O PROPÓSITO

A quinta unidade ao tratar do imaginário teológico associado à expressiva ordem


do que representa a Santíssima Trindade nos faz pensar. O que significou toda esta constru-
ção e ao mesmo tempo, como as pessoas de diferentes épocas, culturas, condições sociais e
econômicas reconheceram ou usaram as expressões que a teologia construiu e elaborou sobre
a Trindade? A resposta não chega a ser decepcionante, mas é igualmente intrigante. Afirma
Boff, que: “a rigidez das formulas trinitárias e os rigores das expressões teológicas ficaram para o
uso dos eruditos da fé cristã”. (p.129)
Entre a realidade teórica e conceitual que a teologia definiu sobre a trindade,
pode­-se dizer que parcelas significativas não necessariamente tenha se perdido, mas obvia-
mente não só ficaram desconhecidas ou foram ignoradas ou até é possível concordar com o
autor, tiveram alguma associação apenas na referência do imaginário das pessoas e de como
estas se inseriram no contexto coletivo ou comunitário, por isto Boff afirma: “Os próprios san-
tos Padres quando abordaram, em suas longas e ardorosas discussões, a Santíssima Trindade não
deixaram de trabalhar sobre analogias, figuras e imagens”. (p. 129).
O autor partindo da definição conceitual sobre: o significante, o significado e a sig-
nificação esclarecem que: o primeiro dos conceitos trata da “natureza, pessoa, relação, processões,
missões”; o segundo conceito amplia a leitura destes conteúdos e a significação trata das ordens
afetivas ou vibrantes que cada um dos conteúdos conceituais produzem na relação de existir dos
indivíduos em suas autopercepções ou destes com relação às sua vivência comunitárias.
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Como este universo relacionado à Trindade é marcado pela expressão mistério, a
melhor representação em sentido teológico que o autor usa está associada ao termo: símbolo.
Que igualmente se encontram vinculados a certas possibilidades de estruturas simbólicas
descritas em nove níveis de vivências. E é sobre cada uma destas que passaremos a tratar em
seguida.

A ESTRUTURA SIMBÓLICA ECONÔMICA

O termo economia2 descreve a intensidade reveladora de como a consciência trini-


tária foi ocupando a vida e a visibilidade humana ao longo de diferentes épocas. O principal
agente deste processo é o próprio Jesus, o Filho, que ao se encarnar gradualmente é o meio
de revelação do Pai e do Espírito. Para ilustrar didaticamente esta manifestação Boff descreve:

Esta linguagem ‘econômica’ perpassa a produção teológica dos Padres. Assim por exem-
plo S. Inácio de Antioquia (+104) escreve aos Efésios: ‘Sois pedras do templo do Pai,
preparadas para a construção de Deus Pai, alçadas para as alturas pela alavanca de Jesus
Cristo, alavanca que é a cruz, servindo-vos do Espírito Santo como de uma corda’. As
três Pessoas divinas aparecem em sua ação na história dos homens. (p. 132)

A principal mensagem, proposta por vários intérpretes, sobre esta ideia: simbólica
econômica está associada ao processo de consciência de todo ser humano com relação ao seu
existir físico e sua dimensão de espiritualidade. O mistério que a Trindade possui não existe
apenas para que receba uma atitude contemplativa do crente, revela sim que o modelo comu-
nitário também presente na vida divina se torne o modelo transformador da vida humana e
para todos os humanos.

A SIMBÓLICA DA PIEDADE

Tratando da dinâmica cotidiana o autor associa o termo PIEDADE ao sentido de


vida virtuosa que permita ao crente ir construindo ritualmente através dos sacramentos e
liturgias uma vida de fé e entendimento. Esta Piedade pressupõe assim uma aceitação motiva-
dora e envolvente que leve a pessoa a se sentir predisposta para viver a fé e ao mesmo tempo
enfrentar a vida e suas adversidades.

A SIMBÓLICA ARQUETÍPICA

O ser humano em sua frágil existência busca encontrar modelos e referências que
o sustentem e o protejam. Assim a referência do ARQUÉTIPO3 é esta ideia de totalidade e
valor que em inúmeras situações vão sendo descritas para falar das virtudes de Deus em sua
natureza trina. Neste contexto, explica o autor que, a questão numérica é uma realidade que
não é casual o trino de Deus é a ideia de totalidade. Este número é reconhecido pela sua força
e intensidade em diferentes áreas do conhecimento inclusive na ciência atual. O curioso é
que, o mesmo número três4 em diferentes realidades, todas às vezes que aparece, inclusive fora
do cenário matemático, acaba ocupando uma significação de ordem simbólica e arquetípica
intensa propondo ideias e valores que precisam ser cuidadosamente percebidos, para que o

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sentido da existência possa superar o que apenas aparece e o sujeito desta procura consiga ir
ao encontra da essência do seu existir ou se ainda não tenha conseguido perceber este processo
estabeleça um sentido para o seu existir.

A SIMBÓLICA ANTROPOLÓGICA

O ser humano quando consegue adquirir a percepção de que possui uma relação de
imagem e semelhança com Deus, na plena e misteriosa condição, que envolve a sua existência
se sente especial. A nossa condição não nega o mistério que implica o nascer, o viver, o apren-
der, o relacionar, o envelhecer, o morrer e o que ocorre após esta realidade para o cristão e
também para qualquer outra possibilidade de crença. Portanto se sentir humano não é apenas
a realidade física que está presente em nossos corpos físicos é também a condição de ideias e
valores que esta humanidade exige de cada ser.
Esta ideia simbólica que vincula a nossa condição antropológica é uma reali-
dade contingente. Não tem como fugirmos dela e não tem como viver sem se ter consciência
deste processo; desde a mais inicial condição que já ocorre pela infância queremos saber sobre
nós e sobre todas as outras realidades.
A inteligência nos acompanha e impulsiona para buscar e para saber: de onde vie-
mos? Como isto se deu? Como de dentro de ovos podem surgir vida? Como de dentro da
água a vida acontece? Por que dos tamanhos distintos das pessoas? Por que do brilho do sol?
Por que do escuro da noite? Por que as chuvas caem? Por que temos que dormir? Comer? ...
E é este modelo que reconhecemos em que ao identificarmos à ideia de imagem e
semelhança divina com o humano que segundo o autor realiza um efeito impar para as pessoas:

Quanto mais alguém vive a radicalidade de sua própria vida, na inteireza de suas concre-
tizações, mais se torna revelador potencial da Trindade na história, mais se faz caminho
de acesso ao Mistério último que habita sua própria profundidade existencial: o Pai, o
Filho e o Espírito Santo. (p. 136)

Se sentir criatura a partir do modelo e da semelhança da imagem de Deus é um


conforto. Alegra a vida e assegura a ordem da esperança frente ao conjunto de situações frá-
geis e precárias que circunstancialmente temos que ver ou reconhecer, experimentar ou saber,
aprender ou superar.

A SIMBÓLICA FAMILIAR

A expressão família é o sentido comunitário mínimo de ordem existencial que é fa-


cultado para todos os indivíduos. Se existimos é porque de modo consciente ou não uma ação
intersubjetiva entre duas pessoas se deu para que pudéssemos ser formados. Esta realidade co-
letiva ou comunitária não é uma dinâmica tão simples de se compreender. Precisamos sempre
do coletivo e até não conseguimos sobreviver sem o mesmo; mas nem todos o reconhecem a
partir de sua individualidade e o valorizam adequadamente no exercício de suas existências.
Boff insiste na reflexão em torno da expressão: família ratifica que todas as especifi-
cidades de cada indivíduo, pressupondo o seu corpo ou a sua sexualidade - enquanto exem-
plos - só se tornam plenamente amadurecidos ou evoluídos se tiverem uma relação de ordem
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coletiva ou plural no universo de relacionamentos familiares e nas plurais possibilidades do
existir dos sujeitos a partir destes específicos ambientes. Portanto nesta ótica esta simbologia
vincula o indivíduo à sua família e ao grande modelo familiar que é a Trindade.

A SIMBÓLICA ECLESIAL

A temática eclesial ou comunitária que se instituiu ao longo do processo de manu-


tenção da fé, que o cristianismo vivenciou, é agora a relação que tratou o autor e as vincu-
lações deste tema com a Trindade. É destacada essa leitura interpretativa por ela significar a
ordem de visibilidade histórica que os fieis tiveram em suas identidades de vínculos e vivên-
cias; sem dúvida que não se pode esquecer o quanto este processo constitutivo teve por mar-
cas: exigências, contradições, heresias, apostasias, doutrinações e dogmatizações; mas também
convicções, martírios, liturgias, misticismos.
Uma bela definição deste processo em torno da Trindade e a relação eclesial é citada
por Boff ao lembrar a expressão que criou Tertuliano: “Onde estão o Pai, o Filho e o Espírito
Santo, aí também se encontra a Igreja que é o corpo dos Três”. (p. 137) Ao tratar das virtudes que
se experimenta em uma comunidade eclesial e associar este processo ao modelo trinitário mais
e mais é destacada esta experiência em que o amor que ocorre e simboliza a própria Trindade
é também o parâmetro para que se experimente na vida em comum enquanto Igreja.

A SIMBÓLICA SOCIAL

Este é, com certeza, um dos temas relacionados ao estudo deste texto que possui
uma das maiores associações entre o título da própria obra e os desafios que estão postos para
a percepção teológica que cada leitor ou fiel possa reconhecer e aplicar em sua vida e prática
de fé: a Trindade e a sociedade.
A especificidade deste tópico trata e enfatiza sobre o existir humano diante da di-
mensão particular de cada indivíduo e a sua relação com a dimensão social ou coletiva. Expli-
ca o autor que a realidade política, a ordem econômica e o processo simbólico se metamor-
foseiam dentro deste cenário que é chamado de vida em sociedade e que em consequência
disto imaginar e desejar que esta vivência esteja marcada por um modelo bom e justo não é
um absurdo.
Esta lógica associada ao processo teológico entre o tema e a relação social pode até
ser reconhecida como utópica, mas deve ser buscada e construída permanentemente, a des-
peito das contradições humanas ou históricas que presenciarmos pelo caminho.

A SIMBÓLICA MATERIAL

Neste penúltimo item temático, que Boff analisa teologicamente, nós encontramos
expressões por demais significativas que exigem pensar o que seriam estas informações ou
conteúdos em que a Trindade é apresentada pela dinâmica de ordem material. Para não nos
afastarmos do exercício proposto lembramos que ele explicitou, nesta parte do texto, uma
cuidadosa e até delicada afirmação em torno do trino.
Expressar a ordem trinitária em uma identidade material não foi difícil; ao contrá-
rio, aconteceu em diferentes realidades e contextos tanto pedagógicos ou enquanto analogias
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para as representações comunitárias que deveriam perceber os fiéis ao longo das suas vivências
históricas. Mas, ele lembrou, que: “Esta simbólica material pode visualizar as doutrinas, mas
não o encontro com o Deus trinitário”. (p.139)

A SIMBÓLICA FORMAL

Este foi o último item temático que tratou, teologicamente, o autor para falar do
exercício que se constituiu em torno da Trindade. Sobre esta realidade ele explicita o elemento
formal da matemática que usou a pedagogia cristã para definir este conhecimento. Neste caso
a realidade da geometria através da figura do triângulo equilátero, enquanto superfície de
equivalência e igualdade é que foi o simbolismo para falar do Deus trino. E a este elemento
visível e material que ele define como sendo a simbólica formal para representar a Trindade,
explica também que: a partir desta ordem formal existiram variações e contornos para melhor
definir a riqueza que o tema possuía.

ENCERRANDO A LEITURA TEOLÓGICA

Boff (1987, p. 141)encerra esta hermenêutica sobre o conceito teológico reco-


nhecendo o quanto nós humanos precisamos dos símbolos que são capazes de provocar em
cada sujeito uma eclosão identificatória a partir das “profundezas do inconsciente pessoal e
coletivo”. Esclarece também que os símbolos são a expressão onde: “Por eles a fé se concreti-
za, o próprio ser humano se sente participante da Trindade e a Trindade se faz presente na vida
quotidiana”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE ESTA LEITURA

Após mais de vinte e cinco anos de convivência com a realidade teológica,


poder retomar enquanto leitura e estudo o tratamento com uma destas dimensões que
é a Trindade foi bastante representativo. Os conteúdos: enquanto possibilidades de tra-
tamentos, ou identificação dos aspectos formais, os elementos pastorais ou doutrinários
e criteriosamente as relações associadas, enquanto aplicações para a vida e as transforma-
ções na sociedade, permitiram identificar a plural possibilidade que o tema experimenta
e leva o fiel a viver.
O obvio neste caso tem levado as pessoas a vivenciarem um culto sistemático e valo-
rativo em torno da ideia de um Deus único. Esta verdade torna-se imprescindível ao ampliar
esta percepção para a natureza deste Deus: Ele é a Trindade, personificada no Pai, no Filho e
no Espírito Santo. Que não esperam de cada um dos crentes apenas uma resposta vertical de
espiritualidade.
Aqui a teologia assume o caráter pedagógico. Ensina e estimula para que além da
dinâmica comunitária que é vivida na comunidade Divina e que precisa ser seguida de modo
consciente, também de deve pensar nesta prática que cada um deva vislumbrar uma ordem
transformadora para o mundo que o cerca e por último a lição mais bela que encerra este pro-
cesso: todo este amor deve ser reconhecido até de modo silencioso através da contemplação.
E assim encerramos este exercício reconhecendo que a Trindade em seus profundos mistérios
continua a nos encantar.
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Notas
1 A abordagem que realizaremos neste ensaio está toda estruturada na análise da obra de Leonardo Boff
(1987). E em virtude da exclusividade deste estudo, informamos que nas citações “entre aspas” não serão
colocadas a data e sim e tão somente as páginas que serviram de referência para as citações.
2 Neste caso não se está fazendo referência a questões financeiras e sim aos processos históricos.
3 Cf. Jung (1980, p. 109-202). Ali, apresenta específico estudo sobre esta representação arquetípica sobre a
trindade. Assim também Boff (p. 133).
4 Neste caso o número três é um dos exemplos representativos quanto à lógica de um elemento e o arquétipo,
outros números e outras realidades ocupam também esta condição conceitual e são identificados como
arquétipos expressões que demonstram bem estas ideias são os termos: pai ou mãe. Para uma compreensão
mais ampla sobre o assunto ver Jung (2008).

Referências
BOFF, Leonardo. A Trindade e a Sociedade, o Deus que liberta o seu povo. 3.ed. Coleção Teo-
logia e libertação. Petrópolis: Vozes, 1987.
JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
_____. Obras completas, v. XI. Petrópolis: Vozes, 1980.

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