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Sociedade do Hedonismo

Lucas Favaro

Os conservadores estão certos quando eles dizem que


as pessoas buscam cada vez mais a gratificação
instantânea e o hedonismo. Mas eles erram ao apontar
as causas desse movimento. Eles dizem que as causas
são a perda da devoção religiosa e a ascensão da
nova esquerda nos anos 60, que vilipendia os valores
cristãos. O meu ponto é que essas causas são, se
muito, secundárias; e que, ademais, elas trouxeram
muitas consequências boas para a sociedade, de modo
que seus benefícios mais do que compensam seus
eventuais prejuízos. Também argumento que a
principal causa da valorização do curto-prazismo é
bem outra. Segue abaixo.

Primeiro: perda de devoção religiosa pode até ter


sido uma causa menor do movimento da
sobrevalorização da gratificação instantânea, mas
foi uma causa boa. Não trair seu cônjuge só porque
está escrito no seu livro sagrado que trair é pecado
representa uma abdicação da sua capacidade de
reflexão racional. Por outro lado, não trair porque
você valoriza o compromisso matrimonial em si mesmo
e sabe que a traição pode custar muito sofrimento
futuro (tanto para você quanto para seu cônjuge, e
eventualmente para seus filhos) representa altivez
e mostra que você é capaz de refletir racionalmente
sobre ações que envolvem um caráter ético.

Portanto, o movimento mundial de distanciamento da


submissão religiosa cega em prol de uma ética
secularizada faz parte da independência do intelecto
necessária à evolução da sociedade. Mas essa
independência não veio sem custos. Um desses custos
é justamente a falta de um guia normativo para
aqueles que não possuem uma capacidade reflexiva tão
elevada. Ora, se Deus não existe, ou se sua
existência não impinge em mim nenhuma obrigação
moral, por que não trair minha esposa? Por que não
roubar? O indivíduo secularizado racional irá dizer
que o compromisso matrimonial e a consciência limpa
de não prejudicar o próximo são valores que
independem da existência de Deus. Já o indivíduo
também secularizado mas que vive sob uma
nebulosidade mental irá trair sua esposa e roubar
sem escrúpulos, sempre que ele não visualize uma
punição imediata e mundana, uma vez que a punição
dos céus está descartada.

Mas, colocando na balança a conquista da


independência do intelecto em troca da busca
incessante do hedonismo por parte de alguns, creio
que o resultado da perda de devoção religiosa seja
ainda positivo. Deus está morto, e isso não é um
problema.

Passemos à segunda causa atribuída pelos


conservadores do movimento da sobrevalorização do
hedonismo. Eles dizem que a ascensão da esquerda
pós-moderna e contracultural influenciou em muito
esse movimento. O que eles esquecem de dizer é que
essa mesma onda contracultural foi umas das
principais responsáveis pela libertação feminina e
pela diminuição enorme do preconceito contra gays,
negros e demais minorias. Ora, se a pregação do amor
livre tem como pequeno efeito colateral uma maior
taxa de traição, em troca do benefício de os
homossexuais poderem expressar seu amor sem medo de
represália e de mulheres infelizes em seu casamento
poderem se divorciar sem medo de sofrerem
ostracismo, de forma alguma o movimento responsável
por isso trouxe mais coisas ruins do que boas.
Colocada na balança, a ascensão da esquerda
contracultural dos anos 60 foi muito positiva.

Mas qual seria, então, o principal fator responsável


pela crescente valorização do hedonismo da
sociedade? Já expliquei em outro post (vou colocar
ele nos comentários). Em poucas palavras: nossa
herança de ânsia por dopamina aliada aos incentivos
do sistema capitalista. Por um lado, herdamos dos
nossos antepassados caçadores-coletores os
mecanismos fisiológicos de recompensa pelo esforço
adequados ao convívio em natureza. Subir em uma
árvore para coletar uma fruta, caçar, buscar sexo,
tudo isso requer energia e há riscos envolvidos.
Mas, ao mesmo tempo, essas atividades ajudavam
nossos antepassados a sobreviver na selva. Através
da seleção natural, a natureza criou um mecanismo
para que tivéssemos incentivo para fazer essas
atividades arriscadas. Esse incentivo é a sensação
de bem-estar, e esse bem-estar é causado pelo
neurotransmissor dopamina. O resultado é que somos
máquinas viciadas em dopamina (não só nos, aliás,
mas também grande parte dos outros animais). Junte
a isso o fato de vivermos em um sistema econômico
em que as empresas estão constantemente concorrendo
entre si para atrair a atenção e o dinheiro das
pessoas, de modo que só aquelas empresas que mais
deixam os clientes dependentes delas sobreviverão.
O resultado é que muitos produtos vendidos serão
bombas teleguiadas diretamente para o nosso cérebro
para produzirmos um caminhão de dopamina.

Desse modo, somos viciados em comer aquela comida


que mais libera dopamina no nosso cérebro, que calha
de ser a comida mais insalubre. Somos viciados em
buscar orgasmo da forma mais fácil possível, que
calha de ser a masturbação mediante pornografia.
Somos viciados em entretenimento barato em
detrimento do desenvolvimento pessoal. Um prazer
hedonista leva ao outro. Se eu não me importo com a
minha saúde no longo prazo, e estou sempre me
empanturrando com doces e gorduras para liberar
dopamina, por que eu me importaria com o meu
relacionamento amoroso no longo prazo, e, ao invés
disso, não me relacionaria com outras pessoas, para
assim liberar um pouco mais de dopamina?

Estabelece-se assim a sociedade do hedonismo, do


imediatismo. O bode expiatório dos conservadores
acaba sendo a secularização e a esquerda. Mal sabem
eles que o grande culpado é aquilo que eles tanto
valorizam: a sociedade de mercado.

Facebook, 21/07/2020

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