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De Como é Viver Sob O Comunismo

Horia-Roman Patapievici

“Dou agora o passo seguinte e tentarei transmitir-


vos algo da experiência das sociedades forçadas a
viver sob a ditadura de um estado totalitário, algo
que é muito difícil de entender por um ocidental que
não conheceu o estado totalitário senão, no máximo,
por alguns anos (porque não se põe o período da
guerra, é excepcional).

Nos estudos-padrão, a visão acerca da ditadura é


uma visão acerca da sociopatia do ditador e, de
maneira simétrica, uma visão acerca da sociedade que
sofre em conseqüência da ditadura, da perspectiva
de seus sofrimentos. Mas, do interior, as coisas se
mostram de outro modo. Vivi até os 33 anos numa
ditadura totalitária, na Romênia de Nicolae
Ceauşescu. Depois da morte de Gheorghiu-Dej, em
1964, o comunismo romeno entrou na etapa em que o
adestramento da sociedade já não necessitava do
terror, mas apenas do enquadramento totalitário nas
instituições do estado ideológico. Cresci e formei-
me, portanto, na atmosfera e nas condições do estado
totalitário maduro, consolidado, seguro de si,
triunfante. Não conheci de maneira direta o terror:
mas meus pais [145] o conheceram. Eu conheci-lhes
apenas o pavor de terror e interiorizei, como súdito
do estado totalitário (não cidadão, súdito!), a
atmosfera do totalitarismo institucionalizado. A
essência do totalitarismo institucionalizado é o
desaparecimento total do sentimento cívico e dos
sentimentos morais. Na ausência do terror, a
ditadura pode sobreviver somente se as pessoas
abandonam completamente assim o sentimento cívico,
como os padrões éticos impostos pelo funcionamento
normal dos sentimentos morais. Esta coisa não
acontece nem como conseqüência de uma ordem da
autoridade, nem como uma decisão de cada um em
parte, mas como uma adaptação ao meio. O instinto
de conservação, que é plantado de maneira natural
em cada indivíduo, passa a ser perito na
sobrevivência totalitária, que já não tem nada de
natural. Ao contrário. De modo ideal, numa sociedade
livre, as pessoas tendem a modificar suas
instituições de acordo com o natural das aspirações
delas. De maneira real, na sociedade totalitária,
as pessoas tendem a modificar seu natural, de
maneira que possam sobreviver à pressão exercida
sobre as aspirações delas pelo enquadramento
totalitário da sociedade.

O que gostaria que vísseis em espelho, e


sentísseis, são estas duas afirmações: “modificares
as instituições para realizares o teu natural”
versus “modificares o teu natural para sobreviveres
às instituições". A normalidade, no totalitarismo
maduro, consta no abandono da normalidade. O que
[146] impõe o totalitarismo é a redefinição da
normalidade. Do ponto de vista político, isto
significa a supressão do sentimento cívico e dos
sentimentos morais e a substituição deles pela
volatilidade moral que, aos olhos ocidentais, parece
muito estranha. É uma volatilidade baseada numa
competência muito precisa, que se acha no antípoda
das competências cívicas normais: a perícia
extremamente complexa no engano ativo, prospectivo
e retroativo de qualquer tipo de instituição e de
todas as regras sociais. Um cidadão bem adaptado aos
rigores do estado totalitário maduro deixa de ser
um cidadão; ele é, em primeiro lugar, um súdito; um
súdito que deve mostrar-se perito no engano da
autoridade, na prática social da linguagem dupla,
na prática igualmente social e íntima da duplicidade
de alma e mental e na burla inteligente da lei. Em
suma, o súdito totalitário tem de mostrar-se perito
no desenvolvimento de todos aqueles comportamentos
não-políticos que asseguram a sobrevivência de
alguém que é também discriminado e excluído da vida
cotidiana da sociedade política. As pessoas que
pertencem a uma sociedade totalitária são
discriminadas pelo estado delas assim como os
cidadãos de um estado sob ocupação estrangeira, e
são igualmente excluídas da vida política, assim
como eram os escravos, na Antigüidade, dos negócios
da cidade.

Esta é a grande dádiva envenenada que as sociedades


totalitárias ofereceram às sociedades livres, [147]
quando desmoronaram os estados totalitários.
Decompondo-se, as sociedades totalitárias puseram
em liberdade pessoas que continuam funcionando,
programadas como robôs, segundo os instintos
necessários de sobrevivência na “normalidade”
totalitária. A primeira opção delas é não respeitar
nenhuma regra, fingindo que respeitam
escrupulosamente a todas; fintar todas as
instituições, fingindo que não fazem senão sustentá-
las; enganar o estado, fingindo que são cidadãos
modelos; enganar os semelhantes, fingindo que os
respeitam. Este tipo de cidadão é emocionalmente
desequilibrado, comportamentalmente imprevisível e
tem como primeira opção a burla ou o espezinhar das
regras. Nele o desdobramento é tão profundo, que
pode ser sincero quando mente; pode enganar, estando
convencido que não engana; pode lutar contra a
corrupção, praticando a corrupção; pode fazer leis
contra o órgão de segurança, embora tenha sido ou
ainda seja oficial (encoberto) de segurança e assim
por diante.
É importante entendermos que NÃO descrevo aqui um
doente, um caso patológico, mas um homem normal; ou,
se quiserdes, sim, descrevo um homem doente, mas é
um homem doente da “normalidade” das sociedades
totalitárias. Este tipo humano versátil e volátil
dá todas as maiorias eleitorais que ganham as
eleições nos países ex-comunistas. Também ele povoa
as instituições. Ele faz as leis, ele as espezinha.
Ele corrompe, ele luta contra a corrupção. Ele
promete, ele engana. O que quer que diga, ou [148]
desdiz, ou contradiz, de modo igual, sem seguir
nenhuma outra regra, senão o seu próprio interesse.
Ele levanta os problemas, e ele próprio os torna
bagatelas. Não pode construir nada, porque tudo que
faz é apenas agitação, é falta de plano, é
incapacidade de sentido, é impotência de projetar.
O homem formado pelas sociedades totalitárias é
“programado” para minar qualquer comportamento
institucional previsível, comportamento que é vital
para o funcionamento normal de uma sociedade normal.
Diante de qualquer problema público corrente,
manifestado na vida diária, tem sempre como primeira
opção ou o espezinhar as regras, ou o desconsiderar
a lei, ou o burlar os mecanismos institucionais
postos à sua disposição pela sociedade. Aparentando
respeitá-los, ele os pisoteará, e às pessoas
implicadas ele as enganará. Por quê? Porque sua
mente, acostumada a não crer em nenhum mecanismo
institucional, funciona assim; porque os seus
instintos anômicos assim o encaminham; porque a sede
de fintar a todos para sair-se melhor o torna
incapaz de ver os benefícios da cooperação,
preferindo sempre as vantagens de curta duração do
afrontamento ou do engano (mesmo que, a médio e
longo prazo, esta opção passe a ser custosa a ele
mesmo).

Esta é a grande realização dos regimes políticos


que criaram os ditadores totalitários de quem se
falou hoje de manhã: sociedades aterrorizadas [149],
famintas, selvagens e rancorosas, formadas por
pessoas com sentimentos morais e cívicos mutantes,
que se comportam como excluídas, quando são
incluídas; que não respeitam nenhuma regra, nem
mesmo quando os que estão ao redor as respeitam; que
se deixam guiar apenas por regras imprevisíveis, em
que todos os outros, que respeitam outras regras,
tropeçam de maneira sistemática; o que tem como
efeito, para cada um e do ponto de vista de todos,
que a regra social inevitável é a imprevisibilidade
de todos em relação a qualquer um – e daqui não pode
resultar senão anomia, em condições de lei. Com este
tipo humano, nada se agrega, embora tudo esteja
super-regulamentado e a despeito de todos os atores
sociais se debaterem freneticamente para obter algo.
Mas tudo é dinamitado de dentro. – Esta é a
experiência comunista do homem.

O que quero dizer é que os estados totalitários


destruíram completamente as suas sociedades, às
quais administraram pelo terror e aterrorizaram pela
administração. E no momento em que ruíram os estados
que as domesticaram e as tiveram cativas, vieram à
baila sociedades arruinadas e deformadas, para as
quais não tinha nenhum sentido político ou social a
liberdade, mas apenas um sentido individual-
anárquico, segundo a descrição que fiz
anteriormente. Ou seja, estas sociedades a-normais
despertaram bruscamente sob uma nova obrigação, de
algum modo imposta de fora (pela nova geopolítica):
[150] a de voltarem a ser normais – ou seja,
democráticas e liberais. Sentis o drama e o azar
destas sociedades? Elas despertaram para a liberdade
inaptas para a liberdade; e entraram em
funcionamento da democracia sem nenhum vestígio de
espírito democrático. E a causa de todos esses
azares foi o sonho de poder ilimitado acerca das
sociedades e dos homens que a ideologia comunista
alimentou com ressentimento revolucionário e força
moral, sonho por que lutaram para realizar os homens
mais “progressistas” da sua época e que, para ruína
deles e de seus semelhantes, foi “traduzido em vida”
sob a forma dos estados do socialismo real. Em que
tive o azar de passar metade de minha vida....”

(trecho final de seu ensaio “A memória dividida: Reflexões


acerca do comunismo: os seus efeitos e os nossos
defeitos” inserido em:

Uma idéia que nos deforma as mentes, tradução: Elpídio


Mário Dantas Fonseca, Conferência com o texto romeno:
Cristina Nicoleta Mă nescu, ©HUMANITAS, 2014, O idee
care ne suceş te minţ ile/ Andrei Pleş u, Gabriel Liiceanu,
Horia-Roman Patapievici – Bucureş ti: Humanitas, 2014)

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