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20/12/2019 A transformação do Judiciário em ator político | Eu & | Valor Econômico

Eu &
A transformação do Judiciário em ator político
A tensão entre os Poderes não decorre da mera disposição emocional de seus
integrantes, mas de fenômeno institucional mais profundo e complexo, com
desdobramentos ainda imprevisíveis

Por Pierpaolo Cruz Bottini — Para o Valor


20/12/2019 05h02 · Atualizado há 12 horas

— Foto: Nelson Provasi

Nos últimos tempos o estranhamento entre o Poder Judiciário e o Legislativo tem


pautado o noticiário e frequentado a arena de debates públicos. De um lado, o STF
ingressa no campo legislativo - anulando, criando e modulando leis - e avança sobre
parlamentares com medidas antes impensáveis, como buscas e apreensões em
gabinetes e residências. De outro, o Congresso ameaça instaurar CPIs para
investigar ministros da Suprema Corte e anda às voltas com pedidos de
impeachment dos mesmos personagens.

Nada acontece por acaso.


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20/12/2019 A transformação do Judiciário em ator político | Eu & | Valor Econômico

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Mais do que rusgas pontuais, há algo substancial em tais embates. A tensão entre os
Poderes não decorre da mera disposição emocional de seus integrantes, mas de um
fenômeno institucional mais profundo e complexo, com desdobramentos ainda
imprevisíveis e que precisa ser melhor estudado.

Zygmunt Bauman (1925-2017) dizia que vivemos em tempos líquidos, de conceitos e


instituições instáveis e cambiantes. A complexificação das relações políticas, a
velocidade da evolução científica e tecnológica e o advento das redes sociais criaram
novas formas de interação e de construção de mundos de vida que aceleram a
obsolescência de tudo o que nos cerca, inclusive de valores, dogmas e instituições.

A intensidade dessa desconstrução e do surgimento de novos paradigmas desafia


os responsáveis pela criação de regras e normas para o corpo social. A definição dos
limites entre atos permitidos e não permitidos é pautada pela incerteza, por
demandas contraditórias, porque cada setor ou classe compreende e aceita o novo
de diferentes formas e níveis. Não há consenso sobre a maneira de regulamentar
temas diversos como “fake news”, políticas de meio ambiente, gestão de dados,
moedas digitais e inúmeras outras questões que impactam a vida em sociedade.

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Isso afeta profundamente a atividade do legislador, fonte primária das normas de


conduta. Legislar nunca foi tarefa fácil, mas exercê-la em tempos líquidos, em meio
a interações fluidas e demandas heterogêneas é um desafio duro, ainda mais em
um contexto partidário fragmentado, sem orientação ideológica clara.

Diante dessa dificuldade, a resposta do Parlamento muitas vezes é o silêncio ou a


ambiguidade. A complexidade dos novos temas leva o legislador, em inúmeros
casos, a não decidir sobre questões relevantes. Acaba por manter em vigor regras
antigas e obsoletas, por deixar vazios normativos ou por criar normas imprecisas,
que admitem interpretações tão distintas que todos os grupos de interesse
representados se sentem contemplados, mesmo que diferentes suas pretensões.

Essa omissão ou imprecisão legislativa sobre assuntos essenciais tem


consequências institucionais. Ao deixar de tomar uma decisão política, o Parlamento
acaba por delegar ao Poder Judiciário a função de regulamentar essas questões.
Passa a ser atribuição dos magistrados, quando demandados, dar resposta e
preencher as lacunas legais em casos concretos.

Tomemos o exemplo do direito de greve dos servidores públicos. Previsto na


Constituição, esse dispositivo jamais foi regulamentado por lei diante da dificuldade
de compor os interesses dos diversos grupos afetados. A omissão do legislador fez
com que entidades de funcionários levassem a questão ao STF, que acabou por fixar
critérios e parâmetros para o exercício do direito constitucional. A Suprema Corte
acabou por legislar e fixar regras gerais sobre o tema, tomando a decisão política
que caberia ao Congresso Nacional.

A politização do Judiciário, portanto, não é obra do acaso ou de um desejo ativista ou


voluntarista de seus integrantes. Decorre de uma apreensão consciente da tarefa de
decidir sobre o conteúdo político de normas diante da omissão legislativa. Os
magistrados passaram a suprir o silêncio do Legislativo, a definir os limites do
permitido e proibido. O Poder Judiciário - em especial o STF - deixou de ser apenas
uma instituição voltada à análise da constitucionalidade de normas e passou a
preencher as lacunas deixadas pelo Congresso Nacional, com caráter abstrato e
vinculante, em atividade tipicamente normativa.

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E, como ocorre com pessoas e instituições, uma vez exercido, o poder tende a
buscar espaços maiores. Chamado a suprir omissões legislativas ou a esclarecer o
conteúdo de leis, o STF tomou gosto pelo avanço sobre áreas antes demarcadas
institucionalmente. Começou a se debruçar sobre a pertinência e oportunidade das
decisões políticas do legislador. Se antes ocupava um vazio conscientemente
deixado pelo Parlamento, empenhou-se em substituí-lo em determinados temas.
Assim, proibiu doações eleitorais por empresas, autorizou o aborto em certos casos
e até inovou em matéria penal, criando o crime de homofobia.

O STF tornou-se um personagem importante na definição de políticas públicas do


país, atribuindo-se um protagonismo inédito em temas como o uso de drogas,
pesquisas com células-tronco, prazos prescricionais de crimes, parâmetros do
indulto e assim por diante.

Não se trata de um fenômeno nacional. Luiz Moreira, em livro sobre o tema, traz
exemplos de episódios similares na Alemanha, no Canadá, na Itália, África do Sul e
em outros países. Nos Estados Unidos, a Corte Suprema deu a última palavra sobre
temas politicamente sensíveis, como o direito ao porte de armas (Columbia vs.
Heller), os limites de gastos em campanhas eleitorais (Citizen United vs. FEC), o
casamento entre pessoas do mesmo sexo (Obergefel vs. Hodges) e de tantos outros
casos, a ponto de Kaplan afirmar que os debates na Justiça americana são a
continuação da política por outros meios.

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Mas a hipertrofia judicial tem seus percalços. O primeiro deles é o déficit


democrático das decisões, uma vez que o Poder Judiciário não tem respaldo
eleitoral para definições de políticas públicas. Por mais bem-intencionados que
sejam seus passos em direção ao bem comum, ministros do STF não se
submeteram a sufrágios para representar o povo. Embora sejam escolhidos por um
presidente eleito, sua permanência no cargo não depende de avaliações periódicas.

Por mais que a Suprema Corte tente suprir tal deficiência com audiências públicas
ou com a chamada de entidades da sociedade civil para participar de processos
relevantes - com os “amigos da Corte”, tais iniciativas estão longe de conferir ao
Judiciário a legitimidade para a tomada de certas decisões políticas. Há uma
diferença significativa entre corrigir a constitucionalidade ou omissões de leis e
substituir o Parlamento em sua atividade típica. Por mais que se discorde do
legislador e de suas escolhas, trata-se do agente legitimado para atender e
representar as demandas sociais.

O segundo percalço é o escrutínio público. Quando trata de questões técnicas e


jurídicas, um tribunal é submetido a críticas da mesma espécie, provenientes de
profissionais e corporações ligadas ao mundo do direito. Quando avança sobre
temas políticos, submete-se ao crivo de outros setores.

A sociedade civil, movimentos populares, agentes econômicos e financeiros passam


a acompanhar, avaliar, comentar e debater o teor das decisões judiciais, não pelo
viés técnico jurídico, mas por suas consequências práticas e conotações ideológicas.
O profano adentra o debate jurídico. Decisões e acórdãos ocupam as primeiras
páginas de jornais e espaços nobres no noticiário. Ministros dão entrevistas,
participam de programas de televisão, são aplaudidos e vaiados em aviões e
restaurantes. Tal fenômeno adquire tamanha intensidade que alguns magistrados
deixam a toga para submeter-se ao pleito eleitoral, buscando o foro mais adequado
para um ativismo estranho à prestação jurisdicional.

Em suma, o STF aos poucos se transforma em um ator político, e é preciso


compreender que essa politização é um fenômeno mais complexo e substancial do
que revelam as aparências. Por trás dos embates cotidianos, das trocas de farpas
em plenários ou sessões, das ameaças recíprocas entre Poderes, há uma
transformação substancial, um complexo processo de remodelamento político e

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redefinição das funções institucionais dos órgãos públicos diante de uma nova
formatação social.

Difícil prever o destino dessa reacomodação estrutural, mas é fácil perceber que se
trata de um fenômeno duradouro, que impacta e impactará de forma profunda o
sistema e a organização política do país.

Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de direito penal da USP. Foi


Secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça em 2005 e 2006.

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