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Do paladino certinho ao C omo bons nerds que somos, adoramos
acompanhar as aventuras de heróis.
dos heróis era composta de reis, filhos de deuses e outros
indivíduos marcados desde o nascimento como especiais.
Em quadrinhos, no cinema, em séries e em Em algum momento, a definição de herói mudou. Inde-
livros, torcemos por nossos heróis, sofremos pendentemente de nascimento especial ou uma qualidade

matador implacável, quando eles parecem à beira da morte e


vibramos quando eles derrotam o vilão.
que possibilite façanhas incríveis, hoje em dia entendemos
“herói” como alguém que incorpora os valores que nossa
cultura vê como positivos e trabalha (em geral com grande
Em RPG e videogame, nossa identificação risco para si mesmo) para que esses valores sejam preser-

o personagem certo
é ainda maior. Nessas mídias, somos os vados. Parece pedante? Então vamos simplifcar. Em geral,
heróis, temos a oportunidade de sair de consideramos um herói alguém muito bonzinho, que se sacri-
nossas vidas mundanas por algumas horas. fica pelos outros. Nossa cultura valoriza a vida, o bem estar
Sim, o conceito do herói é fundamental para das pessoas comuns e a individualidade. Vemos a busca de

para sua história a cultura em quase todos os níveis.


Mas... Será mesmo?
ganho pessoal como a norma e a abnegação como algo a
ser almejado, algo moralmente superior. Assim, alguém que
preserva vidas e se arrisca para que outros tenham seguran-
Será que nós vibramos quando o herói derrota o vilão? Ou ça, liberdade e felicidade é visto como um herói.
lamentamos, porque o vilão é muito mais legal e interessante?
Saindo um pouco do âmbito da ficção, hoje em dia pes-
Será que embarcamos nas aventuras dos heróis ou ficamos soas como bombeiros e médicos em zonas de guerra são
questionando por que diabos ele se arrisca por um bando de chamados de heróis porque suas profissões envolvem preser-
gente que nunca viu? Será que assumimos o papel de heróis var algumas das coisas que mais valorizamos e existe risco
ou de mercenários em busca de lucro e psicopatas em busca em seu trabalho. Isso pareceria muito estranho para um grego
de vingança? Será que os heróis são tão fundamentais na antigo. Chamar de “herói” alguém que não é um governante
cultura pop atual? Ou será que o fundamental são explosões, e que não realiza nenhum feito sobrehumano, apenas porque
lutas de espadas e fugas espetaculares vivenciadas por cíni- salva as vidas de plebeus? Essa cultura deve estar louca!
cos que só se importam consigo mesmos?
A definição atual de herói é distorcida quando atletas e
Coloquem a cueca por cima das calças, leitores. Hoje outras celebridades são chamados de heróis por conquista-
nós vamos explorar o que são heróis. rem grandes vitórias. Um atleta que vence um campeonato e
é considerado um herói é muito mais próximo da definição
Para o alto e avante! clássica. Ele não está se sacrificando ou lutando por um bem

ENTENDENDO
maior, apenas realizando grandes feitos ao usar qualidades
Para começar vamos perguntar: o que é um herói? que o colocam acima das pessoas comuns.
A definição original de herói tem pouco a ver com o E, é claro, todo esse papo de altruísmo cai por terra
que pensamos hoje em dia. Quando o conceito se formou quando analisamos obras de ficção que não se originam no
na Grécia antiga, “herói” era simplesmente alguém acima ocidente. É muito comum que em animes e mangás o herói
das pessoas comuns, um personagem com uma qualidade não lute pelo bem e pela justiça, mas para ser o melhor em
distinta que possibilitava feitos impressionantes. Aquiles era algo. É claro, ele ainda incorpora os valores da sociedade
um herói por sua força, habilidade e bravura, mesmo que na qual se origina (em geral lealdade, perseverança e hones-

NOSSOS HERÓIS
sua personalidade não fosse muito “heroica” na definição tidade), mas a ideia de lutar por algo maior que si mesmo é
moderna. O mesmo pode ser dito de Ulisses: sua jornada incorporada no conceito de que a excelência é algo maior
na Odisseia começa quando ele desafia Poseidon, dizendo que o indivíduo. Ryu não quer ser o maior lutador do mundo
que nem mesmo o deus dos mares seria capaz de vencê-lo. para alcançar fama e fortuna: ele quer fazer isso pelo amor
Poseidon o faz se perder por vinte anos enquanto ele tenta à luta, porque fazer isso é de alguma forma “a coisa certa”.
voltar para a ilha da qual é rei. Nenhum altruísmo aparen- O mesmo vale para todos os heróis de anime que fazem
te, nada de lutar por um bem maior, apenas uma série de promessas de vitória para familiares e mentores: a família,
dificuldades causadas por orgulho excessivo. No entanto, a sociedade e a relação professor/aluno são vistas como
Ulisses era um herói, pois sua esperteza (e sorte) o colocava algo maior que o indivíduo, e ele luta para não decepcionar
acima das pessoas comuns. Na Grécia, a imensa maioria essas figuras de autoridade. E, por isso, é um herói.
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O heroísmo do anti-herói narrativas complexas e psicológicas. Não haveria Mad Men
sem Peggy, não haveria Sopranos sem a família de Tony Você sequestraria
Durante a maior parte da história, a ficção se ocupou Soprano, não haveria Rick and Morty sem Morty. Mesmo a filha desse cara?
de heróis em todas essas definições. Surgiram inclusive sub- quando os protagonistas são pessoas extraordinárias e su-
divisões como o herói com falhas — um herói que não se periores, os anti-heróis ancoram a narrativa na realidade.
encaixa perfeitamente com a moralidade vigente e é capaz
O problema surge quando rejeitamos totalmente os he-
de questionar a si mesmo (pense em alguém como o Wolve-
róis, mesmo os heróis com falhas, e tentamos transformar
rine). O RPG Castelo Falkenstein faz uma boa descrição de
heróis em anti-heróis. Tentamos esmagar o extraordinário e
diferentes tipos de heróis sob o ponto de vista vitoriano. No
forçar todos a serem “normais”.
entanto, um fenômeno relativamente recente dominou quase
todas as narrativas: foi o surgimento do anti-herói.
Embora hoje em dia seja comum chamar um herói com Moedas & Mercenários
falhas de anti-herói, é bem útil entender o anti-herói no sentido Vamos imaginar o início de uma campanha de RPG. O
acadêmico. O anti-herói é uma pessoa comum. Ele não tem ca- cenário é fantasia medieval tradicional, com elfos, magos,
pacidades acima da maioria, não é moralmente superior, não cavaleiros, dragões e todas essas coisas legais. Na primeira
necessariamente luta por algo maior que ele mesmo. Já houve sessão, os personagens jogadores são contratados por uma
uma discussão sobre anti-heróis há vários anos aqui mesmo aldeia para exterminar os goblins que habitam uma caverna
na Toolbox, na época da revista DragonSlayer. Se você tem próxima. Os personagens poderiam simplesmente atender
acesso ao exemplar, pode ler um pouco mais sobre isso. ao pedido de ajuda dos aldeões aterrorizados — afinal, os
As razões para o surgimento do anti-herói não nos interes- goblins estão queimando plantações e chacinando animais.
sam aqui. O que nos interessa é que muitos personagens da Contudo, isso soa muito inverossímil. Por que os aventureiros
ficção hoje em dia são anti-heróis. O anti-herói é como nós. vão se arriscar para resolver isto sem receber nada em troca?
Talvez por isso, seja muito mais fácil aceitar um anti-herói O mestre nem sugere que o serviço seja feito de graça: para Mesmo assim, quando chegam ao castelo, os jogadores bar- pretando anti-heróis. Mesmo que os personagens tenham
do que um herói. O anti-herói não tem a obrigação de fazer atrair a atenção dos jogadores, faz com que os aldeões ofe- ganham e tentam arrancar o máximo de dinheiro possível habilidades extraordinárias, eles têm a moralidade e a
nada que seja superior ao que nós mesmos faríamos (ou, reçam a antiga espada mágica do fundador da aldeia como do barão. Eles acabam participando da defesa do castelo. mentalidade de anti-heróis. Se tivessem a opção, ficariam
em geral, ao que somos capazes de fazer). Personagens recompensa. Afinal, ninguém quer uma história ingênua em O barão pede para que avisem um alto nobre e mais uma em casa. Mais uma vez, isso não é errado... Desde que
como o Super-Homem ou o Capitão América podem ser que os protagonistas apenas viajam pelo mundo fazendo o vez eles cobram. Então um deles tem a ideia de verificar se seja uma opção consciente, e não uma sombra de cinismo
vistos como bonzinhos demais ou inverossímeis, simplesmen- bem sem razão alguma, certo? não há nenhuma missão que pague mais nas redondezas. pairando sobre a narrativa.
te porque são heróis no sentido corrente — são altruístas, Quando estão explorando o complexo subterrâneo, os Afinal, com o culto do Deus da Morte em ação, devem existir Existem excelentes histórias sobre personagens que não
incorporam os valores morais de nossa cultura e lutam por aventureiros descobrem que os goblins são cultistas do Deus vários outros covis de goblins, certo? O mestre faz com que
querem ser heróis. John McClane só se envolve com os even-
algo maior que eles mesmos. E, bem, eles são inverossímeis. da Morte. Mais do que isso, descobrem planos para que um mensageiro traga a notícia de que os cultistas do Deus
tos da série Duro de Matar porque é ativamente colocado
Seu papel nunca foi o de retratar a realidade que vivemos. o culto do Deus da Morte invada o castelo do barão num da Morte foram avistados perto da cidade natal de um dos
nessas situações, com o sequestro de sua ex-esposa, com a
Já personagens como Jesse (de Breaking Bad) e Tyrion (não ataque surpresa. O mestre já tem toda a próxima aventura aventureiros. O melhor jeito de reunir forças para enfrentá
tomada de um aeroporto, etc. Ele é fisicamente extraordiná-
preciso dizer de onde, certo?) são vistos como “mais bem planejada: os personagens vão correr ao castelo do barão -los é conseguir a aliança do alto nobre. O mestre respira
rio, mas moralmente mediano. Bryan Mills (o personagem
construídos” porque são essencialmente pessoas comuns que para avisar o nobre do ataque iminente, então participar aliviado, mas já está pensando qual malabarismo terá de
de Liam Neeson em Busca Implacável) só luta contra uma
tomam decisões que todos nós poderíamos tomar. Claro, da resistência. Isso vai dar início à verdadeira história da fazer para motivar os protagonistas ao próximo passo.
rede de tráfico humano porque sua filha é sequestrada. Ele
Tyrion, além de ser um nobre, é muito inteligente, mas sua campanha — uma luta prolongada contra o culto do Deus Isto não é um jeito errado de jogar RPG — como sempre não se preocupa em resolver o problema além do que o afeta
inteligência não chega ao nível sobrehumano de um Sherlock da Morte que está infiltrado em todos os níveis da sociedade. dizemos, o único jeito errado é jogar sem se divertir. Mas diretamente. Mais uma vez, ele não luta por nada maior que
Holmes. É fácil se identificar com ambos, porque eles veem Para a surpresa do mestre, os personagens dão de claramente há um conflito de pressupostos. Os jogadores
o mundo de suas histórias com uma perspectiva quase exte- o que está a seu redor. Falamos um pouco sobre esse tipo de
ombros e partem para o lado oposto, em busca de outro estão se recusando a serem heróis. Eles querem interpretar narrativas numa coluna anterior sobre “pequenas histórias”.
rior. Enquanto muitos outros personagens estão tão inseridos trabalho lucrativo. Ele tenta incentivar os jogadores, sem mercenários preocupados apenas com o próprio lucro e
na narrativa que aceitam tudo que acontece como normal, a própria segurança. Na verdade, nesse tipo de situação Por outro lado, temos personagens de forte moralidade,
sucesso. Nenhum dos personagens é nativo da área, nin-
eles são a “voz do bom senso”, reagindo como a maioria guém é paladino. Eles simplesmente não se importam que o existe uma grande chance de que os jogadores não queiram como Luke Skywalker, o Super-Homem, o Capitão América,
de nós reagiria. Eles são apenas dois exemplos da onda de baronato seja destruído. Na verdade, querem se afastar do nem mesmo defender sua cidade natal. Tudo que não seja o Demolidor, James Bond, Dexter Morgan, o Justiceiro...
anti-heróis em nossas obras favoritas. lugar o mais rápido possível. O infeliz mestre enfim consegue eles mesmos é descartável. Enquanto o mestre esperava um Peraí! O Justiceiro? Como assim o sanguinário e homi-
Não há nenhum problema com anti-heróis. Na verdade, motivar os jogadores a avisar o barão quando menciona jogo com heróis (fantasia medieval tradicional pressupõe cida Frank Castle é “moralmente superior” ao boa-praça e
sua existência é o que possibilita uma grande riqueza de que pode haver uma grande recompensa pela informação. isso na maior parte dos casos), os jogadores estão inter- incansável John McClane? E o que dizer de Dexter Morgan?
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Falar sobre a moralidade superior de um serial killer deve ter o Homem-Aranha. A família de Frank Castle é apanhada no confiar enquanto a escuridão avança por todos os lados melhor em narrativas cheias de feitos extraordinários, mas
me colocado em alguma lista de suspeitos por aí... fogo cruzado entre duas gangues (nos quadrinhos, a série perde completamente a força se os protagonistas não derem em que o público não precisa concordar com as ações
Mas existe algo em comum a todos eles. Tanto os es- conta uma origem diferente). Frank então chega à conclusão bola para essa escuridão. A tentativa de “verossimilhança” do protagonista. Muitas vezes são histórias extremamente
coteiros Luke e Kal-El quanto os chacinadores Justiceiro e de que a mesma guerra que ele vivenciou no Vietnã existe por parte dos jogadores não ajudou na narrativa, apenas focadas no personagem principal. Exemplos: Walter White
Dexter não desistem da luta quando seu problema pessoal na cidade grande e que ele precisa agir como um soldado deixou-a vazia e frágil. Em primeiro lugar, porque “realismo” (dono de um “império”, é o melhor químico que surge na
contra o crime. Muitas vezes o primeiro passo de um novo na mentalidade de pretensos heróis não acrescenta nada. história), Tony Soprano (chefão da máfia, continua na ativa
é resolvido. Um problema pessoal pode ser uma motivação
super-herói é agir a respeito do motivador inicial — por Dar falhas a heróis é aumentar sua complexidade; torná-los quando muitos de seus colegas são presos ou mortos), Don
inicial, um gatilho para que eles conheçam uma situação
exemplo, o Homem-Aranha vai atrás do assaltante assassino. egoístas e apáticos é tirar seu próprio âmago, deixá-los Draper (parte da “aristocracia” de Nova York, é capaz
que precisa ser corrigida. Contudo, logo em seguida eles
Logo depois, ele expande essa moralidade para o mundo tediosos, gerar no público a sensação de que algo “está de fazer os clientes chorarem com uma apresentação na
passam a agir fora do âmbito pessoal, por algo maior que
a seu redor e assume responsabilidade por problemas que faltando”. Em segundo lugar porque, por mais que alguns agência de publicidade).
eles mesmos. Eles começam a ser... Heróis!
não são seus. O uniforme dos super-heróis os marca como não queiram admitir isso, cinismo total não é realista. Em seguida, temos os heróis heroicos. Estes são a evolu-
parte de algo maior que eles mesmos. Se o objetivo fosse No mundo real, tragédias e crises são eventos devas- ção moderna do conceito de herói. Personificam os valores
Super ou herói? apenas ir atrás de desafetos pessoais, não haveria por que tadores, mas motivam o surgimento de pessoas que agem da sociedade e são exemplos morais para todos. Continuam
exibir um símbolo, bastaria mostrar o rosto e se vingar. acima de seus próprios interesses. Mesmo que a maioria das sendo poderosos, mas hoje em dia não precisam mais ser
É muito fácil notar a transição moral/ideológica de
pessoa normal a herói nos super-heróis tradicionais. Tanto A moralidade dos super-heróis não é necessariamente pessoas esteja preocupada só com o pequeno mundinho a nobres. Eles lutam por algo maior que eles mesmos e se ocu-
escoteiros quanto malvadões têm uma jornada parecida: mais elevada que a nossa. Wolverine e o Justiceiro não são seu redor, existem aqueles que lutam por algo maior. Uma pam de problemas que não lhes dizem respeito. Funcionam
caras legais. Mas é uma moralidade superior no sentido de história heroica deve exacerbar essas ações (como é o caso melhor em histórias épicas contra um grande mal ou como
algo acontece para que adquiram seus poderes (ser picado
que não segue o senso comum, não se encaixa com o que é o dos super-heróis, da fantasia épica, etc.), não puxar seus personagens recorrentes em narrativas abertas. É importante
por uma aranha radioativa, ser treinado por ninjas, inventar
“normal” da humanidade. É uma moralidade extraordinária. protagonistas para a vala comum da indiferença. que sua moralidade possa ser demonstrada de novo e de
uma armadura supertecnológica...) e outra coisa aconte-
As séries da Marvel em pareceria com a Netflix são grandes novo e que seja abraçada pelo autor, mesmo com o risco
ce para lhes mostrar que o mundo tem falhas graves que Histórias heroicas exigem uma moralidade heroica. No
culpadas dessa tentativa de banalizar os heróis. Num extremo, de que pareça ingênuo ao público. O herói heroico faz essa
precisam ser corrigidas. Peter Parker deixa um assaltante caso da campanha contra o culto ao Deus da Morte que
temos o Demolidor, que enfrenta o crime na Cozinha do Infer- moralidade dar certo. Além disso, ele não se questiona,
escapar e o bandido mata seu tio. Ele aprende que com usamos como exemplo anteriormente, a história de um pe-
no. No outro, temos Jessica Jones, que está pouco se lixando apenas age. Exemplos: Super-Homem, Capitão América,
grandes poderes vêm grandes responsabilidades e se torna queno grupo de heróis que tenta descobrir em quem pode
para qualquer coisa que não a afete diretamente. Contudo, Rei Arthur, Aragorn.
Luke Cage, o Punho de Ferro e o Justiceiro estão num meio- Os heróis com falhas derivam dos heróis heroicos, mas
Não chora, Justiceiro. termo nebuloso, em que não conseguem sair de suas histórias são infundidos de humanidade e questionamentos. Em geral,
Você é herói sim! de vingança pessoal para agir em nome de algo maior. Coisas não são nobres, mas têm algo que os diferencia das pessoas
horríveis acontecem a seu redor de novo e de novo para que normais em termos de capacidades. O herói com falhas luta
eles tenham uma “desculpa” para agir. É como se os roteiristas por algo maior que ele mesmo e tenta seguir a moralidade
tivessem vergonha de afirmar que esses personagens são, sim, vigente, mas isso é difícil para ele. Ele pode quebrar essa
heroicos, de seu próprio jeito falho e questionável. Heróis não moralidade, mas tem noção de que isso é de alguma forma
precisam de desculpas. Eles agem porque algo dentro deles os errado. Mais importante, ele se questiona e pode desistir no
diferencia das pessoas a seu redor. meio do percurso. Funcionam muito bem em quase todos os
tipos de histórias em que haja um vilão definido, pois aceita-

Resgatando os heróis mos com mais facilidade um protagonista com dúvidas (como
nós mesmos). No entanto, ele perde a força e o significado
Como até agora fizemos uma grande salada com heróis em histórias que giram em torno de si mesmo. Exemplos:
clássicos, heróis bonzinhos, heróis com falhas, anti-heróis e Homem-Aranha, Luke Skywalker, Buffy. James Bond era um
outros, vamos tentar classificá-los em categorias e analisar herói heroico nos primeiros filmes (principalmente porque
em quais histórias eles se encaixam melhor. Note que isto o imperalismo inglês era tratado como moralmente inques-
não é um manual de teoria da literatura, apenas uma forma tionável e os inimigos eram só maus), mas nos filmes mais
de raciocinar que pode ajudar a montar narrativas. recentes é um herói com falhas. O personagem original nos
Começando pelo começo, vamos analisar os heróis clás- livros também é um herói com falhas.
sicos — aquele pessoal da Grécia antiga. Heróis clássicos Vamos chamar a próxima categoria de “heróis sombrios”,
têm uma qualidade única que os diferencia dos “plebeus” e por falta de um termo melhor. Heróis sombrios podem ou não
geralmente são reis ou nobres. No entanto, sua moralidade ser nobres, mas definitivamente são superiores em termos de
nem entra na equação. Este tipo de personagem funciona poder às pessoas comuns. Eles notam a moralidade vigente
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em cenários que devem permanecer estáticos, pois
Ellen Ripley: só mudam o ambiente de forma bem limitada. Um
falhas? herói amoral vai matar um criminoso por vingança,
mas não vai começar uma cruzada contra todos
eles. Exemplos: John McClane, John Wick, Rocky,
Bruce Lee na maioria de seus filmes. Em geral, he-
róis de filmes de aventura estão nesta categoria.
Por fim, anti-heróis somos nós. Anti-heróis são
pessoas normais, plebeus, sem grandes habilida-
des, com moralidade comum. Muitos personagens
começam como anti-heróis e evoluem para heróis
amorais. Anti-heróis funcionam muito bem em his-
tórias pequenas e intimistas, como a maioria dos
dramas e comédias. Também podem ser ótimos
protagonistas de terror ou mesmo aventura, mas
sempre tentando sobreviver ou usando de enge-
nhosidade para vencer, como “azarões”. Em geral,
seu maior desejo é sair da história, mas podem
adquirir a moralidade de verdadeiros heróis heroi-
cos. Quando uma história pode ser resumida em “o
personagem está no lugar errado na hora errada”,
a melhor aposta é um anti-herói. Exemplos: quase
todos os personagens de Stranger Things, Arthur
Dent, Jesse Pinkman. Ellen Ripley começa como
e interagem com ela, mas não a seguem — diferentemente
uma anti-heroína, mas evolui para uma heroína amoral no
dos heróis clássicos, que não interagem com a moralidade
fim de Alien e uma heroína com falhas nos próximos filmes.
vigente. Contudo, em termos de comportamento os heróis
sombrios se aproximam mais dos heróis heroicos. Eles lu-
tam por coisas maiores do que eles mesmos e seguem seu
próprio código de conduta (muitas vezes bastante rígido).
Adeus aos heróis
Embora seja possível que se questionem (como heróis com Todos os tipos de personagens podem ser usados para
contar boas histórias — e os tipos que apresentamos aqui
falhas), o mais comum é que sejam certos de si e implacáveis.
são apenas algumas categorias arbitrárias. Contudo, é
Funcionam melhor em histórias com um grande mal a ser de-
preciso adequar o personagem certo para a história certa.
safiado, mas não são bons focos de empatia com o público.
Heróis heroicos, heróis com falhas e heróis sombrios funcio-
Em geral são necessários coadjuvantes para isso. Exemplos:
nam bem juntos, pois todos lutam por algo maior, de sua
Wolverine, o Justiceiro, a maioria dos personagens de Clint
própria forma. Heróis clássicos, heróis amorais e anti-heróis
Eastwood em filmes de faroeste.
também podem ser um bom time, numa história focada em
É difícil achar um nome para a próxima categoria, então suas narrativas pessoais. Anti-heróis se misturam bem com
vamos com “heróis amorais”. Heróis amorais não são na todos, quando são coadjuvantes.
verdade “amorais”, só não têm nenhuma moralidade espe-
O problema surge quando a moralidade da história
cial. Em termos morais, são anti-heróis, mas têm capacida-
entra em conflito com a moralidade do herói. Isto apenas
des acima das pessoas comuns. Em geral, não são nobres.
enfraquece ambos.
Suas histórias costumam seguir um padrão: querem ficar na
sua, mas algo os força a se envolver por razões pessoais. Não há vergonha nenhuma no heroísmo, só orgulho. Mas
Eles agem de forma extraordinária até que o problema seja criar uma boa história com personagens mal ajustados...
resolvido, então param. São bons para histórias fechadas Isso sim é um feito heroico!
que terminam com a morte do vilão, ou em simples sagas
de superação pessoal. Dão muito certo no mundo real ou LEONEL CALDELA
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