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Este artigo analisa como a difusão do padrão de governança centrado na busca de uma
“competitividade urbana” tem levado o Estado a abandonar parte de suas funções tradicionais
de gestão e planejamento urbano, transferindo-as para atores privados, o que constitui uma
afirmação crescente da lógica do capital imobiliário sobre a estrutura das cidades e a vida de
suas populações. Discutindo a evolução recente de três capitais brasileiras, Natal, São Paulo e
Salvador, ele analisa os discursos e procedimentos que vêm sendo utilizados para justificar e
legitimar esse novo padrão de governança, assim como destaca seus efeitos adversos em termos
sociais, ambientais e urbanos.
PALAVRAS-CHAVE: Metrópoles. Capital imobiliário. Desenvolvimento urbano.
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urbana.1 Contudo, essa estabilidade não impede que dade. Como bem ressaltam Logan e Molotch (1987),
se verifiquem algumas transformações comuns, com nessas sociedades, a produção do espaço urbano
modalidades e alcance específicos em cada cidade. envolve um conflito entre o seu valor de uso e o
Destacam-se, entre elas, mudanças na estrutura eco- seu valor de troca, o que opõe, de um lado, os
nômica e social dessas cidades. Tais mudanças são moradores da cidade, interessados, sobretudo, na
associadas à reestruturação produtiva e a outras defesa da sua qualidade de vida, e, de outro, uma
exigências da nova fase de desenvolvimento capita- coalizão de interesses econômicos, comandada pelo
lista, como uma relativa desindustrialização, um capital imobiliário, que busca um maior retorno
avanço e uma maior diversificação das atividades financeiro e uma ampliação dos seus lucros, com
terciárias, flexibilização das relações de trabalho e a transformação da cidade em uma espécie de “má-
um aumento das desigualdades. Caracterizam-se quina de crescimento”.
pela expansão desses centros para as bordas e para Ao longo do processo de urbanização do
o periurbano, assim como o descenso demográfico, Brasil, como se sabe, os interesses dessa coalizão
o empobrecimento ou a própria deterioração de foram sempre dominantes. Embora o modelo das
antigas áreas centrais, paralelamente ao surgimento grandes cidades europeias estivesse no imaginário
de novas centralidades, muitas vezes associado à de suas elites, nas condições do desenvolvimento
edificação de equipamentos de grande impacto na do país (marcado pelo seu caráter excludente e pela
estruturação do espaço urbano, como shopping sua incapacidade de integrar plenamente as mas-
centers, grandes hospitais, complexos empresari- sas urbanas), as orientações que presidiram a ex-
ais ou centros de convenções. Há ainda a difusão pansão das cidades e o modelo de planejamento
de novos padrões habitacionais, com inversões urbano modernista e funcionalista não chegaram a
imobiliárias destinadas aos grupos de alta e média se generalizar. Definindo os padrões de ocupação
renda e a proliferação de condomínios verticais e e uso do solo e apoiado na centralidade e
horizontais fechados e protegidos por dispositi- racionalidade do aparato do Estado, esse modelo
vos explícitos de separação física e simbólica, como estendeu-se apenas a uma parte das cidades, a
cercas, muros e sofisticados aparatos de seguran- denominada cidade “legal” ou “formal”. Embora a
ça, o que amplia progressivamente a autossegregação maioria delas dispusesse de um Plano Diretor e
dos mais ricos, a fragmentação e as desigualdades de órgãos encarregados de sua aplicação, esses
urbanas. Finalmente, há o abandono, por parte do planos ignoravam a cidade “informal” e suas áreas
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Estado, de boa parte das suas funções tradicionais de pobreza, desequipadas e desassistidas, bem
de planejamento e gestão urbana e metropolitana, como questões como circulação, segregação e dis-
que vêm sendo transferidas para atores privados e tribuição dos serviços e equipamentos. O cresci-
levam a uma afirmação crescente da lógica do capi- mento urbano ocorreu à margem desses planos,
tal imobiliário na produção e reprodução dessas que, como assinalam Villaça (2005) e Maricato
cidades, com impactos decisivos sobre a estrutura (2002), transformaram-se em “planos-discurso”,
urbana e a vida de sua população. com um conteúdo genérico e restrita ou nenhuma
No que se refere a essa última transforma- aplicação, cumprindo um papel eminentemente
ção, objeto do presente trabalho, inicialmente é ideológico e ajudando a encobrir o motor que efe-
preciso reconhecer que, nas sociedades capitalis- tivamente comanda os investimentos e a expansão
tas, a interferência do capital imobiliário sobre o urbana: os grupos dominantes locais, o capital
desenvolvimento urbano não constitui uma novi- imobiliário e as empreiteiras.
É verdade que, na fase de redemocratização
1
Ver, por exemplo, Taschner; Bógus, 1999; Ribeiro, 2004;
Mattos, 2004 e 2010 a e b; Shapira, 2000; Janoschka, do Brasil, foi criado e ganhou força um amplo
2002; Duhau, 2005; Sabatini, Cáceres, Cerda, 2004; movimento social com a bandeira da reforma ur-
Bayon, 2008; Carvalho, Pereira 2008 e 2010, Cordera;
Kuri; Zicardi, 2008; Gonzalez, 2010, Veiga, 2010. bana, reunindo movimentos populares por mora-
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dia, transporte e saneamento, associações profis- imobiliária, assim como recursos do crime organi-
sionais ligadas à questão urbana, entidades acadê- zado e do narcotráfico) e um novo enfoque de
micas e sindicais, grupos católicos ligados à Teo- governança, que se rege pelos princípios de
logia da Libertação e prefeitos de partidos de es- subsidiariedade estatal, ênfase nos mecanismos de
querda. A atuação desse movimento levou à in- mercado e busca de competitividade urbana, dei-
corporação, na Constituição de 1988, de determi- xando em plano absolutamente secundário o aces-
nados dispositivos e à posterior aprovação do Es- so mais justo aos fundos públicos, a redistribuição
tatuto das Cidades, que se orientava para a preser- de renda e a proteção ambiental.
vação da função social e ambiental e para a gestão Sob a influência do ideário neoliberal, de
democrática desses centros, incluindo instrumen- agências multilaterais e de alguns consultores in-
tos, mecanismos, processos e recursos para a sua ternacionais, em muitas cidades da América Lati-
realização. Contudo, apesar de um reconhecimen- na, a governança vem assumindo um novo signifi-
to internacional, as disposições do Estatuto têm cado, com o abandono da matriz de planejamento
sido muito pouco observadas, persistindo ignora- racionalista e funcionalista e a adoção do denomi-
das, contestadas ou objeto de uma intensa dispu- nado “empreendedorismo urbano”. Discutida por
ta sociopolítica e jurídica. autores como Harvey (2005), Vainer (2002),
Nessas circunstâncias, com as transforma- Maricato (2002), Gonzalez (2010) e Mattos (2010a;
ções econômicas e sociais contemporâneas, o cará- 2010b), essa governança se inspira em conceitos e
ter, a dimensão e os impactos do conflito de inte- técnicas oriundas do planejamento empresarial,
resses em torno do processo de desenvolvimento compreende a cidade, principalmente, como su-
urbano também se modificaram e se ampliaram, jeito ou ator econômico e vê como eixo central da
conforme autores como Duhau (2005) e Mattos questão urbana a busca de uma competitividade
(2010a; 2010b) e a própria observação empírica orientada para atrair os capitais que circulam no
deixam patente. A difusão das tecnologias de co- espaço sem fronteiras do mundo globalizado, de
municação e informação, a ampliação da malha forma a ampliar os investimentos e as fontes gera-
viária e o uso crescente do automóvel têm dores de empregos.
viabilizado novas formas de mobilidade e Para o alcance desse objetivo, competiria aos
conectividade e reduzido o peso do fator distân- governantes locais utilizarem estratégias de marketing
cia, provocando mudanças no comportamento para a promoção e “venda” da imagem de sua cida-
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país, mas que, a partir da década de 1970, experi- no foi elaborado a partir de um extenso e
mentou um significativo crescimento econômico, aprofundado diagnóstico da cidade real e com uma
com a implantação, em seu território, de novas e ampla participação de intelectuais, urbanistas, en-
modernas atividades, a exemplo de um polo têxtil tidades profissionais, movimentos ecológicos e
e de confecções, da carcinicultura e de um polo de movimentos populares locais. Orientando-se para
fruticultura irrigada para exportação, da explora- o pleno desenvolvimento das funções sociais da
ção de petróleo na Bacia Potiguar e de uma grande propriedade urbana e da cidade e procurando as-
expansão do turismo no seu litoral. segurar o uso socialmente justo e ecologicamente
Contando com apenas 359.936 habitantes equilibrado do seu território, ele incorporou vári-
em 1980, Natal foi beneficiada pelos impactos di- os princípios e mecanismos inovadores (que vie-
retos e indiretos dessas novas atividades e, espe- ram, posteriormente, a ser incluídos no Estatuto
cialmente, pela implantação de uma ampla das Cidades), como a outorga onerosa, a transfe-
infraestrutura turística para a exploração de suas rência do potencial construtivo, o IPTU progressi-
características culturais e ambientais. A estrutura vo no tempo, a criação de zonas especiais de inte-
econômica e urbana da cidade se transformou, resse social e ambiental (com destino específico e
experimentando uma significativa expansão e mo- normas próprias de uso e ocupação do solo) e de
dernização. Sua população cresceu bastante, che- um fundo de habitação para investimentos de in-
gando a 712.312 habitantes no ano 2000 e a 803.739 teresse social.
em 2010, além de comandar uma região metropo- Mas nem todas essas disposições se materi-
litana com 1.351.004 moradores segundo o último alizaram.4 Com a mudança do prefeito e da com-
Censo (Clementino, 2003). posição da Câmara, cresceram as pressões para uma
Como seria de esperar, o processo de ex- revisão do Plano, orientadas pelos interesses do
pansão e modernização da cidade foi estreitamen- setor imobiliário. Com o pretexto de que sua rigi-
te articulado com a expansão imobiliária, elevan- dez estaria prejudicando a cidade em termos da
do o preço de terra urbana e dos imóveis e estimu- implantação de uma infraestrutura urbana moder-
lando a especulação, entre outros aspectos, por- na e do recolhimento de impostos, a nova admi-
que os encantos naturais dessa capital começaram nistração municipal assumiu outra postura, pas-
a atrair europeus em busca de uma segunda resi- sando a promover modificações fragmentadas para
dência nos trópicos, com baixos custos, tendo em viabilizar (sem grandes questionamentos e reações)
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nou sendo aprovado em 2007, mas com uma Grande do Norte, um Plano de Desenvolvimento
tramitação bastante tumultuada. Essa revisão con- do Setor Imobiliário e da Construção Civil, ofere-
tou com uma intensa participação dos diversos cendo-lhe uma série de benefícios em termos tribu-
segmentos da sociedade e discutiu amplamente as tários, ambientais e sociais, além de assinalar a ne-
condições, os problemas e os destinos da cidade. cessidade de “[...] reconciliar a prefeitura de Natal
Contudo, quando o texto com o projeto de lei foi com a totalidade dos mercados imobiliários e da
levado para a apreciação da Câmara, os vereadores construção civil” (Duarte, 2011, p.463).
introduziram um conjunto de emendas de inte- Empenhou-se na divulgação dos atributos
resse do capital imobiliário, suprimindo a prote- positivos e na “venda” da cidade, apresentando-a
ção à paisagem da Via Costeira e a possibilidade como um lugar ideal e seguro para investir e para
de o poder executivo institucionalizar novas áreas viver, em declarações como a que foi publicada em
non edificandi, reduzindo o percentual da outorga um caderno de propaganda da Real Estate
onerosa e prorrogando o prazo para o seu paga- Investiments de Propriedades Imobiliárias, onde
mento, elevando o potencial construtivo de diver- a prefeita enfatiza que:
sas áreas e o gabarito de outras especialmente co-
Los embestidores serán tratados como socios –
biçadas pelos construtores, como o entorno do en una sociedad que debe ser reflejada en
Parque das Dunas e o bairro de Mãe Luiza.5 beneficios para las personas que viven en Natal
tras la generación de empleos mejores, rentas y
Essas emendas foram aprovadas em uma
calidad de vida. En eso contexto el segmento
sessão fechada, à qual tiveram acesso poucas pes- inmobiliario es considerado como un dos más
soas escolhidas e com senhas distribuídas pelos importantes pela la economía de la ciudad de
Natal. El gobierno municipal reconoce ese valor
vereadores, suscitando uma grande indignação da y valonara nuevas inversiones, garantiendo la
sociedade, principalmente quando se descobriu seguridad jurídica a los proyectos que están den-
tro de las reglas y leyes establecidas (Duarte,
que essa aprovação fora viciada pela corrupção dos
2011, p. 468).
16 vereadores que a apoiaram. Essa corrupção foi
comprovada (e cinco anos depois os vereadores Entre outras iniciativas, a referida “reconci-
condenados), o Ministério Público entrou com uma liação” envolveu a realização de um grande mutirão
ação direta de inconstitucionalidade e as referidas para agilizar a concessão de novas licenças cons-
emendas terminaram não surtindo efeitos, com a trutivas (em uma semana, 200 delas foram libera-
afirmação, no novo Plano, dos princípios, deter- das); o envio de um projeto de lei à Câmara Muni-
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iniciativas e levaram a prefeitura a retirar sua pro- multiplicação de grandes condomínios residenciais
posta de modificação do Plano Diretor vigente, cujo e multifuncionais, torres de escritório, casas de es-
conteúdo não sofreu alterações substanciais. Con- petáculo, hotéis e centros de convenções.
tudo, na avaliação de Duarte, os embates em torno Ocorre que alto crescimento demográfico e
desse conteúdo e a estreita aliança entre o executi- urbano dos grandes centros tem ocasionado uma
vo municipal e os interesses imobiliários contri- escassez relativa do solo urbano e uma elevação
buíram para fragilizar os direitos e avanços con- do seu preço, levando os setores imobiliários a
quistados desde o Plano Diretor de 1994. Isso se operarem crescentemente através da reconstrução
evidenciaria, por exemplo, pela não regulamenta- e modernização de certas áreas da cidade e a bus-
ção de alguns espaços especiais de interesse social carem uma maior rentabilidade para seus investi-
e ambiental, do processo de outorga onerosa e dos mentos pela intensificação do uso do solo e pela
instrumentos voltados para evitar a retenção edificação de novos e mais lucrativos tipos de
especulativa de imóveis, pela persistente ameaça a empreendimentos (Cobos, 2012). Com isso, au-
zonas especiais de interesse social (como o bairro mentaram as pressões e disputas por um maior
de Mãe Luiza), ou pela liberação de licenças para a acesso ao referido solo e pela ampliação de seus
edificação de grandes empreendimentos em áreas coeficientes de ocupação, notadamente em áreas
de fragilidade ambiental, com riscos de efeitos ad- mais valorizadas ou com potencial para elevar a
versos em termos da paisagem, da circulação dos sua valorização.
ventos, do clima e da contaminação do solo.6 No caso de São Paulo, a intensificação em
apreço vem sendo viabilizada principalmente atra-
vés de parcerias entre o setor público e o privado
A experiência de São Paulo para a reurbanização de determinados espaços da
cidade, com um aumento substancial de seu po-
Processos semelhantes vêm ocorrendo tam- tencial construtivo. Discutidas por autores como
bém em São Paulo, a maior e mais importante das Fix (2001), Ferreira (2007), Pessoa e Bógus (2008)
capitais brasileiras, com uma população de ou Nobre (2009), essas parcerias começaram a ser
11.253.503 habitantes, que, juntamente com sua implementadas na segunda metade da década de
região metropolitana, concentra boa parte da pro- 1980. Apresentadas, na época, como alternativas
dução industrial do país, sedes de grandes empre- para resolver o problema das favelas na capital
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Constituindo um instrumento legal de re- gualdades sociais e urbanas, como deixa patente a
novação e (ou) de ampliação da infraestrutura ur- mais conhecida dessas operações.
bana, essas operações são definidas como um con- Trata-se da Operação Urbana Faria Lima, que
junto de intervenções e medidas coordenadas pelo começou a deslanchar em 1995, quando o então
poder público municipal, com a participação da prefeito Paulo Maluf aprovou, na Câmara, uma pro-
iniciativa privada, visando a alcançar transforma- posta de extensão dessa avenida e de criação de
ções estruturais, melhorias sociais e a valorização uma centralidade terciária de alto nível na marginal
ambiental de uma determinada área da cidade, com do rio Pinheiros (região valorizada que ainda dis-
mudanças nos seus padrões de ocupação. Levan- punha de terrenos relativamente extensos e bara-
do o município a atuar como indutor e regulador tos, com um valor fundiário bastante promissor),
dessas transformações, viabilizando melhorias ur- com a justificativa de que era necessário atender às
banas e a apropriação pública de parte dos ganhos novas demandas das grandes empresas globalizadas
gerados pelos investimentos privados mediante a para ampliar a competitividade urbana de São Pau-
cobrança do potencial adicional de construção, em lo e viabilizar sua vocação de cidade mundial.
tese, essas operações teriam um caráter progressis- Com esse discurso e a realização de grandes
ta, redistributivo e coerente com as disposições do obras públicas, a área dessa operação se transfor-
Estatuto da Cidade. Na prática, porém, não é isso mou na maior frente de negócios e de consumo,
que vem se dando, conforme pesquisas dos auto- cercada por bairros residenciais de alto padrão, con-
res acima mencionados. centrando novas torres, “edifícios inteligentes” e
A implementação dessas operações não tem outros megaempreendimentos e experimentando
ocorrido a partir de um planejamento que leve em uma significativa valorização. Mas essas transfor-
conta as necessidades e prioridades urbanísticas mações também envolveram a erradicação de algu-
mais amplas da cidade, e sim como respostas a mas favelas que ocupavam as margens do córrego
interesses específicos do mercado, restritos às áre- de Águas Espraiadas (onde foi construída uma via
as mais valorizadas e melhor equipadas do espaço expressa) e a substituição de antigas residências
urbano, no caso de São Paulo, ao quadrante sudo- unifamiliares das classes médias por edifícios de
este, onde se concentram a infraestrutura, os ser- alto padrão, com a expulsão ou deslocamento de
viços e os bairros de maior renda. Para que a inici- pelo menos 20.000 dos antigos moradores8 e a
ativa privada venha efetivamente a participar des- elitização da área, com impactos sobre a conforma-
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sas operações e arcar com parte de seus custos, ção da cidade e sobre os seus padrões de segrega-
também vem sendo preciso que o Estado amplie ção. Finalmente, a expectativa de que a operação
sua atratividade, com a realização de investimen- seria autofinanciável não teve confirmação. Confor-
tos prévios e grandes obras públicas, concentran- me avaliação de Ferreira (2007), em outubro de 2002,
do recursos em áreas já privilegiadas, funcionan- ela já teria custado aos cofres públicos mais de meio
do como um grande empreendedor imobiliário e, bilhão de reais e, de acordo com Nobre (2009), em-
na expressão de Fix, como o principal “sócio” da bora o município tenha arrecadado 306 milhões com
iniciativa privada na renovação de grandes áreas a venda de quase um milhão de m² adicionais, os
da cidade, de forma a reduzir seus riscos e ampli- gastos com as obras públicas chegaram a 715 mi-
ar suas possibilidades de lucro. Ademais, lhões, beneficiando, fundamentalmente, proprietá-
melhorias sociais e ambientais e maiores ganhos rios de terrenos, construtoras e outras empresas e
para as finanças municipais não têm sido observa- usuários do transporte individual.
dos, registrando-se, antes, uma elitização das áre- 8
Conforme pesquisa de Fix (2001), sem outras alternati-
vas de moradia, uma parte dos moradores das favelas
as afetadas pelas transformações em apreço (com a terminou sendo transferida para as margens da empresa
expulsão de parte de seus moradores), uma maior Billings, área de proteção de mananciais, em caminhões
da própria prefeitura, que promoveu a ocupação e a trans-
concentração da riqueza e um aumento das desi- gressão da lei nas margens da referida empresa.
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Apresentam uma lógica similar as medidas mercado, tampouco inclui mecanismos para res-
recentemente tomadas para a requalificação da re- tringir a expulsão dos atuais ocupantes da região.
gião da Luz, área degradada do Centro, que se tor- Além disso, os cofres públicos municipais deveri-
nou mais conhecida e vem sendo estigmatizada am repassar até R$355 milhões à empresa que ven-
como a “Cracolândia”. Há anos que o poder públi- cesse a licitação para restaurar a área, uma vez que
co vem investindo nessa área, principalmente em os cálculos de viabilidade econômica não consi-
equipamentos culturais, visando a modificar sua deraram o quanto o negociador dos futuros prédi-
imagem negativa, atrair um novo público e desen- os iria lucrar com a venda dos imóveis e a trans-
cadear um ciclo de investimentos privados pela formação da área em um bairro moderno e com
valorização imobiliária de seu entorno. Em 2005, equipamentos públicos de primeira qualidade,
porém, essas iniciativas foram ampliadas e sofre- apesar de o faturamento previsto chegar a R$5,1
ram uma reorientação. Sem qualquer consulta ou bilhões em um período de 15 anos (Folha de
discussão com os moradores, pequenos proprie- S.Paulo, 12 ago. 2012).
tários ou comerciantes locais, o então prefeito Gil- Em agosto de 2011, o prefeito apresentou o
berto Kassab lançou um projeto denominado Nova projeto final de revitalização, anunciando que a
Luz, declarando de utilidade pública 362 hecta- empresa que faria a reforma seria escolhida no pri-
res, com a previsão de 30% de demolição dos quar- meiro semestre de 2012 e que as obras começariam
teirões ali incluídos. Também foi anunciado um logo em seguida. Contudo, ameaçados pela
programa de abatimentos e isenções fiscais para gentrificação e pela expulsão, a Associação de Co-
atrair possíveis investidores e desencadeadas ações merciantes do bairro de Santa Ifigênia ajuizou uma
para combater o consumo de crack e a concentra- ação popular contra a Prefeitura do município de
ção na área de seus consumidores. São Paulo, acolhida pela justiça com uma liminar
Mas é a partir de 2009, segundo Mourad que suspendeu a concessão urbanística em discus-
(2012), com a introdução da concessão urbanística são. Apesar da insistência do poder local e do assé-
e a aprovação da Operação Urbana Nova Luz, que dio de investidores nacionais e estrangeiros para a
vai se cristalizar uma articulação entre o poder local compra de imóveis, a população continuou mobili-
e o mercado, colocando a área em apreço no centro zada contra o projeto, e o enfrentamento persistiu,
das atenções do capital imobiliário. Levando em inclusive com a acolhida pelo judiciário de uma
conta não um projeto pré-elaborado, mas a experi- ação civil pública proposta pela Defensoria Pública
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cato de empresas construtoras, o então prefeito moradores, para quem esses empreendimentos
Gilberto Kassab conseguiu aprovar na Câmara, na
[...] às vezes acabam ocupando o quarteirão intei-
calada da noite,9 uma lei que o autorizava a negociar ro, sem diálogo com a rua, o bairro e o entorno. As
o chamado “quarteirão da cultura”, então em proces- pessoas que moram nesses condomínios não têm
nenhuma relação com o bairro, nenhuma história
so de tombamento, contra o parecer dos órgãos de
de vida com o bairro... Simplesmente pegam o
preservação do patrimônio, o repúdio dos morado- carro e vão para o trabalho, e quando querem se
res do bairro e os protestos da sociedade mais am- divertir se dirigem ao shopping. (entrevista com
integrante do movimento da Vila Sônia).
pla. Tratava-se de um valioso terreno municipal de
20.000 m², localizado no Itaim Bibi (área nobre da Por isso mesmo, organizados em entidades
cidade) e densamente arborizado, onde estão instala- e comunidades na internet, moradores de diver-
dos serviços públicos que atendem a milhares de sos bairros paulistanos têm se mobilizado em de-
usuários e são reconhecidos pela sua excelência, como fesa de sua qualidade de vida e declarado uma
escolas, postos de saúde, teatro e biblioteca. verdadeira guerra contra os grandes lançamentos
A entrega desse terreno, onde uma constru- imobiliários, alcançando algumas vitórias. No
tora pretendia edificar quatro prédios, cada um com Butantã, por exemplo, associações do bairro obti-
25 apartamentos de alto luxo, seria deita com a veram uma liminar na justiça que paralisou a ope-
troca da construção de 200 creches na periferia, ração urbana Vila Sônia. Sem consultar a popula-
com o argumento de que a iniciativa privada teria ção, essa operação estimulava a construção de pré-
mais agilidade que o poder público para localizar dios e previa a atração de mais 37 mil pessoas para
áreas, comprá-las e edificar essas creches. Mas a a área, permitindo que as construtoras elevassem
população reagiu (entre outras iniciativas, com um empreendimentos residenciais e comerciais em tro-
abaixo assinado com 12 mil assinaturas e um grande ca de taxas antecipadas pagas à prefeitura.
“abraço” ao quarteirão), descobriu-se que a venda Na Vila Mariana, cujo valor do metro qua-
de terrenos municipais só poderia servir para o drado foi dos que mais cresceu na cidade, grupos
pagamento de precatórios, e a transação foi barrada como o “Salvem os quintais” ou “Do outro lado do
pela justiça, considerando que a referida lei pode- muro” se mobilizam para tentar frear a edificação
ria trazer prejuízos irreversíveis para a cidade (Fo- de espigões em suas ruas arborizadas e ainda chei-
lha de S.Paulo, 08 jul; 05 ago 2011). A área foi as de casinhas. Na Vila Romana, têm ocorrido pro-
tombada (impedindo a construção de torres e dei- testos contra as construtoras e seu “espetáculo
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xando de interessar às construtoras), e a prefeitura imobiliário”, que vendem o bairro como “[...] re-
terminou desistindo do plano, alegando não ha- pleto de cultura local, casinhas charmosas”, en-
ver tempo hábil para implementá-lo nessa gestão. quanto tratores e escavadeiras o exterminam” (Fo-
Embora São Paulo seja uma cidade bastante lha de S.Paulo, 22 nov. 2011).
verticalizada, com a construção de prédios eleva- Em Pinheiros, moradores procuraram im-
dos desde a década de 1920, ela também possui pedir a demolição de um casarão tradicional e de
bairros tradicionais, onde predominam residênci- significativo valor arquitetônico, localizado em uma
as unifamiliares ao lado de um comércio local. Com área de 2.000 m², comprado por uma construtora
o crescimento econômico, a escassez de terrenos e para a edificação de prédios, propondo sua trans-
a ampliação do crédito imobiliário nos últimos formação em um centro cultural. Um grupo deno-
anos, porém, vários desses bairros vêm sendo as- minado “Moradores de Pinheiros contra a
sediados e ameaçados de descaracterização por verticalização desenfreada” conseguiu obter uma
empresas imobiliárias interessadas na edificação liminar contra essa demolição, mas o casarão foi
de megacondomínios, repudiados pelos antigos derrubado na calada da noite, e o grupo luta agora
pela sua transformação em um parque público (Fo-
9
Mais precisamente, às 23:30 horas. lha de S.Paulo, 30 abr. 2012).
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aterramento de nascentes e lagoas, a criação de vam como “forças do antagonismo” e “do atraso”
obstáculos à circulação dos ventos, a elevação da (incluindo, entre elas, o Ministério Público, os ór-
temperatura, a perda da mobilidade urbana e o gãos de fiscalização e defesa do meio ambiente e do
aumento dos congestionamentos, a degradação dos patrimônio histórico, a imprensa e os movimentos
espaços públicos e do patrimônio histórico-cultu- sociais), que estariam gerando “uma insegurança
ral da cidade, o crescimento da segregação, da frag- jurídica”, impedindo a construção de “parcerias
mentação, das desigualdades sociais e urbanas. saudáveis com a iniciativa privada”, a geração de
Em junho do mesmo ano, alegando que, empregos e o próprio desenvolvimento da cidade.
para receber novos hotéis e sediar algumas parti- Finalmente, quando restavam apenas dois
das do campeonato mundial de futebol em 2014, meses para o fim do seu mandato, mais uma vez
ainda “era preciso mudar as regras”, o prefeito sem maior publicidade ou qualquer discussão, ele
aprovou na Câmara uma nova Lei de Ocupação, enviou à Câmara um conjunto de projetos que le-
Ordenamento e Uso do Solo, alterando dispositi- galizavam e institucionalizavam as transformações
vos do Plano Diretor de Desenvolvimento Urba- urbanísticas perseguidas ao longo do referido man-
no. Entre outros aspectos, essa lei reduziu a dato. Tais projetos recuperavam as disposições do
representatividade e alterou os poderes do Conse- PDDU e da LOUS (que se encontravam sub judice
lho da Cidade e do Conselho Municipal do Meio no Tribunal de Justiça da Bahia, em decorrência
Ambiente, extinguiu o Parque Ecológico do Vale de Ação Direta de inconstitucionalidade proposta
Encantado, ultima reserva da Mata Atlântica do pelo Ministério Público); definiam as condições
município, localizado em um cobiçado espaço na para aplicação da outorga onerosa e do uso de trans-
área nobre da cidade, e ampliou bastante o gabari- ferência onerosa do direito de construir de forma
to da Orla Atlântica, permitindo a construção de adversa às finanças municipais; ampliavam o ga-
grandes edifícios e hotéis nesse valorizado espaço barito das edificações na Orla e em quadras próxi-
urbano, mesmo à custa do sombreamento das prai- mas e o coeficiente de aproveitamento de diversas
as e de uma redução da aeração da cidade. áreas; regularizavam construções embargadas por
Além disso, no primeiro semestre de 2012, o não atenderem às normas vigentes; atingiam nega-
executivo municipal elaborou um polêmico projeto tivamente o patrimônio ambiental e cultural da ci-
de revitalização do centro antigo, denominado como dade. Eram feitas tamanhas concessões a interes-
Santa Tereza, denominado “Humanização do Bair- ses privados, que um dos participantes da equipe
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CAPITAL IMOBILIÁRIO E DESENVOLVIMENTO URBANO
rado como uma terceirização do planejamento e tas e mobilizadas no sentido de reverter os retro-
da gestão da cidade, com a transferência de atri- cessos dos últimos anos.
buições de controle do uso e da ocupação do solo
e da formulação de política, planos e projetos de
desenvolvimento urbano da esfera pública para a ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
esfera privada. Todos os seus grandes projetos têm
em comum a falta de transparência, de discussão, As evidências e análises apresentadas ao lon-
de participação pública, com o repasse das atri- go deste trabalho deixam patente como, entre as
buições tradicionais do Estado para uma coalizão mudanças mais recentes e relevantes das cidades
de interesses econômicos. Contrariando ou dei- brasileiras, se inclui o abandono de boa parte das
xando em plano absolutamente secundário os in- funções tradicionais de gestão e planejamento de
teresses e necessidades da grande maioria da po- responsabilidade do Estado e uma afirmação cres-
pulação, esse processo transforma a cidade em um cente da lógica da coalizão de interesses privados
negócio, na acepção mais crua do termo, em que nos processos do seu desenvolvimento. Para isso
poucos ganham e quase todos perdem. tem contribuído a influência do ideário neoliberal e
Alguns projetos foram apresentados de for- a difusão do chamado “empreendedorismo urba-
ma mais direta e imediata, a exemplo projeto San- no”, que enfatiza, como questão central, a busca de
ta Tereza, situação em que os residentes na área do uma competitividade para atrair os capitais que cir-
bairro Dois de Julho tenderiam a ser expulsos com culam no espaço sem fronteiras do mundo
a gentrificação pretendida. Ou os moradores do globalizado, conformando um novo padrão de
bairro de Itapagipe, que receberam com surpresa a governança e propiciando um novo poder e
notícia de um decreto de desapropriação de suas protagonismo à mencionada coalizão.
antigas moradias para a “revitalização” da área, que Como assinalam Carvalho e Pereira (2012),
passou a despertar a cobiça do capital imobiliário embora a mercantilização do desenvolvimento ur-
pela sua localização nas bordas da Baía de Todos bano não constitua uma novidade na trajetória do
os Santos, com indenizações calculadas não pelos Brasil e de outros países, o que se configura agora é
preços de mercado de seus imóveis, e sim pelos um padrão de governança no qual as opções e deci-
defasados valores do IPTU.12 sões vêm deixando de fazer parte das atribuições
Como seria de se esperar, a percepção dos do poder público. Ele passa a operar como um ator
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 69, p. 545-562, Set./Dez. 2013
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Inaiá Maria Moreira de Carvalho
flitos entre os que vivem na cidade, interessados, CARVALHO, Inaiá M. M. de; PEREIRA, Gilberto Corso. A
sobretudo, na sua qualidade de vida, e a coalizão cidade como negócio. Salvador: EDUFBA, 2012. 23 p.
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CAPITAL IMOBILIÁRIO E DESENVOLVIMENTO URBANO
This article analyzes how the diffusion of a Cet article analyse la façon dont la diffusion
pattern of governance centered on a search for a du modèle de gouvernance centré sur la recherche
“competitive urbanism” has led the State to d’une “compétitivité urbaine” a mené l’Etat à
abandon some of its traditional management and abandonner une partie de ses fonctions
urban planning functions, transferring these traditionnelles de gestion et de planification urbaine
instead, to private actors, which constitutes a et à les transférer à des acteurs privés. Ceci permet
growing affirmation of the logic of real estate capi- à la logique du capital immobilier de s’affirmer de
tal over the structure of cities and the life of their plus en plus quant à la structure des villes et à la
populations. Discussing the recent evolution of vie de leurs populations. A partir de débats
three Brazilian capitals, Natal, São Paulo and Sal- concernant l’évolution récente de trois capitales
vador, it analyzes the discourses and procedures brésiliennes, Natal, Sao Paulo et Salvador, cet article
that are used to justify and legitimate this new analyse les discours et les procédés utilisés pour
pattern of governance, and equally underlines its justifier et légitimer ce nouveau modèle de
adverse effects in social, environmental and urban gouvernance, tout en soulignant ses effets néfastes
terms. en termes sociaux, environnementaux et urbains.
KEY-WORDS: Metropolis. Real estate capital. Urban MOTS -CLÉS : Métropoles. Capital immobilier.
development. Développement urbain.
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 69, p. 545-562, Set./Dez. 2013
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