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Economia de Minas e economia da mineração em Celso Furtado

Mauricio C. Coutinho
Professor do Instituto de Economia da Unicamp

Palavras-chave Resumo Abstract


Celso Furtado, economia da O artigo tem por objetivo contribuir para o The paper aims at a better understanding of the
mineração, Minas Gerais. entendimento do modelo de abstração da abstract modeling of the Brazilian Economic
Classificação JEL B31, N01.
história econômica brasileira de Celso Furta- History, exposed by Celso Furtado in his
do, por meio da análise do ciclo da minera- celebrated essay The Economic Growth of
ção. O ciclo da mineração ocorrido em Minas Brazil. The mining cycle of 18th century Minas
Gerais no século XVIII é posto em contraste Gerais is contrasted with the two other main
com os dois outros ciclos induzidos por de- export-led cycles of the Brazilian economy:
manda externa – o ciclo açucareiro e o do ca- the Northeastern sugar-cane cycle and the coffee
fé –, assim como confrontado com o modelo crop cycle. It is also confronted with the general
geral de economia mineradora, presente nos model for a mining economy, to be found in
estudos sobre a América hispânica. Enten- Furtado’s studies about Hispanic America.
demos que por meio destes contrastes po- In our view, these contrasts allow us a better
dem-se entender as notórias lacunas a respeito understanding of the notorious flaws of
do desenvolvimento do escravismo em Mi- Furtado’s hypotheses on the development of the
Key words nas Gerais no século XIX, presentes em For- slave economy in 19th century Minas Gerais.
Celso Furtado, mining economy, mação Econômica do Brasil e, em especial, Additionally, these contrasts may prove
Minas Gerais. divisar os principais elementos da teoria eco- instrumental to the understanding of the
nômica subjacente aos modelos de abstração economic theory underneath Furtado’s models
JEL Classification B31, N01. histórica de Furtado. of historical abstraction.

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1_ Introdução É razoável admitir que, dos três gran-


des ciclos primário-exportadores analisados
Pode-se dizer que o volume de pesquisas em Formação Econômica do Brasil – cana-de-
históricas sobre o escravismo no Brasil, açúcar, mineração, café –, o da mineração
dos últimos 20 anos, produziu nas hipó- recebe a menos satisfatória das abordagens
teses de Celso Furtado sobre a economia da decadência. O contraste na abordagem
escravista um abalo comparável ao que ha- dos três ciclos é expressivo. Afinal, o térmi-
via sido provocado no modelo clássico de no do ciclo do café coincidiu com a expan-
industrialização, anos antes, pelas abun- são da indústria, e as teses de Furtado sobre
dantes evidências empíricas referentes à a transição da etapa primário-exportadora
indústria brasileira no pré-1930 (ver a res- para o desenvolvimento baseado no mer-
peito Suzigan, 2001; Dean, 1971; Villela, cado interno foram muito inovadoras. Do
2000). Admite-se hoje que as bases empí- mesmo modo, o sofisticado retrato que
ricas dos modelos de economia escravis- Furtado traça da economia colonial açuca-
ta de Formação Econômica do Brasil são in- reira foi baseado em um conhecimento ra-
completas, inconsistentes mesmo. zoável da cultura de cana-de-açúcar.1 Das
A constatação aplica-se com vigor minas, Furtado conhecia muito pouco; e
ainda maior à abordagem da economia da menos ainda do que sucedeu à região mi-
mineração do século XVIII e, particular- neira no século XIX. Suas conclusões, des-
mente, às especulações de Furtado a respeito se modo, estão pouco referidas ao quadro
do destino do escravismo em Minas Gerais histórico real. Pode-se dizer que se susten-
nos momentos subseqüentes à decadência tam, em grau bem maior do que no restan-
das minas. De fato, a opinião de que a eco- te do livro, em racionalizações construídas
nomia mineira do século XIX entrou em com base em um modelo geral de história
marasmo é desmentida pelo vigor das ati- econômica brasileira.
vidades agrícolas e, mais ainda, pelas evi- O objetivo do presente trabalho é
dências de que o contingente de escravos justamente trazer à tona os princípios de
não decresceu ao longo do século. Ao con- análise econômica subjacentes ao modelo
trário, Minas Gerais manteve-se como pó- geral de história econômica de Furtado, em
lo de atração de escravos até a abolição (ver suas aplicações imediatas à economia das 1 Sua tese de doutoramento
a respeito Martins Filho e Martins, 1983; minas. Cabe antecipar que o artigo não tem (Furtado, 2000) foi sobre a
Martins, 1982; Paiva, 1996; Libby, 1988). qualquer compromisso com a revisão his- economia colonial açucareira.

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tórica ou historiográfica. Procura, exclusi- café do Sudeste, nos séculos XIX e XX.
vamente, efetuar uma digressão em histó- Entre os três grandes ciclos da economia
ria do pensamento econômico, alimentada brasileira impulsionados pela demanda
pelo entendimento de que o modelo de externa – açúcar, mineração, café –, o da
economia da mineração proporciona um mineração apresenta posição ímpar, no
bom ângulo de abordagem à “teoria eco- sentido de estar mais bem definido pelas
nômica” de Celso Furtado. Vale dizer que diferenças em relação aos outros dois.
as interpretações do autor sobre a econo- Como é bem sabido, na visão de
mia de Minas Gerais, em particular, e sobre Furtado, o ciclo do café representou um
a mineração, de modo geral, contribuem ponto de virada no desenvolvimento eco-
para o esclarecimento das bases teóricas de nômico brasileiro, por ter aberto as portas
seu sistema de reconstrução racional da à utilização massiva de trabalho livre. Por
história – o núcleo da obra de Furtado. Por sua vez, o ciclo açucareiro segue o modelo
outro lado, e no sentido inverso, acredita- prototípico da plantation escravista. Já o ci-
mos que a “teoria econômica” de Furtado clo minerador do século XVIII é atípico:
permite entendermos o porquê de suas baseia-se no trabalho escravo, porém, ofe-
conclusões, assim como as lacunas de suas rece muitas oportunidades para o trabalho
hipóteses (e conclusões) a respeito da eco- livre; ao contrário do que ocorrera com a
nomia das minas e de Minas. atividade açucareira, estimulou os nexos com
setores econômicos fornecedores, fortale-
2_ A economia do ouro ceu a Coroa e as atividades urbanas, assim
do século XVIII como diversificou a economia. Enfim, ape-
sar de escravista, a economia do ouro con-
Na terceira parte de Formação Econô-
trasta fortemente com o modelo de plantation
mica do Brasil, em três breves capítulos,
açucareira, o que recomenda uma recapitu-
Celso Furtado trata da economia escra-
lação de suas (da plantation açucareira) prin-
vista mineira do século XVIII. A análise
cipais características.
articula-se em torno do esquema do flu-
A economia do açúcar nordestino, de
xo de renda da economia mineradora, do
acordo com Furtado, caracterizou-se por:
qual, a rigor, obtém-se melhor compre-
ensão mediante o contraste com os flu- 1. dominância da grande proprieda-
xos de renda da economia açucareira do de agrícola, ou das grandes uni-
Nordeste, nos séculos XVI e XVII, e do dades de capital;

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2. presença desprezível de mão-de- no entanto, que são transações residuais,


obra livre e/ou de população tra- responsáveis por menos de 5% da renda ge-
balhadora branca, com inteira do- rada na economia. Além disso, o esquema
minância do trabalho escravo; explicativo de Formação Econômica do Brasil
3. auto-suficiência da propriedade ru- deixa na obscuridade a economia urbana e
ral, que tanto produz o bem de ex- o abastecimento das cidades. A vida eco-
portação quanto os meios de sub- nômica do Nordeste girava em torno da
sistência da escravaria; grande propriedade rural açucareira, que
4. ausência de nexos econômicos sig- era praticamente auto-suficiente. Os trans-
nificativos entre o setor exportador bordamentos do negócio do açúcar, como
e o restante da economia, conside- a criação de gado do sertão, representavam
rado “economia de subsistência”; economias escassamente monetizadas e de
baixa produtividade.
5. baixo nível de monetização das ati-
Na economia mineradora, ao con-
vidades econômicas internas, seja
trário, cresce a importância da mão-de-obra
porque as transações do engenho
livre. A despeito do papel central do trabalho
de açúcar com o restante da eco-
escravo, o ciclo do ouro motivou o influxo
nomia são insignificantes, seja por-
de imigrantes portugueses de diversas con-
que, no interior da firma açucarei-
dições sociais. De acordo com Furtado, a
ra, sendo escrava a mão-de-obra,
desconcentração dos negócios – o ouro
não há pagamento a fatores;2
podia ser explorado tanto por produtores
6. os fluxos monetários concentram-se
abastados como por faiscadores descapita-
na esfera das relações internacio-
lizados –, bem como a diversificação ine-
nais (receita de exportação, paga-
rente às economias urbanas, ensejou uma
mento de juros no exterior, impor-
diferenciação social e de ocupações, além
tação de equipamentos e dos bens
da intensificação dos fluxos monetários.
de consumo da classe proprietária).
A firma mineradora não desfrutava 2 A rigor, ocorre o
Na verdade, Furtado admite alguma de auto-suficiência. Totalmente concentrada pagamento de lucros. A renda
presença de transações monetárias entre o na atividade extrativa, adquiria alimentos concentra-se fortemente,
o que favorece o consumo de
engenho açucareiro e os setores fornece- para os escravos, pagava transporte, de- produtos de luxo das classes
dores, particularmente no que se refere ao mandava bens e serviços diversos. Se ad- proprietárias e o investimento
fornecimento de lenha e gado. Considera, mitirmos que essas aquisições envolviam na expansão da lavoura.

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dinheiro, teria ocorrido aumento geral do mitido no cálculo da renda (0,5) implica a
grau de monetização da economia, um re- geração de renda monetária fora do nú-
sultado crucial, já que, no esquema explica- cleo exportador.
tivo de Furtado, a ativação do mecanismo Além disso, fatores como a menor
multiplicador de renda depende da existên- concentração de renda, os elevados custos
cia de transações monetárias. O núcleo mi- de transporte inerentes a uma atividade
nerador chegou até mesmo a articular ati- econômica afastada do litoral contribuíram
vidades econômicas em outras regiões – é para modificar a composição da procura em
o caso das tropas de muares do extremo favor dos bens de consumo corrente. Em
Sul, da compra de gado bovino do Sul e do comparação com o Nordeste açucareiro, o
Nordeste –, assim contribuindo para elevar ambiente econômico tornou-se propício ao
o grau de monetização e de integração da desenvolvimento de atividades de mercado
economia em todo o território colonial. interno. O fato é que, admitido o dinamis-
A diversificação econômica e, par- mo das atividades internas, a coerência do
ticularmente, o pagamento de bens e servi- modelo passa a depender de dois elemen-
ços redefinem o fluxo de renda. Na econo- tos. Em primeiro lugar, das explicações pa-
mia açucareira, o grosso das transações ra o suposto declínio da economia aos ní-
monetárias envolvia o engenho e o exterior. veis de subsistência, após a exaustão das
Já na economia mineira do século XVIII, minas. Adicionalmente, de hipóteses sobre
as aquisições e o pagamento de serviços di- as razões do fracasso no desenvolvimento
3 No decênio 1750-60, versos em dinheiro espalhavam a renda pa- de manufaturas, uma vez que a constitui-
a exportação de ouro
manteve-se em torno de ra além da firma mineradora. Em um com- ção de uma base manufatureira representa-
2 milhões de libras. pacto (e confuso) cálculo com base nos ria o desdobramento natural das transações
4/5 correspondiam à região valores das exportações de ouro, Furtado monetárias e do acionamento do mecanis-
mineira (2 ´ 4/5 = 1,6). estima que a renda da região mineira tenha mo multiplicador.
As importações equivalem às
exportações. O coeficiente de
atingido 3,6 milhões de libras na época de Cabe ressaltar que, em relação ao
importações é 0,5; logo a maior prosperidade.3 Reconhece que, em não-desenvolvimento de uma base manu-
renda regional seria igual a relação à economia açucareira, [...] as impor- fatureira em Minas Gerais durante o ciclo
3,2 (1,6/0,5) = 3,2. Furtado tações representavam menor proporção do dispên- do ouro, Furtado não se prende a explica-
afirma que “a renda anual da
economia não seria superior a
dio total (Furtado, 1999, p. 79). Havia de- ções baseadas em vantagens comparativas
3,6 milhões de libras ...” manda (e produção) no mercado interno. da Europa ou normas impeditivas de cons-
(Furtado, 1999, p. 78). De fato, o coeficiente de importações ad- tituição de indústria no Brasil. As razões

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aventadas chegam a ser prosaicas: teria fal- Note-se que, por agricultura de sub-
tado capacitação técnica, ou experiência sistência, não necessariamente se entende
manufatureira, aos imigrantes portugueses. agricultura não-excedentária. Os alimentos
Houvesse indivíduos com a devida qualifi- e as matérias-primas utilizados na econo-
cação, nem mesmo os tratados restritivos mia urbana e nas minas provinham dos
entre Portugal e Inglaterra teriam impedi- “setores de subsistência”, assim como a
do a erupção de atividades manufatureiras. criação de gado no sertão para o abasteci-
Furtado vale-se do exemplo norte- mento do litoral nordestino representou
americano para reafirmar que muitas das “economia de subsistência”. Posteriormen-
restrições estabelecidas por tratados inter- te, voltaremos a esse ponto.
nacionais ou pelo domínio colonial só não Por outro lado, e como foi visto, a
são contornadas na prática quando inexis- economia das minas articulou um sistema
tem as bases econômicas para tanto. Editos de trocas monetárias entre o núcleo mine-
governamentais não conseguem suprimir rador, as cidades e os produtores de bens
tendências econômicas vigorosas. Formação agrícolas. Pois bem, tal sistema desaparece
Econômica do Brasil utiliza o exemplo do de- quando o ouro escasseia. Ocorre um processo
senvolvimento da Austrália do século XIX de atrofiamento da economia monetária (Furtado,
para mostrar como o declínio de uma ativi- 1999, p. 85) e, em paralelo, um rebaixa-
dade mineradora pode levar à diversifica- mento do nível de produtividade na eco-
ção econômica. Em Minas, ao contrário do nomia como um todo.
que viria a ocorrer na Austrália (100 anos É importante observar que, no sis-
depois...), o declínio da mineração levou a tema de Furtado, as elevações de produtivi-
uma regressão da atividade econômica. dade em uma economia primário-exporta-
Foi exatamente a falta de desdobra- dora decorrem de dois fatores. Em primeiro
mento da economia mineira [...] num sistema lugar, os produtos líderes de exportação
mais complexo [...] (Furtado, 1999, p. 84) – têm preço elevado, o que representa uma
um sistema manufatureiro –, que levou à elevação da renda monetária (ou do poder
regressão econômica. No entender de Fur- de compra) da comunidade. Em segundo
tado, não se haviam criado nas regiões mi- lugar, a integração da economia a uma cor-
neiras [...] formas permanentes de atividade eco- rente de comércio internacional possibilita
nômica – à exceção de alguma agricultura de a ativação de fatores – terra, mão-de-obra –
subsistência [...] (Furtado, 1999, p. 84). que de outro modo permaneceriam ocio-

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sos. Pelos dois lados – elevação dos preços e pel especial desempenhado pela crise dos
aproveitamento de fatores ociosos –, cres- anos 30 na ruptura do padrão primário-ex-
ce a produtividade dos fatores. Simetrica- portador. Para conferir destaque à crise
mente, o colapso das exportações provoca econômica mundial e à decorrente com-
diminuição da produtividade, seja pela au- pressão da capacidade de importar, Furta-
sência de um produto de elevado valor na do deixa na penumbra a indústria preexis-
economia, seja pelo refluxo dos fatores pa- tente. Não obstante, e sempre de acordo
ra uma ou outra forma de ociosidade. Volta- com Furtado, foi o café que propiciou o
remos adiante à questão da produtividade. surgimento de uma economia urbana di-
Em suma, nunca é demais ressaltar versificada, a formação de um mercado de
a importância da demanda externa nos mo- trabalho assalariado e até mesmo de uma
delos de crescimento econômico de Furta- base industrial, cuja capacidade ociosa foi o
do. No limite, foi a ausência de demanda suporte para a recuperação econômica dos
externa que atrofiou a economia mineira anos 30.
ao término do ciclo do ouro. Até que o sur- Os comentários ao desenvolvimento
gimento do trabalho assalariado e o de uma norte-americano reforçam o papel decisivo
base industrial tivessem possibilitado o de- da inserção internacional. Como se sabe,
senvolvimento baseado no mercado inter- Furtado gostava de recorrer ao contraste
no, os surtos de crescimento dependeram entre as colonizações ibérica e inglesa, bem
sempre da conexão com uma fonte dinâ- como de ressaltar os fatores distintivos pre-
mica de demanda externa. Rompida a co- sentes na ocupação do território norte-
nexão, o declínio torna-se inevitável. americano: a capacitação da mão-de-obra e
Os próprios processos de industria- a absorção do excedente populacional na
lização bem-sucedidos, em países de ori- Inglaterra, o papel positivo da pequena
gem colonial, não deixam de estar associa- propriedade no novo território, a visão es-
dos a um mercado internacional dinâmico. clarecida das lideranças da república nas-
No caso do Brasil, a percepção da impor- cente... O autor não deixou de assinalar, no
tância do surto exportador do café para o entanto, a relevância do comércio triangu-
nascimento da indústria permanece semi- lar com as Antilhas, na época colonial, e,
submersa porque, no conhecido relato da após a independência dos Estados Unidos,
industrialização de Formação Econômica do o papel crucial da plantation algodoeira su-
Brasil, o objetivo principal é mostrar o pa- lista. Vale dizer, insistiu no papel decisivo

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da demanda externa no progresso norte- O último grupo compreende o México, o


americano. O capítulo XVIII de Formação Chile, o Peru e a Bolívia, produtores de
Econômica do Brasil, “Confronto com o De- minerais não-ferrosos cuja demanda cres-
senvolvimento dos EUA”, destaca a im- ceu a partir da segunda metade do século
portância do cultivo e das exportações de XIX.5
algodão, que lograram articular a nascente A característica básica dessas eco-
república ao núcleo dinâmico da revolução nomias minerais é a presença de grande
industrial (a indústria têxtil) nos cinqüenta progresso tecnológico nas minas, que são
anos subseqüentes à independência.4 de propriedade estrangeira (em geral, nor-
te-americana). A desnacionalização, bem
3_ O modelo de economia como a utilização de técnicas modernas e
da mineração pouco empregadoras de mão-de-obra, con-
Em sua obra, Furtado explicita um mode- verte as atividades mineradoras em espéci-
lo geral de economia da mineração, intei- es de enclaves estrangeiros de elevada capi-
ramente distinto do modelo de economia talização, o que [...] significaria desvincular da
do ouro do Brasil do século XVIII, apli- economia interna a parte principal do fluxo de ren-
cável, com variações, a diversos países da da a que dá origem essa atividade (Furtado,
América hispânica. Em Formação Econômi- 1969, p. 64). Em resumo, a mineração mo-
ca da América Latina, o modelo de econo- derna implica transferência de renda para o 4 O algodão constitui o principal
mia da mineração é um dos que integram exterior, fluxos reduzidos de salários no in- fator dinâmico do desenvolvimento
a “tipologia das economias exportadoras terior da economia, pouca ou nenhuma ar- da economia norte-americana na
de matérias-primas” que resultam da ex- primeira metade do século XIX
ticulação com os demais setores de atividade (Furtado, 1969, p. 104). Devo
pansão do comércio internacional na se- econômica, reduzida contribuição à expan- a Maria Alice Rosa Ribeiro as
gunda metade do século XIX. são de mercados internos. observações sobre o papel
De acordo com a tipologia, haveria Ao individualizar um modelo de eco- decisivo da agricultura
três grupos de países exportadores de pro- algodoeira (e da demanda
nomia da mineração na América Latina já externa) na constituição de
dutos primários: independente, Furtado persegue dois obje- uma base manufatureira e
a) países exportadores de produtos agríco- tivos. Por um lado, estabelecer o contraste industrial nos Estados Unidos,
com as economias dos dois outros grupos na interpretação de Furtado.
las de clima temperado, b) países exporta-
5 O grupo compreende ainda
dores de produtos agrícolas tropicais, e c) de países – exportadores de produtos agrí-
a Venezuela, que se tornou
países exportadores de produtos minerais colas de clima temperado e tropical –, nos exportadora de petróleo no
(Furtado, 1969, p. 41-42). quais as exportações exerceram impacto século XX.

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bem maior sobre o mercado interno. Por ou- das à produção de subsistência, mas ainda
tro, e em decorrência, salientar a existência assim dotadas de grande capacidade de ar-
de dualismo nas economias latino-ameri- regimentação política e de submissão da
canas, o que é bem mais visível nas econo- população de origem indígena.
mias mineradoras do que nas exportadoras É flagrante o contraste entre as di-
de produtos agrícolas.6 nâmicas das economias coloniais de ori-
O modelo de economia da minera- gem hispânica (mineração de prata) e por-
ção do século XIX contrasta também com tuguesa (açúcar e mineração de ouro). No
o modelo de produção de metais preciosos caso da plantation açucareira, a crise de mer-
da época colonial, em especial o dos países cado, decorrente da concorrência interna-
de colonização hispânica. Neste último ca- cional e da desregulamentação da oferta,
so, as regiões produtoras dos metais ... comporta- teria produzido unidades agrícolas estag-
ram-se como autênticos pólos de crescimento (Fur- nadas, mas capazes de reter mão-de-obra
tado, 1969, p. 35). Furtado refere-se à cons- escrava e sustentar o padrão de produção e
tituição de áreas produtoras de alimentos, de relações sociais típicos dos engenhos.
animais de tiro e produtos artesanais para o Furtado fala em “letargia secular”. Os seg-
abastecimento dos núcleos mineradores de mentos conexos, por outro lado, como a
prata, sob o regime de grande propriedade pecuária do sertão nordestino, até mesmo
e de arregimentação de trabalho indígena se expandiram, a despeito do isolamento e
por meio das encomiendas. Em poucas pala- do enfraquecimento dos vínculos com o
vras, a mineração colonial de metais precio- núcleo litorâneo. Nos momentos em que a
sos dinamizou a economia interna – algo demanda externa se rearticulava, os enge-
que também se aplica ao ciclo do ouro em nhos conseguiam responder sem muitas
Minas Gerais. alterações nas relações sociais e nos pa-
A exaustão das minas de prata pôs drões produtivos, em comparação aos pre-
em xeque a instituição da encomienda, ao en- valecentes nos séculos XVI e XVII.
fraquecer a demanda por produtos agríco- Já a exaustão das minas de ouro, co-
las, sem eliminar contudo o regime de grande mo vimos, teria provocado a dispersão da
6 Nos países exportadores de propriedade; apenas refizeram-se os víncu- população – proprietários, trabalhadores li-
produtos agrícolas, o dualismo era
menos visível, mas nem por isso
los de subordinação entre os fazendeiros e vres e escravos – na economia de subsis-
menos real, pelo menos na fase os trabalhadores rurais. As fazendas sobre- tência, ou seja, o retrocesso irrecuperável a
inicial (Furtado, 1969, p. 62). viveram como unidades isoladas, destina- atividades de baixa produtividade. Furtado

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370 Economia de Minas e economia da mineração em Celso Furtado

não esclarece o que são essas atividades, Furtado. Em contraste, as lacunas de sua
porém, descarta a possibilidade de que os visão da economia mineira após o esgota-
capitais aplicados na mineração tenham se mento das minas são gritantes.
transferido em massa para outras regiões O que interessa ao presente traba-
em busca de melhores oportunidades. Te- lho, no entanto, não é a acuidade histórica
ria prevalecido uma espécie de racionalida- das conclusões de Formação Econômica do
de de jogos de azar: os mineradores reluta- Brasil a respeito da economia de Minas Ge-
vam em desmobilizar o capital e vender os rais após a decadência das minas. O rele-
escravos, graças à expectativa de um novo vante para o entendimento do método teó-
golpe de sorte na descoberta de lavras. rico-histórico de Furtado é o exame das
Com isso, o capital desapareceu. características básicas do modelo de mine-
De todo modo, um novo surto de ração colonial português, e o estabeleci-
crescimento baseado na demanda externa mento de contrastes e/ou semelhanças com
viria a ocorrer apenas com a expansão da seus congêneres hispânicos, com o modelo
demanda externa pelo café, duas ou três de plantation açucareira e com o modelo de
gerações após o declínio da mineração. Te- economia mineral do século XIX. Como
ria havido um hiato no crescimento econô- vimos, a economia do ouro envolveu:
mico e, como se sabe, o texto de Formação a. diversificação social (coexistência de
Econômica do Brasil pouco discute o que trabalho livre e escravo) e descon-
ocorreu na região das minas com a desarti- centração da renda, em relação
culação do mercado externo, tanto imedia- ao modelo clássico de plantation;
tamente (século XVIII) quanto após o sur- b. ativação de núcleos fornecedores
gimento do núcleo dinâmico do café. A (a empresa mineradora não é auto-
bem da verdade, os modelos de explicação suficiente);
baseados em ciclos comandados pela de-
c. monetização da economia;
manda externa de produtos primários pou-
d. formação de uma economia urba-
ca atenção conferem ao que ocorre nas re-
na e, portanto, a admissão de que
giões onde se deu o surto de crescimento,
existia uma razoável diferencia-
uma vez cessado o dinamismo. Feita a res-
ção de ocupações.
salva, deve-se admitir que a hipótese da
“letargia secular” do açúcar tem peso e Em suma, apesar de apoiada na mão-de-
consistência – chega a ser um clássico de obra escrava, a economia do ouro em tu-

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do diferiu da economia de plantation. Di- mica do Brasil e em outras obras. Acredi-


feriu também da atividade mineradora tamos que há quatro tópicos que, sem es-
moderna porque esta, embora apoiada no gotarem o universo dos elementos de
trabalho livre, baseava-se em tecnologias análise econômica aplicada à história, tí-
poupadoras de mão-de-obra e, portanto, picos da visão de Furtado, permitem o
exacerbadoras do dualismo. A economia entendimento das restrições de seus mo-
mineral do século XIX não se integrou aos delos de racionalização histórica, em par-
tecidos nacionais. ticular o do ciclo do ouro (auge e período
Ficam aqui diversas questões. Por subseqüente). Os tópicos são:
que razão as atividades despertadas pela i. transações monetárias e pagamen-
economia do ouro, a despeito da diversifi- to de fatores;
cação, foram incapazes de manter-se de pé ii. significados de produtividade;
após a exaustão das minas? O que explica o iii. preços relativos;
retorno às atividades de subsistência, ou a iv. economia de subsistência.
retração absoluta das trocas monetárias?
Na verdade, as respostas dadas por Furta- 4.1_ Transações monetárias
do são apenas aquelas que não colidem e pagamento de fatores
com seu modelo histórico de desenvolvi- Na visão de Furtado, ocorre uma verda-
mento econômico, cujos traços básicos são deira revolução na economia quando as
comentados a seguir. transações efetuam-se com moeda e, es-
pecialmente, quando há contratação/pa-
gamento de fatores na forma monetária.
4_ Os traços básicos A disseminação do pagamento de fato-
do modelo de Furtado res, que teve seu ponto culminante no as-
Para entendermos a rationale do modelo salariamento, foi um fenômeno iniciado
de economia colonial de Minas Gerais, no auge do período de domínio do capi-
bem como a do retorno da região à situa- tal mercantil na Europa, quando os co-
ção de subsistência, supostamente ocor- merciantes passam a contratar a produ-
rido no século XIX, é conveniente expli- ção junto aos produtores artesanais (ver
citarmos certas características do método Furtado, 1954). A contratação e a subor-
de reconstrução racional da história, ex- dinação dos produtores passaram a exigir
tensamente praticado em Formação Econô- a pronta liquidação dos negócios para o

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372 Economia de Minas e economia da mineração em Celso Furtado

ressarcimento dos trabalhadores e dos ênfase, submetidas ao regime de assalaria-


fornecedores de matérias-primas. A ur- mento. Desse modo, entende-se o caráter
gência é acrescida ainda pela expansão truncado do fluxo circular de renda na es-
das cadeias de crédito, uma vez que os cravidão moderna ou colonial. A plantation
credores impõem retornos em prazos de- açucareira nordestina apresenta o fluxo de
terminados. De acordo com Furtado, es- renda mais restrito, porque nela, segundo
se episódio de contratação de fatores e Furtado, praticamente não há pagamentos
expansão do crédito tem como conse- em dinheiro no interior do território. Os
qüência a transição do “lucro comercial” escravos produzem os próprios alimentos,
para o “lucro industrial”. Enquanto o lu- as transações são residuais (lenha e gado), e
cro comercial admite o entesouramento o contingente de funcionários assalariados
dos ganhos, o lucro industrial exige pron- e/ou de artesãos contratados é exíguo. Os
ta liquidação e pagamentos de credores, pagamentos expressivos – compra de escra-
fornecedores e subordinados, sob risco vos, equipamentos, pagamento a credores
de rompimento das cadeias de produção internacionais, aquisição de bens de luxo –
e comércio e/ou de perda de mercado. representam importações e/ou pagamen-
Na visão de Furtado, é a urgência em li- to de fatores no exterior, e portanto “vaza-
quidar as operações o que aguça a con- mentos” do fluxo circular de renda.
corrência e força a reorganização da pro- No outro extremo, o ciclo do café
dução e a inovação, visando redução de representou verdadeira revolução econô-
custos, penetração em mercados, etc. Em mica, porque nele ocorreu a combinação
suma, a contratação da produção, o pa- virtuosa de fatores como a abundância de
gamento de fatores e a decorrente neces- terras, a posição quase monopolista do Bra-
sidade de liquidação dão início a uma sil no mercado internacional e, com especi-
concorrência irrefreável e à remodelação al ênfase, a transição ao regime de trabalho
da produção manufatureira. livre em virtude do término da escravidão.
Por outro lado, são os pagamentos Para Furtado, o trabalho em regime de co-
em forma monetária que ativam o meca- lonato do café do oeste paulista equivale ao
nismo multiplicador. Atua aqui o conheci- assalariamento, mesmo que parte do paga-
do multiplicador keynesiano de gastos, o mento da mão-de-obra dê-se de forma não
qual, para Furtado, só se aplica a economi- imediatamente monetária (cessão de terras
as plenamente monetizadas e, com especial para o plantio de cereais, meação...), já que,

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Mauricio C. Coutinho 373

ao final, os produtos dos colonos serão 4.2_ Produtividade


vendidos. Em uma ou outra modalidade Furtado adota um conceito amplo de pro-
de remuneração, haverá circulação de di- dutividade. Para ele, a produtividade na
nheiro, contratação de serviços urbanos, economia cresce tanto quando ocorrem
compra de produtos. Enfim, a economia inovações (novas tecnologias, reorgani-
cafeeira é plenamente monetária, e boa zação do trabalho, processos produtivos
parte dos pagamentos é feita no interior do mais eficientes), como quando sobe o
País, o que leva ao pleno funcionamento preço do produto de exportação em rela-
do multiplicador. ção aos custos de produção e aos preços
A economia mineira do ouro no sé- dos produtos importados.7 Ademais, a
culo XVIII ocupa posição intermediária. produtividade na economia como um to-
O escravismo convive com o trabalho li- do se eleva quando fatores ociosos pas-
vre, a subsistência dos escravos é compra- sam a ser utilizados e/ou a receber me-
da, as ocupações urbanas se diversificam, o lhor utilização. É o caso de um surto
pagamento de transportes é relevante. Em exportador agrícola apoiado em terra dis-
suma, pagamentos são feitos, e o dinheiro ponível, mão-de-obra barata (provinda
circula no interior do território, a despeito do “setor de subsistência”), que requeira
da escravidão. A tal ponto a economia se pouco capital; ou ainda da industrializa-
diversifica que Furtado é levado a especu- ção em presença de excedentes de mão-
lar sobre as razões de não se haver consti- de-obra.
tuído uma economia manufatureira mais De um ponto de vista esquemático,
estável, com condições de sobreviver ao de- os ganhos de produtividade no período
clínio da mineração. Vimos anteriormente primário-exportador advêm dos dois últi-
que a resposta é bastante insatisfatória. O mos fatores: elevação do preço do produto
relevante, no entanto, é assinalar a necessi- de exportação e incorporação de fatores
dade de tal especulação, no contexto do ociosos. O progresso técnico representaria
modelo teórico de Furtado: se houve dis- uma característica quase exclusiva dos pro-
seminação dos pagamentos na forma mo- cessos de industrialização. A visão de Fur-
netária, por um período razoável, apenas tado pode parecer esquemática, mas assim
7 Neste caso, ganho nos
termos de troca. razões bem especiais poderiam impedir a é, e a tal ponto que ele fechou os olhos à
8 A despeito de ter sido um formação de fluxos auto-sustentados de imensa maravilha tecnológica que foram os
leitor atento de Antonil. expansão da renda. engenhos de açúcar8 e admitiu apenas pe-

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374 Economia de Minas e economia da mineração em Celso Furtado

quenos avanços agronômicos no cultivo características mais notáveis dos modelos


de café dos séculos XIX e XX. de Furtado. A rigor, Furtado preocupa-se
Nesse contexto, é natural que as com os preços dos produtos exportados e,
quedas de preço dos produtos de exporta- no modelo de industrialização por subs-
ção e até mesmo a exaustão dos cultivos e tituição de importações, com a relação
minas sejam vistas como fatores de perda entre preços de exportação e de importa-
de produtividade da economia como um ção (que repercute na taxa de câmbio).
todo. Esses movimentos implicaram retra- Acreditamos que a ausência de tra-
ção da renda per capita e retorno da popula- tamento dos preços relativos não represen-
ção ocupada à “economia de subsistência”, te grande problema para o modelo de eco-
ou seja, às atividades desenvolvidas a bai- nomia escravista açucareira, desde que se
xos níveis de produtividade. presuma a virtual auto-suficiência do enge- 9 Pode-se dizer que o
Até o momento de implantação de nho no que se refere a produtos de merca- progresso técnico na indústria
e nos serviços industriais
uma dinâmica industrial, a economia fica do interno. Como a totalidade das transações modernos é induzido de fora,
presa a este dilema: não existe um fator in- correspondia ao mercado internacional, o vale dizer, por inovações
terno, auto-sustentado de crescimento da acompanhamento das relações de troca en- formuladas em outros países e
produtividade.9 Quedas de preços, exaustão tre o produto (açúcar) e o principal insumo transplantadas para os países
atrasados. De todo modo,
de ciclos produtivos em razão da concor- (os escravos) seria plenamente suficiente.10 a dinâmica inovadora dos
rência ou da superprodução, esgotamento de Convém lembrar que Furtado acautela-se, países centrais sempre se
minas levam à perda de produtividade glo- atribuindo às aquisições do engenho no transplanta, com adaptações,
bal. Simetricamente, a conexão com fontes mercado interno um significado residual; às economias industriais
retardatárias. O progresso
de demanda dinâmicas do comércio inter- vale dizer, inexpressivo tanto para a firma técnico não se torna
nacional – açúcar, café, tabaco, metais pre- como para a economia como um todo. endógeno, mas é inevitável.
ciosos, borracha – ocasiona um acréscimo Já no caso da economia minerado- 10 Pode-se até mesmo admitir,

súbito de produtividade, graças aos dois ra, a omissão tem maiores conseqüências. como Furtado faz, uma
contabilidade virtual da firma
elementos mencionados: preços elevados e Por um lado, Furtado admite que as transa-
para efeito de apuração da
utilização mais intensa de fatores antes ocio- ções monetárias são disseminadas. Por ou- rentabilidade do capital,
sos (terra, trabalho, natureza, capital). tro, do relato dos historiadores sabemos confrontando o preço dos
que o ciclo do ouro provocou em encareci- escravos, sua depreciação e
alocação nas diversas
4.3_ Preços relativos mento de todos os gêneros e insumos, tan-
atividades necessárias à
A ausência de considerações mais amplas to os de mercado interno quanto os im- produção, dado o preço
sobre preços relativos representa uma das portados (ver Hollanda, 1960a e 1960b; do açúcar.

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Zamella, 1990). Ora, o movimento de pre- 4.4_ Economia de subsistência


ços relativos exerceu impacto não apenas Como vimos, a expressão “economia de
sobre a firma mineradora, senão sobre a lu- subsistência” adquire significados diver-
cratividade dos provedores e produtores
sos na obra de Furtado. Tanto abrange o
de insumos, meios de transporte, serviços.
sentido literal de produção não-exceden-
Em suma, o modelo de um único bem, ou
tária quanto diversas versões atenuadas
de uma única relação de troca relevante
de economia de baixa produtividade. A
(produto exportado versus escravos), reve-
atividade criatória do sertão nordestino,
la-se insuficiente para a economia do ouro.
por exemplo, era considerada “de subsis-
Revela-se insuficiente, do mesmo
tência”, embora provesse gado para o li-
modo, para a economia do café. Admita-se
toral. Mesmo após o início da industriali-
que, na análise do ciclo cafeeiro, há um ate-
zação, Furtado considera que boa parte da
nuante: Furtado lança os olhos sobre a rela-
agricultura brasileira desenvolve-se em con-
ção de preços entre tradeables e non-tradeables,
dições “de subsistência”, o que, no caso,
já que, ao menos no que se refere à economia
claramente designa baixa produtividade.
cafeeira baseada no trabalho livre, os confli-
A noção de economia de subsistên-
tos entre exportadores, consumidores e pro-
dutores vinculados ao mercado interno pas- cia exerce ainda papel adicional nos modelos
sam a ser levados em consideração. Vale de Furtado. Como se sabe, afora os proces-
lembrar que tais conflitos balizam a política sos produtivos baseados na mão-de-obra
econômica e estão presentes na análise clás- escrava – o escravo é caro e, por definição,
sica de esgotamento do ciclo cafeeiro da um bem escasso –, os demais processos
Formação Econômica. A rigor, são decorrên- produtivos encaixam-se em variantes de um
cias reconhecidas da política de valorização modelo de oferta ilimitada de mão-de-obra.
do café. Em poucas palavras, a admissão A industrialização brasileira foi um proces-
de um papel ativo para a política econômi- so com oferta ilimitada de mão-de-obra; a
ca ao longo do ciclo cafeeiro, se não repre- lavoura cafeeira assalariada, idem; as diver-
11 A clássica análise da senta um tratamento ampliado de preços sas atividades produtivas urbanas e rurais,
industrialização substitutiva relativos, ao menos indica alguma atenção do mesmo modo. Enfim, há na economia
leva adianta esse à relação de preços entre tradeables e non-tra- brasileira um excedente populacional que
tratamento, embora com deprime os salários. Esse excedente popu-
sérias limitações na análise de deables.11 No modelo de economia do ouro, a
preços relativos dos produtos omissão no tratamento dos preços relati- lacional, o qual em meados do século XX
de mercado interno. vos é absoluta e tem conseqüências. deslocou-se em parte para as cidades, teve

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376 Economia de Minas e economia da mineração em Celso Furtado

em épocas anteriores seu locus no meio ru- de baixa produtividade (nos sentidos refe-
ral e na agricultura. ridos na seção 4.2). Seria o caso do litoral
A população excedente no meio ru- açucareiro nordestino, a partir do final do
ral formou-se nos tantos momentos de de- século XVII, e, em condições diversas, de
sagregação das atividades dinâmicas (açú- Minas Gerais, após a exaustão das minas.
car, mineração) ou ainda pela incorporação Imaginar que um cultivo pouco ren-
de contingentes não suscetíveis à escravi- tável, ou não rentável, possa manter uma
zação (descendentes de indígenas, brancos população ainda escravizada, requer um pou-
pobres, escravos libertos e seus descenden- co de imaginação, dado o valor do escravo.
tes). A base da formação de bolsões de po- Pensamos, mais uma vez, que a explicação
pulação excedente é a existência de terra li- de Furtado para a “letargia secular” do Nor-
vre, ou terra de ocupação acessível desde deste açucareiro é satisfatória. O entendi-
que o ocupante aceite as diversas formas mento de que o engenho tradicional é uma
de subordinação aos proprietários. Pois bem, unidade econômico-social capaz de resistir
tal população forma a base da “economia às intempéries, mantendo inclusive a escra-
de subsistência”; vale dizer, é uma força de vidão, parece apoiada tanto em relatos his-
trabalho que pode ser atraída a baixo preço, tóricos quanto nos estudos que tratam da
sempre que houver oportunidades. formação da estrutura social nordestina.
O curioso é que Furtado engloba nas Imaginar que os escravos tornados
“atividades de subsistência”, nos momen- ociosos pela exaustão das minas pudessem
tos que antecedem o término da escravidão, refluir às “atividades de subsistência”, con-
até mesmo a população escrava. Não nos servando-se o vínculo da escravidão, é mais
referimos, naturalmente, ao contingente es- difícil. Naturalmente, o razoável seria ad-
cravo ocupado em culturas dinâmicas e mitir que outras atividades rentáveis, com-
que dedica uma parte do tempo de traba- patíveis com o trabalho escravo, vieram a
lho à produção da própria subsistência. Re- se desenvolver ou até mesmo já existiam na
ferimo-nos aos escravos que ficam semi- região. Essa admissão, no entanto, indica
ociosos quando a cultura dinâmica decai, uma capacidade de adaptação da economia
os quais, no entendimento de Furtado, não ao término de um surto exportador que
sendo transacionados, permanecem a pos- colide com o núcleo explicativo de Furta-
tos para eventuais retomadas da atividade do. No sistema de Furtado, o dinamismo
principal e/ou são alocados em atividades só pode provir de surtos primário-exporta-

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dores, do aproveitamento de novas opor-


tunidades apresentadas pelo comércio in-
ternacional de modo geral ou, finalmente,
da superação da exportação de produtos
primários como fator dinâmico, apenas pro-
porcionada pela industrialização.
Ainda assim, cabe notar que a pró-
pria industrialização substitutiva é concebida
tendo em vista a existência de bolsões de
força de trabalho ocupada a baixos níveis de
produtividade; vale dizer, dos resíduos de to-
dos os surtos expansivos anteriores. Admi-
tir que esses resíduos tenham em algum
momento mantido a relação de escravidão
requer explicações suplementares. Requer
também uma análise de dinâmicas setoriais,
de preços relativos, de rentabilidade, de me-
canismos de formação de poupança, que
penetrariam fundo na economia da escra-
vidão no Brasil, mas em muito ultrapassa-
riam o arcabouço dos modelos de raciona-
lização histórica de Furtado.

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378 Economia de Minas e economia da mineração em Celso Furtado

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