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DOIS RETRATOS EM MINIATURA DO CASTELO DE AMBRAS

Julius Schlosser
Trad. Ana Carolina Azevedo

Pode-se considerar estas duas pequenas figuras [Pranchas A, B] como se não fossem
notadas, embora, há mais ou menos vinte anos atrás, o escritor as tenha mencionado em uma
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publicação alemã não bem conhecida. Ambas as peças podem ser encontradas em uma não
mais famosa coleção no Castelo de Ambras, que deve sua origem ao Arquiduque Ferdinando
de Tirol. No entanto, nos exemplares primordiais da coleção, mesmo naquele compilado após a
morte do Arquiduque em 1596, elas são omitidas, não aparece menção a elas até o final do
século dezoito, no inventário [MS.] compilado pelo curador Alois Primisser. O fato de essas
duas figuras terem sido há muito tempo pensadas por seus proprietários como se estivessem
formando um par é indicado pela similaridade das molduras, das quais uma data de 1576.
Além disso, as miniaturas foram feita a cores, em peças similares de papel-cartão circular, com
planos de fundo azuis. Mas as inferências, sugeridas por isso e pelas molduras e encaixes, de
que eram peças conjuntas, são contraditas pelo fato de que diferem em tamanho, com o
diâmetro de uma sendo de 7 cm, e da outra (o retrato feminino), 5.5 cm. O primeiro é assinado
e datado de modo bem claro, "Julius Clovius sui ipsius effigiatur aetat 30. Salut: 1528".
Clovio nasceu na Croácia em 1498, e tendo vindo à Itália ainda jovem, [foi ensinado por] Giulio
Romano e passou sua vida como um miniaturista célebre, até sua morte em 1578. É
representado em sua miniatura em uma veste toda preta e uma touca, um ano depois de ter se
juntado ao estado eclesiástico como um padre secular. O mais ou menos mal desenhado
cãozinho de estimação repetido três vezes na moldura que, no entanto, é muito posterior,
provavelmente se conforma com o gosto pelo simbolismo existente no período, e foi introduzido
como um emblema de fé e devoção, sendo a obra muito provavelmente intencionada para um
patrocinador do artista. A figura é uma produção um tanto quanto despreocupada, mas o fato
de que é o único auto-retrato definitivamente conhecido do mundialmente conhecido
miniaturista lhe dá um status diferenciado, pois o magnífico retrato do velho Clovio em Nápolis
[Prancha C] como há tempos demonstrado, por Justi, não apenas foi pintado, mas assinado
por um pintor muito maior, Greco; e o suposto auto-retrato no Uffizi dificilmente pode ser
atribuido a Clovio, mas, como o de Greco, deve ser o trabalho de um artista muito mais
renomado. Apesar de a miniatura Vienense ter estado por anos em uma coleção famosa, ela
tem permanecido quase que imperceptível. Apenas um febril reflexo dela, no qual quase todos
os laços com o exemplar original foram perdidos, já foi publicado; a litografia precariamente
melhorada que Kukuljevic-Sakcinski, o biógrafo e conterrâneo de Clovio, inseriu em seu
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Dicionário de Artistas Iugoslavos de 1858. Nem Williamson nem Herbert, em seu bem-

1
Album ausgewählter Gegenstäde der Kunstindunstriellen Sammlungen des Ah. Kaiserhauses.
Vienna, Schroll, 1901, p. 22 e pl. XXXIV. 5 e 6.
2
Slovnik umietnikah Jugoslavenskih. Agram, 1858, p. 155.
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balanceado artigo sobre o Künstlerlexicon de Thieme-Becker, que dá uma prévia dos retratos
feitos por Clovio, fazem qualquer menção ao exemplo Vienense.
Como vimos, já houve associação, com essa obra, presumivelmente já desde o século
dezesseis, de um segundo retrato, representando uma senhora de idade, que artisticamente
está em um nível muito maior do que o outro. O observador comum presumiu prontamente que
as duas obras representam um homem e sua esposa, enquanto Primisser, um excelente oficial,
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mas que não era nenhum crítico de arte, encorajou a mesma noção. E. von Sachen, o hábil
guardião da posterior coleção Ambras de Viena, permitiu-se, estranhamente, incorporar a
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mesma noção em seu catálogo da coleção, publicado em 1855, em que também é feita a
declaração de que ambos os retratos são "como os de Holbein", a qual, é claro, não deveria
nunca ser aplicada a Clovio. Ainda mais extraordinariamente, o próprio Waagen, tarde como
em 1866, falhou em perceber qualquer diferença especial de estilos entre as duas miniaturas.
Ele pensa que o retrato da mulher, por causa de sua concepção mais delicada e esquema de
cores, é provavelmente feito por outra pessoa, e acredita que em 1576 - a data escrita na
moldura, que prova, na verdade, coisa alguma -, Clovio, já tendo setenta anos de idade, não
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poderia mais ter uma pincelada tão suave.
É impossível não perceber, sem um sorriso, como, de duas fontes separadas, construiu-se
uma total ficção da história da arte em volta dessa dúvida. Kukuljevic-Sakcinski que, como já foi
7
declarado, não sabia nada sobre a miniatura Vienense, foi o primeiro a se referir, na vida de
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seu célebre conterrâneo, a uma carta sem data, [endereçada] por Clovio a uma jovem colega
sua, agradecendo-a por ter lhe mandado seu retrato, e a presenteando com seu próprio retrato.
Pode se presumir que estas eram ambas as miniaturas e as expressões usadas na carta
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indicam que o destinatário era estrangeiro, por exemplo, não uma moça Italiana.
A publicação de M. Bertolotti do testamento de Clovio e do inventário de suas posses em 1578
nos permite adivinhar o nome da moça. Ela era uma pintora miniaturista de ancestralidade
flamenga, Livina Teerlinc - mencionada também por Vasari -, a filha de Simon Binning, pintor
miniaturista de Ghent, que morreu em 1519. A partir de 1545 ela trabalhava na Inglaterra para
10
Eduardo VI, para a Rainha Mary e para a Rainha Elizabeth. O inventário menciona um retrato
seu "em uma caixa redonda", sem dúvidas o auto-retrato que, de acordo com a carta acima, foi
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enviado a Clovio em sua juventude. Curiosamente, Bradley, que conhece e discute o

3
Vol. VII, p. 122-124 (publicada em 1911).
4
Ver seu Inventório MS. da Coleção Ambras, 1788, II., p. 275, in. 51.
5
Die K.K. Ambraser Sammlung. Vienna, 1855, II., p. 113, n. 7 e 8.
6
Die vornehmsten Kunstdenkmäler in Wien. Wien, 1866, II. 343.
7
Leben des G. Julius Clovio. Agram, 1852, p. 198 sq.
8
Publicado nas notas da edição de Siena da Vasari de Della Valle (Sienna 1793 X., p. 354,
nota).
9
Pure perchè gli artefici sogliono haver caro veder diverse maniere di quello che operano ho
giudicato che non sia per dispiacervi di poter considerare quella di noi altri d'Italia.
10
Ver no que diz respeito a ela o artigo de W. H. Weale em The Burlington Magazine, IX. 275.
11
Bertolotti, "D. Giulio Clovio principe miniatura" in Atti e memorie delle RR. Deputazioni di
storia patria per la provincie dell'Emilia. MS. Vol. VII., pt. I, Modena I881, p. 274. ' Un Scattolino
tondo con il ritratto di Livinia, meniatrice della Regina d'Inghilterra'.
inventório de Clovio, não percebeu essa conexão. Presumivelmente o retrato está, hoje em dia,
perdido.
É interessante ouvir Kukuljevic construir, a partir de uma bem-sucedida má-interpretação de
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uma passagem de Zani, uma bela obra de ficção, bem no espírito do romantismo decadente,
sobre Clovio e uma bela jovem alemã.
Mas já chega desses absurdos; Bradley não poderia nunca ter visto a miniatura Vienense,
senão ele, o autor Inglês do Dicionário de Miniaturistas, teria obviamente se assustado com a
enorme diferença de estilo entre as duas figuras. Sua informação é, de fato, como a expressão
diz, bem transcrita por Waagen: isso é claro a partir de sua declaração de que o retrato de
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Clovio "não provê" uma declaração de sua idade. Waagen simplesmente não lhe deu
importância em seu memorando ou esqueceu de anotá-lo.
Na realidade, um mundo inteiro separa os dois retratos, apesar da conexão que tem existido
entre eles por eras. Não apenas através da idade, mas também através de seu status elevado -
indicado por seu traje de arminho-, a moça é diferenciada de sua companhia. Sua aparência,
suas vestes, e acima de tudo o estilo mostra que não apenas a modelo pertence a outro povo e
país, mas também que a artista pertencia, não à Itália, mas ao Norte. Curiosamente, os
observadores mais antigos chegaram mais perto da verdade por meio de teorias erradas.
Waagen pelo menos admitia a superioridade do retrato feminino enquanto von Sachen
mencionada o nome de Holbein. Obviamente o artista indiretamente responsável por essa
pequena pintura pode ser definitivamente nomeado - ou seja, Holbein o Jovem. Em meio a
seus famosos cartões na Biblioteca Real de Windsor há um estudo sobre isso que, de acordo
com inscrições antigas, representa a Marquesa de Dorset, uma sobrinha de Henry VIII, que
adquiriu certa importância na história da Inglaterra como a avó de Lady Jane Grey. O cartão foi
provavelmente feito durante o segundo período Inglês de Holbein, 1532-1543. De todo modo,
não poderia ter sido incluso entre suas produções mais notáveis, e foi sem dúvida fundado em
um daqueles traçados em vidro, que são tão característicos de Holbein, como foi recentemente
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demonstrado por Joseph Meder. A miniatura de Viena repete o cartão em cada detalhe seu;
aqueles que, no original, são ocasionalmente apenas sugeridos ou omitidos - como a corrente
de pérolas, a pele de arminho e os aneis - são feitos com uma precisão verdadeiramente
miniaturista. De qualquer maneira, hesita-se em atribuir a excelente, mas ao mesmo tempo um
tanto quanto despreocupada, obra ao próprio grande mestre, pois entre o conjunto de
miniaturas assinadas por ele, aquelas que são indiscutivelmente genuínas emergem
distintamente, como, por exemplo, os exemplares em Windsor. A conexão com Holbein explica
também por que o retrato feminino está em um nível tão mais alto do que seu companheiro,
sendo isso sintomático de todas as pinturas do Norte, à moda Italiana. Que esta obra é uma
produção de escola é indicado acima de tudo pelo fato de que não é uma versão única. Uma
repetição, ainda mais despreocupada do que o nosso exemplar, é a reprodução que pertence

12
Enciclopedia metodica critico-ragionata delle belle arti Parma, I820, foil., que também contém
um dicionário de artistas.
13
Em outra parte (p. 135) Bradley, no entanto, dá a inscrição completa.
14
Meder, Die Handzeichnung, Wien, 19I9, p. 467 sq.
ao Duque de Bucleuch e é atribuída ao próprio Holbein, mostrada na Exibição de Retratos no
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Clube de Belas Artes de Burlington em 1909.
A arte da pintura miniaturista começou na Holanda e acabou sendo especialmente praticada na
Inglaterra. Miniaturistas holandeses, mesmo antes do começo do século dezesseis,
trabalhavam na Inglaterra, e pelo menos superficialmente impulsionaram Holbein. Na
Inglaterra, esse braço da Arte acabou sendo especialmente praticada por mulheres. Três delas
nos são familiares de nome e até mesmo receberam o cumprimento de serem mencionadas
por Vasari na segunda edição (1568) de sua Vidas: Susanna, filha do Mestre Gerard Hornebolt
(como é soletrado na Inglaterra) de Ghent, a quem Dürer menciona em seu Diário Holandês;
Catherine Maynon, de Antuérpia, e finalmente, Livina Teerlinc, todas ativas na corte
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Inglesa. [16] Para Livina apenas nós podemos, com uma certa amostra de probabilidade,
atribuir obras sobreviventes, ou seja, dois retratos de crianças que em um momento são ditas
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terem tido seu nome e que em 1909 foram exibidas no Clube Burlington. Certamente parece
mais provável que muitas das miniaturas que levam o nome de Holbein e que são derivadas
dele são obras desses artistas holandeses morando na Inglaterra.
Uma conexão com essa curiosa e aparentemente autêntica carta de Clovio a Livina Teerlinc - e
isso nos traz ao ponto no qual começamos - parece ter sido estabelecida. Ao considerá-la, a
mente é levada prontamente a pensar sobre os arredores Anglo-Holandeses. As relações de
Clovio com a arte Holandesa de sua época são de certo modo notáveis. De acordo com o
inventário de suas posses em 1578 ele possuía um bom número de figuras e desenhos de
Pieter Brueghel, e uma miniatura, metade da qual foi pintada por Clovio e a outra por seu maior
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contemporâneo holandês. Isso nos traz de volta às molduras nas quais nossos dois retratos
foram colocados por algum possuidor ou colecionador antigo. Eles apontam além da Itália, ao
Norte. Um é datado de 1576 (o feminino) e tem uma [tabuleta] pequena e uma referência do
Evangelho a uma vaidade do mundo, e à mulher de Ló: "Quia nescitis diem usque horam"
(Matheus XXV., 13)" 1576. Memores esto uxoris Lot. Lu 17. (i.e. Lucas XVII., 32).
Agora, uma mais ricamente gravada, mas de todo modo mais parecida como uma moldura de
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espelho, no Louvre, carrega a inscrição em baixo-alemão "Gedenck des wyf Loth." A moldura
do auto-retrato de Clovio pertence à mesma escola e período: ela mostra os motivos de
cartucho de gravadores holandeses de cerca de 1550 – artistas como Cornelis Bos ou
Hieronymus Cock - nos quais o gravador de madeira aqui, em alguns casos, tem procurado
inspiração. Mas perseguir esse argumento mais além seria imediatamente aterrissar entre
hipóteses românticas do tipo que foi acima esboçado, assim como aqueles retratos em

15
Burlington Fine Arts Club Exhibition of Early English Portraits. London I909, pl. XXXIII., I cf. p.
118. Dois retratos maiores da Duquesa (cópias a partir do retrato perdido de Holbein?) são
mencionados ibid. p. 74 como estando em possessão privada inglesa.
16
Cf. by Chamberlain, Holbein, I. 268.
17
Catalogue, pl. XXXIII., 5.
18
'Quadretto di miniatura, la meth fatta per mano sua (i.e. Clovio's) l'altra di M. Pietro Brugole '
(Bertolotti, I.c., p. 267).
19
Molinier, Histoire des arts appliques, II., pl. XVIII, 3.
miniatura de crianças, que mesmo que sejam obras de Livina, não oferecem nenhum paralelo
real com o retrato de Lady Dorset.

A. A Marquesa de Dorset, sobrinha de Henry VIII. Escola de Holbein [o Jovem]. Miniatura


(Castelo de Ambras)
B. Auto-retrato, de Clovio. Miniatura (Castelo de Ambras)

C. Retrato de Clovio, por El Greco. Tela. (Museu de Nápoles)

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