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O que Winnicott tem a dizer sobre a Pulsão de Morte?

Em primeiro lugar penso ser necessário esclarecer que não tenho pretensão
de esgotar todas as questões implicadas neste tema tão complexo. O que eu
pretendo é apenas tentar esclarecer qual a posição de Winnicott diante deste
conceito de Pulsão de Morte, já que o mesmo ocupou e continua ocupando um
lugar bastante significativo dentro da psicanálise, tanto em seus aspectos clínicos,
como teóricos.
O conceito de Pulsão de Morte foi formulado por Freud no texto “Além do
Principio de Prazer”, no momento em que ele estava tentando compreender a
questão da compulsão à repetição e a agressividade humana.
Winnicott se recusou radicalmente a aceitá-lo, achando até mesmo que esta
proposta foi uma solução equivocada, e talvez “o único erro de Freud”. Se
recusou a aceitá-lo por considerar um conceito inútil para compreensão da
compulsão a repetição e agressividade humana. Winnicott, porém, não se limitou a
rejeitar, ele também propôs alternativas para a compreensão das raízes da
agressividade e da compulsão à repetição.
Nessa aula vamos falar apenas sobre a alternativa de Winnicott para a
compulsão à repetição. A questão da agressividade será vista em outra aula.
O conceito de pulsão de morte foi e continua sendo aceito por alguns
psicanalistas e contestado por outros. Tanto para os psicanalistas que adotaram,
como para aqueles que se recusaram a aceitar o conceito, é importante que
coloquem a sua posição, os motivos de suas discordâncias e foi isso o que fez
Winnicott.
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Agora vamos lembrar rapidamente qual a posição de Freud para podermos


entender o porque da recusa de Winnicott em aceitar esse conceito.
Em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico
(1911), Freud estava tentando entender certos fenômenos que observava em sua
clinica com pacientes histéricos, fóbicos, obsessivos, que precisavam repetir na
transferência os modos de relacionamentos que consideravam ter lhes causado
muito sofrimento, lhes feito mal.
Diante dessa questão Freud postulou a existência de um conflito básico em
toda neurose. Postula que o principio geral do funcionamento psíquico contém
duas tendências básicas: o principio do prazer e o principio da realidade. O
aparelho psiquico estaria sempre em busca de obter prazer e evitar o desprazer, ou
livrar-se da dor. O princípio do prazer corresponderia aos processos mais
primários e antigos, inatos de nosso psiquismo. E que em toda neurose o aparelho
psiquico seria regido pelo principio de prazer. Se a pessoa está doente essas
tendências estão em conflito.
Entretanto, em sua prática clinica Freud se deparava com problemas que
não combinavam com a sua hipótese de que o funcionamento psiquico era regido
pelo principio do prazer. Quais eram essas situações? O masoquismo, o sadismo, a
hipocondria, a agressividade e a destrutividade, os pesadelos das neuroses de
guerra, as brincadeiras das crianças, as neuroses de destino, os sonhos traumáticos,
a reação terapêutica negativa. Pacientes que pareciam reagir de forma contrária à
sua cura, piorando ao invés de melhorar, sem nenhum motivo que justificasse esse
fato. E Freud se perguntava sobre o porque os pacientes precisam repetir
experiências tão dolorosas, traumática mesmo? Porque algumas pessoas agem
contra si mesmas?
A conclusão a que chegou foi a de que esses comportamentos não podem
estar de acordo com a pressuposição do princípio do prazer e das forças pulsionais
do primeiro dualismo psiquico.
Este conjunto de fatos o levou a reformular sua teoria das pulsões,
postulando a existência de outro impulso básico para o funcionamento do
psiquismo, que existiria para além do principio do prazer.
A partir de suas próprias interrogações, em 1920 Freud escreveu “Além do
princípio do prazer”, onde introduz um novo dualismo psiquico propondo a
hipótese de que haveria um tipo de funcionamento psíquico que antecederia aquele
regido pelo princípio do prazer. Seria um novo par de forças em que as pulsões
libidinais tendem a unir os elementos no amor – Eros – que se opõem às pulsões
que tendem à separação dos elementos, à destruição. Pulsão de vida versus pulsão
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de morte. A pulsão de morte é invisível e silenciosa e não tem representação


psíquica. Em consequência, a pulsão de morte é o que está “para além do principio
de prazer” e para além do próprio psiquismo. E que o grande mecanismo da
pulsão de morte ou de destruição é o desligamento, o que sempre tende a dividir. E
para a pulsão de vida ou de amor é a ligação, é Eros. Freud propõe uma fusão
intrincada dessas duas pulsões.
Foi na biologia que Freud procurou encontrar as bases para ajudá-lo na
elaboração de uma solução para essa nova oposição entre as pulsões, propondo
uma pulsão ligada à destruição do próprio indivíduo. Em que consistiria este
funcionamento primitivo? E qual a sua função? Consistiria em uma “compulsão à
repetição”. E teria como função ligar a excitação que chegasse ao aparelho
psíquico, sendo condição para que o princípio do prazer se tornasse dominante.
Até esta época, a pulsão vinha sendo caracterizada como um conceito
relacionado à fronteira entre o somático e o psíquico.
Em Além do princípio do prazer, contudo, ela passa a ser um conceito mais
abrangente, que não se limita ao psíquico, mas diz respeito à totalidade do ser vivo:
Freud a define como um esforço “inerente à vida orgânica” para retornar a um
estado anterior, ao inorgânico.
A pulsão de morte está estreitamente ligada em Freud à noção de principio
do zero ou do Nirvana, que seria um retorno total à ausência de excitação, uma
necessidade de descarga da excitação com o objetivo de atingir o menor nível
energético no aparelho psiquico pelas vias mais curtas. Enfim, a busca pelo retorno
ao estado inorgânico. Ou seja, uma tendência biológica ao inanimado. O próprio
princípio de prazer estaria trabalhando para a pulsão de morte, pois buscaria
eliminar as tensões que reinam no organismo. Estas especulações fornecem um
modelo para explicar a tendência do organismo a destruir a si mesmo, levando-o ao
nível zero de excitação, bem como a tendência a repetir determinados modos de
sofrer como expressão de busca de uma segunda chance para conseguir descarregar
uma excitação represada.
É útil lembrar que o próprio Freud tinha suas dúvidas quanto à validade do
conceito de pulsão de morte. Para ele tratava-se de uma especulação, uma ficção
necessária para auxiliar na compreensão de certos fenômenos clínicos e sociais da
época e do passado, difíceis de serem compreendidos em sua gênese.
O fato de Freud ter dúvidas quanto a validade de suas hipóteses criou entre
os psicanalistas uma extrema reserva que resultou no entendimento, especialmente
entre aqueles que não aceitaram tal hipótese, de que as mesmas seriam uma
resposta às angústias pessoais de Freud diante da morte. Fatos como a Primeira
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Guerra Mundial, com suas privações cotidianas e a morte onipresente, a


participação de seus três filhos homens na guerra, a morte de sua filha Sophie, o
suicídio de Tausk, além da sombra de sua própria morte o teriam influenciado. Ele
sempre contestou a interpretação de que suas hipóteses teriam sido pensadas a
partir de seu sofrimento pessoal.
Mesmo diante de todas essas situações Freud encontrou motivações para
ampliar suas hipóteses tão audaciosas. Mas até o final da sua vida manteve a ideia
da necessidade de se levar em contra, na clinica a questão das pulsões de vida e
pulsões de morte.
Alguns psicanalistas pós-Freud concordam com a pulsão de morte e a
reinterpretam de uma maneira ligeiramente diferente, propondo que é inerente ao
homem uma luta obstinada, contínua e inexorável à procura da paz e do repouso,
não importando o meio ou forma, mas não como um principio biológico, mas
como uma aspiração psíquica fundamental do ser humano.
A partir desse ponto, vamos agora então falar sobre a visão de Winnicott
sobre o conceito de pulsão de morte. Qual é a alternativa pensada por Winnicott
para se entender a compulsão à repetição e a origem da agressividade? Qual é a
sua teoria?
Para entendermos a discordância de Winnicott em relação a esse conceito é
necessário pensarmos o modelo de homem que é proposto por ele. Sua visão é o
ser humano é essencialmente criativo e dependente, e possui uma tendência inata
ao amadurecimento, a ser si mesmo. Para ele “a vida não vem do inorgânico, mas
de outra vida, de um ovo que vem de outro ovo, numa história pré-ancestral que
tem milhões de anos, iniciada desde o momento em que a vida surgiu da matéria
inorgânica”. O individuo emerge não do inorgânico, mas de um estado de não-
vida que ele caracteriza como sendo o da solidão essencial. É deste estado de
solidão, estado de não ser no qual ainda não se está vivo, que advém o ser.
Os estados iniciais da vida são estados de dependência absoluta e este estado
é de solidão essencial, uma solidão na qual não existe nada, nem ego, nem self,
nem nirvana. Portanto, não existe ainda a percepção de si, nem do outro.
Winnicott propõe que o ser humano advém de dois estados de não-ser – o de
ainda não estar vivo e o de já não estar vivo. Para ele a natureza humana não
emerge do inorgânico, como pensou Freud, mas de um estado de solidão! A
solidão é inerente ao ser humano. Dela surgimos e a ela voltamos! Este estado de
solidão é o que ocorre antes do reconhecimento da dependência, estendendo-se à
dependência como ocorrendo em relação a uma confiabilidade absoluta. “Este
estado é muito anterior ao instinto, e mais longínquo ainda da capacidade de
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sentir culpa”. Dou a palavra à Winnicott: “Muito do que geralmente é dito e


sentido a respeito da morte, na verdade, se refere a este estado anterior ao estar-
vivo, no qual o estar sozinho é um fato e a dependência ainda se encontra muito
longe de ser descoberta”. Para ele, a compreensão que o ser humano tem da morte
é uma projeção do que seria a experiência vivida em relação a esse estado de não
ser. O ser humano é como uma extensão entre a vida e a morte, nascemos todos os
dias, nunca terminamos de nascer e desde sempre começamos a morrer.
Então, a alternativa proposta por Winnicott a respeito da compulsão a
repetição e à agressividade humana dependerão da compreensão da imaturidade do
bebê e de sua relação de dependência do ambiente no inicio do processo de
amadurecimento. No seu livro Natureza humana Winnicott assinala que a vida
acontece entre duas experiências de não estar vivo. O não estar vivo que precede o
nascimento e o não mais estar vivo que é o estado que vem com a morte. O
contrário da vida não é a morte, mas sim a não vida. Surgimos do nada e voltamos
ao nada. Nesse intervalo somos chamados continuamente para lidar com as tarefas
da vida. A primeira tarefa da vida é a integração e a ultima é o morrer.
Não estar vivo é não poder ser si-mesmo. A vida não é um intervalo entre
nascer e morrer. A vida é um intervalo entre esses dois estados. O psicótico vive
um estado de não vida. Falando de outra forma, no psiquismo humano não há
efetivamente uma representação de estar morto, já que ele salienta a questão da
experiência como elemento fundamental. Embora possa haver representação sobre
o morrer, essas representações estão muito distantes da possiblidade de representar
o que seria estar morto. Por isso que o mais próximo que podermos alcançar sobre
a questão da morte é a experiência de não estar vivo. Então para ele o ser humano
acontece entre estas duas experiências fundamentais de ainda não estar vivo e já
não mais estar vivo.
Sobre a compulsão à repetição ele considera que são resultados de falhas
ambientais severas em momentos do desenvolvimento em que o ego era imaturo
demais para suportar uma experiência dolorosa. Essa imaturidade impede que o
ego traga tais experiências para dentro da área de onipotência do self e assim o que
foi vivido não fica registrado como experienciado. Fica guardado, congelado, à
espera de melhores condições ambientais e pessoais para ser, então, de fato
experienciado e integrado à personalidade. Fica cindido, inconsciente, já que para
Winnicott tudo que é cindido é inconsciente.
Winnicott considera que o fundamento e motor da existência e do
desenvolvimento do ser humano devem ser creditados à sua necessidade de SER e
continuar sendo, impulsionada por uma tendência inata à integração. E a integração
só se dá na presença humana. As dificuldades que vivemos não são porque a vida é
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finita, mas pelo fato que precisamos continuar sendo. Esta é a grande tarefa
humana.
A compreensão de Winnicott, no que se refere à necessidade de retomar
(corrigir) as experiências passadas é diferente da proposta de Freud em relação à
compulsão à repetição. Ele pensa que pacientes que tiveram falhas ambientais
graves em momentos em que o ego não era capaz de integrar a experiência
dolorosa dentro da área de onipotência, essas experiências ficaram congeladas,
guardadas, cindidas, à espera de melhores condições ambientais e pessoais para ser
vivido e integrado à personalidade.
Quando há partes cindidas na personalidade, quando há situações que foram
vividas e não experienciadas, a necessidade de SER leva o homem a procurar
retomar seu processo de amadurecimento no ponto em que ele foi interrompido,
nas condições em que foi interrompido para dar continuidade a seu ser.
E é por conta dessa necessidade de integração, ou de colocar a experiência
na área de controle onipotente do Self, que a pessoa pode buscar situações que
possam repetir as mesmas situações traumáticas vividas no passado e produzir uma
repetição, mas uma repetição com o anseio de tentar colocar o que foi vivido e não
integrado, dentro da área de controle onipotente. Ou seja, poder experienciar o que
está cindido, descongelar o que estava congelado, integrar o não vivido. Se nessa
busca a pessoa encontrar uma situação favorável, um ambiente suficientemente
bom e essa busca for bem sucedida, o individuo alcançará a integração, a possível
continuidade do amadurecimento, e a continuidade de SER.
Winnicott é enfático quando diz que não se trata propriamente de voltar à
situação traumática, mas ao momento anterior ao trauma em que as defesas em
relação a essa situação ainda não tinham sido erguidas, para poder retomar o
processo de amadurecimento a partir deste ponto. Porém para a retomada do
processo de integração de amadurecimento, o paciente precisa regredir ao
momento anterior ao colapso da situação traumática. E se tudo correr bem a
repetição necessitada e procurada da mesma situação traumática pode ser vivida
noutras condições. Já agora (numa situação de análise) a situação traumática pode
ser experienciada sem que o indivíduo se sinta aniquilado e seu amadurecimento.
Então, com a recusa do conceito de pulsão de morte, Winnicott formulou
uma alternativa para pensar a compulsão à repetição como uma busca de si-mesmo
que não é propriamente procurada num interior da vida psíquica inconsciente, mas
num ambiente e na relação inter-humana de confiança. Nesse sentido, é
interessante retomar um comentário de Phillips: “Em Winnicott, o homem só pode
encontrar a si-mesmo em sua relação com os outros, e na independência
conseguida através do reconhecimento da dependência”.
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Bibliografia
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Obras Completas de Sigmund Freud. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
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Fulgencio, L. Por que Winnicott? São Paulo: Zagodoni Editora Ltda, 2018.

Giovacchini, Peter L. Táticas e Técnicas Psicanalíticas – D.W. Winnicott. Porto Alegre: 1995.

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-------------------- O gesto espontâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1990.


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-------------------- Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

-------------------- Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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