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DOSSIÊ
DO ALTO RIO NEGRO
Marta Azevedo*
O presente artigo descreve e analisa as concepções próprias das mulheres indígenas do Alto Rio
Negro sobre saúde reprodutiva, relacionando-as a indicadores de fecundidade. As informações
qualitativas apontam para um conhecimento detalhado e complexo que as mulheres indígenas
dessa região possuem sobre seu corpo e os cuidados com sua saúde. Os níveis e padrões etários
da fecundidade estão relacionados com a etnia das mulheres, portanto, aos sistemas tradicio-
nais de cuidados com a saúde desses povos. A pesquisa foi desenvolvida entre 1997 e 2003, na
região de Iauaretê, Terra Indígena Alto Rio Negro (AM), e teve como primeira fonte de dados o
Censo Indígena Autônomo do Rio Negro – CIARN –, levado a efeito pela Federação das Organi-
zações Indígenas do Rio Negro – FOIRN – em 1992.
PALAVRAS-CHAVE: povos indígenas, noroeste amazônico, saúde indígena, demografia e saúde,
saúde da mulher.
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SAÚDE REPRODUTIVA E MULHERES INDÍGENAS...
O presente artigo descreve as concepções próprias são imediatamente inscritos na totalidade de seus
das mulheres sobre a saúde do corpo e relaciona contextos socioculturais e ambientais, havendo
algumas medidas de fecundidade e parturição com sempre uma busca das causas sociocosmológicas
as percepções que elas têm do seu corpo. relacionadas com infrações de regras culturais de
comportamento, dietas, ou outras causas como fei-
tiços ou questões ambientais.
SAÚDE REPRODUTIVADAS MULHERES TUKANO No final dos anos 90, havia um grande des-
contentamento nas comunidades da região de
A relação entre o atendimento médico oci- Iauaretê3 (ver Figura 1) quanto ao atendimento à
dental e os conhecimentos tradicionais dos povos saúde reprodutiva4 das mulheres. A percepção das
indígenas sobre saúde e doença é uma questão mulheres, professoras indígenas5 e lideranças da
importante para a antropologia. Buchillet (1991), Associação das Mulheres Indígenas de Iauaretê
analisando a relação entre os sistemas tradicionais (AMIDI) indicavam que muitas mulheres morriam
de saúde e doença dos povos indígenas e o siste- de parto. As mortes eram referidas pelas professo-
ma médico ocidental, relata que a maior parte dos ras indígenas como causadas por hemorragia ou
povos indígenas no Brasil possui seus sistemas “inchamento do corpo” anterior ao parto. O aces-
tradicionais como recurso principal em termos de so aos serviços de saúde era prejudicado pela difi-
atendimento à saúde e recomenda que as políticas culdade de as mulheres se locomoverem sozinhas
públicas de assistência à saúde indígena sejam e pela vergonha de serem atendidas por profissio-
articuladas aos sistemas tradicionais próprios. Para nais de saúde não-índios e, em geral, homens.
a autora, a visão do processo de adoecimento e a Além disso, havia muitos relatos de mortes mater-
concepção de corpo e saúde dos povos indígenas nas ocorridas nos anos imediatamente anteriores,
têm como referência suas representações sociais tanto por falta de atendimento médico moderno
de corpo, saúde e doença. A doença inexiste fora
3
Iauaretê é um pequeno centro urbano em expansão
do contexto sociocultural, e o processo de saúde e (Andrello, 2006) construído em torno de uma missão
salesiana, fundada em 1929. Cada bairro desse centro
doença acontece a partir das representações urbano possui uma organização política semelhante à
socioculturais da doença dentro de cada socieda- de uma comunidade tradicional: o capitão é a liderança
responsável pelos trabalhos comunitários, pela resolu-
de, revelando-se nas dimensões subjetiva, biofísica ção de problemas que ocorram com os moradores de seu
bairro e por organizar reuniões, festas ou rituais. O vice-
e sociocultural (Buchillet, 1991). capitão, o catequista e o animador são as outras lideran-
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Figura 1 - Região do Alto Rio Negro
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(ocidental) como por falta de cuidados tradicio- diferentes etnias tukano que frequentavam a sede
nais. Conforme o relato das professoras, os cuida- da AMIDI; b) entrevistas em profundidade e con-
dos tradicionais estavam se perdendo e sendo des- versas individuais com quatro mulheres visando
valorizados, principalmente entre as mulheres mais a coletar suas histórias de vida; c) encontros reali-
jovens. As professoras referiam-se ao fenômeno zados com um grande número de mulheres da re-
como um conflito entre gerações, pois as mais jo- gião, de aproximadamente três dias de duração,
vens não acreditavam mais nos cuidados tradicio- nos moldes de ‘grupos de discussão’.
nais, e as mais velhas já não se mostravam dispos- Tratando-se de conversas e encontros entre
tas a transmitir os seus conhecimentos. culturas e línguas completamente distintas, um
A percepção das professoras de Iauaretê foi instrumento acabou se revelando especialmente
confirmada, em grande medida, pela primeira eta- útil: desde o primeiro momento, quando ainda
pa da pesquisa-ação sobre saúde reprodutiva, com eram montados os glossários com termos de saú-
a aplicação de um questionário aberto a 60 mulhe- de reprodutiva nas línguas tukano e português,
res indígenas de Iauaretê e comunidades adjacen- decidiu-se fazer desenhos. Os desenhos foram le-
tes, do rio Tiquié e de comunidades próximas da vados aos encontros, onde receberam acréscimos
cidade de São Gabriel da Cachoeira. A principal – enquanto novos desenhos eram feitos pelas par-
conclusão extraída dessas informações é que, de ticipantes. Ao final dos dois encontros, havia uma
fato, existe um sistema de conhecimentos e cuida- série de 70 desenhos, que funcionaram como im-
dos tradicionais com a saúde das mulheres, arti- portante instrumento para debater e conhecer as
culado com os demais sistemas de vida desses concepções sobre saúde da mulher, tanto ociden-
povos rio-negrinos. No momento da pesquisa, as tais quanto tradicionais. Os desenhos do corpo
mulheres mais velhas, com maior número de fi- são um registro vivo da troca: resultado das pró-
lhos, praticavam os cuidados tradicionais com a prias observações e experiências das mulheres
saúde, incluindo os métodos tradicionais de sobre seus corpos, com os ensinamentos dos
contracepção, mas as mulheres mais jovens pos- Kumu,7 das sogras e mães, e ainda dos aprendiza-
suíam menor conhecimento do sistema tradicio- dos escolares dessas mulheres.
nal e não o praticavam com a mesma frequência.6 A conclusão extraída dessas conversas e en-
Outra conclusão importante foi que quanto mais contros foi que os conhecimentos que as mulheres
próxima a comunidade indígena do hospital e do possuem sobre seu corpo e os cuidados com a saúde
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centro urbano (seja Iauaretê mesmo ou São Gabriel reprodutiva são amplos e profundamente relaciona-
da Cachoeira), maior a desvalorização dos conhe- dos à cosmovisão desses povos. Além disso, o debate
cimentos tradicionais próprios a essas mulheres. entre os profissionais de saúde não-índios e as mu-
O objetivo do segundo momento da pes- lheres mostrou-se muito produtivo, pois ficou explí-
quisa-ação foi de construir um diálogo entre as cita a necessidade de formação dos profissionais para
concepções tradicionais das mulheres tukano em o atendimento específico às mulheres. Observou-se
relação ao seu ciclo de vida e a sua saúde, e os também a necessidade de planejar um trabalho de
conhecimentos ocidentais sobre o tema, na pers- educação para saúde, voltado para essa população,
pectiva apontada por Buchillet (1991). Iauaretê foi realizado na língua de cada comunidade, partindo do
o povoado escolhido para o desenvolvimento da entendimento dos sistemas tradicionais de cuidado
pesquisa devido à sugestão de professores e pela com a saúde das mulheres. Até chegar a essas conclu-
presença da AMIDI. sões, no entanto, um longo caminho havia sido per-
A pesquisa se desenvolveu por meio de: a) corrido, todo ele traçado nos desenhos.
conversas informais com o grupo de mulheres das 7
O Kumu é um benzedor, rezador; geralmente, cada co-
munidade ou família extensa tem um Kumu que tam-
6
O processo de perda dos conhecimentos tradicionais ou bém tem a função de acompanhar partos, cuidar de re-
suas transformações não foram objeto dessa investigação. cém nascidos etc.
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com seu brinco. A vagina ficou sendo denomina- como o óvulo ou um fluído expelido pelas mulhe-
da como a “porta do parto’ (em tukano, nihîsupe8). res durante a relação sexual com o wahsó ou es-
A palavra nihî quer dizer feto, e muitas outras pa- perma masculino. Também no Rio Negro o sangue
lavras relacionadas com os órgãos reprodutivos e das mulheres e o “esperma feminino” definem a
gravidez são derivadas desse radical. afinidade, enquanto que o esperma masculino de-
fine a consanguinidade.
O sangue e os fluídos corporais são consi-
A IMPORTÂNCIA DOS FLUÍDOS CORPORAIS derados extremamente importantes pelas mulhe-
res do Rio Negro. Através deles fluem para a gera-
Como Silverwood-Cope ará-maku, o cria- ção seguinte algumas das características fundamen-
dor Idn Kamni, fez os seres a partir de uma mistu- tais dos povos. E essa importância não se limita
ra de sua saliva com a terra. Diemberger (1996) apenas ao grupo, mas a toda a região: a mulher
mostra que, para os Khumbo do Nepal, o corpo é porta a afinidade para as comunidades vizinhas
parte do cosmo, repleto de sinais e valores. A ou distantes. Desse modo de entender a importân-
mulher transmite o sangue para a criança, e o ho- cia dos fluidos deriva um comportamento funda-
mem, os ossos. Os homens transmitem os ossos, mental: a mobilidade feminina. Ela espalha a afi-
que são a parte dura do corpo humano, e, por nidade e articula as comunidades através das ali-
isso, os Khumbo acreditam que a transmissão do anças políticas. Assim, as alianças de sangue aqui
clã deve ser feita pelo pai. Dessa transmissão dos poderiam ser entendidas diferentemente das ali-
clãs deriva a transmissão do território masculino anças de sangue ocidentais, em geral vistas como
específico, reservado aos homens. Os Khumbo alianças de consanguinidade.
possuem uma identidade que é relacionada com o
território sagrado de cada subgrupo, e o corpo,
portanto, estará relacionado a esse território. O Menstruação
parentesco khumbo é concebido através das idéi-
as de sangue e osso, em que os ossos são os laços O papel articulador dos fluidos se mostra
consanguíneos herdados do pai e passados para com a puberdade. Na primeira menstruação, há a
os filhos. O esperma define a consanguinidade, e abertura do corpo das mulheres, que se torna apto
o sangue feminino a afinidade. Um nenê khumbo para receber o esperma masculino. O corpo se abre
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é considerado como formado pelo sangue da mu- para o sangue descer. Desde a primeira menstrua-
lher que gera seu sangue e sua carne, e o esperma ção, as mulheres ficam “abertas”, pois tanto têm
que forma os ossos e um tipo de alma ligado ao mais poder quanto podem apresentar certo perigo
ciclo do renascimento e às montanhas sagradas, para outras pessoas. O poder vem da presença do
para as quais todos os mortos voltam, sendo a sangue, que representa a fertilidade e, ao mesmo
moradia dos ancestrais. tempo, o contato com o mundo pré-humano. De
No rio Negro, ocorre algo semelhante: as maneira inversa, elas também se tornam vulnerá-
mulheres transmitem o sangue pelo cordão umbi- veis, e, portanto, devem proceder de determina-
lical, e os homens os ossos (Hugh-Jones, S., 1979). das formas para se proteger, não piorar ou não se
As mulheres de Iauaretê relataram que o feto é for- contaminar. Devido a isso, elas têm de manter cer-
mado pela junção do wahsó feminino, traduzido to confinamento.
8
S. Hugh-Jones (1979), que trabalhou com o
A grafia das palavras em tukano segue aquela proposta
por Ramirez (1997). Apenas no caso de algumas pala- grupo tukano Barasana, dessa mesma região, esta-
vras sobre as quais as mulheres discordavam da grafia
proposta utilizou-se aquela sugerida por elas. Note-se beleceu a relação simbólica da cabaça cheia de cera
que todas as mulheres participantes da pesquisa sabiam de abelha, usada nos rituais, com o sangue mens-
ler e escrever, a maioria delas tendo estudado até a 6ª
série no internato de Iauaretê. trual. Os Barasana acreditam que a cera de abelha
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é identificada com o fígado, e, por sua vez, para as logia dos Barasana, essa periodicidade faz com que
mulheres de Iauaretê, esse órgão seria o reservató- ela possa sobreviver mais do que os homens. No
rio de sangue, o “criador” de sangue. Os Barasana nível cosmológico, a menstruação está relacionada
dizem ainda que, quando a cera de abelha se quei- com a alternância dos períodos de seca e chuva: a
ma, transforma-se numa substância escura e dura, menstruação das mulheres traz a alternância e reno-
que cheira a sangue menstrual. Da mesma manei- va a possibilidade de se reproduzir.
ra, nessa concepção de menstruação, a mulher, por Por isso o comportamento especial nesse
estar aberta, entra em contato com o mundo pré- período de mudança: por ocasião da menarca, a
humano, e a cabaça com breu queimando é usada moça fica confinada numa repartição dentro da casa,
também em rituais, pois se espera que ajude nessa feita por uma espécie de biombo de tiras trançadas
relação com outra esfera. Assim, a menstruação, por (Figura 3). Após esse período de confinamento, ela
pode tomar banho no rio,
Figura 3 - Reclusão de moça tariana mas deve ir acompanha-
da do Kumu, que a benze
queimando breu na caba-
ça e recitando encanta-
mentos para protegê-la do
calor do dia e dos peixes
pequenos do rio, que po-
deriam entrar em sua va-
gina aberta.9
Durante a primei-
ra menstruação, o Kumu
deve benzer a moça, e
esse benzimento consis-
te em “abri-la” simbolica-
mente. É um momento
muito importante. O tra-
balho deve ser feito de
9
Todos os benzimentos são
específicos de cada sib e de
cada povo. Além disso, estão
relacionados com mitos, que
também variam de acordo
com os povos e sibs da região.
Não nos foi possível coletar
os mitos relacionados, de cada
povo ou sib. Apenas descre-
vemos, de maneira geral, al-
gumas formas de benzer e a
sua importância no cuidado
com a saúde reprodutiva de
todas as mulheres tukano. Buchillet (1990) analisa o po-
der das palavras nas récitas dos Kumu ou Yai (pajés de
ser periódica, representa uma renovação do corpo mais alta hierarquia e com mais poder do que os Kumu) e
da mulher: com a menstruação, o corpo se “limpa” a relação metafórica ou de semelhança existente entre as
palavras e os veículos através dos quais as palavras adqui-
e fica pronto para uma possível gravidez. Na ideo- rem poder.
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tar ou uma atitude contrária às regras, como tomar da moça também são bentos, assim como os ali-
banho no rio quando menstruada, pode ter mentos que ela ingere nesse período e logo após.
consequências sérias. Durante todo tempo, a moça Além da pintura corporal que e feita nesse mo-
deve ficar reclusa, sem ver nem falar com outras mento, espreme-se o sumo da pimenta no nariz,
pessoas, exceto sua mãe e o Kumu. Só deve tomar para que ela fique com a pele do rosto corada e
banho ao final da menstruação, e depois de ter brilhante. Se o Kumu não recitar o benzimento da
sido benzida. As mulheres mais velhas também primeira menstruação corretamente, a moça pode
poderiam fazer o benzimento, colocando, simboli- contrair doenças ou ter partos difíceis.
camente, uma espécie de biombo feito de tiras tran-
çadas à volta da moça, para que peixinhos peque-
nos não penetrem em sua vagina, e uma espécie Concepção do feto
de balaio em sua cabeça, para que seus cabelos
não fiquem queimados com a urina do sol. Além A concepção do feto ocorre através de inú-
dessas, muitas outras etapas e récitas são mencio- meras relações sexuais. O feto é formado aos pou-
nadas (Figura 4). Todos os objetos de uso pessoal cos, pela união do wahsó (sêmen) masculino com
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o wahsó feminino. Não nos foi possível conferir em média, três dias, o que varia de acordo com a
com exatidão o que é este wahsó feminino: algu- cicatrização do umbigo do recém-nascido, quando
mas mulheres o identificaram aos óvulos ou ová- a mãe e o pai devem ficar quietos em suas casas.
rios nos desenhos, outras relataram que o wahsó Posteriormente a esse período, é dado o primeiro
feminino só ocorre com a relação sexual. Seria, banho do recém-nascido. O Kumu deve outra vez
nesse caso, uma substância gelatinosa produzida benzer e indicar as comidas a serem ingeridas, bem
durante o orgasmo feminino. O sêmen do homem como os objetos do recém-nascido. Essa benção deve
é responsável pela formação dos ossos do feto, e o ser feita queimando-se breu e soprando a fumaça
sangue da mulher, transmitido pelo cordão umbi- em cima dos elementos que estão sendo bentos.
lical, forma a carne e o sangue. Na época em que as mulheres davam à luz
A mulher grávida é chamada de nihîpahkó na roça, o parto era acompanhado de longe por
(mãe de feto, nihî: feto, pahkó: mãe), o marido da um Kumu. Com a mudança para locais reservados
mulher grávida é chamado de nihîpahkï,10 ou pai dentro da aldeia, ele passou a ficar mais perto,
de feto. Todos os nomes dos elementos relaciona- mas ainda sem contato direto com a mulher. Sem
dos ao feto possuem essa palavra na sua composi- ver diretamente a cena, o Kumu vai benzendo, con-
ção. Por exemplo: nihîkoó, água do feto; nihîsuhpê, forme as necessidades, durante o trabalho de par-
porta do feto ou vagina; nihîsutiró, útero ou lugar to. Se um bebê está demorando muito a sair, por
de conter ou carregar o feto; nihîkumunó, banco do exemplo, o Kumu pode lançar mão de um
feto ou placenta. A placenta, ou nihîkumunó, tem benzimento que é feito com o caroço da uva ama-
um valor simbólico muito importante, pois é o ban- zônica (regionalmente denominada cucura), que é
co cerimonial do feto, que se desenvolve com ele. O muito escorregadio, semelhante ao caroço da jabu-
menino ou a menina, durante o ritual de iniciação, ticaba, e auxiliaria, simbolicamente, a passagem do
ganha um banco – kumunó – que o (a) acompanha- bebê pela vagina. Ou pode lançar mão das unhas
rá para o resto de sua vida. Esse banco tem relações do tatu, que têm a capacidade de escavar rapida-
com o mito de criação e transformação de cada povo, mente por terrenos muitos duros, o que facilitaria
e é decorado com uma pintura relacionada com o também a saída do bebê.
sib e povo de cada pessoa. O feto, que “já vem com As posições mais comuns para o parto são
seu banco”, possui uma identidade social, mesmo a de cócoras, com as pernas flexionadas e seguran-
estando ainda na barriga da mãe. do na rede, ou deitada na rede previamente corta-
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problemas, elas possuem procedimentos a serem Esses métodos tradicionais são ainda empre-
executados, com ajuda de outras mulheres mais gados, mas existem muitos relatos de queixa sobre
velhas e do Kumu. o seu não-funcionamento. As mulheres jovens re-
latam que os métodos contraceptivos tradicionais
Para não engravidar, as mulheres tomam só porque as filhas estão grávidas e não são casa-
bebidas feitas com alguns tipos de plantas que são das, mas porque isso quer dizer que elas tiveram
anteriormente benzidas, procedimento empregado inúmeras relações sexuais (para se formar, o feto
principalmente no período anterior ao casamento necessita de muito esperma masculino), enquanto
e que produz, segundo as mulheres, uma esterili- elas relatam que só tiveram uma relação sexual, na
zação temporária, que dura cerca de um ou dois maioria dos casos. O fato de as moças terem rela-
anos. Algumas mulheres que responderam o ques- ções esporádicas com parceiros antes do casamento
tionário qualitativo relataram que foram bentas antes pode ser aceito pelas mães, mas, em seu imaginá-
do casamento, pois não queriam engravidar antes rio, a gravidez das filhas prova que elas não se limi-
de se acostumar à nova comunidade. O problema taram ao esporádico, mas namoraram muito, e com
é que o mesmo Kumu que fez o benzimento um intervalo curto entre uma relação e outra.
contraceptivo deve desfazê-lo, a não ser que outro A gravidez indesejada é a primeira questão
Kumu saiba exatamente as fórmulas recitadas pelo mencionada pelas mulheres de Iauaretê quando
primeiro. Essas rezas são récitas tradicionalmente se fala em saúde reprodutiva. Existem muitos ca-
secretas, passadas de pai para filho ou parente sos de mulheres maduras e jovens que foram mães
próximo do mesmo sib. de crianças geradas em relações com os militares,
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e todos eles trazem conflitos com relação às cren- último grupo de mulheres são poucas e de má qua-
ças tradicionais. As crianças são criadas pelos avôs, lidade, excluídas das análises as mulheres que não
pois o avô é quem transmite a elas o pertencimento informaram a sua idade e a idade de seus filhos
étnico do seu grupo. Mas esse arranjo não é aceito nascidos vivos, sobreviventes ou mortos.
pacificamente. Existem conflitos com as mães sol- Para estimar esses indicadores, foram extraí-
teiras e certo mal estar com relação a essas crian- das do Censo Indígena Autônomo do Rio Negro de
ças. Geralmente, quando há uma separação entre 1992 as seguintes informações: a) etnia, idade da
casais, os filhos tendem a ficar com seu pai, e a mãe estimada pelo ano aproximado de nascimento;
mulher pode voltar para sua comunidade de ori- b) idade dos filhos vivos e mortos; c) data do óbito
gem, ficando disponível para se casar outra vez. dos filhos mortos. Foram excluídos os filhos
Os filhos de não-índios não só não ficam com o natimortos. Estão incluídas, nas estimativas, todas
pai, como ficam sem identidade étnica, a não ser as mulheres solteiras, casadas, viúvas e separadas,
aquela dada pelo avô. que, em 1992, tinham entre 15 e 49 anos, o que
corresponde ao período reprodutivo. As informa-
ções sobre mulheres que tiveram filhos antes dos
FECUNDIDADE DAS MULHERES TUKANO, 15 e depois dos 50 anos de idade foram excluídas.
BARE, BANIWA E MAKU Para evitar excessivas flutuações dos valo-
res dos indicadores de fecundidade11 causadas
A seguir ,são apresentadas informações so- pelos pequenos números, foram estimadas taxas
bre a fecundidade das mulheres tukano, baré, médias para o período 1990-92 (Pagliaro; Azeve-
baniwa e maku da região Alto Rio Negro e seus do; Santos, 2005).
determinantes próximos, com o objetivo de avaliar As taxas de fecundidade total (TFT) das
os níveis e padrões de fecundidade por etnias e mulheres baré, baniwa, tukano e maku, no perío-
compreender o comportamento reprodutivo dessas do de 1990 – 1992, indicam que o nível da
mulheres face às concepções próprias sobre sua fecundidade das Maku é o mais alto, sendo a TFT
saúde. Os indicadores estimados são as taxas espe- de 6,4 filhos nascidos vivos em média; o mais bai-
cíficas de fecundidade por idade (TEF), taxas de xo nível é o das mulheres baré, 4,8 (Tabela 1). As
fecundidade total (TFT), idade média ao nascimen- Tabela 1 - Taxas d e fecu nd id ad e total e esp ecíficas
to do primeiro filho vivo e intervalo entre os nasci- p or id ad e d as mu lheres baré, baniwa,
tu k ano e maku , no p eríod o d e 1990 - 1992
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Gráfico 1- Distribuição relativa das taxas específicas de fecundidade das cerrado mato-grossense, en-
mulheres baré, baniwa, tukano e maku, no período de 1990 – 1992 controu uma TFT de 5,36 fi-
0,35 lhos para o período de 1979
a 1981. Os Kaiabi possuíam
0,30
uma taxa de fecundidade to-
0,25 tal de 6 filhos entre 1970 e
1979, e de 9,5 filhos entre
0,20
Tukano os anos de 1990 e 1999
0,15 Baniwa
Baré
(Pagliaro, 2002).
0,10 Maku Entre os Kaiabi do
Xingu, (Pagliaro, 2002, 2005),
0,05
o final do período reprodutivo
0,00 ocorre entre 40 e 44 anos; a
maior proporção de nasci-
mentos se dá entre as idades
de 25 a 29 anos para as mulheres que já tinham
TFTs das Tukano e Baniwa são, respectivamente, seu período reprodutivo completo ou quase com-
de 5,7 e 5,1 filhos. Em relação à fecundidade por pleto, e entre as idades de 20 a 24 anos para as
idade, o mais alto nível encontra-se na faixa etária mulheres de gerações mais jovens, indicando um
de 30-34 anos para as mulheres tukano, maku e rejuvenescimento do padrão de fecundidade des-
baniwa, e apenas as baré têm sua fecundidade sas mulheres (2002, 2005). Características seme-
máxima alcançada em faixa etária mais jovem, de lhantes de padrão de fecundidade foram registradas
25 a 29 anos. A estrutura de fecundidade das por Pagliaro e Junqueira (2007) para os Kamaiurá.
mulheres maku é mais jovem do que a das mulhe-
res tukano, baré e baniwa, sendo a contribuição
Tabela 2 - Taxas d e fecu nd id ad e total, id ad e méd ia ao
das mulheres menores de 30 anos de idade na nascimento d o p rimeiro filho e intervalo
intergenésico, Tu k ano, Baniwa, Baré e Maku
fecundidade total dessa etnia a mais alta.
TFT id ad e méd ia intervalo
As taxas de fecundidade total registradas 1990-1992 1º filho méd io
por Early e Peters (1990) entre os Yanomami estão Tukano 5,68 21,08 2,70
CADERNO CRH, Salvador, v. 22, n. 57, p. 463-477, Set./Dez. 2009
entre 8,7 e 7,5 nascidos vivos. Os autores demons- Baniwa 5,11 19,36 2,86
tram que, em todos os períodos estudados, o pa- Baré 4,83 19,82 2,62
Maku 6,35 20,23 3,02
drão da fecundidade não muda, e, no início do
período estudado, em 1958, as taxas específicas e Fonte: CIARN/1992
totais foram mais altas, pois a estrutura etária, nes-
se período, era muito incomum, pois teriam ocor- As médias de idade quando do nascimento
rido epidemias e migrações. Nancy Flowers (1994) do primeiro filho vivo das mulheres pertencentes
calculou as taxas específicas e totais de fecundidade aos quatro grupos rio-negrinos variam de 19,4 a
dos Xavante por períodos de anos. A taxa total de 21,1 anos. De acordo com essas estimativas, são as
fecundidade no ultimo período calculado (1972 a mulheres baniwa e baré que têm seus filhos mais
1977) foi de 9,4 filhos por mulher, tendo sido de- cedo, respectivamente aos 19,4 e 19,8 anos, e as
monstrado que os níveis de fecundidade dos mulheres tukano e maku as que iniciam mais tar-
Xavante estavam aumentando. Somente no perío- de a procriação, respectivamente 21,1 e 20,2 anos.
do do contato, 1947-51, essa taxa foi de 11,17 fi- Early e Peters (1990) apontaram que a mé-
lhos. De 1987 a 1990, a TFT era de 8,42. Picchi dia da idade das mulheres yanomami, ao terem o
(1994), no estudo sobre os Bakairi, um povo do primeiro filho, é de 16,8 anos. Os autores ponde-
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ram ainda que existe um retardamento proposital 1979). Os homens podem entrar em contato com
para a primeira gravidez, pois os Yanomami acre- essa pré-humanidade em diferentes momentos e
ditam que o corpo da jovem que acaba de mens- espaços, tendo os xamãs como mediadores, conta-
truar ainda não está com o desenvolvimento com- to esse que assegura a continuidade da existência
pleto. Por isso, quando a menina engravida logo desses povos, garantindo a continuidade da or-
após a primeira menstruação, os pais podem ajudá- dem social estabelecida e, portanto, a saúde coleti-
la a provocar aborto. Já entre os Kaiabi do Xingu, a va. As pessoas também podem entrar em contato
média da idade ao ter o primeiro filho tende a de- com esse estado pré-humano quando sonham,
clinar entre as coortes de mulheres analisadas por quando estão doentes, ou quando as mulheres
Pagliaro (2002, 2005): desde a coorte 1 (mulheres menstruam ou vão dar à luz, além dos períodos
nascidas entre 1950 e 1954) até a coorte 6 (mulhe- rituais. As mulheres estão relacionadas a esse
res nascidas entre 1975 e 1979), a média da idade mundo pré-humano através de seu sangue, mens-
passa de 18,7 e atinge os 16 anos para a última trual e do parto. Elas detêm o poder da reprodu-
coorte (2002). Portanto, para esses povos, a média ção biológica através do sangue, e os homens de-
de idade ao ter o primeiro filho é menor do que têm o poder da reprodução da ordem social. Des-
entre os povos aqui estudados. sa maneira, durante os períodos da menstruação e
O intervalo intergenésico, ou período de do parto, as mulheres estão em contato com esse
tempo transcorrido entre os nascimentos vivos dos estado pré-humano, assemelhando-se aos xamãs,
filhos das mulheres rio-negrinas, é inferior a 3 anos que entram em contato com esse mundo de ma-
em média, sendo as mulheres maku e baniwa as neira voluntária, para realizar curas ou rituais.
que possuem o maior intervalo médio, respectiva- Durante esses períodos, as mulheres podem ser
mente, 3 e 2,8 anos. O maior intervalo intergenésico perigosas e, ao mesmo tempo, vulneráveis. O po-
encontrado entre os Yanomami é de 3,2 anos, sen- der do sangue da mulher é equivalente e comple-
do um pouco mais alto do que o encontrado entre mentar ao poder dos ossos (flautas sagradas) dos
as mulheres do rio Negro (Early; Peters, 1990). Price homens. O feto se forma através do sangue da
(1994) calculou o intervalo médio entre os nasci- mulher, que dá origem ao sangue e à carne, e o
mentos para os Nambiquara de 2,5 anos para o esperma do homem, que dá origem aos ossos.
período de 1976 a 1986 e, para os Kaiabi, os inter- O controle sobre a fecundidade das mulhe-
valos intergenésicos variam de 2,4 a 3,1 anos res tukano se dá pelos benzimentos e (ou) uso de
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SAÚDE REPRODUTIVA E MULHERES INDÍGENAS...
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Marta Azevedo
The present paper describes and analyzes Dans cet article on décrit et on analyse les
High Rio Negro indigenous women’s own conceptions spécifiques qu’ont les femmes
conceptions about reproductive health, relatingindigènes du Alto Rio Negro en ce qui concerne la
them to fecundity indicators. Qualitative santé de la reproduction, et on y fait le lien avec
information point to a detailed and complex les indicateurs de fécondité. Les informations
knowledge that area’s indigenous women possess qualitatives montrent une connaissance détaillée
on their bodies and the care with their health. The
et complexe que possèdent les femmes indigènes
de cette région en ce qui concerne leur corps et les
fecundity levels and age patterns are related with
the women’s ethnicity, and, therefore, to the soins liés à la santé. Les niveaux et les structures
traditional healthcare system of these peoples. This
d’âge de la fécondité sont mis en relation avec
research was developed between 1997 and 2003, l’ethnie des femmes, c’est-à-dire avec les systèmes
in the Iauaretê area Indigenous Land High Rio traditionnels de soins relatifs à la santé de ces
Negro (AM), and had as first source of data Riopeuples. La recherche a été faite de 1997 à 2003,
Negro’s Autonomous Indigenous Census. CIARN., dans la région de Iauaretê, Terre Indigène de l’Alto
executed by the Federation of Rio Negro’s Rio Negro (AM), les premières données utilisées
Indigenous Organizations. FOIRN. in 1992. ont été celles fournies par le Recensement Indigène
Autonome du Rio Negro – CIARN –, réalisé par la
Fédération des Organisation Indigènes (Federação
das Organizações Indígenas) du Rio Negro – FOIRN
– en 1992.
KEYWORDS: indigenous peoples, the northwestern MOTS-CLÉS: peuples indigènes, nord-ouest de
Amazon, indigenous health, demography and l’Amazonie, santé indigènes, démographie et la
health, women’s health. santé, santé des femmes.
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