Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Endereço Comercial:
Av. Praia de Itapuã, Quadra 17, Lotes 49/52,
Shopping Boulevard, Salas D 2.4 e D 2.5
Lauro de Freitas - Bahia
CEP 42700-000
Fones: (71) 3342-4531 / 3342-3756 / 3342-3880
www.jam-juridica.com.br
contato@jam-juridica.com.br
Editor:
JAM Jurídica Editoração e Eventos
Conselho Redacional:
Adilson Abreu Dallari
Afonso H. Barbuda
Alice Maria González Borges
André dos Santos Pereira Araújo
Carlos Alberto Sobral de Souza
Luciano Ferraz
Rafael Carrera
Diretor Comercial
André dos Santos Pereira Araújo
atendimento@jam-juridica.com.br
Revisão:
Rosangela Lyra
Periodicidade Mensal
ISSN 1806-1346
CDU 35(05)
Karine Lílian de Sousa Costa Machado Moacir Joaquim de Santana Junior Rodrigo Pironti Aguirre de Castro
Auditora Federal de Controle do TCU Bel. em Direito – UFS Mestre em Direito Econômico e Social PUC/
Graduada em Direito Pós-Graduado em Gestão Pública – UNIT PR
MBA em Gestão da Administração Pública Secretário de Controle Interno da Prefeitura Especialista em Direito Administrativo e em
de Aracaju Direito Empresarial
Kiyoshi Harada Diretor Presidente da Empresa de Serviços Professor Universitário
Especialista em Direito Tributário e em Direito Urbanos de Aracaju – EMSURB
Financeiro pela FADUSP Rubens Nunes Sampaio
Mestre em Processo Civil – UNIP Morgana Bellazzi de Oliveira Carvalho Procurador aposentado do Estado da Bahia
Professor de Direito Tributário, Administrativo Especialista em Direito Público e Responsa- Membro do Conselho Estadual do Meio Am-
e Financeiro. biente – SEPRAM – BA
bilidade Fiscal pelo CEPPEV
Ex-Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica Especialista em Processo Civil pelo CCJb
do Município de São Paulo Sarah Maria Pondé
Agente de Controle Externo do TCE/BA
Chefe da UNAI do Tribunal de Contas dos
Advogada
Licurgo Mourão Municípios/BA
Mestre em Direito Econômico
Patrícia Verônica N. C. Sobral de Souza Sérgio de Andréa Ferreira
Pós-graduado em Direito Administrativo,
Contadora e Advogada Advogado
Contabilidade Pública e Controladoria Gover-
Professora de Pós-graduação – UNIT Professor Titular de Direito Administrativo/RJ
namental
Pós-graduada em Auditoria Contábil – UFS Desembargador Federal aposentado
Bacharel em Direito e em Administração
Auditor e Conselheiro substituto do TCE/MG Pós-graduada em Direito Civil e Processo
Professor Universitário Civil Sérgio Ferraz
Assessora de Gabinete do Tribunal de Contas Advogado
Luciano Ferraz do Estado de Sergipe Ex-professor Titular de Direito Administrativo
Advogado da PUC/RJ
Doutor e Mestre em Direito Administrativo Paulo Borba Costa
pela UFMG Advogado Simone da Costa Neves Araújo
Professor de Direito Administrativo da UFMG Procurador do Estado da Bahia Bacharel em Direito
Professor de Direito Financeiro e Finanças Professor da Faculdade de Direito da UCSAL Pós-graduanda em Direito Público – UNI-
Públicas da PUC/Minas FACS
Paulo Modesto
Luiz Alberto Blanchet Professor de Direito Administrativo da Uni- Tatiana Maria Nascimento Matos
Mestre e Doutor em Direito versidade Federal da Bahia – UFBA Advogada
Professor nos cursos de Mestrado e Doutora- Membro do Ministério Público da Bahia
do em Direito Constitucional e Administrativo Toshio Mukai
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Ad-
da Pontifícia Universidade Católica do Paraná Mestre e Doutor (USP)
ministrativo – IBDA
Membro Catedrático da Academia Brasileira e do Instituto dos Advogados da Bahia – IAB
Valéria Cordeiro
de Direito Constitucional
Pós-Graduada em Direito da Administração
Membro do Instituto dos Advogados do Pa- Pedro Henrique Lino de Souza Pública – UFF
raná Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado Atuação na Assessoria Técnica de Licitações
da Bahia no TRE/RJ, Presidente da CPL e Pregoeira
Marcos Juruena Villela Souto (in memoriam)
Consultora e Professora
Petrônio Braz
Marcus Vinícius Americano da Costa Advogado Walter Moacyr Costa Moura
Professor de Direito Constitucional e Direito Assessor Jurídico Assessor Jurídico do Tribunal de Contas dos
do Trabalho da Faculdade de Direito da UC-
Municípios/BA
SAL
Rafael Carrera Freitas
Professor de Direito Constitucional, Munici-
Mestre em Direito Público pela UFBA Weida Zancaner
pal e do Trabalho da Faculdade Ruy Barbosa
Professor Universitário Mestra em Direito Administrativo pela Pontifí-
– BA
Procurador do Município de Salvador cia Universidade Católica de São Paulo
Mestre em Direito – UFBA Professora de Direito Administrativo da Ponti-
Ricardo Maurício Freire Soares fícia Universidade Católica de São Paulo
Maria da Conceição Castellucci Ferreira
Assessora Jurídica do Tribunal de Contas dos Advogado
Professor de Graduação e Pós-Graduação da Yuri Carneiro Coelho
Municípios/BA Advogado
UNIME – Bahia
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Professor Universitário
Maria da Graça Diniz da Costa Belov Diretor Nacional Secretário da ABPCP – As-
Professora Assistente da Cadeira de Direito Federal da Bahia
sociação Brasileira de Professores de Ciên-
Constitucional da Criança e do Adolescente Membro do Instituto dos Advogados Brasi-
cias Penais
– UCSAL leiros e do Instituto dos Advogados da Bahia
Mestre em Direito Público/UFBA
Maria do Carmo de Macêdo Cadidé Rita Tourinho
Auditora Jurídica do Tribunal de Contas do Promotora de Justiça do Estado da Bahia
Estado da Bahia Mestra em Direito Público – UFPE
Professora de Direito Administrativo
Maria Elisa Braz Barbosa
Advogada Roberto Maia de Ataíde
Mestra em Direito Administrativo – UFMG Advogado
SUMÁRIO
DOUTRINA
As políticas públicas e as Instituições Jurídicas. A extrajudicialidade como alternativa para a efetividade dos
Direitos Sociais
Geórgia Teixeira Jezler Campello................................................................................................................................ 26
A noção de tributo como dever fundamental nos sistemas jurídicos de civil law e de common law
José Antônio Garrido.................................................................................................................................................... 57
O Direito fundamental à moradia a partir da Emenda Constitucional N.º 26/2000 e o dever constitucional de
atuação do Poder Público Municipal para sua concretização.
Luciana de Melo Borba Carneiro................................................................................................................................ 78
Acidentes de trabalho, ações regressivas do Seguro Social e o serviço prestado aos entes públicos: e o município
paga a conta?
Tercio Roberto Peixoto Souza ..................................................................................................................................... 126
PARECER
SERVIDOR PÚBLICO:
MUDANÇA DE REGIME JURÍDICO DOUTRINA
E CONTRATO DE TRABALHO
SUMÁRIO:
INTRODUÇÃO
REGIME JURÍDICO ÚNICO
DA CONVERSÃO DE REGIME: CONSTITUCIONALIDADE
E EFEITOS SOBRE O CONTRATO DE TRABALHO
COMPETÊNCIA PARA APRECIAÇÃO DOS PLEITOS DE
DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA NOR-
MA DE CONVERSÃO
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 alterou significativamente
a disciplina relativa aos servidores públicos no país. Além de
vincular a contratação de servidores à sua prévia aprovação em
concurso público, instituiu, em seu art. 39, o regime jurídico
único, proibindo, em respeito ao princípio da isonomia, a coe-
xistência em um mesmo Ente Público de servidores regidos pela
Consolidação das Leis do Trabalho e pelos estatutos funcionais.
Pela disciplina da Constituição até então vigente, apenas se
exigia a prévia aprovação em concurso público para contratação * Mestre em Direito Privado pela UFBA
de servidores estatutários, de modo que à época da instauração Especialista em Direito Civil e Proces-
sual Civil pela UNESA
da nova ordem constitucional, já faziam parte dos quadros da Procuradora do Município do Salvador
Administração diversos empregados públicos, regidos pela CLT. Advogada
Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 3
DOUTRINA
A fim de proteger estes profissionais, que A fim de burlar esta forma de contratação,
já trabalhavam a bem do serviço, foi-lhes con- tanto para o atendimento de interesses pessoais
ferida estabilidade, desde que tivessem sido dos gestores quanto para a rápida solução das
contratados há mais de cinco anos continuados demandas administrativas por pessoal, os Entes
antes da promulgação da Constituição, nos ter- Públicos passaram a contratar servidores regi-
mos do art. 19 do ADCT. dos não pelo estatuto funcional instituído, mas
sim pela Consolidação das Leis do Trabalho, os
Diante deste novo panorama, os Entes chamados empregados públicos.
Públicos, a fim de se adequarem à nova ordem
constitucional, elaboraram, em massa, leis es- A Constituição Federal de 1988, contudo,
peciais implantando o regime jurídico único e com o fito de moralizar o processo de contratação
convertendo o regime jurídico de seus antigos de servidores públicos e impedir a coexistência
empregados, contratados sem concurso público, de profissionais no desempenho das mesmas
que passaram aos status de servidores estatutários funções regidos por regimes jurídicos distintos,
e tiveram seus contratos de trabalho extintos. Esta determinou a obrigatoriedade de contratação
foi, inclusive, a providência adotada pela União destes profissionais, estatutários ou celetistas,
com relação aos Servidores Públicos Federais, sempre através de concurso público e fixou o
nos termos do art. 243 da Lei nº 8.112/90, e pelo regime jurídico único, determinando também
Município do Salvador, nos termos do art. 246 da
que os Entes Públicos só poderiam manter ser-
Lei Complementar Municipal nº 01/91.
vidores regidos por um mesmo regime jurídico,
nos termos do arts. 37, II, e 39, caput:
Ocorre que vêm se proliferando nos foros
trabalhistas demandas em que se questiona a
Art. 37 - A administração pública direta e
constitucionalidade destas normas de conversão.
indireta de qualquer dos Poderes da União,
E, com base em sua alegada inconstitucionali-
dos Estados, do Distrito Federal e dos Muni-
dade, diversos servidores estatutários pleiteiam
cípios obedecerá aos princípios de legalidade,
seja declarada a continuidade de seus vínculos
impessoalidade, moralidade, publicidade e
empregatícios iniciados antes de 1988 e con-
denado o Ente Público ao pagamento de todas eficiência e, também, ao seguinte:
as verbas trabalhistas correlatas, em especial o
FGTS, cuja prescrição é trintenária. II - a investidura em cargo ou emprego público
depende de aprovação prévia em concurso
O presente trabalho busca analisar esta público de provas ou de provas e títulos, de
questão, discorrendo acerca da constituciona- acordo com a natureza e a complexidade do
lidade destas normas de conversão e dos seus cargo ou emprego, na forma prevista em lei,
efeitos sobre os contratos de trabalho iniciados ressalvadas as nomeações para cargo em co-
antes de 1988. missão declarado em lei de livre nomeação
e exoneração;
2. REGIME JURÍDICO ÚNICO
Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal
Tradicionalmente os servidores públicos e os Municípios instituirão, no âmbito de sua
possuíam sua prestação de serviços disciplinada competência, regime jurídico único e planos de
à parte, através de um estatuto funcional ela- carreira para os servidores da administração
borado pelo Ente Político responsável pela sua pública direta, das autarquias e das fundações
contratação. E para esta contratação, em que o públicas.
servidor seria ocupante de um cargo efetivo, des-
de a Constituição de 1946 se exigia a sua prévia Surgiu à época divergência acerca do re-
aprovação em concurso público. gime único a ser implantado para os servidores
4 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA
públicos, se ele necessariamente seria o estatu- “Não há liberdade para a Administração es-
tário ou se o Ente poderia optar pelo celetista. colher entre priorizar a relação estatutária ou
Como bem esclarece José dos Santos Carvalho empregatícia. A regra seria a adoção do regime
Filho, ante a controvérsia estabelecida foram estatutário, e a exceção a adoção do regime
fixadas três posições: celetista, cabível apenas para o desempenho
de algumas atividades especificas.” (Manual
“1ª.) o regime único indica a obrigatorie- de Direito Administrativo. São Paulo: Ma-
dade de adoção exclusiva do regime esta- lheiros, 2012, p. 228).
tutário; 2ª.) cabe à pessoa federativa optar
pelo regime estatutário ou trabalhista, mas, Em 1998, a disciplina do art. 39 da Consti-
uma vez feita a opção, o regime deverá ser tuição Federal foi alterada pela Emenda Consti-
o mesmo para a Administração Direta, tucional nº 19, que acabou com a obrigatoriedade
autarquias e fundações de direito público; do regime jurídico único e determinou fosse
3ª.) admite-se a opção por um regime único instituído um conselho de política de adminis-
para a Administração Direta e outro para as tração e remuneração de pessoal, integrado por
autarquias e fundações públicas”. (Manual servidores designados pelos respectivos Poderes.
de Direito Administrativo. 20. ed. Rio de Tal alteração parte da reforma administrativa
Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 573) empreendida naquele ano, teve como pressu-
posto a presunção de que o regime celetista
Em que pese a existência de entendimen-
impunha maior produtividade ao serviço público
tos em contrário, como acima mencionado,
na medida em que os profissionais não seriam
mostrava-se majoritário o entendimento de que
beneficiados pela estabilidade ampla garantida
o regime estatutário seria o mais adequado ao
aos servidores estatutários.
atendimento do interesse público. Isto porque
ele teria sido criado exatamente para esta finali-
Tal Emenda, contudo, teve sua constitucio-
dade, conferindo aos servidores garantias indis-
nalidade questionada na Ação Direta de Incons-
pensáveis ao exercício pleno e independente de
titucionalidade nº 2.135-4, com base em vícios
suas funções e à Administração a liberdade de
instituí-lo de acordo com suas necessidades, ao formais (sua aprovação não teria respeitado o
passo que o regime regido pela CLT teria sido quanto preconizado pelo art. 60, § 2º, da Cons-
criado para atender às necessidades do setor tituição Federal - quorum de 3/5 para aprovação
privado, voltado prioritariamente à defesa do em dois turnos de votação). Em 2/8/2007 foi
trabalhador. deferida pelo Supremo Tribunal Federal medida
cautelar suspendendo a eficácia da nova redação
Tanto que Hely Lopes Meireles chegou a conferida ao art. 39 da Constituição Federal, mas
afirmar que: garantindo a eficácia das normas que instituíram
regime jurídico múltiplo para os servidores após
“A constituição vigente instituiu regime a edição da Emenda e antes da prolação da deci-
jurídico único para os servidores civis da são liminar (efeitos ex nunc).
Administração Pública direta, autárquica
e fundacional, o que significa ter afastado o Atualmente, portanto, encontra-se em vigor
regime trabalhista utilizado por algumas Admi- na ordem jurídica nacional a determinação ori-
nistrações para a contratação do seu pessoal para ginária do art. 39 da Constituição Federal, sendo
certas atividades.” (Direito Administrativo. exigido o regime jurídico único, estatutário, para
21. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 363) os servidores públicos, modulados os seus efeitos
apenas para manter-se a validade das normas
No mesmo sentido, se posicionou recente- elaboradas entre a edição da EC 19 e a liminar
mente Silvio Luís Ferreira da Rocha: deferida pelo STF.
Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 5
DOUTRINA
regime jurídico dos empregados estabilizados José Afonso da Silva, a despeito de criticar
foi imposta pelo mesmo texto legal, como já a redação do dispositivo, reconhece a possibili-
esclarecido anteriormente, de modo que uma dade de contratação de servidores para o desem-
solução hermenêutica precisaria ser encontrada penho de funções autônomas, sem a necessidade
para justificar a permanência nos quadros da de prévia aprovação em concurso público:
Administração dos antigos empregados públi-
cos estáveis mas não aprovados em concurso de Deixa a Constituição, porém, uma grave lacuna
efetivação. nessa matéria ao não exigir nenhuma forma de
seleção para admissão às funções (autônomas)
Tendo em vista que o art. 37, II, da Cons- referidas no art. 37, I, ao lado dos cargos e
tituição impõe a prévia aprovação em concurso empregos. (Curso de Direito Constitucional
público apenas para o provimento de cargo ou Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004,
emprego público, nada impediria que os empre- p. 660)
gados estabilizados passassem a desempenhar
funções públicas autônomas, não vinculadas a A inconstitucionalidade nas normas de
cargo ou emprego, até que fossem aprovados no conversão, assim, não se encontra na trans-
concurso de efetivação. formação do regime jurídico dos empregados
estabilizados, mas na sua investidura em cargo
Como esclarece Maria Silvia Zanela Di público sem a prévia aprovação em concurso.
Pietro: Nada obsta, contudo, a sua nomeação para fun-
ção pública autônoma, imposta, no caso, pelo
“Ao lado do cargo e do emprego, que têm contexto normativo existente.
uma individualidade própria, definida em
lei, existem atribuições também exercidas Esta solução, inclusive, foi adotada por di-
por servidores públicos, mas sem que lhes versos Entes Públicos, a exemplo do Estado de
corresponda um cargo ou emprego. Fala- Minas Gerais (Lei Estadual nº 10.254/90), que
-se, então, em função dando-se-lhe um conceito criou um quadro funcional a parte para agrupar
residual: é o conjunto de atribuições às quais não os antigos empregados estabilizados que passa-
corresponde um cargo ou emprego. (...) perante ram a ocupar funções públicas autônomas até a
a Constituição atual, quando se fala em sua aprovação posterior em concurso que lhes
função, tem-se que ter em vista dois tipos permitisse ocupar, de forma definitiva, o cargo
de situações: (...) 2. As funções de natureza correspondente à função até então ocupada.
permanente, correspondentes a chefia, direção,
assessoramento ou outro tipo de atividade para O Superior Tribunal de Justiça reconheceu a
a qual o legislador não crie o cargo respecti- possibilidade de os empregados públicos admiti-
vo; em geral, são funções de confiança, de dos antes de 1988 ocuparem funções autônomas,
livre provimento e exoneração (...). Com isso mas, com relação aos não estabilizados, entendeu
fica explicada a razão de ter o constituinte, no pelo caráter precário de sua contratação:
art. 37, II, exigido concurso público só para a
investidura em cargo ou emprego; nos casos de ADMINISTRATIVO. FUNÇÃO PUBLI-
função, a exigência não existe porque os que a CA AUTÔNOMA. DISPENSA. ESTADO
exercem ou são contratados temporariamen- DE MINAS GERAIS. LEI ESTADUAL
te para atender as necessidades emergentes NUM. 10.254/90.
da Administração, ou são ocupantes de 1 - OS OCUPANTES DE FUNÇÃO PÚ-
funções de confiança, para as quais não se BLICA AUTÔNOMA, DECORRENTE
exige concurso público. (12. ed. São Paulo, DA TRANSFORMAÇÃO DE RELAÇÃO
Atlas, 2000, p. 421/422). JURÍDICA CELETISTA LEVADA A
Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 7
DOUTRINA
depositado (Súmula nº 178 do antigo TFR), cebidos em virtude de vantagens fixadas apenas
não se admitindo a incidência de aviso prévio, para servidores estatutários, tese de difícil êxito
obrigação afeita aos rompimentos imotivados do ante a presunção de boa-fé no recebimento destas
vínculo de emprego. parcelas (que decorre da própria presunção de
constitucionalidade das normas jurídicas) e de
E como as leis em questão efetivamente seu caráter alimentar.
puseram fim aos contratos de trabalho, a partir
de sua promulgação teve início o prazo prescri- O Tribunal Superior do Trabalho vem se
cional de dois anos, previsto pelo art. 7º, XXIX, manifestando, de forma majoritária, no sentido
da Constituição Federal, para que os antigos da inconstitucionalidade das normas de con-
empregados públicos pudessem formular suas versão, ao argumento que estas determinaram
pretensões contra seus antigos empregadores, a transposição dos empregados públicos para o
posição também cristalizada na referida Súmula regime estatutário sem a sua prévia aprovação
nº 382 do TST. em concurso público, violando o disposto no
art. 37, II, da Constituição Federal:
Aqueles que se posicionam pela inconstitu-
cionalidade das normas de conversão de regime, RECURSO DE REVISTA. ADMISSIBI-
contudo, defendem que, ante a ineficácia das LIDADE. COMPETÊNCIA MATERIAL.
normas inconstitucionais, os vínculos emprega- JUSTIÇA DO TRABALHO. TRANSMU-
tícios constituídos antes de 1988 ainda estariam TAÇÃO DE REGIME. CONVERSÃO
em curso, tendo o empregado, assim, o direito ao AUTOMÁTICA POR LEI MUNICIPAL
recebimento de todas as verbas trabalhistas daí DO REGIME CELETISTA PARA O ES-
decorrentes, não incidindo a prescrição bienal, TATUTÁRIO. AUSÊNCIA DE CONCUR-
que só tem seu termo inicial com o rompimento SO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE. Esta
do contrato de trabalho. Corte Superior, seguindo orientação do
excelso Supremo Tribunal Federal, tem
Como os direitos trabalhistas básicos previs- entendido que é inviável a conversão au-
tos pelo art. 7º da Constituição Federal são tam- tomática de regime jurídico, ante o óbice
bém garantidos aos servidores públicos estatu- contido no artigo 37, II, da Constituição
tários pelo art. 39, § 3º, da Constituição Federal, Federal, razão por que o empregado pú-
o maior ganho destes empregados estabilizados blico, ainda que admitido anteriormente à
seria o FGTS relativo aos últimos trinta anos e vigência da Constituição Federal de 1988,
alguma verba tipicamente trabalhista eventual- sem prévia submissão a concurso público,
mente não paga relativa aos últimos cinco anos, continua regido pelo regime celetista, in-
divergência decorrente dos diferentes prazos dependentemente da existência de norma
prescricionais incidentes no caso (art. 7º, XXIX, estadual ou municipal que estabeleça a
e Enunciado nº 362 do TST). conversão deste regime para o estatutá-
rio. Precedentes. (RR 15181220105050551
Por outro lado, reputando-se vigentes os 1518-12.2010.5.05.0551, Relator Emmanoel
contratos de trabalho em questão, tais profissio- Pereira, 5ª. Turma, julgamento 24/04/2013)
nais não poderiam mais se beneficiar das regras
de aposentadoria vigentes apenas para servidores AGRAVO DE INSTRUMENTO EM
públicos estatutários tampouco receber parcelas RECURSO DE REVISTA. 1. INCOMPE-
do regime de previdência próprio dos servidores TÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO.
públicos, devendo migrar para o Regime Geral VÍNCULO CELETISTA. MUDANÇA DE
da Previdência Social. Discute-se, ainda, a pos- REGIME JURÍDICO. O Regional consig-
sibilidade de repetição dos valores por eles re- nou a validade da contratação do reclamante
SUMÁRIO
1. Introdução. 2. A ementa do Decreto Municipal nº 23.738/2013
e o princípio da moralidade. 3. Artigo 1º. 4. Artigo 2º. 5. Artigo
3º. 6. Artigo 4º. 7. Artigo 5º. 8. Artigo 6º. 9. Artigo 7º. 10. Artigo
8º. 11. Artigo 9º. 12. Considerações finais. Bibliografia
RESUMO
1. Introdução
* Procurador do Município do Salvador
Advogado
A institucionalização da ética é assunto fundamental na admi- Mestrando em Direito Público pela
Universidade Federal da Bahia
nistração pública brasileira. O Município de Salvador, atendendo Pós-graduado em Direito do Estado
aos princípios que regem a administração pública, em especial a mo- pela Universidade Federal da Bahia
ralidade, instituiu o Código de Conduta da Alta O que é uma ementa e qual o seu objetivo
Administração Municipal, Decreto 23.738/2013, num decreto? Ementa vem do latim ementum,
publicado no Diário Oficial do Município em 3 quer dizer, pensamento ou ideia. No caso em
de janeiro de 2013, logo no início da gestão do tela, é um termo aplicado para indicar o fim que
prefeito eleito para o mandato de 2013 a 2016. objetiva o decreto, para que se faça e se execute
o ato nela lembrado. Trata-se de um resumo das
O direito e a moral se complementam, con- intenções do subscritor.
forme já foi afirmado, embora não se confundam
e não haja subordinação de um ao outro. Em Destarte, percebe-se que a ementa traz um
regra, eles corroboram para a resolução de con- resumo das ideias inseridas ao longo dos dis-
flitos sociais. Dessa forma, ao confeccionar um positivos do decreto. Primeiramente, tem-se a
código de ética, o gestor está trazendo a coerção autoridade competente, o prefeito do Município
do direito para observância da moral no âmbito do Salvador, em seguida o fundamento do ato,
da Administração Pública Municipal. “os princípios constitucionais que informam a
Administração Pública”.
Tratar-se-á ao longo deste artigo de comen-
tar os dispositivos do Código de Conduta da Alta Esses princípios estão elencados no artigo
Administração Municipal, Decreto 23.738/2013, 37 da Constituição Federal: “a administração
que nada mais é do que um código de ética para pública direta e indireta de qualquer dos Poderes
o alto escalão da administração pública do Mu- da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
nicípio de Salvador. Municípios obedecerá aos princípios de legali-
dade, impessoalidade, moralidade, publicidade
A relação da moral com o direito e a ad- e eficiência”.
ministração pública não pode ser banalizada;
destarte, ao se instituir um código de ética, Embora haja vários princípios contidos
demonstra-se, ao menos em tese, a preocupação no dispositivo supracitado, destaca-se, na aná-
por essa temática no seio da cúpula da gestão pú- lise deste trabalho, o princípio da moralidade;
blica municipal de Salvador. intenta-se com ele respeitar a ética na adminis-
tração pública. O princípio da moralidade na
2. A ementa do Decreto 23.738/2013 e o prin- administração pública é o meio para se tentar
cípio da moralidade garantir uma gestão pública mais justa e ética. “O
princípio da moralidade impõe que o adminis-
Antes de se ingressar nos comentários aos trador público não dispense os preceitos éticos
dispositivos do Decreto 23.738/2013 propria- que devem estar presentes na sua conduta”.1
mente dito, cumpre analisar a sua ementa:
A abordagem mais sistemática para esti-
O PREFEITO DO MUNICÍPIO DO mular um comportamento ético é desenvolver
SALVADOR, CAPITAL DO ESTADO uma cultura administrativa que crie uma ligação
DA BAHIA, no uso de suas atribuições, entre os padrões éticos e as práticas na gestão
tendo em vista os princípios constitucionais pública. Essa institucionalização dos padrões
que informam a Administração Pública e éticos começa com a compreensão da filosofia
considerando que o exercício dos cargos, da moral e é sustentada por mecanismos como
empregos e funções públicas, especialmente a estrutura, códigos, programas de treinamento
daqueles componentes do alto escalão, deve e comissões de ética.
ser pautado na ética da honestidade, decoro
e compromisso com o interesse público, 1
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito
corolário do bem comum. Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 18.
Marília Muricy, ao tratar do princípio da quanto o princípio da legalidade exige ação ad-
moralidade na administração pública, afirma: ministrativa de acordo com a lei, o da moralidade
prega um comportamento do administrador que
Ao incluir o princípio da moralidade ad- demonstre haver assumido como móbil da sua
ministrativa ao lado dos demais que inte- ação a própria idéia do dever de exercer uma boa
gram o artigo 37 da Constituição Federal, administração”.4
o legislador constituinte grifou a íntima
convivência entre o direito e a moral. Tal O princípio da moralidade é uma forma de
convivência mostrou-se resistente a todas as responsabilização jurídica, baseada na moral, do
investidas do chamado positivismo jurídico, administrador público para salvaguardar a supe-
repelindo, desde o positivismo estreito dos rioridade da coerência material do sistema, bem
comentaristas do código de Napoleão até a como sobre a institucionalização da ética. Trata-
leitura arrevesada que alguns insistem em -se de uma positivação constitucional da moral,
fazer da obra de Kelsen, afirmando ter ele isto é, uma tentativa do legislador constitucional
negado qualquer ligação entre o direito e de inserir a moral na administração pública por
o mundo dos valores, o que constitui uma meio de uma norma de direito. E isso é que se
absoluta imprecisão2. busca ao decretar o Código de Conduta da Alta
Administração Municipal de Salvador.
No que se refere ao princípio da moralidade,
necessário se faz esclarecer alguns pontos. Ini- Ademais, a ementa também dispõe sobre a
cialmente, cumpre explicar que o princípio da quem se direciona o decreto: aos que exercem
moralidade não se confunde com o da legalidade. cargos, empregos ou funções públicas; em es-
Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles, utilizando- pecial, os que estão no alto escalão. Além disso,
-se da arrematação de Hauriou, afirma: aduz o que deve ser observado por esses sujeitos:
a ética, a honestidade, o decoro e o compromisso
[...] E, ao atuar, não poderá desprezar o com o interesse público.
elemento ético de sua conduta. Assim, não
terá que decidir somente entre o legal e o Observe o que Valls afirma sobre conceito
ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o de ética:
inconveniente, o oportuno e o inoportuno,
mas também entre o honesto e o desonesto. Tradicionalmente ela é entendida como um
Por considerações de direito e de moral, o estudo ou uma reflexão, científica ou filosó-
ato administrativo não terá que obedecer so- fica, e eventualmente até teológica, sobre os
mente à lei jurídica, mas também à lei ética costumes ou sobre as ações humanas. Mas
da própria instituição, porque nem tudo que também chamamos de ética a própria vida,
é legal é honesto, conforme já proclamavam quando conforme aos costumes considera-
os romanos – non omne quod licet honestum dos corretos. A ética pode ser o estudo das
est. A moral comum, remata Hauriou, é im-
posta ao homem para sua conduta externa;
a moral administrativa é imposta ao agente
2
MURICY, Marília. O Princípio da Moralidade Administrativa.
público para a sua conduta interna, segundo Disponível em: < http://terramagazine.terra.com.br/interna/
as exigências da instituição a que serve, e a principio+da+moralidade+administrativa.html.> Acesso em
finalidade de sua ação: o bem comum3. 19 out 2011.
3
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasilei-
ro. 15. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 79.
Conforme se infere das palavras citadas 4
DELGADO, José Augusto. O Princípio da Moralidade
Administrativa e a Constituição Federal de 1988. BDjur,
acima, o princípio da moralidade é independente Brasília, DF. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/
do da legalidade. Nas palavras de Delgado, “en- handle/2011/9917>. Acesso em: 17 out. 2011.
ações ou dos costumes, e pode ser a própria alta Administração Pública Municipal, como
realização de um tipo de comportamento5. forma de demonstrar a integridade e a lisura
do processo decisório da Administração Muni-
A valorização da ética como instrumento de cipal”. A ideia transmitida por esse dispositivo
gestão pública insere-se, por inteiro, no esforço é a de que se objetiva tornar públicas e de fácil
de revitalização e modernização da administra- entendimento as regras morais das condutas das
ção pública. Ademais, este é um dos aspectos autoridades da gestão municipal.
que falta para torná-la não só eficiente quanto
aos resultados, mas também democrática no que Inciso segundo: “II – demonstrar, a partir
se refere ao modo pelo qual esses resultados são das autoridades de nível hierárquico superior,
alcançados. os padrões éticos a que se submete a Admi-
nistração Pública Municipal”. Trata-se da
Outro termo merecedor de explicação é o utilização do exemplo das condutas das auto-
decoro. O decoro, neste caso, é a expectativa que ridades, que devem ser seguidas pelo restante
se tem em relação aos servidores públicos do alto dos servidores públicos. O exemplo é uma boa
escalão de uma atuação individual exemplar. forma de se cobrar atitudes morais por parte
Seguem alguns exemplos de condutas contrárias dos subordinados.
ao decoro: o uso de expressões que configuram
crime contra a honra ou que incentivam sua prá- Inciso terceiro: “III – preservar e promover
tica; abuso de poder; recebimento de vantagens a imagem e a reputação do administrador pú-
indevidas; prática de ato irregular grave quando blico”. Ao preservar a imagem e a reputação do
no desempenho de suas funções; revelação do administrador público, está, ao mesmo, tempo
conteúdo de debates considerados secretos. fortalecendo a instituição Município.
Com este Decreto, observa-se uma tentativa Inciso quarto: “IV – estabelecer regras
de institucionalização da ética na administração básicas sobre conflitos de interesses públicos e
pública municipal, com o objetivo de tentar privados e limitações às atividades profissionais
reverter o crescente ceticismo da sociedade a posteriores ao exercício do cargo público”. Não
respeito da moralidade da administração pública se devem tratar os bens públicos como bens pri-
e resgatar e atualizar a noção de serviço público, vados; a repartição pública não é uma extensão
o que abrange inclusive o dever de prestar contas da casa do administrador; com efeito, ele não
do conteúdo ético do desempenho dos servido- deve se utilizar das facilidades que tem como
res, em particular os que têm responsabilidade gestor para enriquecimento pessoal ao deixar
de decisão. o cargo. Além disso, havendo conflito entre o
interesse público e o privado, neste caso, deve
3. Artigo 1º prevalecer o interesse público.
O artigo primeiro estabelece as finalidades Inciso quinto: “V - apresentar um conjunto
do supracitado código de ética e aduz: de conceitos que servem de base para dirimir
conflitos entre o interesse privado e o dever
“Art. 1º Fica instituído o Código de Conduta funcional das autoridades públicas da Adminis-
da Alta Administração Municipal com as seguin- tração Pública Municipal”. Deve-se evitar que o
tes finalidades”, citando e explicando uma a uma neopatrimonialismo se institua na administra-
as finalidades dispostas nos incisos deste artigo.
ção pública municipal; é preciso ter consciência Destarte, abarcou-se com o parágrafo úni-
de que os bens públicos utilizados pelos gestores co do artigo primeiro toda a cúpula da gestão
na administração pública são do Município e de- administrativa do Município do Salvador, que
vem assim ser utilizados e não como extensão do é escolhida pelo prefeito, devendo-se submeter
patrimônio particular de quem os usa. O dever ao código de ética em comento.
funcional em conflito com o interesse particular,
quando o gestor estiver a serviço do Município, 4. Artigo 2º
deve ater-se aos conceitos pré-estabelecidos pelo
código de ética na resolução desse entrave. O artigo segundo trata de como devem ser
exercidos os cargos elencados no parágrafo único
A seguir será analisado o parágrafo único, do artigo primeiro; vejamos o que ele descreve:
que indica os sujeitos que devem obedecer às
normas do Código de Ética em comento. Art. 2º O exercício dos cargos mencionados
no parágrafo único do art. 1º é condicionado
Parágrafo único. As normas deste Código ao atendimento dos requisitos gerais e especí-
aplicam-se às seguintes autoridades pú- ficos para provimento dos cargos, empregos e
blicas: I – Secretários do Município de funções públicas, e à rigorosa observância aos
Salvador e Subsecretários; II – diretores, deveres de honestidade, boa-fé, transparência,
titulares de cargos em comissão; III – su- probidade, decoro e compromisso com o inte-
perintendentes, presidentes e diretores de resse público.
agências, autarquias, fundações mantidas
pelo Poder Público, empresas públicas e Os requisitos gerais para ingresso no serviço
sociedades de economia mista. público do Município do Salvador estão previs-
tos no artigo 6º da Lei Complementar Municipal
Observa-se que este Código de Ética não nº 01/91, que aduz:
se aplica a todos os servidores públicos, mas,
especificamente, às autoridades do Município Art. 6º - São requisitos para ingresso no
do Salvador. Todos os cargos e funções acima serviço público do Município:
descritas são de livre nomeação e exoneração I - nacionalidade brasileira ou equiparada;
pelo Prefeito de Salvador, isto é, são cargos que II - gozo dos direitos políticos; III - quita-
decorrem da confiança do chefe do executivo ção com as obrigações militares; IV - nível
municipal, envolvem discricionariedade na sua de escolaridade exigido para o exercício do
escolha. cargo; V - idade mínima de 18 (dezoito)
anos completos; VI - habilitação legal para
Outrossim, infere-se do dispositivo acima o exercício do cargo; VII - boa saúde física
descrito que se objetivou abranger tanto a admi- e mental; VIII - não estar incompatibilizado
nistração direta quanto a administração indire- para o serviço público em razão de penali-
ta. A administração direta é o núcleo da Admi- dade sofrida.
nistração Pública municipal, que corresponde à
própria pessoa jurídica política do Município do Dessa forma, percebe-se que além de obser-
Salvador e seus órgãos despersonalizados. A ad- var a ética, os escolhidos para os cargos do alto
ministração indireta, por outro lado, é formada escalão deverão observar os requisitos comuns a
por entes personalizados, vinculados, em regra, todos os servidores para investidura nos cargos,
a um órgão da Administração Direta, isto é, uma empregos e funções públicas do Município.
Secretaria, por exemplo: as autarquias, funda-
ções públicas, empresas públicas e sociedades O artigo 2º traz um parágrafo único que
de economia mista. aduz mais alguns requisitos obrigatórios para
tem o dever de informar ao Conselho Municipal dados por pessoa, empresa ou entidade que tenha
de Ética Pública, o qual, por sua vez, deverá interesse em decisão da autoridade ou do órgão
manter o sigilo das informações referentes à a que esta pertença. O objetivo deste dispositivo
situação patrimonial da autoridade. é evitar decisões tendenciosas, mantendo-se a
honestidade, a igualdade dos administrados e a
6. Artigo 4º imparcialidade da autoridade.
O art. 4º afirma o seguinte: “a autoridade Poderia suscitar-se a seguinte dúvida:
pública municipal tem o dever de esclarecer a quando se tratar de brindes, a autoridade deve
existência de eventual conflito de interesses, aceitá-los? Qual a diferença entre presente e
bem como comunicar qualquer circunstância ou brinde? Existe a possibilidade de recebimento
fato impeditivo de sua participação em decisão de um presente em virtude do cargo?
coletiva ou em órgão colegiado”.
Brinde é a lembrança distribuída a título de
Trata-se de dispositivo que busca a exigência cortesia, propaganda, divulgação habitual ou por
por parte da autoridade pública no esclarecimen- ocasião de eventos ou datas comemorativas que
to sobre existência de conflito de interesses, nada buscam a promoção de determinada pessoa. O
mais é do que o respeito ao princípio constitu- brinde não deve ter valores altos; razoavelmente
cional da impessoalidade, bem como tentativa de entende-se que seja algo em torno de R$100,00
evitar omissões e obscuridades quando houver (cem reais). Ademais, sua distribuição deve ser
conflitos entre interesses particulares e interesse generalizada, ou seja, não se destinar exclusiva-
público. mente a uma determinada autoridade. Outros-
sim, não é sensato aceitar brindes que determi-
Na segunda parte do artigo, intenta-se nada pessoa distribua com muita frequência. Há
evitar omissão por parte da autoridade quando casos decorrentes de relações diplomáticas que
houver circunstância que implique suspeição ou permitem que a autoridade receba presentes em
impedimento da participação da autoridade em virtude do cargo que exerce.
decisão coletiva ou de órgão colegiado. Ocorren-
do casos em que haja esse tipo de circunstância Não é possível prever-se todos os casos no
que impeça a autoridade de participar, ela tem que se refere às vantagens, decorrentes de fontes
a obrigação de comunicar. privadas, às autoridades. Dessa forma, é preciso
que se analise caso a caso e, em havendo dúvida,
7. Artigo 5º a autoridade municipal deve submeter o fato ao
Conselho Municipal de Ética Pública.
A norma contida no artigo, abaixo trans-
crita, busca a manutenção do interesse público, 8. Artigo 6º
bem como se evitar favorecimento a terceiros
por meio de prestações indevidas às autoridades. “Art. 6º É vedado o exercício simultâneo dos
cargos mencionados nos incisos I, II e III,
“Art. 5º A autoridade pública municipal não do parágrafo único, do art. 1º, deste Decreto,
poderá receber salário ou qualquer outra com o de presidente de partidos políticos ou
remuneração ou vantagem de fonte privada órgãos de ação partidária.”
em desacordo com a lei.”
Quem estiver ocupando os cargos de Secre-
Além da proibição expressa de salários ou tário do Município de Salvador ou Subsecretá-
remuneração de fontes privadas, entende-se rio; diretor; cargo em comissão; superintenden-
que é também proibida a aceitação de presentes te, presidente e diretor de agências, autarquias,
fundações mantidas pelo Poder Público, empre- Todavia, a exoneração é ato discricionário
sas públicas e sociedades de economia mista, do Prefeito, que pode ou não acolher a sugestão
não pode ser presidente de partidos políticos ou da Comissão de Ética pública do Município do
órgãos de ação partidária. Salvador. Entende-se ser insustentável a ma-
nutenção de uma autoridade que descumpre o
O que se busca com essa norma é evitar a Código de Conduta em comento.
influência direta de partidos políticos no âmbito
da Administração Pública Municipal e, dessa O gestor não está acima do ordenamento
forma, não permitir a confusão entre gestão jurídico nem dos princípios que regem a admi-
municipal e política partidária. nistração pública. Não se pode conceber uma
boa administração pública regida com excesso
9. Artigo 7º de poder e desvio de finalidade. Dessa forma,
embora a exoneração da autoridade municipal
Entende-se que há uma relação complemen- seja um ato discricionário do chefe do executi-
tar entre moral e direito e desta relação decorre a vo, o prefeito deve ater-se às recomendações do
necessidade de se utilizar a institucionalização e Conselho Municipal de Ética Pública, sob pena
coerção do direito para fazer com que determina- de se tratar de um órgão meramente formal e
das normas (antes da institucionalização, apenas sem eficácia nas suas decisões.
moral) sejam cumpridas. Daí a necessidade de
O procedimento, próprio do direito, busca a
se institucionalizar a moral na Administração
legitimação das decisões, essa legitimação impli-
Pública, já que a ética não é suficiente para fun-
ca a manutenção da autoridade, isto é, a aceitabi-
damentar a ação do homem.
lidade e obediência às normas. Ademais, tanto a
autoridade foi escolhida pelo prefeito quanto os
Art.7º A inobservância das normas do pre-
membros do Conselho, órgão analisado a seguir.
sente Código de Conduta acarretará a apli-
cação de advertência à autoridade pública
10. Artigo 8º
municipal, observando o devido processo
legal, podendo, em caso de gravidade, o
O Conselho Municipal de Ética Pública é o
Conselho Municipal de Ética pública suge- órgão colegiado responsável pelos julgamentos
rir ao Chefe do poder executivo Municipal relacionados ao descumprimento do Código de
a exoneração do responsável. Conduta da Alta Administração e é composto
por cinco membros, que devem ser cidadãos
A norma do dispositivo supracitado tem o residentes em Salvador, nomeados pelo prefeito
mister de criar uma sanção para o descumpri- para um mandato de dois anos, sem remunera-
mento do Código de Conduta em comento. É a ção, admitida uma recondução.
aplicação do velho brocardo: “direito sem sanção
é como tempestade sem trovão, não assusta”, Art. 8º Fica instituído o Conselho Munici-
dessa forma, a sanção visa coagir o indivíduo ao pal de Ética Pública, composto por cinco (5)
cumprimento das normas. membros e número igual de suplentes, no-
meados pelo Prefeito, escolhidos entre cida-
Quando se entender que a natureza do dãos residentes em Salvador, de idoneidade
descumprimento do Código de Conduta é leve, moral e reputação ilibada, para o exercício
aplica-se a advertência. Dependendo do grau e de mandato de (2) dois anos, admitida uma
da relevância do descumprimento, a Comissão de recondução, não podendo a escolha recair
Ética Pública do Município do Salvador poderá em servidor público municipal da ativa.
sugerir ao Chefe do Poder Executivo Municipal Parágrafo único. Os membros do Conselho
a exoneração da autoridade. Municipal de Ética Pública não serão re-
munerados, sendo, porém, seu desempenho VIII – elaborar o seu Regimento Interno, no
considerado prestação de serviço de relevan- prazo de até 120 (cento e vinte) dias.
te interesse público.
Parágrafo único. Caberá, ainda, ao Con-
Duas observações devem ser realizadas: a selho, propor um Código de Ética para o
primeira de que o membro do Conselho não Serviço Público Municipal.
pode ser servidor público municipal da ativa;
e a segunda que o membro escolhido para ser O Conselho Municipal de Ética Pública
conselheiro não terá remuneração; todavia, deve zelar pela aplicação do Código de Condu-
será reconhecido pelo seu desempenho, sendo ta, logo seus membros devem atuar de forma a
considerado prestação de serviço relevante para servir como exemplo às autoridades municipais.
o interesse público. O Conselho é o órgão que recebe as denúncias
relacionadas a descumprimento do Código em
A não utilização de servidores da ativa implica comento, devendo recebê-las e proceder à sua
uma maior imparcialidade por parte dos membros apuração, isto é, averiguar a veracidade dos fatos,
do Conselho ao julgar os casos propostos à Comis- por meio de uma instrução probatória, trazendo
são. Além disso, o fato de não ter remuneração re- aos autos fundamentos que sirvam para concluir
duz a utilização deste órgão como o popularmente o processo com uma decisão justa.
denominado “cabide de emprego”.
A decisão do Conselho deve ser encami-
11. Artigo 9º nhada ao Gabinete do Prefeito para análise e
conhecimento, tendo em vista ser o Chefe do
As atribuições do Conselho estão elencadas Executivo quem decidirá por uma possível exo-
no artigo nono, que aduz o seguinte: neração da autoridade.
Pública e isto tem sido percebido pela criação mento, precisando haver fiscalização e punição
de Comissões de Ética e de Códigos de Ética dos infratores do Código de Ética.
pelos diversos entes federativos, como é o caso
deste ora comentado. O Município de Salvador A criação de um Decreto, que prevê a pos-
se mostra inteirado do assunto dentro de um sibilidade de punição de autoridades que ajam
panorama nacional, por meio da criação de um de encontro à moral, tenta aproximar – o que
Código de Conduta da alta Administração e de para muitos parece ser impossível – a ética da
um Conselho de Ética Municipal, que será res- política de uma forma impositiva. Todavia, se o
ponsável pela implantação do Código de Ética Chefe do Executivo não acatar as sugestões do
para o Serviço Público Municipal. Conselho de Ética, todo esse decreto comentado
perde seu sentido.
A institucionalização tem o papel de permi-
tir uma maior segurança, um consenso esperado Daí a necessidade de, através do procedi-
pela sociedade. Segundo Luhmann, a institucio- mento sem conteúdo – já que este pode implicar
nalização possui uma característica especial, “sua descrédito –, legitimar o Conselho de Ética,
função reside em uma distribuição tangível de dando-lhe a autoridade merecida. Para haver
encargos e riscos comportamentais, que tornam a obediência às suas decisões é preciso que o
provável a manutenção de uma redução social prefeito acolha as decisões dos conselheiros,
vivenciada e que dão chances previsivelmente fortalecendo, assim, essa instituição.
melhores a certas projeções normativas”.6
Espera-se dos gestores públicos municipais
Às vezes será necessário acrescentar de- que ajam de forma ética, respeitando a Consti-
terminados princípios éticos no catálogo dos tuição Federal e a Lei Orgânica do Município
direitos, sendo necessária a positivação para do Salvador. Destarte, ao analisar a ética na ad-
transformar a ética em direito. Segundo Alexy: ministração pública municipal, percebe-se que
ainda há um longo caminho a ser percorrido,
A transformação dos direitos do homem mas que já foi dado o primeiro passo.
em direito positivo é somente então necessá-
ria, quando, no fundo, é necessário ter direito REFERÊNCIAS
positivo. São três problemas que levam à neces-
sidade do direito: o problema do conhecimen- ALEXY, Robert. Direito, Razão, Discurso: Estu-
to, o problema da imposição e o problema da dos para a filosofia do direito. Tradução de Luis
organização.7 Afonso Heck. São Paulo: Livraria do Advogado
Editora, 2010.
O direito é uma consequência da comple-
xidade social, que deve se complementar com a CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual
moral, não sendo necessário eliminá-la do seu de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen
conceito. Isso implica um esvaziamento da ética, Juris, 2007.
já que a moral, quando institucionalizada, passa
a ser tutelada pelo direito em busca da utiliza- DELGADO, José Augusto. O Princípio da
ção das ferramentas jurídicas para solução dos Moralidade Administrativa e a Constituição Fe-
problemas éticos da sociedade.
6
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução de
Utilizando-se as ideias de Luhmann, as Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasilei-
normas jurídicas são expectativas estabilizadas ro.1983, p. 81.
7
ALEXY, Robert. Direito, Razão, Discurso: Estudos para
em termos contrafásicos que podem ou não ser a filosofia do direito. Tradução de Luis Afonso Heck. São
cumpridas. Entretanto, espera-se o seu cumpri- Paulo: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 113.
AS POLÍTICAS PÚBLICAS E AS
DOUTRINA
INSTITUIÇÕES JURÍDICAS.
A EXTRAJUDICIALIDADE COMO
ALTERNATIVA PARA A EFETIVIDADE
DOS DIREITOS SOCIAIS
terras fosse algo justo. Por outro lado, segundo –, a judicialização das políticas públicas torna-
Rawls, se fosse impossível para esses legislado- -se fatal.
res iniciais saberem se possuem terras ou não,
seria mais fácil concluírem que a distribuição A admissão do controle constitucional de
equitativa de terras é algo justo, haja vista que efetivação das políticas públicas pelo Judiciá-
os legisladores teriam receio de – após ser le- rio pátrio foi reconhecida de forma categórica
vantado o véu de ignorância – descobrirem que pelo Supremo Tribunal Federal, conforme se
não possuíam quaisquer bens materiais. Como depreende do trecho destacado abaixo, do RE
se observa, o egoísmo é o ponto que justifica a 410715 AgR/SP, cujo relator foi o Ministro
necessidade do véu de ignorância para a obten- Celso de Mello, e que versou sobre o direito à
ção dos princípios da justiça. educação infantil, assegurado no art. 208, IV da
Carta Magna. A mencionada decisão afirmou
As bases da nova visão do Direito Consti- que a educação infantil representa prerrogativa
tucional estão calcadas em alguns fatores, quais constitucional indisponível, que, deferida às
sejam: a integração dos valores na atividade crianças, a estas assegura, para efeito de seu de-
interpretativa; a normatividade dos princípios; senvolvimento integral, e como primeira etapa
e a construção dos direitos fundamentais passa do processo de educação básica, o atendimento
a ter como cerne a dignidade da pessoa humana. em creche e o acesso à pré-escola. E nessa esteira
asseverou que:
Os princípios revelam os valores da socie-
dade e deles extrai-se uma ordem com fulcro Embora resida, primariamente, nos Pode-
na qual o Direito passa a ser compreendido e res Legislativo e Executivo, a prerrogativa
aplicado. de formular e executar políticas públicas,
revela-se possível, no entanto, ao Poder
Nesse Estado constitucional de direito, a Judiciário, determinar, ainda que em bases
Constituição passa a valer como norma jurídica excepcionais, especialmente nas hipóteses
e a limitar o conteúdo das leis e atos normativos. de políticas públicas definidas pela própria
Impõe, ademais, deveres ao Estado. E nesse novo Constituição, sejam estas implementadas
paradigma exsurge a supremacia do tribunal pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja
constitucional. omissão – por importar em descumpri-
mento dos encargos político-jurídicos que
Questões de cunho social, político e moral sobre eles incidem em caráter mandatório
passam a ser judicializadas, ao passo em que – mostra-se apta a comprometer a eficácia e
há uma certa retração tanto do Legislativo a integridade de direitos sociais e culturais
quando do Executivo diante da transferência de impregnados de estatura constitucional. A
poder para a esfera judicial. questão pertinente à “reserva do possível”.
3. DESAFIOS E OBSTÁCULOS ÀS INSTI- Vale observar, contudo, que nesse enfren-
TUIÇÕES JURÍDICAS tamento de temas de ordem política e social, o
Judiciário depara-se com limites, dentre os quais
Num sistema em que as políticas públicas a sobrecarga do sistema judiciário; a imparciali-
estão constitucionalizadas e que prevê garantias dade do juiz, que o impede de avançar no sentido
de controle do poder; num ambiente permeado de provocar a composição e autorregulação dos
de decepção com a política em geral, bem como litígios e isso decorre do sistema adversarial da
diante do recuo dos representantes políticos dinâmica judicial, que tem por consequência
perante temas polêmicos – sendo-lhes mais uma preocupação apenas com o momento da
conveniente sejam discutidos na seara judicial aplicação do direito posto e não com a construção
e reconhecimento de novos direitos pelo juiz. car a idéia de legitimidade, que requer além do
Significa dizer que o poder judicial é retrospec- cumprimento das regras jurídicas o atendimento
tivo e reativo, ou seja, só atua quando solicitado da moral administrativa e da finalidade pública;
pelas partes ou por outros setores do Estado. a outra seria para agregar ao princípio da legali-
Dessa forma, a disponibilidade dos tribunais dade a noção de constitucionalidade.
para resolver litígios é abstrata, tornando-se
concreta na solução de conflitos, na medida em O que se observa hoje é a atividade estatal
que houver uma procura social efetiva.4 de funcionalização dos direitos fundamentais,
que se concentra sobre os dois dados que estão,
Alerta Canotilho5 que a forma tradicional na visão de Sabino Cassese, relacionados a dois
de solução de litígios, através dos tribunais e conceitos: à autoridade do governo e à eficiência da
mediante decisão de um juiz imparcial, é consi- máquina estatal. Esses dois elementos – autoridade
derada hoje incapaz de assegurar por si só a paz e eficiência – experimentam sucessivas mudanças,
jurídica e de garantir em tempo razoável alguns na medida em que as instituições políticas se
direitos e interesses das pessoas. Agrega a isso, o desenvolvem e ultrapassam a sua própria esfera
fato da forma estatal autoritária de fazer justiça de ação tradicional e passam a intervir mais pro-
constituir-se em obstáculo à tendência genera- fundamente na gestão de muitas das organizações
lizada de autorregulação dos litígios. civis da sociedade, de tal sorte que as Adminis-
trações Públicas, para lograrem uma boa atuação
Em que pese os óbices expendidos, não institucional, acabam “constrangidas a renunciar
há obstáculos intransponíveis à institucionali- à autoridade e a buscar o consentimento dos cida-
zação de formas alternativas da justa composição dãos”6 e em todo esse processo de funcionalização
dos conflitos. Até porque o Estado Democrático dos direitos fundamentais a Advocacia Pública
de Direito opera com base na integração e não na exerce papel relevante.
hierarquia entre as pessoas que compõem a socie-
dade e o Estado, permitindo, assim, a construção Vale asseverar que a Defensoria Pública
de fórmulas de interlocução e convívio entre eles. é instituição essencial à função jurisdicional do
Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e, para que se efetivem as suas funções essen-
e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, ciais à democracia, terão de enfrentar alguns
na forma do art. 5º, LXXIV (art. 134 da CF/88), desafios, como: i) Desenvolver novos métodos
competindo-lhe também evitar e prevenir a de atuação, buscando caminhos propiciadores
judicialização de relações sociais. da consensualidade e abertura para o diálogo;
ii) Habilitarem-se na atribuição institucional
Assim, a Defensoria tem papel fundamental de intervir preventiva e extrajudicialmente
na efetivação e na concretização das políticas nos conflitos, buscando conhecimento técnico
públicas, a cargo do Executivo, quando da sua adequado e a necessária interlocução com outros
recusa, retardamento ou insuficiente proteção ramos das ciências. Os referidos conhecimentos
pelo órgão judiciário; e na ampliação decisiva conduzirão as instituições pelo viés da razo-
do acesso à justiça. abilidade, desviando-as de debates de cunho
meramente político; iii) A busca de maior for-
Também relevante na efetivação de direitos talecimento institucional da Advocacia Pública,
sociais é o Ministério Público. Segundo o artigo do Ministério Público e da Defensoria Pública,
127 da Carta Magna: “O Ministério Público é que lhe garantam independência na condução
instituição permanente, essencial à função ju- dos seus misteres.
risdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa
da ordem jurídica, do regime democrático e dos O grande obstáculo às instituições em
interesses sociais e individuais indisponíveis.” questão é a existência de direitos concedidos
constitucionalmente de forma ampla e não sis-
O Ministério Público serve como canal pri- tematizados normativamente pelo Estado – o
vilegiado às demandas que visam a concretização que, inclusive, facilitaria as ações de controle.
dos novos direitos e o resgate da cidadania de Nessas hipóteses, de ausência de regulamenta-
parcela da população brasileira, agindo como ção, torna-se temerário às instituições jurídicas
ator privilegiado na consolidação da democracia apresentarem escolhas políticas no lugar dos
no país. gestores públicos, governantes eleitos a partir
de um certame democrático.
As mencionadas instituições são funda-
mentais na prevenção do litígio em massa, não 4. SOLUÇÕES E ESTRATÉGIAS INOVA-
necessitam de provocação e são dinâmicas, ainda DORAS
mais quando o Estado envereda-se em direção a
um novo movimento social, assumindo a posição As soluções e estratégias para as instituições
de coordenação de interesses diversos. jurídicas desenvolverem o seu papel de conduto-
ras da máxima garantia dos direitos fundamen-
Cumpre registrar que há outros centros tais, no que se refere a demandas que envolvem
produtores do direito, cujas interpretações do di- grande parte da sociedade, passam também por
reito vigente não correspondem especificamente algumas medidas que devem ser adotadas pela
à interpretação judicial. Desse modo, esferas não Administração Pública.
estatais podem ser palco de debates de temas de
cunho jurídico e que abrange boa parcela da po- A princípio, cumpre registrar que a au-
pulação, como questões relacionadas à educação sência da transparência na prática pública
e saúde, e nesse contexto as instituições jurídicas reforça a idéia de que as tarefas constitucionais
exercem papel de destaque. não encontram concretização, de modo que se
deve exigir da Administração a divulgação de
Assim, nesses novos centros de debates as informação e o investimento em transparência
instituições jurídicas têm participação constante pública, de sorte que os indivíduos possam ter a
exata dimensão das políticas públicas efetivadas essenciais à concretização de valores democráti-
pela Administração. cos. São elas a Advocacia Pública, o Ministério
Público e a Defensoria Pública. Esses órgãos
Demandar o Estado no sentido de desenvol- jurídicos exercem função de relevo na prevenção
ver um programa de ações sistematizadas, como dos litígios e na dinamização da implementação
resultado da sua atuação finalística, de modo de políticas públicas que atingem uma massa de
que as suas ações sejam enunciadas e, portanto, beneficiários.
conhecidas da sociedade.
Nessa seara, enfrentam desafios inúmeros,
As instituições jurídicas, que possuem a bem como obstáculos, que podem ser superados
função de garantir os direitos sociais, devem, com o fortalecimento institucional dos referidos
além de conhecê-los, reconhecer os novos su- órgãos; investimento e soluções alternativas na
jeitos de direitos que exsurgem do texto cons- identificação dos sujeitos de direitos que ema-
titucional, viabilizando a criação de estratégias nam do texto constitucional; na exigência de um
de inclusão. planejamento das políticas por parte do Estado,
bem como com a criação de um espaço público
Vale observar que um instrumento extra- de discussão, multidisciplinar, que tenha como
judicial para a solução de conflitos metaindivi- integrantes não só as instituições jurídicas,
duais muito proveitoso – mais célere que a ação mas órgãos técnicos da Administração Pública,
civil pública – é o Termo de Ajustamento de responsáveis pela execução das políticas e enti-
Conduta – TAC, bastante utilizado pelo Minis- dades representativas da sociedade civil, a fim
tério Público e firmado com gestores, visando de que haja o melhor entendimento em prol da
promover uma tutela preventiva e reparadora realização mais pura dos valores democráticos
dos danos causados aos direitos sociais, evitando inspiradores dos direitos previstos na Consti-
as delongas do processo judicial. tuição Federal.
A rigor, a melhor forma de se aproximar a Com tais razões, a estratégia mais eficaz
realidade fática dos direitos previstos é o inves- na busca de soluções extrajudiciais para a con-
timento na exploração de um espaço público de cretização das políticas públicas é a abertura de
discussão, ou cogestão, contemplando não só as espaço para a discussão das referidas políticas;
instituições jurídicas, mas órgãos da Administra- entretanto, uma discussão permeada de argu-
ção Pública, responsáveis pela execução das polí- mentação não eminentemente jurídica, mas
ticas, como também entidades representativas da plural, reflexo da participação multifacetada
sociedade civil, em cujo ambiente se estabeleça dos atores deste palco, onde todos ganham e que
como elo de entendimento uma linguagem não tem como pano de fundo a solidariedade social,
estritamente técnico-jurídica, mas acessível e tão bem posta na Carta Magna como objetivo
compreensível por todos os envolvidos. da República Federativa do Brasil e tão bem
descrita por Wladimir Novaes Martinez7 como
5 CONCLUSÃO a projeção do amor individual, exercitado entre
parentes e estendido ao grupo social. O instinto
Em meio à constitucionalização de valores animal de preservação da espécie, sofisticado e
sociais e aos obstáculos inerentes à estrutura dos desenvolvido no seio da família, que encontra
órgãos judiciários – como o volume de ações e a na organização social ambas as possibilidades
imparcialidade do juiz –, limitadores da oferta de manifestação.
de uma prestação jurisdicional de direitos fun-
damentais em tempo razoável e de forma efetiva, 7
MARTINEZ, Wladimir Novaes. Princípios do direito previ-
despontam algumas instituições jurídicas como denciário. São Paulo: RT, 1995, p. 78
Na busca pela efetividade das cidades sus- incluída no plano diretor, exigir, nos termos
tentáveis, o Direito brasileiro apresenta uma da lei federal, do proprietário do solo urbano
gama de normas relativas às questões urbanas, não edificado, subutilizado ou não utilizado,
como os planos diretores dos municípios, e, no que promova seu adequado aproveitamento,
âmbito federal, o Estatuto da Cidade, além da sob pena, sucessivamente, de:
própria Constituição de 1988. E é o Estatuto,
sem dúvida, a grande estrela dessa constelação I - parcelamento ou edificação compulsó-
normativa. rios;
II - imposto sobre a propriedade predial e
Assim, o presente artigo está dividido de territorial urbana progressivo no tempo;
forma a percorrer o caminho entre a política III - desapropriação com pagamento me-
urbana vigente no Brasil e a atual realidade das diante títulos da dívida pública de emissão
cidades sustentáveis – passando por seu con- previamente aprovada pelo Senado Federal,
ceito hodierno, a fim de responder ao seguinte com prazo de resgate de até dez anos, em
questionamento: a sustentabilidade já é uma parcelas anuais, iguais e sucessivas, asse-
realidade no que tange às cidades brasileiras? Por gurados o valor real da indenização e os
fim, serão expostos alguns exemplos de cidades juros legais.
sustentáveis no mundo.
Art. 183. Aquele que possuir como sua área
1. A estrutura normativa brasileira acerca do urbana de até duzentos e cinqüenta metros
desenvolvimento urbano quadrados, por cinco anos, ininterrupta-
mente e sem oposição, utilizando-a para sua
Como visto anteriormente, a Constituição moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o
Federal brasileira de 1988 (CF/88) trata, no domínio, desde que não seja proprietário de
Título II do Capítulo VII, sobre a política de outro imóvel urbano ou rural.
desenvolvimento urbano. Senão vejamos: § 1º - O título de domínio e a concessão
de uso serão conferidos ao homem ou à
Art. 182. A política de desenvolvimento mulher, ou a ambos, independentemente
urbano, executada pelo Poder Público mu- do estado civil.
nicipal, conforme diretrizes gerais fixadas § 2º - Esse direito não será reconhecido ao
em lei, tem por objetivo ordenar o pleno de- mesmo possuidor mais de uma vez.
senvolvimento das funções sociais da cidade § 3º - Os imóveis públicos não serão adqui-
e garantir o bem-estar de seus habitantes. ridos por usucapião.
§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara
Municipal, obrigatório para cidades com Registre-se que essas diretrizes gerais para a
mais de vinte mil habitantes, é o instrumen- política do desenvolvimento urbano, conforme
to básico da política de desenvolvimento e disposto no art. 182, caput, foram, efetivamente,
de expansão urbana. fixadas em lei, denominada Estatuto da Cidade
§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua ou Lei do Meio Ambiente Artificial (Lei Federal
função social quando atende às exigências nº 10.257/2001).
fundamentais de ordenação da cidade ex-
pressas no plano diretor. Além da Carta Magna e do Estatuto, os
§ 3º - As desapropriações de imóveis urba- Planos Diretores dos Municípios também inte-
nos serão feitas com prévia e justa indeni- gram a estrutura normativa da política urbana
zação em dinheiro. de desenvolvimento e, naqueles Municípios que
§ 4º - É facultado ao Poder Público mu- não o possuam, a Lei Orgânica do Município
nicipal, mediante lei específica para área serve como instrumento.
34 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA
A promulgação do Estatuto da Cidade repre- XVII e diz respeito ao estímulo à utilização, nos
sentou uma verdadeira vitória para as cidades e parcelamentos do solo e nas edificações urbanas,
seus cidadãos, tendo em vista que sua tramitação de sistemas operacionais, padrões construtivos e
no Congresso Nacional durou, aproximadamen- aportes tecnológicos que objetivem a redução de
te, 11 (onze) anos3. impactos ambientais e a economia de recursos
naturais. Esse dispositivo revela a preocupação
Como já visto, a Lei nº 10.257/2001 (Estatuto em conciliar o desenvolvimento sustentável com
da Cidade) dispõe sobre as normas gerais da po- a economia dos recursos naturais, já que estes
lítica de desenvolvimento urbano, estabelecendo são escassos e finitos.
comandos de ordem pública e interesse social que
regulam o uso da propriedade urbana em prol do A cidade sustentável é um verdadeiro di-
bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos reito, conforme previsto no art. 2º, inciso I do
cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. Estatuto da Cidade, e consiste no direito à terra
Portanto, as regras específicas sobre a política urbana, à moradia, ao saneamento ambiental,
urbana são de competência de cada Município. à infraestrutura urbana, ao transporte e aos
serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as
Interessante destacar que o Estatuto da Ci- presentes e futuras gerações.
dade reconhece a cidade real e seus problemas,
e o faz quando permite a usucapião coletiva Ora, a cidade sustentável é, na verdade,
para fins de moradia (art. 10) e quando impõe um reflexo da norma constitucional prevista no
limites à especulação imobiliária com os instru- art. 225, caput, que dispõe que o meio ambiente
mentos do parcelamento, edificação e utilização ecologicamente equilibrado (incluindo-se aí as
compulsórios (art. 5º), do IPTU progressivo no cidades, enquanto meio ambiente artificial que
tempo (art. 7º) e da desapropriação (art. 8º), por é) é um direito de todos, ou seja, um direito
exemplo. difuso.
O art. 2º, incisos I a XVII, da referida lei Convém observar, também, que sustentável
elenca as diretrizes gerais da política de desen- é aquela cidade planejada para as presentes e
volvimento urbano, a exemplo da garantia do futuras gerações, de modo que a participação
direito a cidades sustentáveis, da gestão demo- popular é imprescindível para a sua concretiza-
crática da cidade com a participação popular e ção, não sendo à toa que a gestão democrática da
de associações representativas, do planejamento cidade está elencada como uma das diretrizes da
do desenvolvimento das cidades, da ordenação política de desenvolvimento urbano.
e controle do uso do solo, da justa distribuição
dos benefícios e ônus decorrentes do processo Segundo o arquiteto e urbanista Carlos
de urbanização, da regularização fundiária e Leite4, existem duas vertentes de cidades sus-
urbanização de áreas ocupadas por população tentáveis, a depender do direcionamento da
de baixa renda, uso de instrumentos de política iniciativa: a primeira vertente tem o foco em
econômica, tributária e financeira e dos gastos “aspectos sociais para promoção da sustentabi-
públicos aos objetivos do desenvolvimento
urbano, bem como da proteção, preservação e
recuperação do meio ambiente natural e constru- 3
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Estatuto da Cidade
ído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, Comentado: Lei 10.257/2001, Lei do Meio Ambiente Arti-
ficial. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista
paisagístico e arqueológico. dos Tribunais, 2008. p. 35.
4
LEITE, Carlos. A ideia é reinventar. Revista Construir NE
- erguendo o futuro. 16 abr. 2013. Disponível em:< http://
Outra diretriz, recentemente incluída atra- construirnordeste.com.br/novo/entrevistas/carlos-leite-a-
vés da Lei nº 12.836/2013, é prevista no inciso -ideia-e-reinventar/>. Acesso em: 26 jul. 2013.
lidade urbana, como governança local, mudan- Município de Salvador (LOUOS), e essas emen-
ças de comportamento e atitudes, revisão dos das fossem, ao final, aprovadas em 29/12/2011,
objetivos do planejamento do uso do solo, entre culminando, dessa maneira, com uma verdadeira
outros”, e incentivando, ao menos, a eficiência substituição ao PDDU da Copa do Mundo6.
por “redução de consumo e desperdício, apoio
a serviços com baixas emissões de carbono e O Ministério Público Estadual impugnou
revitalização urbana, promovendo a valorização judicialmente, por meio de uma Ação Direta
do espaço público”. de Inconstitucionalidade (ADIN), diversas
alterações propostas ao PDDU e à LOUOS, a
A segunda vertente investe em alta tecno- exemplo das zonas de especial interesse social
logia alinhada ao conceito de smart sustainable (ZEIS), que são áreas delimitadas para habitação
city, de modo que são “usados equipamentos de baixa renda, e que poderiam ser alteradas ou
e sistemas modernos para que a cidade, espe- extintas pelo PDDU e pela LOUOS, bem como
cialmente nos setores de energia, mobilidade e a questão da construção de empreendimentos
gestão de resíduos, possam alcançar altos índices na orla de Salvador e seus impactos ambiental,
de desempenho em aspectos como emissões de social e econômico7.
gases de efeito estufa e destinação de resíduos”5.
Em maio/2013, o novo gestor municipal se
Ademais, para efetivar a cidade sustentável, comprometeu a revisar juntamente com o Par-
além da atuação do Poder Público se faz impe- quet, os pontos de inconstitucionalidade questio-
rativa a participação da sociedade civil, pois a nados. Esse documento, fruto do consenso das
ele também foi conferido o dever de proteger e partes, foi encaminhado ao Tribunal de Justiça
defender o meio ambiente (incluindo-se, é claro, da Bahia (TJ-BA), visando uma modulação dos
o meio ambiente artificial) para as presentes efeitos8.
e futuras gerações. Portanto, imprescindível
a participação da sociedade civil, por meio de Ocorre que em decisão recente, proferida
audiências públicas, para a elaboração do Plano no dia 24/7/2013, o TJ-BA julgou procedente
Diretor. a ADIN, denegando a modulação de efeitos
requerida pelo Município juntamente com o Mi-
No âmbito do Município do Salvador, o nistério Público, e, em consequência, anulando
Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano o PDDU e a LOUOS de Salvador, que tinham
(PDDU) foi aprovado por meio da Lei nº sido aprovados pela Câmara Municipal em 20129.
7.400/2008, e foram aprovadas alterações do mes-
mo em 29 de dezembro de 2011, especialmente
para fins de contemplar a Copa do Mundo, e 5
Ibidem.
desde sua promulgação vem recebendo muitas 6
SALVADOR, Diário do Legislativo – Câmara Municipal do
Salvador. Ano VII, nº 3.791, Sexta-feira a segunda-feira,
críticas. 30 e 31 de Dezembro de 2011 e 1º e 2 de Janeiro de 2012.
Disponível em:<http://www.cms.ba.gov.br/updol/DOL-681/
index.html>. Acesso em: 30 jul.2013.
A insatisfação e as críticas ocorreram por 7
ARRANJO. Prefeitura de Salvador e o Ministério Público
parte do Ministério Público e de alguns verea- assinam acordo sobre PDDU. Tribuna da Bahia, Salvador,
dores. Esses membros do Legislativo municipal Bahia, 2 mai. 2013. Disponível em:< http://www.tribuna-
dabahia.com.br/2013/05/02/prefeitura-de-salvador-o-
sustentaram que houve uma manobra política -ministerio-publico-assinam-acordo-sobre-pddu>. Acesso
por parte do Poder Executivo municipal ao em: 24 jul. 2013.
8
Ibidem.
conseguir que os vereadores de sua bancada 9
ARRANJO. Tribunal de Justiça derruba PDDU e LOU-
apresentassem dez emendas ao projeto de lei nº OS. Tribuna da Bahia, Salvador, Bahia, 24 jul. 2013.
446/2011, que tratava sobre a reforma da Lei de Disponível em: <http://www.bahianoticias.com.br/principal/
noticia/141106-tribunal-de-justica-derruba-pddu-e-louos.
Ordenamento do Uso e da Ocupação do Solo do html
Essa decisão da Corte ensejará muitas difi- g) concessão de direito real de uso;
culdades para a gestão municipal, não se saben- h) concessão de uso especial para fins de
do, ainda, quais as medidas, inclusive judiciais, moradia;
que o Município do Salvador pretende adotar i) parcelamento, edificação ou utilização
para tentar resolver a questão. compulsórios;
j) usucapião especial de imóvel urbano;
Ainda em relação ao Estatuto da Cidade, l) direito de superfície;
observe-se que o mesmo elenca, no art. 4º, os m) direito de preempção;
instrumentos a serem utilizados na política do n) outorga onerosa do direito de construir
desenvolvimento urbano que, em última análi- e de alteração de uso;
se, objetiva assegurar uma cidade sustentável. o) transferência do direito de construir;
Vejamos: p) operações urbanas consorciadas;
q) regularização fundiária;
Art. 4º Para os fins desta Lei, serão utiliza- r) assistência técnica e jurídica gratuita para
dos, entre outros instrumentos: as comunidades e grupos sociais menos
favorecidos;
I – planos nacionais, regionais e estaduais s) referendo popular e plebiscito;
de ordenação do território e de desenvolvi- t) demarcação urbanística para fins de re-
mento econômico e social;
gularização fundiária; (Incluído pela Lei nº
II – planejamento das regiões metropolita-
11.977, de 2009)
nas, aglomerações urbanas e microrregiões;
u) legitimação de posse. (Incluído pela Lei
III – planejamento municipal, em especial:
nº 11.977, de 2009)
a) plano diretor;
VI – estudo prévio de impacto ambiental
b) disciplina do parcelamento, do uso e da
(EIA) e estudo prévio de impacto de vizi-
ocupação do solo;
nhança (EIV).
c) zoneamento ambiental;
d) plano plurianual;
Como já visto oportunamente, caberá a
e) diretrizes orçamentárias e orçamento
cada Município, por meio de seu Plano Diretor,
anual;
f) gestão orçamentária participativa; traçar a política de desenvolvimento e expansão
g) planos, programas e projetos setoriais; urbana.
h) planos de desenvolvimento econômico
e social; Conforme dispõe a CF/88, o Plano Diretor é
IV – institutos tributários e financeiros: obrigatório para Municípios com mais de 20 mil
a) imposto sobre a propriedade predial e habitantes. Esse rol é ampliado com o Estatuto
territorial urbana - IPTU; da Cidade, sendo também obrigatória a adoção
b) contribuição de melhoria; desse instrumento normativo para Municípios:
c) incentivos e benefícios fiscais e finan- 1- integrantes de regiões metropolitanas e
ceiros; aglomerações urbanas, 2- onde o Poder Público
V – institutos jurídicos e políticos: municipal pretenda utilizar os instrumentos do
a) desapropriação; art. 182, § 4º da CF/88 (parcelamento, IPTU pro-
b) servidão administrativa; gressivo no tempo etc.), 3- integrantes de áreas de
c) limitações administrativas; especial interesse turístico, 4- inseridas na área
d) tombamento de imóveis ou de mobiliário de influência de empreendimentos ou atividades
urbano; com significativo impacto ambiental de âmbito
e) instituição de unidades de conservação; regional ou nacional, e 5- incluídos no cadastro
f) instituição de zonas especiais de interesse nacional de Municípios com áreas suscetíveis à
social; ocorrência de deslizamentos de grande impacto,
maneira explícita, no Estatuto da Cidade, tenta quais, por outro lado, se percebe muitas
restaurar a dignidade humana perdida durante vezes uma tangível e crescente sensação de
o processo de desenvolvimento urbano, espe- afastamento em relação às localidades e às
cialmente durante as décadas de 70 e 80, quando pessoas fisicamente vizinhas, mas social e
“explodiram” as favelas brasileiras. economicamente distantes”15.
Desde a Revolução Industrial, a divisão de Nesse sentido, Bauman entende que há
classes (operários x classe dominante) também ameaça de nova segregação, passando-se da fase
se refletia nas cidades. No Brasil não foi diferen- sólida para a líquida da modernidade, na medida
te, e essa divisão ocorreu de modo mais nítido em que as elites globais se afastam dos antigos
com a intensificação da urbanização do país, nas compromissos que detinham com a população
décadas de 70 e 80, momento em que houve um local e na distância crescente entre os espaços
“êxodo” em massa do campo para as cidades, urbanos onde vivem os separatistas e o espaço
de modo que esses novos moradores passaram a onde habitam os que foram deixados para trás.
habitar nos locais mais precários possíveis.
Outro ponto interessante é que Michael
O Brasil atualmente é urbano, com mais Peter Smith16 afirma que “longe de refletir uma
de 80% da população vivendo nas cidades, mas ontologia estática da existência ou da comunida-
o processo de urbanização ocorreu de forma de, as localidades são construções dinâmicas, em
desigual, “abrangendo poucas cidades que con- formação”. Significa dizer, portanto, que as cida-
centram população e riqueza e multiplicando des estão em constante processo de construção.
pequenos centros urbanos que abrigam uma
força de trabalho pouco qualificada e fortemente O também sociólogo Jean-Pierre Garnier,
vinculada às atividades primárias13. ao abordar sobre a reestruturação urbana pela
“destruição criadora” (reestruturação de bairros
É preciso, todavia, atentar para que o atual ou zonas degradadas) e que ocorre em todo o
planejamento urbano das cidades brasileiras planeta, alerta que, muitas vezes, essa renovação
não enseje uma nova forma de segregação de pode trazer o perigo de descarte dos antigos
classes ou raças ou grupos étnicos ou de qual- moradores17. Vejamos:
quer espécie.
“Quando um bairro torna-se descolado e en-
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman tra na moda, isso implica que parte dos mo-
ressalta que a questão das cidades na pós-mo- radores será ‘descartada’. A região ‘melhora’,
dernidade é complexa, na medida em que “os mas não para as mesmas pessoas”. Dito de
poderes reais que criam as condições nas quais outra forma, se há “reforma urbana”, ela visa
todos nós atuamos flutuam no espaço global,
enquanto as instituições políticas permanecem,
de certo modo, “em terra”, são locais14. 13
BRASIL. Disponível em:<http://www.brasil.gov.br/noticias/
arquivos/2010/12/14/ibge-pais-migrou-para-o-interior-e-
-urbanizacao-ja-atinge-80-da-populacao
Bauman afirma, ainda: 14
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Tra-
dução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2009. p. 30.
“Mais ou menos do mundo inteiro, come- 15
Ibidem. p. 25.
çam a se evidenciar nas cidades certas zonas, 16
SMITH, Michael Peter apud BAUMAN, Zygmunt. Confian-
ça e medo na cidade. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de
certos espaços – fortemente correlacionados Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. p. 29.
a outros espaços “de valor”, situados nas 17
GARNIER, Jean-Pierre. O futuro das cidades. Disponível
paisagens urbanas, na nação ou em outros em: < http://www.forumreformaurbana.org.br/index.php/
artigos-de-interesse/72-direito-a-cidade/220-o-futuro-das-
países, mesmo a distâncias enormes – nos -cidades.html>. Acesso em : 23 jul. 2013.
antes “renovar” a população local para que inerentes à sociedade urbana, cujo fundamento
os moradores das zonas centrais dos grandes é antropológico, e que são opostas e comple-
conglomerados urbanos possam exercer mentares. Essas necessidades sociais significam
sua vocação: se impor como habitantes de a necessidade de segurança e de abertura, a ne-
“metrópoles” dinâmicas e atrativas. cessidade da organização do trabalho e o jogo,
Ainda que efetuada progressivamente, a da unidade e da diferença, do isolamento e do
chegada de grupos sociais pertencentes às encontro, enfim questões humanas que devem
classes assalariadas de maior poder aqui- se refletir no espaço urbano19.
sitivo e profissionais liberais em bairros
operários é vista, com frequência, como Lefebvre sustenta que há necessidade de
invasão pelos habitantes originais. Para a uma ciência analítica da cidade, que somente
maior parte dos moradores afetados, essa poderá se desenvolver com o avançar da realida-
mudança significa especulação financeira de urbana em formação, ou seja, com a práxis da
e imobiliária, o que acelera sua expulsão e própria cidade. E esse novo humanismo deverá,
substituição no espaço por citadinos mais portanto, ter em consideração o novo homem, o
abastados e educados, desejosos de consti- homem da sociedade urbana.
tuir uma identidade residencial que esteja
de acordo com a identidade social. O direito à cidade, dessa maneira, significa
para Lefebvre o direito à vida urbana, mas de
No próximo capítulo, revelaremos que as uma forma renovada, e essa transformação do
cidades sustentáveis são uma tendência e que seio urbano somente seria possível por meio da
já existem algumas cidades com elementos e classe operária20.
indicadores de sustentabilidade e, até mesmo,
cidades absolutamente sustentáveis. Dessas lições de Lefebvre, devemos con-
temporizar suas ideias e o contexto político da
2. Cidades sustentáveis época (Guerra Fria e movimento de maio/1968),
mas podemos destacar e nos valer ainda hoje de
Na obra “Le droit à la ville” (“O direito à alguns pontos por ele sustentados: a vida urbana
cidade”), publicado em 1968, Henri Lefebvre é dinâmica, oposta e complementar, e o direito à
foi um dos precursores em afirmar que existe, de cidade significa o direito à fruição da vida urbana
fato, um direito à cidade, criticando o urbanismo e de tudo o que ele proporciona.
positivista18.
Nesse sentido, e com a nova visão de mun-
Segundo esse autor, a vida urbana ainda do que traz à tona a questão ambiental, como
não começou de fato, e essa nova visão deverá já visto, deve-se falar em um verdadeiro direito
expurgar as ideias, valores, mitos e culpas de uma à cidade, só que agora com um viés também
sociedade agrária, de predomínio rural. ambiental. É a hora das cidades sustentáveis,
que são ambientes urbanos que devem assegurar
Portanto, propõe um novo urbanismo, foca- a fruição do direito à terra urbana, à moradia, ao
do na dinâmica do ser humano em consequência saneamento ambiental, à infraestrutura urbana,
da cidade. A reflexão teórica redefine as formas,
as estruturas da cidade, tanto econômicas, quan-
to políticas e culturais, mas tudo isso seria apenas 18
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de Rubens
um reflexo das necessidades individuais. Eduardo Frias. Disponível em:< http://search.4shared.
com/postDownload/V-LwyoiB/Henri_Lefebvre_-_O_Direi-
to__Ci.html>. Acesso em: 24 jul. 2013. p. 103.
Segue aduzindo que a reflexão teórica 19
Ibidem.
deve também redefinir as necessidades sociais 20
Ibidem.
ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho rada à dinâmica social da cidade. Hortas urbanas,
e ao lazer, para as presentes e futuras gerações. em paredes e telhados dos edifícios, aproximam
as cidades das plantações, diminuindo os gastos
E é exatamente essa nova concepção de ci- de combustível dos veículos que transportariam
dade que o Estatuto da Cidade privilegia (art. 2º, a produção do campo para as cidades e smart
inciso I), como visto no tópico anterior. A cidade grids (malhas inteligentes de captação e gera-
sustentável é uma tendência moderna, no Brasil ção de energia limpa), por exemplo, já são uma
e no mundo como um todo. Já começou o pro- realidade, inclusive no Brasil.
cesso de uma verdadeira revolução das cidades.
O smart grid já existe em Salvador, mais
A ecologia urbana possui duas vertentes. A precisamente no Estádio de Futebol de Pituaçu.
primeira é a ecologia NAS cidades, que consiste O estádio está equipado com placas que captam
na análise da urbanização como fator que interfe- a energia solar, que transformam em eletricida-
re na ecologia da flora e da fauna. A segunda, por de, e o excesso de energia é redistribuído para a
sua vez, é a ecologia DAS cidades, que tem por malha de energia da Bahia. Funciona da seguinte
meta “compreender como ocorrem as interações maneira:
entre os sistemas sociais e ecológicos, de modo a
poder propor planos e projetos que mantenham Ele deve gerar 630 MWh por ano, mais do
as funções vitais sociais e ecológicas para um que suficiente para alimentar o próprio estádio,
ecossistema urbano saudável”21. que consome 360 MWh durante partidas e trei-
namentos. A sobra, 270 MWh, capaz de sustentar
Nesse sentido, propõe-se uma infraestru- 300 casas, será devolvida à malha de energia da
tura urbana verde (ou ecológica), que é verda- Bahia. E esta devolução faz parte do conceito
deiramente multidisciplinar, pois se relaciona mais importante do smart grid 24.
e depende de análise dos sistemas geológico,
hidrológico, biológico, social, circulatório e E esse uso de smart grid pode ser feito tam-
metabólico. bém em residências e empresas, o que evitaria o
desperdício energético. Vejamos:
A infraestrutura verde implica transforma-
ção (ou retrofit) de áreas impermeabilizadas, que Esta expressão significa “malha inteligen-
têm funções muito específicas e determinadas, te”. Hoje a malha é burra. Mesmo quando
em áreas multifuncionais, visando assegurar “o você não consome eletricidade, ela continua
equilíbrio dinâmico, sustentável e resiliente do sendo produzida. Desperdício. Com um
ecossistema urbano, com a “renaturalização” ou smart grid, dá para saber exatamente onde
“desimpermeabilização” das superfícies minera- está faltando energia e onde está sobrando
lizadas (concreto, asfalto, cimento, cerâmicas, (algo impossível de ser feito hoje). Nisso, dá
pedras, telhas, etc.)22”. para redistribuir a força, evitando apagões.
Significa dizer, portanto, que a infraestrutu-
ra verde urbana tem o objetivo de incrementar 21
HERZOG, Cecília Polacow. Cidades para todos: (re)apren-
dendo a conviver com a Natureza. 1. ed. Rio de Janeiro:
a biodiversidade urbana, de modo que “seja
Mauad X: Inverde, 2013. pp. 109-110.
possível ter seus serviços ecossistêmicos onde 22
HERZOG, Cecília Polacow. Cidades para todos: (re)apren-
as pessoas vivem, circulam, trabalham e se di- dendo a conviver com a Natureza. 1. ed. Rio de Janeiro:
Mauad X: Inverde, 2013. pp. 110-111.
vertem: nas cidades”23. 23
Ibidem, p. 111.
24
ROMERO, Luiz. A Revolução das Cidades – Energia
esperta. Revista Superinteressante. Dez/2012. Disponível
A sustentabilidade urbana pode começar em em: < http://super.abril.com.br/ecologia/revolucao-cidades-
pequenas atitudes e, com o tempo estará incorpo- -energia-esperta-731717.shtml>. Acesso em: 24 jul. 2013.
E essa “inteligência” também abre uma pos- pois a cidade, cujo desenho seria convergente
sibilidade surreal: a de que sua casa possa para o centro, poderia ser percorrida a pé; se-
funcionar como uma “microusina” de ener- riam cidades com foco no sistema de transporte
gia. Por exemplo: você instala um painel de de massa, evitando-se os carros (a lógica seria:
energia solar em casa. Enquanto o sol bate, trabalhe a pé ou de bicicleta e passeie de carro);
porém, você provavelmente está no traba- constituiriam cidades fechadas não com muros,
lho. Então como aproveitar a energia que ele mas alambrados que poderiam servir como es-
gera? O conceito da malha inteligente tem a culturas ou como plantação; teriam assegurado
solução: a energia do painel vai para a rede. o verde, seja nas plantações verticais como nas
E ajuda a alimentar a empresa em que você coberturas das edificações; uso de energia reno-
trabalha. No fim do mês, a companhia de vável; informatização total e compreenderiam
energia remunera você pela energia solar – um tema predominante (bairro ou cidade espe-
em créditos para descontar da conta de luz cializado em saúde, educação, esportes e eventos,
ou em dinheiro mesmo. cidade presídio etc.)29.
Em relação às hortas urbanas, estas tam- Uma crise econômica é um momento de-
bém já são uma realidade. Em Nova York, por cisivo para um país, não só do ponto de vista
exemplo, empresas como Brooklyn Grange e a político e econômico, mas também social e
Gotham Green possuem hortas e estufas espalha- comportamental. Na Grécia, por exemplo, a
das pelo topo dos prédios do Brooklyn. Já em São crise estimulou o surgimento de comunidades
Paulo, essa tendência também se iniciou, com sustentáveis, sendo o grupo mais conhecido o
um grupo de agricultores que possui uma peque- denominado Free and Real.
na horta no bairro da Vila Madalena e outra na
Avenida Paulista. Para Claudia, de modo que se Propagando o ideal de “Liberdade de re-
procura eliminar/minorar o impacto ambiental cursos para todos, respeito, igualdade e apren-
ao se evitar a embalagem desses hortifrutis e o dizado”, esse grupo foi fundado há três anos na
seu transporte25. ilha de Evia, sendo dez os moradores em tempo
integral e mais de cem que residem no local
Curitiba, no Paraná, e Bogotá, na Colômbia, parte do ano30.
são exemplos de cidades sustentáveis. Curitiba,
por exemplo, possui 30 parques e bosques, sendo Na comunidade não há energia elétrica,
a cidade com um dos melhores índices de áreas as cabanas são residências coletivas e produzi-
verdes do País, contando com cerca de 52 metros das por eles mesmos e os moradores cultivam
quadrados por habitante, totalizando aproxima-
damente 82 milhões de m² 26. Já Bogotá possui
a maior malha de vias para bicicletas (ciclorrutas)
25
ROMERO, Luiz. A Revolução das Cidades – Da terra aos
telhados. Revista Superinteressante. Dez/2012. Disponível
da América Latina27. em: < http://super.abril.com.br/ecologia/revolucao-cidades-
26
-energia-esperta-731717.shtml>. Acesso em: 24 jul. 2013.
BRASIL. Portal da Prefeitura de Curitiba. Disponível
Inspirado nessas notícias de cidades verdes, em:< http://www.curitiba.pr.gov.br/conteudo/meio-ambien-
o arquiteto e urbanista Lourenço Muller28 pu- te-de-curitiba/182> Acesso em: 26.jul. 2013.
27
COLOMBIA. Disponível em:< http://www.colombia.travel/
blicou recentemente um artigo sobre outra po/turista-internacional/pontos-turisticos-aonde-ir/pontos-
tendência: as smart cities (cidades inteligentes). -toristicos-bogota>. Acesso em: 26 jul. 2013.
28
MUELLER, Lourenço. A revolução das cidades. Jornal A
TARDE, de 13 jan. 2013, A 2, Ano 101 / n. 34.248.
Essas cidades inteligentes, dentre outras 29
Ibidem.
características, teriam no máximo 50 mil habi- 30
ARRANJO. Crise na Grécia estimula criação de comuni-
dades sustentáveis. Disponível em: < http://ciclovivo.com.
tantes, visando evitar “deseconomias de aglome- br/noticia/crise_na_grecia_estimula_criacao_de_comuni-
ração e ao mesmo tempo permitir fluxos livres”, dades_sustentaveis>; Acesso em: 25 jul. 2013.
o próprio alimento (agricultura orgânica). O Masdar City, cidade desenhada pelo arqui-
excedente da produção é objeto de escambo em teto britânico Norman Foster, teve sua primeira
outro vilarejo próximo, trocando por produtos etapa concebida em 2006, mas foram necessários
de que necessitem. três anos para o início de sua implantação. O
investimento da obra é calculado em US$ 22
Estocolmo, na Suécia, é uma cidade verde, bilhões, e “a cidade atualmente conta com seis
e recebeu em 2010 o título de Capital Verde da prédios, uma rua principal, 101 apartamentos
Europa, em virtude de contemplar “um sistema pequenos, uma imensa livraria eletrônica e, no
administrativo integrado que garante a conside- centro de tudo, o Masdar Institute”35.
ração de aspectos ambientais em orçamentos,
planejamentos operacionais, relatórios e mo- Todas as ruas da cidade terão prédios pro-
nitoramentos, e ter o objetivo de zerar o uso de jetados em ângulos que facilitam a criação de
combustíveis fósseis até 2050”31. sombras e ajudam na manutenção de uma tempe-
ratura agradável, considerando que a cidade está
A cidade de Estocolmo investe no sistema no meio do deserto, cujas temperaturas chegam
de transporte, visando uma melhor mobilidade aos 40ºC. Masdar City, que deverá ser a primeira
urbana, e desde os anos 80, o transporte público cidade carbono zero, contará com o sistema de
e a bicicleta são prioridades no sistema viário. transporte, todo elétrico, e operando no subsolo,
Registre-se que em 2006 foi criado o pedágio de modo a evitar os congestionamentos36.
urbano nos horários de pico.
As ruas da cidade serão resfriadas por uma
No ano de 2000, ainda em Estocolmo, gigantesca torre eólica e os cidadãos contarão
“áreas de aterros passaram a dar lugar a dis- com a presença de uma espécie de “polícia ver-
tritos ecológicos, com a recuperação da área e de”, que será responsável por gerenciar o gasto
o estabelecimento de sistemas alternativos de de energia dos moradores. Ao utilizar qualquer
coleta de resíduos (por sistema subterrâneo de equipamento que consome energia, os dados de
tubos a vácuo), utilização de painéis solares e consumo energético vão para uma central res-
transporte fluvial”32. ponsável por controlar esses gastos, e caso seja
Cidade totalmente sustentável como aquela
descrita por Muller já não é uma ideia de ficção 31
ARRANJO. Estocolmo, a Capital Verde Europeia de
científica. Essa cidade do futuro já chegou e está 2010. Disponível em:< http://www.cidadessustentaveis.
em fase de construção: é a cidade de Masdar City, org.br/boas-praticas/estocolmo-capital-verde-europeia-
-de-2010>. Acesso em: 30 jul. 2013.
construída no meio do deserto dos Emirados 32
ARRANJO. Estocolmo, a Capital Verde Europeia de
Árabes Unidos, em pleno Oriente Médio. 2010. Disponível em:< http://www.cidadessustentaveis.
org.br/boas-praticas/estocolmo-capital-verde-europeia-
-de-2010>. Acesso em: 30 jul. 2013.
A previsão final da construção dessa ci- 33
GUGELMIN, Felipe. Masdar City: bem-vindo à cidade
dade do futuro seria em 2016, mas em virtude do futuro. Disponível em:< http://www.tecmundo.com.br/
futuro/9871-masdar-city-bem-vindo-a-cidade-do-futuro.
da recessão econômica global, a previsão é que htm>. Acesso em: 24 jul. 2013.
seja finalizada entre 2021 e 202533. Masdar City 34
BARBOSA, Vanessa. Masdar City: a cidade do futuro
nasce no deserto árabe. Revista Exame, de 20 fev. 2011.
abrigará cerca de 40 mil habitantes e mais de Disponível em:< http://exame.abril.com.br/meio-ambiente-
mil empresas de tecnologia limpa, além da -e-energia/album-de-fotos/masdar-city-cidade-do-futuro-
universidade Masdar Institute of Science and -nasce-no-deserto-arabe
35
GUGELMIN, Felipe. Op. cit.
Technology, cujo foco é em pesquisa e inovação, 36
BARBOSA, Vanessa. Masdar City: a cidade do futuro
desenvolvida em cooperação com o Massachu- nasce no deserto árabe. Revista Exame, de 20 fev. 2011.
Disponível em:< http://exame.abril.com.br/meio-ambiente-
setts Institute of Technology (MIT) e o Imperial -e-energia/album-de-fotos/masdar-city-cidade-do-futuro-
College34. -nasce-no-deserto-arabe
Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 43
DOUTRINA
SUSTENTABILIDADE:
UM CONCEITO EM EXPANSÃO DOUTRINA
Entretanto, foi a Alemanha que primeiro lecia a curto prazo nas relações internacionais e,
introduziu o uso da palavra sustentabilidade, em especialmente, as suas preocupações no tocante
1560, na Província da Saxônia, para traduzir a ao consumo de recursos ilimitados, num mundo
preocupação em preservar o uso racional das flo- em constante interdependência, e já àquela época
restas, preservando-as para as futuras gerações. tomando consciência do tamanho do problema a
ser enfrentado.
Foi também na Província de Saxônia, al-
guns séculos depois, em 1713, que esta palavra O compromisso dos presentes ao encontro
foi transformada em um conceito estratégico, era fomentar a consciência dos líderes mundiais
conforme relata Leonardo Boff1. É que o Capi- e dos responsáveis em tomar as decisões com
tão Hans Carl Von Carlowitz, preocupado com relação aos temas globais importantes para o
a devastação das florestas locais para produção futuro e, com isso, introduzir uma nova visão
de carvão vegetal, que servia de combustível aos que enfocava as consequências a longo prazo da
fornos de mineração, escreveu um tratado sobre constante interdependência global.
organizar, de forma sustentável, as florestas sob
o nome de Silvicultura Oeconomica, em que já A partir de então, novos rumos foram tra-
preconizava o cuidado com o qual deveria ser çados. A ONU realizou em 1972 a “Primeira
tratada a floresta, enfatizando que somente fos- Conferência Mundial sobre o Homem e o Meio
se cortada a quantidade de lenha necessária que Ambiente“, que por sua vez gerou a criação
pudesse ser suportada pela floresta, permitindo do Programa das Nações Unidas para o Meio
a continuidade de seu crescimento. E assim Ambiente – PNUMA. E nesta esteira vieram o
fizeram os germânicos, que evoluíram bastante encontro da Comissão Mundial sobre o Meio
nesta sua visão de preservação das florestas e Ambiente e Desenvolvimento, em 1984, cujo
que chegaram a criar uma nova ciência: a silvi- lema era “Uma agenda global para a mudança”,
cultura. E em 1790, Carl Georg Ludwig Hartig tendo gerado o relatório “Nosso futuro comum”.
escreveu outro livro chamado Indicações para a Através deste documento, o termo “desenvolvi-
avaliação e a descrição das florestas, exortando a mento sustentável” foi introduzido no cotidiano
que fosse realizada a avaliação minuciosa do des- das discussões sobre as mudanças que estavam
florestamento, buscando usar as florestas com os sendo percebidas no mundo, em razão da inter-
cuidados necessários para que as futuras gerações venção desmedida do homem no meio ambiente.
continuassem a usufruir das mesmas vantagens
existentes então. E parece que deu resultados, Aliás, o conceito de desenvolvimento sus-
pois ainda hoje a Alemanha possui e preserva tentável criado então permanece em uso até os
algumas das mais lindas florestas do mundo. nossos dias. Ele foi definido como sendo “aquele
que atende as necessidades das gerações atuais sem
E aqui saltamos para o ano de 1968 (aliás, comprometer a capacidade das gerações futuras de
um ano especial, conhecido pelas mais diversas atenderem a suas necessidades e aspirações.” E
mudanças que aconteceram no seu decorrer), com durante a Conferência das Nações Unidas sobre
as discussões sobre o crescimento irrefreado che- Meio Ambiente e Desenvolvimento, que acon-
gando a um patamar mais global, que foi criado o teceu no Rio de Janeiro em 1992, tal conceito
Clube de Roma, cujo primeiro relatório “Os limites foi amplamente difundido, agregando ainda
do crescimento”, lançado em 1970, fez a discussão outro viés, qual seja a inclusão da sociedade na
tomar o mundo. A convite do industrial italiano tarefa de “erradicar a pobreza, de forma a reduzir
Aurelio Peccei e do cientista escocês Alexander
King, vários profissionais da área de diplomacia,
indústria, academia e sociedade civil reuniram-se 1
BOFF, Leonardo. Sustentabilidade: o que é – o que não
para discutir o dilema do pensamento que preva- é. Petrópolis, RJ: Vozes. 2012.
as disparidades sociais nos padrões de vida e melhor para que as mudanças aconteçam, embora reste
atender as necessidades da maioria da população do clara uma crescente consciência da necessidade
mundo”. Já aqui se torna perceptível o surgimen- de que tais mudanças aconteçam, e com urgên-
to do tripé Cidadania, Inclusão Social e Meio cia. Embora as soluções estejam surgindo, aqui
Ambiente sob o conceito da Sustentabilidade. e acolá, é preciso realizá-las, (e aqui no sentido
literal da palavra, torná-las reais), o que certa-
Entretanto, a disparidade entre o discurso mente não acontecerá se as estratégias para isso
lançado no Rio de Janeiro e a prática vivenciada continuarem a envolver somente a economia e
pelo Planeta ficou cada vez mais patente, a ponto a política, pois assim tem sido desde sempre, e o
de a Cúpula da Terra sobre Sustentabilidade e que vemos não referenda o que queremos.
Desenvolvimento, realizada em Johanesburgo
em 2002, ter sido marcada pelo expresso con- Ervin Laszlo2, duas vezes indicado ao prê-
fronto por conta dos interesses econômicos mio Nobel da Paz, fundador e presidente do
corporativos, especialmente sobre o aspecto Clube de Budapeste, associação internacional
da substituição do petróleo por energias sus- dedicada a desenvolver uma nova forma de
tentáveis, as chamadas energias limpas. O foco pensar e uma nova ética para ajudar a resolver
de Johanesburgo foi o lucro, e a cooperação e o os problemas políticos, econômicos e os de-
desenvolvimento sustentável e acessível para safios ecológicos no século XXI, deixa clara a
todos ficaram fora do debate. dificuldade em avançar na busca de soluções,
embasados tão somente nas propostas formula-
É bem verdade que, em paralelo a tais das pela economia e pela política. É o que relata,
eventos, as discussões continuavam e continuam discorrendo sobre a luta contra a degradação do
a ganhar corpo, principalmente em razão da meio ambiente. Ele afirma “que esses proble-
formação de um senso comum, e cada vez mais mas são produzidos por práticas ecologicamente
crescente, de que mudanças são necessárias e irresponsáveis, sedentas de lucro, e são combati-
de forma imediata. dos por práticas sedentas de lucro que alegam ser
ecologicamente responsáveis – sendo que essas
Daquela época para os dias atuais, as discus- últimas diferem das primeiras somente pelo fato
sões acentuaram-se. Mas ainda assim, o consenso de que tornam lucrativa a faxina da desordem,
está longe de ser alcançado, e muito em função em vez de criá-la.”
da contínua expansão do conceito de sustenta-
bilidade, que a cada nova onda de compreensão, Para criar soluções novas para a situação
se amplia para abrigar ideias cada vez mais caótica que é observada cotidianamente neste
criativas. E isto é bom. Isto é muito bom. planeta, é preciso pensar diferente, partindo de
uma nova visão, incluindo a responsabilidade
2. “Não pretendemos que as coi- social e a responsabilidade ambiental como
sas mudem, se sempre fazemos inerentes a qualquer estrutura de negócios.
o mesmo”. Albert Einstein
E o mundo segue tentando buscar novas
Inobstante as discussões travadas ao longo saídas para o impasse que estamos vivendo em
destes anos acerca das causas estruturais dos relação às questões demográficas, a incapacida-
problemas ambientais, ainda é perceptível o de de lidar com a pobreza e a fome do mundo, a
fosso existente entre meio ambiente e desen- devastação dos nossos recursos naturais e meio
volvimento.
2
LASZLO, Ervin. O ponto do Caos: Contagem regressiva
E o que nós vemos é a grande incapacidade para evitar o colapso global e promover a renovação do
das nações em promover as reformas necessárias mundo. São Paulo: Cultrix , 2011.
ambiente, os avanços, nem sempre sustentáveis, cessitadas. Na realidade, a maioria delas repassa
da ciência e tecnologia, a frágil estruturação da apenas 0,2% do PNB. Este projeto denominado
economia global e a globalização. Todos estes Estratégia de Redução de Pobreza, baseada nas
são fatores altamente instáveis, e estão sendo Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDMs),
estudados através de uma mesma estrutura de deveria repassar cerca de 150 bilhões de dólares,
pensamento, ou seja, através da mente racional, por ano, durante um período de 20 anos. Ele foi
materialista, dual e manipulativa que caracteriza considerado possível, porque a ONU reconhece
a civilização industrial e de serviços, que ainda que o mundo já possui a tecnologia e o conhe-
experimentamos. cimento para resolver a maioria dos problemas
enfrentados pelos países pobres.
Os principais problemas do nosso tempo,
como os citados acima, são facetas de uma O consultor da ONU para o Projeto, o
única crise, que Fritjof Capra3 chama de crise de economista Jeffrey Sachs, declarou que “a con-
percepção. Ele, assim como Lazlo, entende que secução dos Objetivos de Desenvolvimento do
a maioria de nós, enfatizando as grandes insti- Milênio requer uma parceria global apropriada a
tuições sociais, adere aos conceitos e valores de um mundo interconectado. O mundo realmente
uma visão de mundo obsoleta, nos agarrando a compartilha um destino comum.” E com isso,
um paradigma já inadequado para lidar com o ele calcula que por volta de 2015, este valor
mundo, tal qual ele se nos apresenta hoje. Ainda poderia eliminar situações de extrema pobreza
que em fase de retrocesso, este paradigma expõe que afetam hoje cerca de 1,1 bilhão de pessoas.
o Universo como um sistema mecânico, o ho- Este documento consolidou várias metas estabe-
mem como uma máquina, a vida como uma luta lecidas nas conferências mundiais ocorridas ao
competitiva e a crença, ainda existente, em um longo dos anos 90, estabelecendo um conjunto de
progresso material ilimitado, a ser conquistado, objetivos para o desenvolvimento e a erradicação
exclusivamente, através do crescimento econô- da pobreza no mundo – os chamados Objetivos
mico e da tecnologia. A essência deste paradigma de Desenvolvimento do Milênio (ODM) – que
é a separação. Nele, não existe a percepção da devem ser adotados pelos estados membros das
interconectividade e codependência entre todos Nações Unidas.
os seres vivos, desde a mais elementar unidade
celular até o nosso sistema solar, que partilha- Este projeto, nos moldes que foi pensado
mos com vários outros planetas. pela ONU, traduz um bom exemplo do novo
paradigma. Aqui não apenas dinheiro é ofereci-
A guerra travada contra a pobreza é um bom do. Aqui há um esforço coletivo para combater
exemplo do pensamento baseado no paradigma as doenças, promover a boa ciência, difundir
antigo, onde a ajuda se dá, basicamente, através amplamente a educação, oferecer infraestrutura
de medidas de repasse financeiro dos países mais crítica e atuar em unidade para ajudar os mais
ricos aos países mais necessitados. Não é levada pobres do planeta. Aqui há a intenção de susten-
em consideração toda uma série de variáveis que tar o crescimento e não apenas enviar recursos,
poderiam ser adotadas para, realmente, erradicar os quais, na maioria das vezes, correm o risco de
a pobreza no planeta. Neste paradigma apenas se serem desviados através do ralo da corrupção.
dá o peixe, não se ensina a pescá-lo. Isso em nada E é interessante observar que, para o Brasil, a
muda a realidade local, ou muito pouco a altera. ONU criou especialmente uma 9ª meta4, qual
seja garantir que as melhorias obtidas na luta
A ONU, entretanto, elaborou a estrutura de
um projeto em que as nações mais ricas ofere-
ceriam a ajuda média de 0,5 % do seu Produto 3
CAPRA, Fritjof. O Tao da Física. 16. ed. São Paulo: Cultrix.
Nacional Bruto (PNB) àquelas nações mais ne- 1995.
pelo cumprimento dos objetivos do milênio pro- Enfim, toda a mudança tecnológica que
movam igualdade de condições para brancos e estamos vivenciando, primeiro com o advento
negros. Tal meta foi batizada de “Os objetivos do da internet, depois a propagação das ideias
milênio sem o racismo”, e será levada em conta através das redes sociais, está contribuindo
na análise dos resultados finais da campanha. Ou para desestabilizar as estruturas e instituições
seja, só vamos cumprir os oito objetivos princi- já desgastadas. Mas é preciso ressaltar que a
pais se, em 2015, brancos e negros estiverem em tecnologia foi apenas o gatilho das mudanças.
condições iguais. Provavelmente, impossível! A verdadeira fonte das transformações está sen-
do a emergência de um pensamento novo, um
Então aqui, nesse ponto que nos encon- pensamento vivo, novos valores, novas regras
tramos agora, e justamente pela existência sendo criadas pelo coletivo, gerando uma massa
de paradigmas antagônicos, existe uma real crítica cada vez maior, pronta para dar o grande
possibilidade de mudanças de base. Estamos salto da mudança.
naquele momento que Fritjof Capra denominou
de ponto de mutação e Lazslo considera como O paradigma que está emergindo, cada vez
sendo uma janela de decisão. Assim, ao lado de mais forte, diz respeito a uma visão holística,
uma sociedade altamente predatória, e, portanto que enfatiza o todo em vez das partes. Capra
excludente, para a qual os lucros justificam os chama este novo paradigma de visão ecológica do
meios, servindo a poucos em detrimento da ma- mundo, considerando, aqui, a palavra ecológica
nutenção de muitos na pobreza, está surgindo a no seu aspecto mais amplo e profundo, e que
possibilidade do desenvolvimento includente, significa o reconhecimento da interdependên-
assegurando o exercício dos direitos civis, a cia fundamental e funcional de toda a vida que
busca por uma melhor distribuição de renda e existe na Terra. A visão ecológica do mundo, com
melhores acessos aos serviços públicos, como embasamento na ciência, especialmente na física
saúde, educação e moradia. quântica, afirma a existência de uma consciência
de unidade de toda vida e da interdependência
Nós estamos tendo a incrível oportunidade de suas múltiplas manifestações e de seus ciclos
de presenciarmos um choque entre paradigmas, de mudança e de transformações.
e nos confrontamos com a possibilidade de
fazermos uma escolha consciente, enquanto in- A conclusão que aqui se impõe é que novas
divíduos e enquanto coletivo. As mudanças que soluções estão surgindo neste momento, e tais
estão ocorrendo neste momento são difundidas e soluções derivam de novas formas de pensar,
compartilhadas entre nós, na velocidade da luz. novas formas de ver o mundo e de enxergar o
Revoluções estão sendo realizadas, populações futuro. Em 1991, Václav Havel, então presidente
estão indo para as ruas, manifestando todo o da Checoslováquia, durante a sua fala, em sessão
seu descontentamento com o velho e caótico no Congresso dos Estados Unidos, ressaltou que
mundo. E chama a atenção que inexiste uma “sem uma revolução global na esfera da consci-
liderança pessoal nestes movimentos. Existem ência humana, nada mudará para melhor”.
novas ideias, a evolução de uma massa critica
descontente e uma consciência ampliada deste Esta revolução já está acontecendo, bem
descontentamento e das suas diversas causas. neste exato momento.
Esta consciência que está circulando pelo plane-
ta, segue pulsando pelas mudanças que o novo
paradigma traz em seu seio: circularidade nas
decisões, consciência mais evoluída, criatividade
4
Compêndio para Sustentabilidade Ferramentas de Gestão
mais aflorada, determinação em buscar soluções
de Responsabilidade Socioambiental http://www.instituto-
que atendam à maioria. atkwhh.org.br/compendio/?q=node/19
valorizar todo tipo de conhecimento, indepen- e sem medo. E neste caminhar, aprendendo a
dentemente da sua origem, seja ele científico ou refletir, a questionar e a cobrar, a humanidade
proveniente da cultura popular. Todos os saberes segue construindo valores, adquirindo conheci-
são bem-vindos, posto que, como intrínseca ao mentos, atitudes e competências voltadas para
novo paradigma, a inclusão é a regra. a conquista e manutenção do direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
Cabe à educação ambiental atravessar as
fronteiras disciplinares, buscando a integração Desde 1972, quando da Conferência de Es-
de novos conhecimentos, com o olhar voltado tocolmo, a educação ambiental é objeto de aten-
não somente para o presente, mas também para ção especial por todos aqueles que se debruçam
um futuro de médio prazo, já que a sustentabi- sobre a questão do desenvolvimento sustentável.
lidade não pode ser pensada e implementada
apenas com foco no agora. Só assim tornar-se-á Organismos internacionais como a UNES-
possível a redução das desigualdades, bem como CO têm investido bastante na educação, reco-
a preservação do meio ambiente. nhecendo a sua importância para que o planeta
se torne efetivamente sustentável em todos os
Na abordagem doutrinaria sobre educação aspectos. É o caso do Programa A Década da Edu-
ambiental, existem aqueles que distinguem en- cação para o Desenvolvimento Sustentável (2005
tre educação para o desenvolvimento sustentável – 2014) que tem a UNESCO como organismo
(EDS) e a educação ambiental, propriamente diretor. E em 2009, a UNESCO promoveu em
dita (EA). A diferença estaria no fato de que a Bonn, na Alemanha, a Conferência Mundial de
EDS se debruça sobre o sistema econômico, a Educação para o Desenvolvimento Sustentável,
globalização, a educação intercultural, o pen- com o fito de avaliar os projetos e traçar prio-
samento estratégico e a educação comunitária. ridades para a segunda parte da década. E daí
Portanto, ela é mais abrangente do que a EA, surgiu uma das realizações mais importantes
cuja abordagem se restringe precipuamente ao desta Conferência, que foi o advento da Decla-
meio ambiente. ração de Bonn, que define os paradigmas da
Educação para o Desenvolvimento Sustentável,
Inobstante tal diferenciação, uma educação enfatizando se tratar de uma proposta transversal
adequada reconhece e estimula a estreita relação que precisa atingir todas as disciplinas, para que
entre os sistemas de conhecimento e os valores cada uma delas ajude a construção de um futuro
humanos, além de explorar o complexo relacio- sustentável, e entre elas destacamos aquela que
namento do indivíduo com a natureza e com seus trata da ajuda para que sociedade possa fazer frente
semelhantes. A eterna busca de equilíbrio entre o às diferentes prioridades e problemas como: água,
indivíduo, a sociedade e a natureza é um grande energia, mudanças climáticas, diminuição do risco de
desafio, que deve ser encarado diuturnamente, desastres, a perda da biodiversidade, a crise alimentar,
já que ele é a resposta à nossa necessidade de as ameaças contra a saúde, a vulnerabilidade social e
sobrevivência neste Planeta. a insegurança. E mais adiante, em outra das suas
declarações, enfatiza a evidência da interdepen-
Para alguns autores, além da busca da satis- dência entre meio ambiente, economia, sociedade e
fação de necessidades materiais, a transcendên- diversidade cultural, no âmbito local e mundial, tendo
cia, a transversalidade cultural, a criatividade e em conta o passado, o presente e o futuro.
o reconhecimento das necessidades espirituais
humanas tornam-se, também, cada vez mais Enfim, a EDS estimula através dos enfoques
importantes para a educação. O foco é levar a hu- criativos e críticos, a reflexão em longo prazo, a
manidade a alcançar uma vida mais digna, com a inovação e a autonomia para fazer frente às incer-
satisfação de suas necessidades materiais básicas tezas e solucionar problemas complexos, além de
ainda não vemos isto acontecer, com frequência, omisso e cobrar resultados concretos e benéficos
aqui no Brasil, onde o direito não é, em regra, para as gerações presentes e futuras.
acautelatório, agindo a posteriori do fato pre-
datório. Isso é completamente oposto ao que Quando as soluções de conflito forem, prio-
prega o paradigma sustentável, que está sempre ritariamente, resolvidas através de mediação e
em busca da prevenção, em vez da reparação do de negociação, nas esferas administrativas, em-
dano, na maioria das vezes completamente irre- basada em decisões técnicas viáveis, em vez de
parável. Agregado a isso, como fator de prejuízo alimentar as eternas postulações, certamente as
à rápida prestação jurisdicional, temos o excesso melhores soluções serão encontradas, no menor
de possibilidades recursais que fazem com que tempo possível, tempo este essencial no que diz
o processo se desdobre para o futuro, aqui sim, respeito à sustentabilidade.
de forma quase infinita.
Em termos de sustentabilidade a regra ge-
É certo que muitas mudanças já estão acon- ral é o poder é, antes de tudo, dever, como afirma
tecendo, mas é preciso que a visão jurídica evolua Juarez Freitas.
no sentido de cuidar da regulação sustentável,
reconhecendo a importância da mesma como 6. Sustentabilidade. Conceito
parte da proteção à vida. Podemos destacar expandido
algumas destas mudanças normativas (embora
a maioria sem grande efetividade), tais como, Assim, de tudo quanto abordamos neste
por exemplo, a Lei 6938/81, que estabeleceu a texto, podemos concluir que a sustentabilidade
Política Nacional de Meio Ambiente, que passou vem tendo o seu conceito cada vez mais expan-
a considerar o meio ambiente como patrimônio dido para absorver novas esferas possíveis, nem
público, assegurado e protegido, tendo em conta todas elas relacionadas com ambiência física.
o seu uso coletivo; a Lei 10.257/2001, Estatuto da
Cidade, que garantiu o direito às cidades susten- Assim, em face de tudo que foi exposto, a
táveis, no seu art. 2º, I; a Lei 9.433/97, Política visão emergente é que o conceito de sustentabili-
Nacional de Recursos Hídricos, que prevê no dade é multidimensional, abrangendo, inclusive,
seu art. 2º, II, a utilização racional e integrada o de meio ambiente, para incluir os componentes
dos recursos hídricos, com vistas ao desenvol- éticos, os sociais, os jurídicos, econômicos e os
vimento sustentável; a Lei nº 12.305/2010, que políticos, e também o espiritual, aqui visto como
rege a gestão integrada de resíduos sólidos, a percepção de fazer parte de um Todo maior, de
prevendo a busca de soluções para os resíduos estar conectado com tudo o que há.
sólidos, levando em consideração as dimensões
política, econômica, ambiental, cultural e social Assim sendo, impossível não sentir espe-
sob a premissa do desenvolvimento sustentável; rança quando todos os ramos do conhecimento
a Lei 8666/93, alterada para incluir no seu art. humano se voltam cada vez mais para a busca
3º o princípio do desenvolvimento sustentável, da uma nova realidade, baseada naquilo que
e a Lei 12.187/2009, que instituiu a Política realmente interessa, na proteção da Vida, nas
Nacional sobre Mudança de Clima. mudanças das relações sociais, na busca e no
compartilhamento de novas soluções, não so-
Entretanto, embora tais legislações já façam mente para quem já está aqui, mas para todas as
parte do nosso ordenamento jurídico, algumas futuras gerações que ainda viverão neste Planeta.
delas, inclusive, há muito tempo, os efeitos
práticos ainda precisam ser apresentados. E isso
pressupõe uma cobrança também da sociedade, 7
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade. Direito ao Futuro. 1.
que precisa deixar de lado o comportamento ed. 1. reimp. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
José Antônio Garrido*
SUMÁRIO
cultura de uma civilização específica, confinada como limite da tributação – esta como atividade
a um referencial de tempo e espaço. Tributo é, do Estado – sói examinar a configuração jurídica
em verdade, um instituto que comporta exame da capacidade contributiva.
sob uma perspectiva multicultural, tanto sob o
aspecto social, político, econômico e jurídico. Por derradeiro, serão examinados os textos
de algumas constituições integrantes de siste-
Interessa construir a noção moderna de mas jurídicos de base no direito romano (civil
tributo como dever fundamental, plasmado, law) não apenas da Europa Continental, mas
implícita ou explicitamente, tanto nas Cons- também de países integrantes da América Lati-
tituições integrantes de sistemas jurídicos de na, de colonização europeia, sobretudo ibérica.
matriz romana – também conhecidos como Ver-se-á, pois, que essas constituições guardam
sistema do civil law – como nas Constituições elementos comuns que fundamentam a ideia
que fundamentam os sistemas jurídicos deri- de tributo como dever fundamental. Ao lado
vados ou fortemente influenciados pelo direito disso, demonstrar-se-á que, mesmo no sistema
anglo-saxão – chamados de sistemas jurídicos de common law e nos sistemas jurídicos pautados
de common law – tenham ou não constituição em suas premissas, é possível construir a noção
jurídica escrita, tal como ocorre na Inglaterra – de tributo como dever fundamental: tomar-se-á
que não dispõe de um texto escrito. como referência a Constituição dos Estados Uni-
dos da América e o aqui denominado contexto
Nesse desiderato, pois, o caminho a ser per- constitucional inglês.
corrido envolve, de partida, determinar o Direito
como objeto cultural e, portanto, influenciado 2. Direito como objeto cultural. Multicultu-
pelo fenômeno do multiculturalismo. Se, em um ralismo e o fenômeno jurídico
primeiro momento, a dominação de civilizações
por outras em razão de expansão movida por Ponto de partida do presente trabalho resi-
interesses eminentemente políticos, econômicos de, justamente, em fixar o direito como produto
ou religiosos, implicou diretamente a imposição da cultura e um objeto cultural; produzido por
de sistemas jurídicos de uma civilização a outras, uma determinada organização social, segundo
em uma perspectiva mais recente as facetas de os influxos de elementos apresentados na con-
uma globalização cultural e econômica exercem vivência e nos valores por ela expressados e,
forte influência na mutação e adaptação de siste- porque produzidos pela atividade humana, na
mas jurídicos dos países inseridos em economia experiência e, portanto, passíveis de valoração; é
de mercado1. O tributo, pois, como instituto jurí- um objeto cultural. Nesse passo, necessário será
dico de forte viés econômico e político, também fixar alguns pontos em derredor do fenômeno do
sofre esses influxos. multiculturalismo e, em que medida, há reflexo
disso no fenômeno jurídico.
Fixados estes pontos, calha determinar o
que se entende por dever fundamental dentro do
1
Cf. LOSANO, Mário G. Os grandes sistemas jurídicos. São
contexto do pensamento constitucional2, fixando Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 6.
suas características, os critérios para a definição 2
“Pode-se pensar na constituição como um projeto histó-
rico que cada geração de cidadãos continua a adoptar.
dos elementos e a função desses deveres. Exsurge
No estado democrático nacional, o exercício do poder
a necessidade de enfrentar o princípio da solida- político cifra-se numa maneira dupla: o tratamento insti-
riedade social, vez que – adiante-se – trata de um tucionalizado dos problemas e a mediação de interesse
regulada processualmente devem simultaneamente ser
dos possíveis elementos normativos a arrimar compreensíveis enquanto um sistema de direitos efecti-
a noção de tributo como dever fundamental, vados”. (HABERMAS, Jürgen. Lutas pelo reconhecimento
no estado democrático constitucional. In: Multiculturalismo.
inerente à ordem constitucional. Ao lado disso, Org.: Charles Taylor. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 125-
também como fundamento mas, de igual modo, 126).
de valor; b) a dos objetos ideais – que é formada tiva), unidade (unidade interior do Direito),
por elementos irreais, porque não têm existência abertura e mobilidade. A abertura torna o
no tempo e no espaço, não estão na experiência e sistema suscetível de mudanças; a mobilidade
são neutros de valor; c) a dos objetos culturais – tem como características essenciais: a igualdade
que, por sua vez, se constitui de elementos reais, fundamental da categoria e a substitutibilidade
porque têm existência no tempo e no espaço, estão recíproca dos critérios adequados de justiça.16.
na experiência e são susceptíveis de valoração
(positivo ou negativo); d) objetos metafísicos – Os sistemas jurídicos constroem-se tendo
são reais, porque têm existência no tempo e no por conteúdo normas jurídicas que, por sua
espaço, não estão na experiência e são susceptíveis vez, valem-se de conceitos construídos direta-
de valoração (positivo ou negativo)14. mente por elas e, portanto, válidos enquanto
vigentes essas normas diretamente referidas;
Nessa classificação, o direito, como fenôme- são os conceitos jurídico-positivos, construídos
no, insere-se na categoria de objetos culturais. a partir da experiência (exame do direito positi-
Isso porque é produzido pelo homem, com vo). Forma-se, outrossim, integrando o sistema,
existência referida no tempo e no espaço, pre- categoria de conceitos construídos a partir de
sente na experiência e, portanto, susceptível de premissas de lógica jurídica, com pretensão de
investigação pelo método empírico e, por fim, validez universal e permanente; são os conceitos
passivo de exame axiológico, porque nele há a lógico-jurídicos, com base nos quais se fundam
presença de valores.
as Teorias Gerais, dentre as quais a Teoria Geral
do Direito17-18.
Fixado que o direito é expressão, pois, da
cultura, os institutos jurídicos são criados sob a
influência ativa de elementos culturais. Destarte,
anseios sociais de igual ou similar jaez plasmados 14
Cf. Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filo-
sofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia
no ordenamento jurídico de variados países im-
pura. Aparecida-SP: Idéias e Letras, 2006. A idéia da
plicaram, pois, a criação de institutos de similar fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008.
essência15. Daí, identificando-se valores a que a 15
Tratando da relação entre cultura e direito, J. J. Calmon
de Passos pontua que o Direito não é um objeto dado ao
cultura de determinado povo confere alta rele- homem pela natureza; é produzido pelo homem, mas não
vância, positivando-os no texto da constituição se reifica, como se dá com os outros produtos, resultado
– ou no contexto constitucional – e estes valores, do trabalho do homem. “Situa-se, pois, no universo do dis-
curso e da ação, somente existindo enquanto discurso e
porque positivados, constituem conteúdo de comunicação, linguagem, processo, fazer, operar. Onto-
normas jurídicas que, por sua vez, reduzem-se logicamente (diria melhor, onticamente), portanto, nada é
jurídico ou antijurídico, lícito ou ilícito na conduta humana.
ora a princípios, ora a regras, é possível afirmar O jurídico é sentido e significação que os homens empres-
que um instituto como o tributo pode ser con- tam a determinados atos seus, para ter atendida certa
siderado, nos sistemas de matriz romana (civil imprescindível e específica necessidade da convivência
social”. (Cf. CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Direito,
law) ou de fundamento no direito costumeiro poder, justiça e processo: julgando os que nos julgam. Rio
(common law), um dever fundamental. É preciso, de Janeiro: Forense, 1999, p. 22).
16
Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e
para tanto, identificar quais são esses valores conceito de sistema na ciência do direito. 3. ed. Tradução
cristalizados em regras constitucionais que, Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian,
constituindo-se em regras ou princípios, vão 2002.
17
Cf. KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. 4. ed. Lisboa:
dar ao tributo a natureza de dever fundamental. Fundação Calouste Gulbekian, 2010, p. 140-58. Cf. TE-
RAN, Juan Manuel. Filosofía del derecho. 21. ed. México:
3. Bases normativas para a construção da Porrúa, 2012, p. 81-86.
18
A respeito de conceitos lógico-jurídicos e conceitos
noção de tributo como dever fundamental jurídico-positivos, ver nosso: “Sobre os conceitos lógico-
-jurídicos e os conceitos jurídico-positivos”. In Revista do
Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade
Sistema jurídico, pois, como tal, apresenta Federal da Bahia: Homenagem ao Prof. Dr. George Fra-
as características de ordem (adequação valora- goso Modesto. N.º 13. Salvador: 2006, p. 125-138.
O conceito de tributo é da categoria dos 3.1 Teoria dos deveres fundamentais: carac-
jurídico-positivos, construído, ao menos no caso terísticas, elementos e função
do direito brasileiro, a partir de disposições cons-
titucionais. E bem o faz Ricardo Lobo Torres, Dois aspectos arrimam a existência de
conjugando deliberadamente o enunciado do deveres fundamentais: um de ordem lógica e
art. 3º do CTN com os traços constitucionais, outro de ordem jurídica. Quanto ao aspecto
para afirmar que tributo é o dever fundamen- de ordem lógica, pode-se dizer que os deveres
tal e consiste em prestação pecuniária, que se fundamentais são expressão da soberania fun-
limita pelas liberdades fundamentais, pautada dada na dignidade da pessoa humana. Quanto
pelas normas-princípios constitucionais da ca- ao fundamento jurídico, este reside na circuns-
pacidade contributiva – como um princípio de tância de a Constituição prever, explícita ou
individualidade, de realidade e para a proteção implicitamente, o dever jurídico. Os deveres
do mínimo existencial19 –, do custo/benefício fundamentais, defende-se, seriam, pois, numerus
ou da solidariedade, e que ostenta a finalidade clausus. Configuram-se como posições jurídicas
primária ou secundária de obtenção de receita passivas, autônomas em relação aos direitos
tanto para as necessidades públicas como para
as atividades protegidas pelo Estado, sendo
exigida a prestação pecuniária de quem tenha 19
Cf. TIPKE, Klaus. YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e o
realizado o fato descrito em lei elaborada de princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malhei-
ros, 2002, p. 32-4. Nessa linha, Tipke afirma que existe
acordo com a competência específica outorgada apenas uma fonte de impostos, a renda, de modo que “o
pela Constituição. princípio da capacidade contributiva significa: todos devem
pagar impostos segundo o montante da renda disponível
para pagamento de impostos. Quanto mais alta a renda
Vê-se, portanto, que o conceito constitu- disponível, tanto mais alto deve ser o imposto. Para con-
cional de tributo alberga, inexoravelmente, tribuintes com rendas disponíveis altas o imposto deve ser
igualmente alto. Para contribuintes com rendas disponíveis
a noção da exação como o “preço da liberda- desigualmente altas o imposto deve ser desigualmente
de”20, um dever fundamental, ínsito a qualquer alto” (p. 31).
20
Em trabalho anterior, Ricardo Lobo Torres faz alusão a
ordem constitucional; além disso, é pautado essa ideia: “Alguns teóricos do liberalismo, no exame do
pelos princípios constitucionais da capacidade problema do fundamento jurídico da tributação, afirmam
que o imposto é o preço da liberdade. Adotam a teoria do
contributiva, do custo/benefício ou da solida-
benefício e vinculam o pagamento do tributo à contrapres-
riedade. tação estatal representada pela segurança dos direitos
individuais ou pela entrega de bens e serviços públicos.
(...)
É dever fundamental porque se constitui (...) o tributo é o preço da liberdade para efeito de lhe fixar
dever do homem e do cidadão (ou de unidade a finalidade ética e econômica e a dimensão existencial de
instrumento de alienação do cidadão diante do Estado”.
econômica) que tem especial significado para (A Idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado
a comunidade e pode por esta ser exigido, vez fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p. 138).
que visa a concretização do bem comum; é uma
21
Cf. NABAIS, José Casalta. O Dever fundamental de pagar
impostos – contributo para a compreensão constitucional
posição jurídica passiva subjetiva, individual, do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004,
universal e permanente e essencial21. Constitui p. 64.
22
Confiram-se as conclusões de José Casalta Nabais:
um contributo inato à condição do indivíduo “1. Como dever fundamental, o imposto não pode ser
que, submetido à soberania do Estado, realiza encarado nem como um mero poder para o estado, nem
como mero sacrifício para os cidadãos, constituindo antes
fatos que denotam capacidade contributiva22,
o contributo indispensável a uma vida em comunidade
e dependem, também, de uma atuação legisla- organizada em estado fiscal. Um tipo de estado que tem na
tiva infraconstitucional para serem criados. E subsidiariedade da sua própria acção (econômico-social)
e no primado da autorresponsabilidade dos cidadãos
aqui calham considerações em derredor dessa pelo seu sustento o seu verdadeiro suporte. Daí que se
categoria jurídica, precisando-se seu conceito, não possa falar num (pretenso) direito fundamental a não
pagar impostos”. (O Dever fundamental de pagar impostos
seus elementos e sua função dentro da Teoria – contributo para a compreensão constitucional do estado
Constitucional. fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004, p. 679).
62 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA
por natureza; (2) se, ao contrário, a ideia de produtiva; ao contrário, o incremento futuro
tributação de acordo com a capacidade contri- dessa riqueza será de susceptível de exação.
butiva é entendida em função da noção de que Essa teoria destaca que a potência econômica
a justiça exige uma redistribuição outra que não deve considerar-se como condição necessária mas
a efetuada pelos retornos de mercado, mas que não suficiente da capacidade contributiva e deve
exige a atuação positiva do Estado, o objetivo da estar, portanto, qualificada à luz dos princípios
equidade vertical da tributação perde sentido constitucionais fundamentais. Segundo o autor,
fora do contexto mais geral da justiça dos gastos na medida em que se entenda que a tributação
do governo61.
contributiva relativa ou subjetiva – como critério de gra-
Trabalhando o conceito, a fixação e os efei- duação do imposto, sob o enfoque pessoal, aferindo-se
tos do princípio da capacidade contributiva, a capacidade contributiva in concreto e, assim, um limite
à tributação tanto no aspecto global como no aspecto
Francesco Moschetti62 vem fixar três conceitos individual (Cf. Princípio da capacidade contributiva. 3. ed.
introdutórios: (i) a imposição de limites à po- São Paulo: Malheiros, 2003, p. 27-31. Cf. Curso de direito
tributário: Constituição e Código Tributário Nacional. São
testade legislativa tributária encontra expressão Paulo: Saraiva, 2009, p. 73-75).
não só na Constituição Italiana, mas em muitas 59
Cf. MACHADO, Hugo de Brito. Os Princípios jurídicos
da tributação na Constituição de 1988. 5. ed. São Paulo:
constituições contemporâneas; (ii) o parágrafo
Dialética, 2004, p. 87.
primeiro do art. 5363 da Constituição italiana tem 60
Segundo Edvaldo Brito, no caso do § 1º do art. 145,
eficácia imediata e vinculante; (iii) o conceito a Constituição preserva a tributação de um impasse.
Assim afirma que (i) a justiça social opera no campo da
de capacidade contributiva pressupõe necessa- imposição tributária quando sustentada pelos critérios da
riamente uma referência à potência econômica. personalização dos tributos e da capacidade econômica
do contribuinte; (ii) todos os impostos podem ser regulados
Destaca, de logo, que a capacidade contributiva de modo pessoal; (iii) esses critérios devem instrumenta-
não se reduz à capacidade econômica, embora lizar a medida dos gravames em função da capacidade
aquela seja a expressão de uma potência eco- de pagar. Logo, tanto o legislador quanto o aplicador da
norma terão de adotar fórmulas como a do “justo e razoá-
nômica genérica. Registra que, se é função do vel” para viabilizar o princípio, mediante a adaptação dos
princípio da capacidade contributiva conferir seus elementos à técnica de imposição de cada tributo
da espécie aquinhoada pela norma constitucional (Cf.
racionalidade ao sistema tributário é ilógico “Capacidade Contributiva”. In: MARTINS, Ives Gandra da
atribuir-lhe um conteúdo dedutível precisamente do Silva (coord.). Cadernos de Pesquisas Tributárias. v. 14.
São Paulo: Resenha Tributária, 1989. p. 326).
exame daqueles impostos que se quereria racionalizar 61
Cf. O mito da propriedade. Marcelo Brandão Cipolla (tra-
e não de normas supraordenadas a eles. O equilíbrio dução). São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 43.
entre as exigências individuais e coletivas que 62
Cf. MOSCHETTI, Francesco. El principio de capacidad
contributiva. Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 1980,
está garantido nos arts. 41 e 4264 da Constituição p. 73-74.
Italiana deve realizar-se também nas relações 63
“Todos têm a obrigação de contribuir para as despesas
públicas na medida de sua capacidade contributiva. O
entre o ente impositor e o contribuinte, de for- sistema tributário é inspirado nos critérios de progressivi-
ma que a exação fiscal respeite à coexistência dade”.
de ambos e seja compatível com a manutenção
64
“Art. 41. L’iniziativa economica privata è libera. Non può
svolgersi in contrasto con l’utilità sociale o in modo da
da organização privada de meios de produção. recare danno alla sicurezza, alla libertà, alla dignità uma-
A partir daí se obtém um critério formal de na. La legge determina i programmi e i controlli opportuni
perché l’attività economica pubblica e privata possa essere
individualização das forças econômicas que indirizzata e coordinata a fini sociali.
constituem a capacidade contributiva. Art. 42.
La proprietà è pubblica o privata. I beni economici appar-
tengono allo Stato, ad enti o a privati. La proprietà privata
Só é capacidade contributiva aquela riqueza è riconosciuta e garantita dalla legge, che ne determina
que possa ser detraída sem prejudicar a sobre- i modi di acquisto, di godimento e i limiti allo scopo di
assicurarne la funzione sociale e di renderla accessibile
vivência da organização econômica gravada. a tutti. La proprietà privata può essere, nei casi preveduti
Salienta Moschetti que o legislador tributário dalla legge, e salvo indennizzo, espropriata per motivi
d’interesse generale.
não poderá assumir como pressuposto do La legge stabilisce le norme ed i limiti della successione
tributo uma riqueza atual que constitua fonte legittima e testamentaria e i diritti dello Stato sulle eredità”.
não pode prejudicar a permanência da proprie- fatos concretos da vida. Entretanto, um imposto
dade privada, acaba por acentuar mais a tutela somente aplicável, ou seja, constituído – como
do direito de propriedade do que a sua função frequentemente acontece – mais pela casuística
social. Surge, então, segundo o autor, uma clara que de definições, faria perder de vista a justifi-
antítese entre a capacidade contributiva e o fim re- cação econômica do tributo. A hipótese de inci-
distributivo do imposto65: admite a conformidade dência tributária é, consequentemente, sempre
ao espírito da Constituição de uma mudança na muito articulada tecnicamente, numa série mais
atual distribuição de riqueza, mas exclui que o ou menos ampla de hipóteses que fazem todas
fim fiscal e o redistributivo podem coexistir na referência a um conceito geral que deveria cons-
mesma lei. E não se pode objetar que a redistri- tituir a ratio, a causa do tributo singular.
buição mediante o imposto é necessariamente
inconciliável com o conceito de capacidade O princípio da capacidade contributiva,
contributiva: é inconciliável só enquanto se como valor positivado, arrima a compreensão
lhe dê um significado restritivo, limitando-o à do tributo como dever fundamental.
única função de tutelar as fontes produtivas. Se
se diz que o conceito de capacidade contributiva 4. O Tributo no contexto constitucional de Ci-
deve inspirar-se no espírito da Constituição e se vil Law e de Common Law
admite que é conforme a este espírito a mudança
da riqueza atual, não pode excluir-se depois que Firmadas essas questões, cumpre investigar,
o imposto concorra para esta mudança. Não só por amostragem, de que forma os sistemas cons-
a redistribuição não comporta necessariamente titucionais continentais europeus – portanto, de
a eliminação das fontes produtivas senão que matriz romana – e o sistema da Common Law,
mais bem pressupõe sua permanência; a unifor- cuidam do dever de colaborar com o custeio das
mização das riquezas excluiria para sempre toda despesas públicas, máxime quanto aos deveres
a redistribuição futura66-67.
65
Sobre o caráter redistributivo do tributo, ver MURPHY,
Aborda Enrico de Mita 68 a capacidade Liam. NAGEL, Thomas. O mito da propriedade. Marcelo
contributiva como justificação do imposto, a Brandão Cipolla (tradução). São Paulo: Martins Fontes,
2005.
ratio do imposto considerado singularmente. A 66
Cf. MOSCHETTI, Francesco. El principio de capacidad
lei tributária não pode definir os fatos tributá- contributiva. Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 1980,
veis mediante categorias específicas. A norma p. 74-76.
67
Carlos Palao Taboada, examinando o tema da capacidade
jurídica não pode nunca, em geral, alcançar um contributiva, traz duas posições fundamentais sobre esse
completo e rigoroso sistema de definições. E princípio. Firmado o princípio da capacidade contributiva
como princípio jurídico constitucional, surgem dois pólos
isso porque a exigência da aplicação prática da doutrinários: (a) quem entende que o princípio tem um
lei requer sempre uma referência a comporta- conteúdo que é possível concretizar (konkretisieren) e,
mentos práticos dos seres humanos. Exige-se, assim, se inclinam por potencializar sua eficácia como
critério de controle de constitucionalidade da legislação
pois, a simplificação dos conceitos, i.e., a redução fiscal; teve sua manifestação extrema na doutrina italiana,
de um conceito abstrato de fato tributável a que chegou a considerá-lo como único critério de justiça
e constitucionalidade da legislação fiscal, o que trouxe
hipóteses específicas que façam referência a insuperáveis dificuldades; (b) aqueles que, sem negar to-
comportamentos práticos dos contribuintes. A talmente a possibilidade de que o princípio de capacidade
tenha tal eficácia, tendem a considerar que a virtualidade
simplificação não deve caminhar em detrimento
real do princípio é limitada, especialmente se tem em
da racionalidade, não deve fazer perder de vista conta a influência de outros princípios e fins, também com
o objetivo da lei tributária; precisa procurar respaldo constitucional, na elaboração da legislação fiscal.
(Cf. El principio de capacidad contributiva como criterio
ajustar as exigências da racionalidade às de de justicia tributaria: aplicación a los impuestos directos e
aplicabilidade. Um imposto que se limitasse a indirectos, p. 287-8).
68
Cf. “O princípio de capacidade contributiva”. In Princípios
ser rigoroso nas suas definições seria inaplicá- e Limites da Tributação. Roberto Ferraz (Coordenação).
vel na medida em que dificilmente referido aos São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 231-3.
de solidariedade social e capacidade contributi- Mais adiante, no art. 53, o texto constitu-
va, que implicam o dever tributário. Por razões cional afirma que “[todos] têm a obrigação de
óbvias, afigura-se impossível o exame de todas contribuir para as despesas públicas na medi-
as constituições dos países da Europa Conti- da de sua capacidade contributiva. O sistema
nental e dos países da América Latina que têm tributário é inspirado nos critérios de progres-
origem no Civil Law. Em razão disso, optou-se sividade”69.
por selecionar algumas constituições, como a
italiana, a espanhola e a portuguesa, na Europa;
a brasileira, a argentina, a chilena e a mexicana, Gaspare Falsitta, tratando do significado do art. 53 e sua
69
base no world wide principle, o que foi indicado 4.3 Constituições latino-americanas
na decisão Cook v. Tait, de 1924, e confirmado
na decisão Bowling v. Bowers, de 1928, por meio Caso se empreenda uma detida análise das
da qual se explicita a tese acerca da legitimidade Constituições em vigor na América Latina, tam-
da tributação dos cidadãos americanos ainda que bém observar-se-á que os textos contemplam,
residam no exterior74. expressa ou implicitamente, o princípio da so-
lidariedade social como princípio, fundamento
Convém fazer referência à admoestação ou objetivo do Estado.
de Michael A. Livingston75, para quem uma
Com efeito, uma das Constituições mais an-
diferença relevante entre América e Europa é
tigas em vigor na América Latina, a Constituição
a natureza ad hoc assistemática do debate ame-
Mexicana de 1917, notabilizou-se por ser uma
ricano em comparação com o original europeu:
das primeiras, juntamente com a Constituição
enquanto os europeus gostam de ver a tribu-
alemã de 1919, a contemplar os direitos funda-
tação progressiva como parte de um conjunto
mentais sociais, conhecidos como direitos de
ideológico coerente, os americanos estão mais segunda geração (rectius dimensão), justamente
aptos a vê-la como uma dentre as adaptações por atribuir ao Estado uma função prestacional
pragmáticas entre a necessidade de manter e consagrar, para a sociedade, o dever de soli-
pelo menos um mínimo de justiça social, de dariedade social. Ficaram conhecidas como as
um lado, e a necessidade de proteger incentivos primeiras constituições sociais e econômicas.
particulares no conjunto da economia, de outro
lado – um balanço de equity e efficiency –; o que Verifica-se, pois, no art. 31, inciso IV, do
é consentâneo com a tradição americana que texto constitucional mexicano que é dever de
tende a enfatizar o pensamento pragmático e que todos os mexicanos “Contribuir para os gastos
verdadeiramente o elevou a um tipo não oficial públicos, assim da Federação, como do Distrito
de filosofia nacional. Federal ou do Estado e Município em que resi-
dam, da maneira proporcional e equitativa que
Examinando a realidade britânica, infere-se disponham as leis”. Contempla, pois, de forma
que, embora não disponha de uma constituição expressa, o dever de todo indivíduo integrante da
escrita, de um texto articulando plasmando nor- sociedade mexicana de concorrer com os gastos
mas constitucionais, de forma sistematizada, há, públicos de modo proporcional e equitativo e,
de rigor uma constituição histórica, consuetudi- conforme disponham as leis. Contempla, pois, o
nária, que, embora flexível, consagra princípios princípio da solidariedade econômica, o critério
de proporcionalidade e equidade, bem como o
e regras que estruturam o Estado e conferem aos
princípio da legalidade aplicada à tributação.
cidadãos direitos e deveres. Com efeito, o rule
of law designa os princípios, as instituições e
O exame do texto constitucional argentino
os processos que a tradição e a experiência dos
de 1994, embora com menos explicitação, afir-
juristas e dos tribunais mostraram ser essenciais
para a salvaguarda da dignidade das pessoas
frente ao Estado, à luz da ideia de que o Direito 74
Cf. SACCHETTO, Cláudio. “O dever de solidariedade no
deve dar aos indivíduos a necessária proteção Direito Tributário: o Ordenamento Italiano”. In Solidarieda-
de e tributação. Marco Aurélio Greco e Marciano Seabra
contra qualquer exercício arbitrário de poder76. de Godoi (Coordenadores). São Paulo: Dialética, 2005, p.
20.
75
Cf. “Progressividade e Solidarietà: uma perspectiva norte-
Contempla, outrossim, o princípio da so- -americana”. In Solidariedade e tributação. Marco Aurélio
lidariedade, o que implica a conclusão de que, Greco e Marciano Seabra de Godoi (Coordenadores). São
Paulo: Dialética, 2005, p. 195.
também no sistema britânico, o tributo pode ser 76
Cf. MIRANDA, Jorge. Teoria o Estado e da Constitui-
encarado como dever fundamental. ção. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 76-7.
Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 73
DOUTRINA
ma que o Governo deverá custear os gastos Esse dever ou vem disposto de modo expresso nas
públicos por meio dos fundos do Tesouro constituições, das mais diversas maneiras, ou é
Nacional que são compostos pelas fontes dessumido dos textos constitucionais, porque ne-
que elenca no art. 4º 77, dentre as quais estão les contido apenas implicitamente. Esse dever de
“as demais contribuições que equitativa e contribuir se dá na exata proporção das possibili-
proporcionalmente à população imponha o dades econômicas do indivíduo, o que se expressa
Congresso Geral”. Da mesma forma que a no princípio da capacidade contributiva, de modo
quase centenária constituição mexicana, alude que todo e qualquer texto constitucional que con-
à equidade e à proporcionalidade na institui- sagre a solidariedade social, ou rateio das despesas
ção do tributo com a função de concorrer aos públicas, mesmo que não faça alusão diretamente
gastos públicos, consagrando o tributo como ao tributo, o coloca como dever fundamental do
dever fundamental. indivíduo, aqui compreendido como o cidadão
(nato ou naturalizado), estrangeiro (residente
No art. 19, a Constituição Chilena de 1980 ou, mesmo não-residente, se ponha em situação
assegura a todas as pessoas “[a] igual repartição de sujeição tributária) ou a entidade econômica
dos tributos em proporção às rendas ou na pro- (pessoas jurídicas ou entidades econômicas a ela
gressão ou forma que fixe a lei, e a igual reparti- equiparadas).
ção das demais cargas públicas”. Esse dispositi-
vo, portanto, impõe a solidariedade econômica Mercê do fenômeno do multiculturalismo,
e social, de modo a considerar que, exigindo-se essa característica do tributo pode ser identi-
a igual repartição das cargas públicas, o tributo, ficada tanto nas constituições de países com
no sistema chileno, é dever fundamental. matriz romano-germânica (Civil Law) como
nas constituições de países de matriz anglo-saxã
A Constituição brasileira, por sua vez, no (Common Law).
art. 3º, inciso I, põe como objetivo fundamental
da República Federativa do Brasil construir Referências bibliográficas
uma sociedade livre, justa e solidária. Ao tratar
dos princípios tributários, erige à categoria de ÁVILA, Humberto. “Limites à tributação com
princípio a capacidade contributiva (art. 145, § base na solidariedade social”. In Solidariedade
1º). Como se vê, pois, a Constituição brasileira, social e tributação. Marco Aurélio Greco e Mar-
de igual modo, contempla o princípio da soli- ciano Seabra de Godoi (Coordenadores). São
dariedade social (art. 3º, inciso I) e o princípio Paulo: Dialética, 2005, p. 68-88.
da capacidade contributiva, de sorte que, no
nosso sistema, o tributo é um dever fundamental AYALA, Jose Luis Perez de. BECERRIL,
baseado nos princípios da solidariedade social Miguel Perez de Ayala. Fundamentos de derecho
e da capacidade contributiva, sendo este último tributario. 6. ed. Madrid: Editoriales de derecho
também uma limitação sua. reunidas S.A., 2004.
5. Conclusão
Ao cabo do presente estudo e cumprindo os 77
“Artículo 4 – El Gobierno federal provee a los gastos de la
objetivos inicialmente traçados, pode-se afirmar Nación con los fondos del Tesoro Nacional, formado del
producto de derechos de importación y exportación; del
que o tributo se constitui como uma espécie de
de la venta o locación de tierras de propiedad nacional,
dever fundamental, decorrente do princípio da de la renta de Correos, de las demaìs contribuciones que
solidariedade social aplicada à atividade finan- equitativa y proporcionalmente a la población imponga el
Congreso General, y de los empréstitos y operaciones de
ceira-tributária do Estado, que impõe a todos o crédito que decrete el mismo Congreso para urgencias de
dever de contribuir para as despesas públicas. la Nacioìn, o para empresas de utilidad nacional”.
BORGES, José Souto Maior. Direito comunitá- FONSECA, João Bosco Leopoldino. Direito
rio. São Paulo: Saraiva, 2005. econômico. 4. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Fo-
rense, 2001.
BRACEY, Dorothy H. Exploring Law and Cul-
ture. Long Groove: Waveland Press, 2006. GALDINO, Flávio. Introdução à Teoria dos Custos
dos Direitos – Direitos Não Nascem em Arvores. Rio
BRITO, Edvaldo. Reflexos jurídicos da atuação do de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
Estado no domínio econômico. São Paulo: Saraiva,
1982.
GARRIDO, José Antônio. “Sobre os conceitos
lógico-jurídicos e os conceitos jurídico-positi-
CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Direito,
vos”. In Revista do Programa de Pós-graduação
poder justiça e processo: julgando os que nos julgam.
em Direito da Universidade Federal da Bahia: Ho-
Rio de Janeiro: Forense, 1999.
menagem ao Prof. Dr. George Fragoso Modesto. N.º
13. Salvador: 2006, p.125-138.
CAMPILONGO, Celso. Política, sistema jurídico
e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad,
GEERTZ, Clifford. A interpretação das cultu-
2002.
ras. Rio de Janeiro: LTC, 2012.
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemá-
tico e conceito de sistema na ciência do direito. 3. ed. GOMES, Orlando. “Constituição econômica
Trad. A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação e Constituição política na democracia plura-
Calouste Gulbekian, 2002. lista”. In Ensaios de direito civil e de direito do
trabalho. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 13-22,
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional 281 p.
e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina,
2003. ________. Direito econômico e outros ensaios. Sal-
vador: Distribuidora de livros Salvador, 1975.
CONTIPELLI, Ernani. Solidariedade social p. 135.
tributária. Coimbra: Almedina, 2010.
GOMES, Orlando. VARELA, Antunes. Direito
COSTA, Ramón Valdés. Instituciones de derecho econômico. São Paulo: Saraiva, 1977, 295 p.
tributário. 2. ed. Buenos Aires: Depalma, 2004.
HABERMAS, Jürgen. Lutas pelo reconhe-
COSTA, Regina Helena. Princípio capacidade cimento no estado democrático constitucio-
contributiva. 3. ed. atual., rev., ampl. São Paulo: nal. In: Multiculturalismo. Org.: Charles Taylor.
Malheiros, 2003. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 125-164.
NABAIS, José Casalta. Estudos de direito fiscal: ________. Tratado general de filosofía del derecho.
por um estado fiscal suportável. Coimbra: Alme- 19. ed. México: 2008.
dina, 2005.
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito
________. O Dever fundamental de pagar impostos Constitucional. 6. ed. atual. Rio de Janeiro, 2010,
– contributo para a compreensão constitucional do 969 p.
O DIREITO FUNDAMENTAL
DOUTRINA
À MORADIA A PARTIR DA EMENDA
CONSTITUCIONAL N.º 26/2000
E O DEVER CONSTITUCIONAL
DE ATUAÇÃO DO PODER
PÚBLICO MUNICIPAL PARA SUA
CONCRETIZAÇÃO
Luciana de Melo Borba Carneiro*
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Uma acepção ampla do Direito à
Moradia. 2.1. Direito à Moradia: direito humano, fundamental
e social. 2.2. Relação do Direito à Moradia com o Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana. 2.3. A abrangência do direito à
moradia. 3. A Emenda Constitucional n.º 26/2000 e seus efeitos.
3.1. A Emenda Constitucional n.º 26/2000. 3.2. A eficácia e aplica-
bilidade do Direito à Moradia como norma constitucional. 3.3. O
dever constitucional de atuação do Poder Público Municipal para
concretização do direito fundamental à moradia. 4. Considerações
finais. Referências.
PALAVRAS-CHAVE: Direito à Moradia. Emenda Constitucio-
nal 26/2000. Eficácia e aplicabilidade. Políticas Públicas.
1. Introdução
* Procuradora do Município do Salvador
Pós-graduanda em Direito do Estado
pela Universidade Federal da Bahia A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 foi
Pós-graduada em Direito Civil e Em- o documento que primeiro reconheceu formalmente a moradia
presarial pela Universidade Federal de
Pernambuco adequada e digna da pessoa humana, sendo aceita a partir de então
Graduada em Direito pela Universidade como um direito essencial à dignidade do homem. Após, diversos
Católica de Pernambuco
Graduada em Administração de Empre-
tratados internacionais reafirmaram a obrigação dos Estados em
sas pela Universidade de Pernambuco proteger este direito.
pessoas com deficiência, pessoas com HIV, sentido literal do termo. É inconcebível um in-
vítimas de desastres naturais etc. As leis e divíduo que não possua um teto para se abrigar,
políticas habitacionais devem priorizar o para se proteger dos eventos naturais (chuva, sol,
atendimento a esses grupos e levar em con- vento, etc.), que viva vagando pelas ruas. Todos
sideração suas necessidades especiais. Além procuram por um espaço que possa oferecer um
disso, para realizar o direito à moradia, mínimo de proteção e segurança para si e para
adequada é fundamental que o direito a não sua família.
discriminação seja garantido e respeitado.
Localização adequada: Para ser adequada, CANUTO (2010, p. 202) explica em sua obra
a moradia deve estar em local que ofereça Direito à Moradia Urbana que, ao se observar
oportunidades de desenvolvimento econô- os gastos e despesas de um indivíduo comum,
mico, cultural e social. Ou seja, nas proximi- verifica-se que a parcela correspondente à mo-
dades do local da moradia deve haver oferta radia abrange um valor relevante no orçamento
de empregos e fontes de renda, meios de doméstico.
sobrevivência, rede de transporte público,
supermercados, farmácias, correios, e outras Essa família, sem alternativa, adota soluções
fontes de abastecimento básicas. A locali- precárias – ocupações de áreas de risco,
zação da moradia também deve permitir o favelas, loteamentos ilegais – compondo
acesso a bens ambientais, como terra e água, uma realidade que, se não alterada subs-
e a um meio ambiente equilibrado. tancialmente por meio de uma política
Adequação cultural: A forma de construir habitacional sólida e sem interferências
a moradia e os materiais utilizados na cons- político-corporativas, continuará como uma
trução devem expressar tanto a identidade das faces das cidades brasileiras, que cresce
quanto a diversidade cultural dos moradores substancialmente ano a ano.
e moradoras. Reformas e modernizações
devem também respeitar as dimensões Em razão da relevância do problema e
culturais da habitação. da situação concreta de moradia no país é que o
Congresso Nacional, exercendo sua competência
É neste sentido que podemos afirmar que reformadora, ampliou o rol dos direitos sociais
o direito à moradia não se resume a ter direito a por meio da publicação da Emenda Constitucio-
um teto e quatro paredes. Em outras palavras, o nal n.º 26, de 14 de fevereiro de 2000, inserindo
direito à moradia não se refere apenas ao espaço o direito à moradia no caput do art. 6º e, por
físico ocupado pela pessoa, mas consiste no di- conseguinte, elevando-o à categoria de direito
reito a um padrão de vida adequado, incluindo fundamental, conforme já mencionado no ca-
condições salutares de vida, que possam propor- pítulo anterior.
cionar a pessoa humana uma vida com dignidade
e boa saúde física e mental. O texto constante na Emenda, a título de
informação, dispõe:
5. A Emenda Constitucional n.º 26/2000 e seus
efeitos Art. 1º O art. 6º da Constituição Federal
passa a vigorar com a seguinte redação:
5.1 A Emenda Constitucional n.º 26/2000 “Art. 6º – São direitos sociais a educação,
a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a
Pode-se afirmar que a moradia é uma ques- segurança, a previdência social, a proteção
tão de necessidade humana, de sobrevivência. à maternidade e à infância, a assistência
Nesse aspecto, está se falando em moradia como aos desamparados, na forma desta Consti-
espaço físico para abrigo do ser humano, no tuição.” (NR)
Em face do exposto, pode-se falar em nor- bem como a quantidade de pessoas que vagam
mas constitucionais de alta densidade nor- nas ruas, sem nenhuma perspectiva de uma vida
mativa, que, dotadas de suficiente normati- digna, incluindo a moradia.
vidade, se encontram aptas a, diretamente e
sem a intervenção do legislador ordinário, Tudo isso considerando uma visão nas
gerar os seus efeitos essenciais (independen- grandes cidades, pois quando nos reportamos
temente de uma ulterior restringibilidade), às regiões interioranas do país, e podemos citar
bem como em normas constitucionais de o exemplo bastante atual do sertão nordestino,
baixa densidade normativa, que não pos- a situação é lamentável e salta aos olhos do Go-
suem normatividade suficiente para – de verno e da população como um todo.
forma direta e sem interpositio legislatoris
– gerar seus efeitos principais, ressaltando- É fácil verificar a ausência de condições
-se que, em virtude de uma normatividade salutares de vida capazes de garantir às pessoas
mínima (presente em todas as normas que ali residem o seu direito à moradia, e por
constitucionais), sempre apresentam certo conseguinte, a uma vida digna, ressaltando-
grau de eficácia jurídica. -se que quando falamos em direito à moradia,
repita-se, não nos restringimos apenas ao espaço
Conclui-se que o critério utilizado por SAR- físico ocupado pelo indivíduo, mas a todos os
LET para graduar as normas constitucionais no requisitos essenciais já mencionados no capítulo
que se refere a sua eficácia e aplicabilidade é o anterior que possibilitem uma vida com condi-
critério da densidade normativa. Significa que ções salutares.
umas possuem normatividade suficiente e estão
aptas a gerar efeitos imediatos, outras não pos- Retornando a uma explicação teórica para
suem suficiente normatividade para produzirem justificar a resposta negativa, podemos afirmar
efeitos imediatos, necessitando da intervenção que a moradia não difere dos demais direitos so-
legislativa para tanto. ciais, considerados direitos humanos de segunda
geração os quais correspondem aos direitos
Após sobreditas considerações gerais sobre culturais e econômicos, que têm relação com
a eficácia das normas constitucionais e trazendo os direitos de igualdade e necessitam de uma
à colação o nosso tema objeto deste estudo, qual prestação positiva do Estado para serem aten-
seja, a inserção do direito à moradia na Consti- didos. Tais distinguem-se dos direitos humanos
tuição de forma expressa, positivando-o como de primeira geração que se referem aos direitos
direito fundamental social, resta-nos questionar civis e políticos, relacionados às liberdades
se a partir da publicação da Emenda n.º 26, em públicas que em sua grande parte dispensam
14/2/2000, a moradia está assegurada a todos, ou uma prestação positiva do Estado, ao contrário,
seja, é possível o titular do direito assegurado na referem-se a uma abstenção estatal, havendo
Constituição exigir do Poder Público de forma exceções logicamente em ambas as categorias,
imediata, uma prestação positiva no sentido de ou seja, não significa que todos os direitos civis
assegurar-lhe uma moradia digna? e políticos demandem ausência de atitude estatal
nem que todos os direitos sociais demandem
A resposta à indagação acima é de logo ne- uma ação do Estado.
gativa, podendo ser confirmada de imediato por
qualquer pessoa que resida no país, bastando ape- PIOVESAN (2010, p. 179/180) ao falar
nas observar as condições de moradia de grande sobre o Pacto Internacional dos Direitos Econô-
parte da população nos bairros mais humildes ou micos, Sociais e Culturais em sua obra Direitos
em locais que apresentam muitas vezes risco de Humanos e o Direito Constitucional Internacio-
desabamento, a exemplo de encostas e morros, nal, entende:
86 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA
comenta sobre o assunto, expondo alguns dados n.º 285/2008, que está em trâmite na Câmara dos
de relevância para este estudo: Deputados, cuja última movimentação se deu
em 24 de outubro de 2009, com a publicação de
O déficit habitacional, em números mais parecer proferido pela Comissão Especial pela
precisos, é de 7.902.699 moradias, o que aprovação da PEC.
significa 14,9% do total do estoque de do-
micílios. (...) O objeto da PEC mencionada consiste
Os componentes do déficit habitacional em acrescentar artigo ao Ato das Disposições
são: habitação precária, coabitação familiar Constitucionais Transitórias para dispor sobre a
e ônus excessivo com aluguel. A coabitação vinculação de recursos orçamentários da União,
familiar (casas em que vivem mais de uma dos Estados, do Distrito Federal e dos Municí-
família) é a maior responsável pelo déficit, pios aos respectivos Fundos de Habitação de
não importando a região. (...) A habitação Interesse Social.
precária, a que correspondem os domicílios
improvisados e os rústicos, se sobressai na Apesar de os Poderes Legislativo e Executi-
zona rural e, principalmente, nas regiões vo virem agindo de forma a buscar soluções para
Nordeste e Norte do país. O ônus excessivo o problema e já existirem diversas legislações e
com aluguel é analisado nas áreas urbanas e programas públicos que serão comentados no
é significativo nas regiões Sudeste e Centro-
próximo ponto, a verdade é que ainda existe
-Oeste.
um longo caminho pela frente para que refe-
ridas políticas públicas se tornem suficientes
No site da Câmara dos Deputados foi publi-
a regularizar a situação e concretizar de fato
cada em 27 de abril de 2011 a seguinte notícia:
uma moradia digna para todos os cidadãos
brasileiros.
Déficit habitacional no Brasil é de 5,5 mi-
lhões de moradias. Mais de 5,5 milhões de
5.3 O dever constitucional de atuação do Po-
moradias precisam ser construídas em todo
der Público Municipal para concretização
o País para acabar com o déficit habitacio-
nal, segundo dados da Pesquisa Nacional do direito fundamental à moradia
de Amostra por Domicílios (Pnad) 2008,
utilizados pelo Ministério das Cidades. O artigo 182 da Constituição Federal dispõe
Lançado em 2009 e ampliado em março que “A política de desenvolvimento urbano, exe-
do ano passado, o programa Minha Casa, cutada pelo Poder Público municipal, conforme
Minha Vida pretende construir ou reformar diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo
três milhões de moradias até 2014 para fa- ordenar o pleno desenvolvimento das funções
mílias com renda mensal de até dez salários sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus
mínimos. habitantes”.
Analisando os índices relativos ao déficit De uma análise do dispositivo, observa-
habitacional, percebe-se a relevância do tema da -se o poder-dever dos Municípios de agir para
moradia. A forma de o Estado tentar minimizar o elaborar e executar as políticas públicas a fim
problema é planejar e executar políticas públicas de atender o interesse público e as finalidades
a fim de cumprir a função social da propriedade previstas constitucionalmente. Sob a ótica do
urbana bem como de assegurar o direito de mo- direito administrativo, quando um poder é
radia previsto no texto constitucional. atribuído à Administração para alcançar o fim
público, ele passa a representar um dever de agir,
Pertinente citar sobre a existência de uma ao contrário do particular, cujo poder de agir que
nova proposta de emenda à Constituição, a PEC lhe é atribuído é uma faculdade.
88 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA
finalidade de promover a igualdade, o que Art. 4º Para os fins desta Lei, serão utiliza-
exige, naturalmente, a modificação das si- dos, entre outros instrumentos:
tuações existentes em cada área específica I – planos nacionais, regionais e estaduais
de atuação, mediante a concretização dos de ordenação do território e de desenvolvi-
objetivos presentes nessas políticas. mento econômico e social;
II – planejamento das regiões metropolita-
Ressalta-se então a importância das políticas nas, aglomerações urbanas e microrregiões;
urbanas para a concretização do direito à mo- III – planejamento municipal, em especial:
radia a fim de buscar sua plena eficácia social. a) plano diretor;
Apesar de reconhecido formalmente, possuindo, b) disciplina do parcelamento, do uso e da
pois, eficácia jurídica, esta não é suficiente para ocupação do solo;
realização do direito. As políticas públicas são c) zoneamento ambiental;
instrumentos necessários previstos em lei que d) plano plurianual;
devem ser exigidos pelos indivíduos para que e) diretrizes orçamentárias e orçamento
tenham seus direitos fundamentais sociais im- anual;
plementados. f) gestão orçamentária participativa;
g) planos, programas e projetos setoriais;
A Lei n.º 10.257, de 10 de julho de 2001, h) planos de desenvolvimento econômico
denominada de Estatuto da Cidade, regula- e social;
mentou os artigos 182 e 183 da Constituição IV – institutos tributários e financeiros:
Federal, estabelecendo as diretrizes gerais da a) imposto sobre a propriedade predial e
política urbana brasileira bem como normas de territorial urbana - IPTU;
interesse social, trazendo expressamente como b) contribuição de melhoria;
seu objetivo o pleno desenvolvimento da pro- c) incentivos e benefícios fiscais e finan-
priedade urbana e da função social da cidade, ceiros;
nesta última buscando um ambiente em que os V – institutos jurídicos e políticos:
indivíduos possam usufruir de uma boa educa- a) desapropriação;
ção, de moradia digna, de trabalho, de lazer, de b) servidão administrativa;
maneira a respeitar o princípio da dignidade c) limitações administrativas;
humana já mencionado neste artigo. d) tombamento de imóveis ou de mobiliário
urbano;
Em resumo, o Estatuto disciplina institutos e) instituição de unidades de conservação;
relativos às questões urbanas oferecendo instru- f) instituição de zonas especiais de interesse
mentos para melhor ordenação do solo urbano, social;
levando em consideração o meio ambiente e os g) concessão de direito real de uso;
graves problemas sociais, a exemplo da mora- h) concessão de uso especial para fins de
dia, que atinge, notadamente, a população mais moradia;
carente. i) parcelamento, edificação ou utilização
compulsórios;
Em seu artigo 4º, fornece um rol de instru- j) usucapião especial de imóvel urbano;
mentos exemplificativos a serem utilizados pelos l) direito de superfície;
Poderes Públicos a fim de efetivar as políticas ur- m) direito de preempção;
banas e, por conseguinte, atender às necessidades n) outorga onerosa do direito de construir
das pessoas quanto à realização dos seus direitos e de alteração de uso;
fundamentais sociais expressos na Constituição o) transferência do direito de construir;
Federal, na forma que se segue: p) operações urbanas consorciadas;
90 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA
q) regularização fundiária;
r) assistência técnica e jurídica gratuita para Vale ainda ressaltar, sem tecer maiores
as comunidades e grupos sociais menos comentários a respeito, sobre o instrumento dis-
favorecidos; posto no inciso III, alínea, “a”, o Plano Diretor,
s) referendo popular e plebiscito; esse sim de competência do Poder Municipal,
t) demarcação urbanística para fins de regu- por meio do qual disciplinará o parcelamento, o
larização fundiária; (Incluído pela Medida uso e ocupação do solo, o zoneamento ambiental,
Provisória nº 459, de 2009) o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias
u) legitimação de posse. (Incluído pela Me- e o orçamento anual, a gestão orçamentária
dida Provisória nº 459, de 2009) participativa, os planos, programas e projetos
t) demarcação urbanística para fins de re- setoriais e por fim, o plano de desenvolvimento
gularização fundiária; (Incluído pela Lei nº econômico e social.
11.977, de 2009)
u) legitimação de posse. (Incluído pela Lei No que diz respeito à moradia, objeto do
nº 11.977, de 2009) presente estudo, as políticas públicas devem ser
VI – estudo prévio de impacto ambiental planejadas no sentido de promover ações a fim de
viabilizar o acesso à moradia digna e adequada,
(EIA) e estudo prévio de impacto de vizi-
por meio de obras físicas de melhorias habitacionais,
nhança (EIV).
intervenção em áreas de risco; remoção de áreas não
§ 1º Os instrumentos mencionados neste
passíveis de eliminação do risco para áreas no entor-
artigo regem-se pela legislação que lhes é
no, utilização de instrumento de utilização compulsó-
própria, observado o disposto nesta Lei.
ria de imóvel urbano, buscando a promoção humana
§ 2º Nos casos de programas e projetos habi-
a partir da moradia digna e segura2, programas de
tacionais de interesse social, desenvolvidos
regularização fundiária para as áreas ocupadas
por órgãos ou entidades da Administração
de forma irregular, incluindo nestes não apenas
Pública com atuação específica nessa área,
o direito à legalização da ocupação, mas também
a concessão de direito real de uso de imó-
havendo a preocupação com a execução de ações
veis públicos poderá ser contratada coleti- sociais e assistenciais bem como de melhorias
vamente. § 3º Os instrumentos previstos físicas, sanitárias e ambientais nas comunidades
neste artigo que demandam dispêndio de beneficiárias do programa, entre outras ações.
recursos por parte do Poder Público muni-
cipal devem ser objeto de controle social, É nessa perspectiva do poder-dever de
garantida a participação de comunidades, agir do Poder Público Municipal no que tange
movimentos e entidades da sociedade civil. à execução de políticas públicas que o mesmo
não deve ficar inerte aguardando ações dos
Importante considerar que a redação dos Poderes Federal e Estadual para concretização
dois primeiros incisos do artigo citado demons- do direito à moradia. São necessárias iniciativa
tra que os instrumentos dispostos para execução e vontade políticas para que sejam identificados
da política urbana não são de competência ex- os problemas, elaboradas as políticas urbanas e
clusiva dos municípios. Dispõem sobre planos executadas. Deve haver programação financeira
nacionais, regionais e estaduais de ordenação bem como uma cooperação entre os Municípios,
do território e desenvolvimento econômico Estados e União para que referidas ações sejam
e social bem como sobre o planejamento das efetivadas de forma bem-sucedida.
regiões metropolitanas, aglomerações urbanas
e microrregiões, apesar de o art. 182 da Consti-
2
CANUTO, Elza Maria Alves. Direito à moradia urbana.
tuição expressar que o Poder Público Municipal Aspectos da dignidade da pessoa humana. Belo Horizonte:
é o executor da política urbana. Forum, 2010, p. 110.
sições Constitucionais Transitórias para dispor cêncio Martires Coelho, Paulo Gustavo Gonet
sobre a vinculação de recursos orçamentários Branco. 5. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2010.
da União, dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios aos respectivos Fundos de PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito
Habitação de Interesse Social. Disponível em Constitucional Internacional. 11. ed. rev. atual. São
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ Paulo: Saraiva, 2010.
prop_pareceres_substitutivos_votos;jsessioni
d=2399CA523424176512CE494CD986085A. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
node2?idProposicao=406708>. Acesso em 24 fundamentais. 9. ed. rev. atual. e ampl. Porto
de nov. 2012. Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
____________. Congresso. Câmara dos Depu- ___________. Dignidade da Pessoa Humana e
tados. Administração Pública. Deficit habita- Direitos Fundamentais na Constituição Federal de
cional no Brasil é de 5,5 milhões de moradias. 1988. 7. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do
Disponível em http://www2.camara.leg.br/ Advogado, 2009.
camaranoticias/noticias/ADMINISTRACAO-
-PUBLICA/196187-DEFICIT-HABITACIO- ___________. O Direito Fundamental à Moradia
NAL-NO-BRASIL-E-DE-5,5-MILHOES-DE- na Constituição: Algumas anotações a respeito do seu
-MORADIAS.html>. Acesso em 05 dez. 2012. contexto, conteúdo e possível eficácia. In: Revista
Eletrônica sobre a Reforma do estado. Número
____________. O que é direito à moradia? In Mora- 20. Bahia: 2009/ 2010. Disponível em <http://
dia é um direito Humano. Disponível em <http:// www.direitodoestado.com/revista/RERE-20-
direitoamoradia.org/?page_id=46&lang=pt>. -dezembro-2009-INGO-SARLET.pdf> Acesso
Acesso em 20 nov. 2012. em 19 out. 2012.
____________. Declaração Universal dos Direitos
Humanos, Adotada e proclamada pela resolução
217 A (III) da Assembléia Geral das Nações
Unidas em 10 de dezembro de 1948. Disponível
emhttp://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/
ddh_bib_inter_universal.htm. Acesso em 23
de nov.2012.
CANUTO, Elza Maria Alves. Direito à moradia
urbana. Aspectos da dignidade da pessoa huma-
na. Belo Horizonte: Forum, 2010.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual
de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ação civil
pública na perspectiva dos direitos humanos. 2 ed.
São Paulo: LTr, 2008.
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito
Constitucional. Gilmar Ferreira Mendes, Ino-
CONSIDERAÇÕES ACERCA DA
DOUTRINA
CONSTITUCIONALIDADE DO
ARTIGO 6° DA LEI N° 12.462/2011
– REGIME DIFERENCIADO DE
CONTRATAÇÕES PÚBLICAS (RDC)
Luciana Rodrigues Vieira Lopes*
Sumário: 1) Introdução: considerações sobre a Lei n° 12.462/11 e
sua aplicação - 2) Conteúdo do artigo 6° da Lei n° 12.462/11 (pu-
blicidade postergada do orçamento estimado nas licitações regidas
pelo RDC) - 3) A forma de divulgação do orçamento estimado na
Lei 8666/93 e na Lei 10520/2002 (pregão) - 4) A previsão contida
no artigo 6° da Lei n° 12.462/11 e o regime da Constituição Federal
de 1988: existe ofensa ao princípio da publicidade consagrado
nos artigos 5°, XXXIII, e 37 da CF? - 4.1) A possibilidade de
limitação dos princípios constitucionais – 4.2) A possibilidade
de ponderação de interesses e princípios constitucionais – 4.3)
O diferimento da publicidade no RDC - 5) Objetivos e riscos da
* Procuradora do Município do Salvador nova regra de divulgação diferida do orçamento estimado – 6)
Pós-graduada em Direito Processual Considerações finais.
Civil pelo Juspodivm/Universidade
Jorge Amado
Graduada em Direito pela Universidade Palavras-chave: Regime Diferenciado de Contratação Pública;
Federal da Bahia
orçamento estimado da licitação; Princípio da Publicidade.
licitação7, sem prejuízo da divulgação do de- detalhado em planilhas que expressem a compo-
talhamento dos quantitativos e das demais sição de todos os seus custos unitários;”
informações necessárias para a elaboração
das propostas. Além desta previsão, o artigo 6°, inciso IX,
§ 1°. Nas hipóteses em que for adotado o alínea “f ”, da citada Lei considera como elemen-
critério de julgamento por maior desconto, a to necessário do projeto básico o “orçamento
informação de que trata o caput deste artigo detalhado do custo total da obra, fundamentado
constará do instrumento convocatório. em quantitativos de serviços e fornecimento
§ 2°. No caso de julgamento por melhor téc- propriamente avaliados.”
nica, o valor do prêmio ou da remuneração
será incluído no instrumento convocatório. Por sua vez, o artigo 40, § 2°, inciso II,
§ 3°. Se não constar do instrumento convo- define que “constituem anexos do edital, dele
catório, a informação referida no caput deste fazendo parte integrante: (...) II – orçamento
artigo possuirá caráter sigiloso e será dispo- estimado em planilhas de quantitativos e preços
nibilizada estrita e permanentemente aos unitários”.
órgãos de controle externo e interno.
Já o § 1° do artigo 44 veda expressamente
“a utilização de quaisquer elementos, critério ou
A simples leitura dos dispositivos legais
fator sigiloso, secreto, subjetivo ou reservado que
acima transcritos impõe reconhecer que o orça-
possa ainda que indiretamente elidir o princípio
mento estimado da licitação, no RDC, não será
da igualdade entre os licitantes”.
divulgado até o encerramento do certame, exceto
nas hipóteses em que for adotado como critério
Em suma, a Lei 8666/93 preocupou-se em
de julgamento por maior desconto e no julga-
assegurar que o orçamento seja suficiente, com-
mento por melhor técnica (deve ser divulgado
pleto, detalhado e público, de modo a permitir a
o valor da remuneração ou do prêmio).8
prévia e adequada compreensão da composição
de todos os custos envolvidos na futura execução
Ressalte-se, contudo, que a regra do sigilo
do objeto licitado.
do orçamento estimado não vale para os órgãos
de controle externo e interno, que poderão O Tribunal de Contas da União assim se
permanentemente ter acesso às informações manifestou sobre o tema:
orçamentárias vedadas ao público.
Cabe lembrar que a Lei n° 8.666/1993 es-
3) A forma de divulgação do orçamento esti- tabelece, de forma expressa, que tanto o
mado na Lei 8666/93 e na Lei 10520/2002 projeto básico da licitação quanto o demons-
(pregão) trativo do orçamento estimado em planilhas
de quantitativos e custos unitários devem
Na Lei 8666/93 (Lei Geral de Licitações e constituir partes integrantes do edital (art.
Contratos da Administração Pública) o orça- 40, § 2°, I e II). Por óbvio, não se trata de
mento da obra ou serviço é um documento de exigência meramente formal ou que não
precedência obrigatória ao desencadeamento da
licitação, devendo vir expressamente divulgado
no instrumento convocatório. 7
O caput do art. 9° do Decreto n° 7.581/11 refere-se à “ad-
judicação do objeto” como momento em que o orçamento
se tornará público.
O artigo 7°, § 2°, inciso II, da referida lei pre- 8
O Decreto n° 7.581/11 incluiu também, como uma exceção
vê que: “As obras e os serviços somente poderão à regra do sigilo, a hipótese em que for adotado o critério
de julgamento por maior oferta – devendo ser divulgado
ser licitados quando: (...) II – existir orçamento no edital o preço mínimo de arrematação. (art. 9°, § 2°, III)
(...) Cabe reconhecer que se trata, no caso, Importante salientar, neste ínterim, que em
de normas gerais de licitação, que somente qualquer licitação, inclusive no RDC, haverá
deixariam de ser aplicáveis se existisse uma a estipulação prévia do orçamento estimado14
disciplina especial pertinente ao tema no (que não se confunde com a divulgação deste),
âmbito do pregão ou se a intrínseca espe- até porque isto é essencial para a definição do
cialidade da disciplina do pregão excluísse objeto, dos custos envolvidos com sua execução,
a sua incidência. Nenhuma das hipóteses da escolha da modalidade licitatória e, no curso
se verifica. As normas sobre publicidade do certame, para a análise da documentação de
de orçamentos, prevista na Lei n° 8.666, qualificação econômico-financeira dos licitan-
apresentam natureza geral e se aplicam no tes (como capital social mínimo ou patrimônio
âmbito do pregão.12 líquido mínimo) e da exequibilidade das propos-
tas; entretanto, não haverá a prévia publicidade
Não obstante a posição acima esposada, deste orçamento – que, no caso do RDC, será
a discussão sobre o tema encontra-se supera- divulgado apenas no final (salvo as exceções
da diante do entendimento pacífico firmado mencionadas acima).
pelo TCU, no sentido de não ser obrigatória a
inserção no edital do pregão do valor estimado Neste sentido Egon Bockmann Moreira e
da contratação, ante a ausência de previsão le- Fernando Vernalha Guimarães se manifestaram:
gislativa expressa.
Enfatize-se que mesmo nos casos excep-
O sumário de um dos acórdãos proferi- cionais do RDC a restrição à divulgação do
dos pelo TCU acerca do tema assim tratou a orçamento não importa, evidentemente,
matéria: a desnecessidade de sua elaboração pré-
via. A licitação deverá ser precedida pela
3. “Orçamento” ou “valor orçado” ou formulação do orçamento, que é documento
“valor de referência” ou simplesmente fundamental da etapa interna – bem como
“valor estimado” não se confunde com sua submissão, se for o caso, aos órgãos de
preço máximo. O “valor orçado” a de- controle. A sua falta poderá gerar a nulidade
pender de previsão editalícia pode even- dos atos subseqüentes.15
tualmente ser definido como “preço má-
ximo” a ser praticado em determinada 12
JUSTEN FILHO, Marçal. Pregão: comentários à legislação
licitação, mas não necessariamente. do pregão comum e eletrônico. 5. ed. São Paulo: Dialética,
4. Nas modalidades licitatórias tradicio- 2009, p. 99.
13
No mesmo sentido: “Na licitação na modalidade pregão,
nais, de acordo com o art. 40, § 2°, II, da o orçamento estimado em planilhas de quantitativos e
Lei n° 8666/93, o orçamento estimado preços unitários não constitui um dos elementos obriga-
deve figurar como anexo do edital, tórios do edital, devendo estar inserido obrigatoriamente
no bojo do processo relativo ao certame. Ficará a critério
contemplando o plano de referência e, do gestor, no caso concreto, a avaliação da oportunidade
se for o caso, o preço máximo que a Ad- e conveniência de incluir esse orçamento no edital ou de
informar, no ato convocatório, a sua disponibilidade aos
ministração se dispõe a pagar. No caso interessados e os meios para obtê-lo.” (TCU. Acórdão n°
do pregão, a jurisprudência do TCU é 114/2007, Plenário. Processo 023.782/2006-4. Rel. Min.
Benjamin Zymler. Sessão: 7.2.2007. DOU, 9.2.2007). E
no sentido de que a divulgação do valor ainda: Acórdãos n° 644/2006, 1925/2006, 517/2009 e
orçado e, se for o caso, do preço máximo, 1784/2009, todos do Plenário do TCU.
caso este tenha sido fixado, é meramente
14
Assim prevê a Lei n° 12.462/11 (RDC), nos seguintes arti-
gos: 2°, parágrafo único, VI; 4°, V; 9°, § 2°, II; 10, parágrafo
facultativa. (TCU, Acórdão n° 392/2011. único e 41.
Plenário, Processo 033.876/2010-0. Rel. 15
MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES, Fernando
Vernalha. Licitação Pública. A Lei Geral de Licitações/
Min. José Jorge, Sessão: 16.2.2011. LGL e o Regime Diferenciado de Contratações/RDC. 1.
DOU de 23.02.2011)13 ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 159.
98 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA
va (art. 37, § 4°) (...)”. E complementa: “A O próprio artigo 5°, XXXIII, traz uma
publicidade, como princípio da adminis- exceção à publicidade ao possibilitar o sigilo
tração pública (CF, art. 37, caput), abrange quando este for imprescindível à segurança da
toda a atuação estatal, não só sob o aspecto sociedade e do Estado.
da divulgação oficial de seus atos como,
também, de propiciação de conhecimento Neste ínterim, importante trazer à baila o
da conduta interna de seus agentes.19 entendimento de André Guskow Cardoso:
Na mesma toada, Uadi Lamêgo Bulos O cidadão deve ter condições permanentes de
ressalta que o princípio da publicidade tem acompanhar, de forma ampla, a gestão estatal
por finalidade “manter a total transparência na pelos governantes eleitos e outros agentes
prática dos atos da Administração Pública”.20 políticos. No entanto, isso não significa que
todo e qualquer ato praticado pelo Estado e,
Exatamente nesse sentido, Demian Guedes em especial, pela Administração tenha que
compreende que o princípio da publicidade: ser previamente objeto de ampla publicidade.
Há vários exemplos de ações da Administra-
(...) não se exaure com a exteriorização do ção que não são objeto de prévia publicidade.
ato administrativo ao público, após a sua Isso não significa que tais ações não devam
hermética realização pela Administração. sujeitar-se a ampla divulgação após a sua
Publicidade e transparência impõem ao adoção pelo Poder Público. Tome-se como
Poder Público uma atuação translúcida exemplo a adoção de determinada medida
durante a preparação da decisão administra- pela autoridade monetária (Banco Central)
tiva, na sua exposição final (impondo-se sua sobre o regime cambial. Evidentemente
motivação e publicação propriamente dita) certas ações não podem ser precedidas de
e, posteriormente, durante sua execução.21 qualquer divulgação, sob pena de sua ine-
ficácia. Pode-se imaginar também hipótese
Neste contexto, o sigilo do orçamento im- de medidas específicas de fiscalização de
posto pelo RDC configuraria infração ao princí- trânsito (blitz), em que sua prévia divulgação
pio da publicidade? Entendemos que não, pelos
motivos a seguir expostos.
19
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro.
São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 94
4.1) A possibilidade de limitação dos princí- 20
BULOS. Uadi Lamêgo. Constituição Federal Anotada. São
pios constitucionais Paulo: Saraiva, 2000. p. 563.
21
GUEDES, Demian. A presunção de veracidade e o Estado
Democrático de Direito: uma reavaliação que se impõe.
Um primeiro ponto a ser observado é a In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO,
Floriano de Azevedo (Coord.). Direito administrativo e seus
existência de limites à exigência de transparência novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 250.
na atuação estatal. 22
Esta lei dispõe sobre os procedimentos a serem obser-
vados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios
para garantir o acesso a informações previsto no inciso
Com efeito, mesmo em um Estado em que XXXIII do art. 5°, no inciso II do § 3° do art. 37 e no § 2°
houve grandes avanços no campo da transparên- do art. 216 da Constituição Federal. Subordinam-se ao seu
regime os órgãos públicos integrantes da administração
cia dos atos públicos, como no Brasil, onde recen- direta dos Poderes Executivos, Legislativo, incluindo as
temente foi editada a Lei de Acesso à Informação Cortes de Contas, e Judiciário e do Ministério Público, além
– n° 12.527/1122 –, há determinados assuntos em das autarquias, fundações públicas, empresas públicas,
sociedades de economia mista e demais entidades contro-
que se autoriza o sigilo; este, entretanto, deve ser ladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito
justificado, não pode ser desarrazoado ou arbitrá- Federal e Municípios. O objetivo desta norma é assegurar
o direito fundamental de acesso à informação e tem como
rio. Muitas vezes o sigilo é importante, inclusive, uma das diretrizes a “observância da publicidade como
para proteger a ordem jurídica. preceito geral e do sigilo como exceção” (art. 3°, I)
frustraria por completo a finalidade perse- Nenhum direito é absoluto. Assim, no caso
guida pela ação estatal. Do mesmo modo, em estudo, deve ser analisado o que deve prevale-
a ação de fiscalização exercida pelos órgãos cer: o interesse público à informação (publicida-
de vigilância sanitária sobre determinados de) ou o interesse público de economia dos gastos
estabelecimentos comerciais poderia se frus- públicos, de maior eficiência na contratação e de
trar caso houvesse a sua prévia divulgação. moralidade na condução do certame.
Enfim, há situações em que a publicidade
prévia de determinada ação estatal acarreta a Tratando sobre as colisões entre direitos
sua ineficácia. Torna a medida inócua. Nesses fundamentais e interesses da sociedade, Daniel
casos a publicidade poderá ser diferida para Sarmento assim se manifestou:
momento posterior à prática do ato ou à
consolidação de seus efeitos. Tais exemplos Já se tornou lugar-comum a afirmação de
demonstram que a imposição derivada do que, apesar da relevância ímpar do papel
princípio da ampla publicidade das ações que desempenham nas ordens jurídicas
estatais encontra determinados limites. democráticas, os direitos fundamentais não
Não é plausível que a publicidade prévia são absolutos. A necessidade de proteção
e ampla seja aplicada de forma genérica e de outros bens jurídicos diversos, também
indiscriminada, com prejuízo à consecução revertidos de envergadura constitucional,
dos objetivos de interesse coletivo buscados pode justificar restrições aos direitos fun-
com a prática de determinado ato ou medida damentais. Tem-se entendido que o caráter
pelo Estado. Nas hipóteses em que a publici- principiológico das normas constitucio-
dade antecipada a respeito de determinado nais protetivas dos direitos fundamentais
ato ou ação estatal possa colocar em risco o permite ao legislador que, através de uma
próprio objetivo buscado, necessariamente ponderação constitucional dos interesses
deve admitir-se que a publicidade se dê de em jogo, estabeleça restrições àqueles di-
forma diferida.23 reitos, sujeitas, no entanto, a uma série de
limitações (são os chamados ‘limites dos
Em resumo, não restam dúvidas de que a limites’)25
publicidade, como os demais princípios consti-
tucionais, pode sofrer limitações estabelecidas Egon Bockmann Moreira e Fernando Ver-
na própria constituição, autorizados por esta nalha Guimarães complementam:
– quando prevê a edição de lei restritiva –, ou
podem decorrer de restrições não expressamente
referidas no texto constitucional24, desde que 23
CARDOSO, André Guskow. O Regime Diferenciado de
haja uma justificativa razoável para tanto, não Contratações Públicas: a questão da publicidade do orça-
podendo ser admitido abuso na mitigação da mento estimado. In: JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA,
César A. Guimarães (Coord.). O Regime Diferenciado de
transparência da atuação estatal. Contratações Públicas (RDC): comentários à Lei n° 12.462
e ao Decreto n° 7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p.
82.
4.2) A possibilidade de ponderação de interes- 24
SARMENTO, Daniel. Supremacia do interesse público? As
ses e princípios constitucionais colisões entre direitos fundamentais e interesses da cole-
tividade. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES
NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito administrativo
Além da possibilidade de imposição de res- e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
trições aos princípios constitucionais, impende p. 126.
25
SARMENTO, Daniel. Supremacia do interesse público?
salientar que estes podem sofrer ponderações, As colisões entre direitos fundamentais e interesses
devendo ser analisado em cada caso qual o inte- da coletividade. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de;
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito
resse em jogo que deve prevalecer, observando-se
administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte:
sempre a proporcionalidade. Fórum, 2008. p. 118
Em segundo ponto, o princípio da publici- Como visto, o citado autor já faz uma ponde-
dade não impede que a divulgação de certas ração aos princípios constitucionais ao defender
informações inerentes à atividade seja ca- que estes devem ser harmonizados com os resul-
librada com vistas à preservação de outros tados econômicos pretendidos pela Administra-
interesses de relevância pública associados. ção. Assevera ainda que, no campo da licitação,
Sem que se elimine a difusão pública do or- os princípios da eficiência, da economicidade
çamento, é perfeitamente possível dosá-la na e da moralidade devem prevalecer, atuando os
esfera da licitação, no propósito de preservar princípios da ampla competição, da publicidade
o princípio da contratação mais vantajosa – e, e da isonomia apenas como instrumentos para
até, como instrumento de combate a práticas consecução do objetivo principal – a seleção da
de conluio e formação de cartéis.26 proposta mais vantajosa para a celebração do
contrato administrativo.
Para Marcos Juruena Villela Souto, na li-
citação deve ser haver uma harmonização entre André Guskow Cardoso, ao tratar da neces-
resultados econômicos e princípios jurídicos: sidade de ponderação de princípios consagrados
pela Constituição, assim se manifestou:
Para mensuração da eficiência de um ins-
tituto de Direito, é preciso que a lógica
A questão envolve necessariamente a pon-
(econômica) de resultados não seja afastada
deração de princípios e valores consagrados
ou anulada pela lógica (ética) dos princípios.
pela Constituição, ante o princípio constitu-
Fundamental, pois, a busca da harmoniza-
cional da publicidade (e as obrigações dele
ção entre os resultados econômicos e prin-
decorrentes). A despeito de sua inequívoca
cípios jurídicos. Este é o desafio do direito
importância, o princípio da publicidade
econômico e esta é a provocação. No campo
pode ceder diante de outros princípios e
da licitação, seu objetivo constitucional é
valores constitucionalmente consagrados.
a seleção da proposta mais vantajosa para
(...)28
firmar contrato com a Administração.
O fundamento está no atendimento dos
princípios constitucionais da eficiência, da Em suma, havendo mais de um princípio
economicidade e da moralidade. Para aten- constitucional em jogo, é plenamente possível
dimento de tais princípios, outros, de ordem que haja uma ponderação destes para que não
instrumental, devem ser observados, a saber, ocorra frustração dos objetivos ou finalidades
a ampla competição, a publicidade e a isono- perseguidos pela Administração, salvaguardan-
mia, devendo ser proporcionada igualdade do o interesse público.
de oportunidades de acesso e de tratamento
entre os interessados em contratar com a
Administração. (...) Ocorre que sem sempre 26
MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES, Fernando
– e não raro – a melhor proposta nos autos Vernalha. Licitação Pública. A Lei Geral de Licitações/
LGL e o Regime Diferenciado de Contratações/RDC. 1.
não é a melhor do mercado. Nesse caso, o ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 160-161.
procedimento não atinge seu fim constitu- 27
SOUTO, Marcos Juruena Villela. Licitações e controle
cional nem econômico. Em síntese, o que se da eficiência: repensando o princípio do procedimento
formal à luz do ‘placar eletrônico’. In: ARAGÃO, Alexan-
pretende, como atendimento dos princípios dre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo
constitucionais, é a melhor proposta no mer- (Coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas.
Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 553-554.
cado e não só no processo. (...) Esses deveres 28
CARDOSO, André Guskow. O Regime Diferenciado de
de eficiência e economicidade se realçam Contratações Públicas: a questão da publicidade do orça-
num contexto de Reforma do Estado, que mento estimado. In: JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA,
César A. Guimarães (Coord.). O Regime Diferenciado de
busca a implementação de políticas públicas Contratações Públicas (RDC): comentários à Lei n° 12.462
para fortalecer a competição.27 e ao Decreto n° 7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 83.
102 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA
sas. Ressalte-se que nenhum dos objetivos tenderá a formular proposta com valor próximo
buscados com a ampla publicidade é atin- daquele ofertado.
gido pela regra do art. 6°, da Lei n° 12.462.
Não se pode afirmar que a não divulgação Com isso, a divulgação prévia do valor
do orçamento estimado com o edital possa estimado da licitação acaba elevando o valor da
automaticamente reduzir a participação de contratação e, por conseguinte, ao aumento dos
eventuais interessados. Tampouco é válido gastos públicos.
reputar que haveria a possibilidade de
tratamento desigual entre os licitantes ou Isto sem contar com um problema frequente
redução do controle da atividade da Ad- na fase interna do certame: a elaboração de pes-
ministração. Portanto, além de não haver a quisas de preço fora da realidade de mercado,
supressão das finalidades perseguidas com com valores superiores ao quanto usualmente
a publicidade prévia, regra consagrada pela praticado nas vendas para compradores na ini-
Lei n° 12.462 permite a busca de finalidades ciativa privada.
adicionais. Se aplicada adequadamente (e
sem distorções) tem o potencial de gerar Como é cediço, o valor estimado da licitação
benefícios adicionais, sem qualquer prejuízo é obtido com base em pesquisa de preços, cujos
para os valores protegidos pelas imposições orçamentos são fornecidos na maioria das vezes
derivadas do princípio da publicidade.30 pelos próprios fornecedores que participarão do
certame.
Diante do exposto, defendemos a constitu-
cionalidade do quanto disposto no artigo 6° da Na prática, estes fornecedores, sabendo que
Lei n° 12.462/11, por não haver qualquer ofensa o orçamento apresentado irá subsidiar a forma-
ao princípio constitucional da publicidade. ção do preço estimado da licitação, fornecem
orçamentos altos na fase da pesquisa de preços
5) Objetivos e riscos da nova regra de divul- fazendo com que o valor estimado da licitação
gação diferida do orçamento estimado também seja alto, desvirtuando todo o intuito da
pesquisa – que seria a obtenção do preço médio
Quando um particular vai fazer uma com- praticado no mercado para balizar a estimativa
pra, ele já sabe até quanto pode pagar, mas não de custo da futura licitação.
sabe antecipadamente até quanto a loja ou for-
necedor do bem ou serviço poderá oferecer de Por conseguinte, a divulgação prévia do
desconto (até chegar ao preço final de venda). Ou orçamento estimado faz com que, na fase da
seja, o comprador tem liberdade para formular disputa, os licitantes apresentem propostas em
sua proposta, sem saber de antemão o preço final valor próximo ou igual ao estimado – que, na
pelo qual o vendedor poderá vender o produto. prática, já superam o valor real do objeto licitado.
Já o vendedor não sabe previamente até quanto
o comprador pode pagar. Não é de hoje que a doutrina, vislumbrando
o que acontece diuturnamente nas fases inter-
Diante desta realidade de mercado, por que nas das licitações, reconhece que, em regra, a
a Administração Pública já vai revelar antecipa-
damente o valor máximo que pode pagar?
CARDOSO, André Guskow. O Regime Diferenciado de
30
pesquisa de mercado (utilizada para obtenção Em suma, o valor estimado servirá como
do orçamento estimado do certame) não reflete limite máximo orçamentário de contratação,
a realidade do mercado. Neste sentido, confira- não mais como parâmetro para elaboração das
-se o apontamento de Marcos Juruena Villela: propostas como atualmente ocorre.
Atualmente, a pesquisa de mercado envolve Neste sentido, salienta Benedicto de Tolosa
uma consulta formal e prévia, a pelo menos Filho:
três empresas do ramo, adotando-se a média
dos valores fornecidos ou, alternativamente, No entanto, não comungo com a tese espo-
se promove a consulta ao Sistema de Re- sada por alguns de que a não divulgação do
gistro de Preços (que não se confunde com preço de referência ou do valor máximo que
cadastro de preços, embora ambos reflitam, a Administração se dispõe a pagar fere os
apenas, a realidade de preços praticada pela princípios da moralidade e da transparência.
Administração, que raramente reflete a rea- Verifica-se no trato do dia a dia ministran-
lidade do mercado). Isso também não é nem do cursos, palestras, prestando serviços de
substitui a licitação e, por isso, de sua parte, assessoria e consultoria que a fixação do
os fornecedores também não se sentem preço máximo ou a divulgação do preço
confortáveis em informar previamente suas de referência tem servido para balizar os
melhores condições. Logo, tudo indica que valores propostos pelos licitantes cujas ofer-
a pesquisa preliminar da Administração não tas aproximam-se claramente dos valores
vai refletir a melhor realidade do mercado referenciais, além de servir para facilitar a
e, com isso, o procedimento (até aqui, ainda formação de cartéis. Portanto a revelação do
interno) começará mal.31 preço máximo ou a revelação antecipada do
preço estimado faz com que as propostas dos
Na Lei 12.462/11, o legislador ordinário licitantes orbitem em torno do valor fixado
reconheceu que a prévia divulgação do orça- ou estimado, circunstância que pode preju-
mento influencia os licitantes a oferecer preços dicar a obtenção de melhores condições de
próximos ao valor estimado ou, até mesmo, contratação.32
idêntico a este, dificultando a livre competição
e, por conseguinte, a obtenção da proposta mais Egon Bockmann Moreira e Fernando Ver-
vantajosa para a Administração. nalha Guimarães vão além ao afirmar:
É fato que esta alteração trazida pelo art. Note-se que a restrição a certas informações
6° da citada Lei não vai solucionar o problema relativas ao orçamento é ferramenta cada
da pesquisa de preços distante da realidade de vez mais utilizada internacionalmente como
mercado. obstáculo à corrupção e à superação de defi-
ciências na licitação. A limitação à sua am-
Entretanto, com o diferimento da publi- pla publicidade pretende evitar a prática do
cidade do orçamento estimado apenas para o
final do certame, minimiza-se muito o risco
de apresentação de propostas baseadas apenas
31
SOUTO, Marcos Juruena Villela. Licitações e controle
da eficiência: repensando o princípio do procedimento
no orçamento estimado; afinal, sem saber qual formal à luz do ‘placar eletrônico’. In: ARAGÃO, Alexan-
foi o valor estimado da licitação, os licitantes dre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo
(Coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas.
terão que apresentar preços mais condizentes Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 557.
com a realidade, dispondo até de suas melhores 32
TOLOSA FILHO, Benedicto de.Incorporação de disposi-
ções da Lei n° 12.462/11 (RDC) à Lei n° 8.666/93. Revista
condições de preço, se de fato quiserem ser Zênite – Informativo de Licitações e Contratos (ILC),
competitivos e vencer a licitação. Curitiba: Zênite, n. 216, p. 167-168, fev. 2012.
alinhamento das ofertas com o valor orçado internacionais que indicam ‘que essa prática
pela Administração. Argumenta-se que sua desestimula o conluio e outras condutas
divulgação prévia aos participantes da lici- anticoncorrenciais, motivo pelo qual o sigilo
tação minimiza os ganhos que a pressão da da estimativa orçamentária é adotado em
disputa poderia gerar – atenuando os efeitos diversos países, como os Estados Unidos
benéficos da livre concorrência. A veicula- e nações integrantes da União Européia’.
ção precedente do orçamento pode inibir (...) Em outras palavras, há demonstrações
a prática de descontos mais significativos, objetivas no âmbito da ciência econômica
eis que os interessados têm incentivos para de que, em regra, a não divulgação do orça-
oferecer preços aproximados àquele que a mento estimado pela Administração para
Administração já estimou para a contra- determinadas contratações tem como efeito
tação. Afinal, o reconhecimento acerca de o incentivo a comportamentos competitivos
certo orçamento para a contratação presume pelos licitantes, conduzindo potencialmente
a disposição da Administração em praticá- à obtenção de propostas mais vantajosas,
-lo; mais que isso, instala a certeza quanto derivadas da ampliação da disputa. Trata-se
à existência de recursos necessários à sua de influenciar o comportamento dos licitan-
execução. Portanto, no caso da publicidade tes, por meio da supressão de determinada
prévia, não há qualquer estímulo a que os informação ao início da fase de disputa, de
interessados ofereçam valores significati- modo a obter propostas mais reduzidas.
vamente mais baixos que o orçamento (o Não há dúvidas de que tais objetivos são
que significa dizer que a Administração igualmente protegidos pela Constituição
está destinada a pagar mais caro e a não e constituem verdadeiro pressuposto da
se beneficiar dos ganhos de eficiência do licitação pública.34
contratado).33
Do exposto, resta claro que o principal pon-
André Guskow Cardoso sintetizou o se- to positivo da alteração trazida no RDC quanto
guinte: ao sigilo do orçamento estimado é a possibilida-
de de aumento da competitividade (ampliando
Conforme indicado durante as discussões os efeitos da livre concorrência); com isso, o ente
para a aprovação do texto da MP n° 527 (e público se beneficiará com a obtenção de preços
apreciação das emendas parlamentares) e mais vantajosos, propiciando economia ao erário
confirmado pelas informações prestadas e maior eficiência do certame.
pelo Presidente da República no âmbito
das ADI em trâmite no STF, objetivou-se Por fim, importante mencionar que além
com a referida regra ‘a proteção ao erário, dos pontos positivos da norma em comento,
assegurando que as propostas dos licitantes existem os riscos que envolvem a sua aplicação.
correspondam a um valor pelo qual estejam
dispostos a executar a obra, sem que os
preços convirjam artificialmente para pata-
mares próximos ao orçamento anunciado, 33
MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES, Fernando
Vernalha. Licitação Pública. A Lei Geral de Licitações/
quando poderiam ser mais baixos’. Segundo LGL e o Regime Diferenciado de Contratações/RDC. 1.
alegado nas informações, ‘quando os licitan- ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 157-158.
tes desconhecem o orçamento estimado, a
34
CARDOSO, André Guskow. O Regime Diferenciado de
Contratações Públicas: a questão da publicidade do orça-
tendência é que apresentem propostas mais mento estimado. In: JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA,
atrativas para a Administração, atendendo César A. Guimarães (Coord.). O Regime Diferenciado de
Contratações Públicas (RDC): comentários à Lei n° 12.462
ao princípio da eficiência e da economi- e ao Decreto n° 7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p.
cidade’. Há igualmente menção a estudos 84-85 e 87.
podendo ser admitido abuso na mitigação da sua observância seria postergada para o final
transparência da atuação estatal. da licitação. O que o artigo 6° da Lei do RDC
promove é um mero adiamento do momento em
Além da possibilidade de imposição de res- que os administrados e licitantes ficam sabendo
trições aos princípios constitucionais, é cediço do preço orçado pela administração naquela
que estes podem sofrer ponderações, analisando- licitação.
-se em cada caso qual o princípio ou interesse
em jogo que deve prevalecer. Nenhum princípio Com o diferimento da publicidade do orça-
é absoluto. mento estimado apenas para o final do certame,
minimiza-se muito o risco de apresentação de
No caso em estudo, importante analisar o propostas baseadas apenas no orçamento estima-
que deve prevalecer: o interesse público à infor- do, afinal, sem saber qual foi o valor estimado da
mação (publicidade) ou o interesse público de licitação, os licitantes terão que apresentar preços
economia dos gastos públicos, de maior eficiên- mais condizentes com a realidade, dispondo até
cia na contratação e de moralidade na condução de suas melhores condições de preço, se de fato
do certame. quiserem ser competitivos e vencer a licitação.
Havendo mais de um princípio constitu- Resta claro que o principal ponto positivo
cional em jogo, é plenamente possível que haja da alteração trazida no RDC quanto ao sigilo
uma ponderação destes para que não ocorra do orçamento estimado é a possibilidade de
frustração dos objetivos ou finalidades perse- aumento da competitividade (ampliando os
guidos pela Administração, salvaguardando efeitos da livre concorrência). Com isso, o ente
o interesse público. Assim, sopesando-se os público se beneficiará com a obtenção de preços
princípios já mencionados, entendemos que o mais vantajosos, propiciando economia ao erário
princípio constitucional da publicidade pode e maior eficiência do certame.
perfeitamente ceder diante de outros princípios
e valores também consagrados na Constituição Em que pese o risco de vazamento da in-
Federal, como os princípios da economicidade, formação acerca do valor estimado, o que pode
eficiência e moralidade, culminando com o vir a frustrar o princípio da igualdade entre
alcance do bem almejado pela Administração, os licitantes, a existência deste não invalida a
qual seja, a obtenção da proposta mais vantajosa norma que estabelece o sigilo, uma vez que é
para a administração, com efetiva economia dos inerente a este o risco de sua descoberta irregu-
gastos públicos. lar, devendo, portanto, a Administração adotar
medidas preventivas rigorosas para ocultar o
Além da possibilidade de imposição de cer- orçamento estimado no decorrer do certame,
tos limites à exigência de publicidade na atuação bem como adotar medidas repressivas não menos
estatal e, também, à possível ponderação de prin- rigorosas para aqueles responsáveis pela burla à
cípios constitucionais, não menos importante determinação legal.
salientar que, no RDC não há propriamente sub-
tração da publicidade do orçamento estimado, REFERÊNCIAS
haja vista que este orçamento é disponibilizado
permanentemente aos órgãos de controle interno BULOS. Uadi Lamêgo. Constituição Fede-
e externo e será amplamente divulgado ao final ral Anotada. São Paulo: Saraiva, 2000.
do certame.
CARDOSO, André Guskow. O Regime
Destarte, não haveria infração alguma ao Diferenciado de Contratações Públicas: a ques-
princípio constitucional da publicidade, apenas tão da publicidade do orçamento estimado. In:
JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA, César A. SOUTO, Marcos Juruena Villela. Licitações e
Guimarães (Coord.). O Regime Diferenciado de controle da eficiência: repensando o princípio do
Contratações Públicas (RDC): comentários à procedimento formal à luz do ‘placar eletrônico’.
Lei n° 12.462 e ao Decreto n° 7.581. Belo Hori- In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES
zonte: Fórum, 2012. NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito
administrativo e seus novos paradigmas. Belo
FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Sistema Horizonte: Fórum, 2008.
de Registro de Preços e Pregão Presencial e
Eletrônico. Belo Horizonte: Fórum, 2011. TOLOSA FILHO, Benedicto de. Incorporação
de disposições da Lei n° 12.462/11 (RDC) à Lei
GUEDES, Demian. A presunção de veracidade e n° 8.666/93. Revista Zênite – Informativo de
o Estado Democrático de Direito: uma reavalia- Licitações e Contratos (ILC). Curitiba: Zênite,
ção que se impõe. In: ARAGÃO, Alexandre San- n. 216, p.167-170, fev. 2012.
tos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo
(Coord.). Direito administrativo e seus novos
paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
JUSTEN FILHO, Marçal. Pregão: comentários
à legislação do pregão comum e eletrônico. São
Paulo: Dialética, 2009.
________. Comentários à lei de licitações e
contratos administrativos. 14. ed. São Paulo:
Dialética, 2010.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Admi-
nistrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros
Editores, 2004.
MELLO, Celso Bandeira de. Curso de Direito
Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores,
2001.
MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES,
Fernando Vernalha. Licitação Pública. A Lei
Geral de Licitações/LGL e o Regime Dife-
renciado de Contratações/RDC. São Paulo:
Malheiros, 2012.
SARMENTO, Daniel. Supremacia do interesse
público? As colisões entre direitos fundamentais
e interesses da coletividade. In: ARAGÃO, Ale-
xandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano
de Azevedo (Coord.). Direito administrativo
e seus novos paradigmas. Belo Horizonte:
Fórum, 2008.
110 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA
PALAVRAS-CHAVE:
DIREITO FINANCEIRO – ATIVIDADE FINANCEIRA DO
ESTADO – LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL – ORÇA-
MENTO PÚBLICO – ESTADO DE DIREITO
SUMÁRIO
01. Introdução. 02. Atividade financeira do Estado. 02.1. Neces-
sidades públicas. 02.2. Funções institucionais do Estado. 02.3.
Atividade Financeira do Estado. 03. Direito Financeiro. 04.
Competência no Direito Financeiro. 05. Veículos normativos
do Direito Financeiro. 5.1. Constituição Federal de 1988. 5.2.
Lei Complementar. 5.3. Resoluções do Senado Federal. 5.4. Atos
normativos infralegais da União: portarias federais. 5.5 Leis or-
dinárias de cada ente federativo. 06. Conclusão.
1. Introdução
a busca do bem-estar social e a obtenção do desen- economia de mercado14. Tudo o que ele realiza
volvimento econômico12. gera custos, e esses custos precisam ser supri-
dos, tais como a remuneração dos servidores
Este papel do Estado é, ao mesmo tempo, públicos e terceiros prestadores de serviços, a
o seu fator de legitimação e de justificação. A compra, manutenção ou aluguel de imóveis, a
organização estatal foi teoricamente criada para aquisição de suprimentos e material de consu-
a satisfação das necessidades públicas (motor de mo, a constituição de entes da Administração
constituição), ou, ao menos, ainda que isto não Indireta ou a participação econômica do Estado
seja historicamente verdade, e se trate de mero em outras entidades15.
mecanismo ideológico de dominação, a continui-
dade desta sua função é poderoso mecanismo de O Estado, portanto, não pode ser encarado
legitimação da atividade pública. como uma entidade lúdica, e, a partir do mo-
mento em que lhe são conferidas atribuições,
O Estado, como ente de satisfação de ne- devem lhe ser igualmente conferidos os recursos
cessidades, atua tanto de modo direto (garantia necessários à realização destas atribuições, pois
de segurança pública, exercício de jurisdição “o ideário contido em norma constitucional
na solução de conflitos), como pela promoção somente pode se tornar eficaz diante da dispo-
de políticas públicas, ou seja, pela adoção de nibilidade de meios aptos a gerir os interesses16”.
medidas transformadoras da realidade social que Desta maneira, quem estabelece os fins deve
propiciem ou facilitem aos indivíduos o alcance necessariamente assegurar os meios necessários
de determinadas situações de fato (acesso ao à sua consecução, ou seja, “da mesma forma que
trabalho e emprego, moradia, desenvolvimento
econômico, ordenação urbana).
palavra, quando em um determinado agrupamento social
A complexa sociedade moderna, como já ex- formou-se um poder que detém o monopólio da força,
posto, acarreta um crescimento das necessidades mais precisamente da força legítima: aqueles que detêm
esse monopólio consideram ilegítimo o uso da força por
públicas, e, por consequência, um aumento parte de qualquer outro grupo”. Essa concepção de Es-
das atribuições do Estado. Régis Fernandes de tado, portanto, o identifica sempre que, de fato, ocorra o
MONOPÓLIO DA FORÇA por um ÓRGÃO CENTRAL DE
Oliveira realiza interessante estudo sobre a di- PODER, “independentemente dos objetivos aos quais e
versidade e dimensão da atividade do Estado13, refere” (BOBBIO, Norberto. O filósofo e a política: antolo-
gia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003, pp. 77-87).
que engloba (a) a intervenção no domínio econô- 12
BRITO, Edvaldo. Reflexos jurídicos da intervenção do
mico, (b) a atividade de fomento, (c) a criação e Estado no domínio econômico. São Paulo: Saraiva, 1982,
manutenção dos entes da administração indireta pp. 03-10.
13
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Finan-
para consecução de finalidades específicas, (d) ceiro. São Paulo: RT, 2006, pp. 38-56.
o exercício do poder de polícia administrativa, 14
Alerta Sainz de Bujanda que “es lógico que la Adminis-
tración de un Estado – como la de cualquier otra entidad
(e) a emissão, guarda e registro de documentos pública o privada – tenga que utilizar medios personales,
relevantes, (f) a sua atividade instrumental ou materiales e jurídicos para lograr el cumplimiento de sus
“custo burocrático”, e (g) a prestação de serviços fines” (BUJANDA, Fernando Sainz de. Hacienda Publica,
Derecho Financiero y Derecho Tributario. In Hacienda y
públicos. Derecho, v.01. Madrid: IEP, 1975, pp. 10-11).
15
Celso Ribeiro Bastos, após lembrar que os fins últimos do
Estado “compreendem a segurança pública, a realização
Todas estas atividades do Estado sem dú- de Direito, a prestação do ensino, da saúde etc.”, ressalta
vida são geradoras de despesas e custos. Cada que “esses fins não se cumprem sem que tenham um
uma delas envolve o “consumo” de recursos suporte financeiro”, e, por isso, é “indispensável que haja
recursos econômicos para enfrentar o custo da implemen-
humanos e bens materiais, e tudo isso tem tação desses objetivos” (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de
um valor economicamente apreciável. O ente Direito Financeiro e Tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2001, pp. 09).
estatal, especialmente no Estado Capitalista de 16
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Finan-
Direito, não está mais completamente fora da ceiro. São Paulo: RT, 2006, pp. 23.
o Estado tem finalidades a alcançar, deve ter os lares em favor do Estado tem caráter excepcional,
meios necessários para satisfazer os objetivos da só existindo em hipóteses específicas, como a
comunidade17”. ocupação administrativa prevista no inciso XXV
do artigo quinto da CF-88 e atividades como
A obtenção destes “meios necessários”, composição de mesas eleitorais e júri26. O Estado
sejam eles de natureza material, humana, orga- Moderno, ensina Kiyoshi Harada, “substitui,
nizacional ou institucional, pode ser reduzida, ao acertadamente, esses processos pelo regime da
final, à idéia de obtenção de recursos pecuniários despesa pública, que consiste no pagamento
ou “dinheiro”18, recursos públicos que serão uti- em dinheiro dos bens e serviços necessários à
lizados diretamente na realização da atividade realização do bem comum27”, concentrando-se a
pública e na consecução das políticas públicas, obtenção de recursos pelo Estado na arrecadação
ou que financiarão os meios necessários para de dinheiro28.
tanto, como contratação e pagamento de pessoal
e aquisição de bens, equipamentos e material.
Torna-se necessário para a organização estatal,
17
Idem, pp. 24.
neste ponto, fixar qual o mecanismo de obtenção 18
Lembra José Souto Maior Borges que “aspecto caracte-
deste dinheiro, como ocorrerá a alocação dos re- rístico da finança do Estado Moderno é o seu conteúdo
cursos arrecadados em suas múltiplas atividades pecuniário” (BORGES, José Souto Maior. Introdução ao
Direito Financeiro. São Paulo: Max Limonad, 1998, pp.
e qual a disciplina para o seu dispêndio, o que 24).
se denomina, globalmente, atividade financeira 19
HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 16. ed.
São Paulo: Atlas, 2004, 2007, pp. 35-37.
do Estado. 20
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Finan-
ceiro. São Paulo: RT, 2006, pp. 60-67.
21
BUJANDA, Fernando Sainz de. Organización politica y
Atividade Financeira do Estado derecho financiero. In Hacienda y Derecho, v.01. Madrid:
IEP, 1975, pp. 119-466.
22
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Financeiro e
O objetivo da atividade financeira do Es- Tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 10.
tado é determinar como se dará a obtenção de 23
BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à Ciência das Finan-
recursos para fazer frente aos custos da atuação ças. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 125.
24
DEODATO, Alberto. Manual de Ciência das Finanças. 3.
do Estado, bem como o regramento da realização ed. São Paulo: Saraiva, 1949, pp. 40-41.
destes.
25
FERRAZ, Roberto. Da hipótese ao pressuposto de inci-
dência – em busca do tributo justo. In SCHOUERI, Luiz
Eduardo (coord.). Direito tributário – Homenagem a Alcides
Historicamente, em tempos antigos, a Jorge Costa, v.I. São Paulo: Quartier Latin, 2003, pp. 179-
186.
obtenção de meios materiais pelo Estado se 26
BORGES, José Souto Maior. Introdução ao Direito Finan-
dava em regra in natura, fosse por requisição ceiro. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 24.
27
HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 16. ed.
direta aos súditos, pelo saque e reivindicação São Paulo: Atlas, 2004, 2007, p. 36.
dos espólios de guerra, ou pelo simples confis- 28
Ensina Celso Ribeiro Bastos:
Na verdade, a moeda possui características que lhe são
co baseado no poder de império estatal, como
muito peculiares. Em primeiro lugar é um bem que não
lembram Kiyoshi Harada19, Régis de Oliveira20, serve em si mesmo para nada; só se presta a servir de
Sainz de Bujanda21, Celso Ribeiro Bastos 22, instrumento de trocas. Com o dinheiro pode-se adquirir
todo e qualquer bem, este sim revestido de utilidade. O
Aliomar Baleeiro23, Alberto Deodato24 e Rober- dinheiro é, em consequência, o meio de troca por exce-
to Ferraz25. Os gastos públicos, por sua vez, não lência. Daí porque a atividade financeira do Estado tem
por objeto a obtenção de recursos monetários. (...) Em
possuíam maior disciplina, sendo efetuados de consequência, o Estado necessita como fonte primordia-
acordo com as conveniências e interesses dos líssima dos recursos econômicos para a sua atuação de
arrecadar valores na forma de dinheiro, com o qual possa,
governantes. também aqui, de forma praticamente generalizada, saldar
os seus compromissos. É em dinheiro que os Estados
quitam seus débitos. (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de
Modernamente, entretanto, a requisição Direito Financeiro e Tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
direta de coisas e da força de trabalho de particu- 2001, p. 10)
cidade, razoabilidade, proporcionalidade, Ressalte-se que não se quer com isso dizer
motivação), bem como às formalidades a que a atividade financeira do Estado se resume
esta inerentes. a este perfil jurídico. Sainz de Bujanda35 e Souto
• Obtenção de Recursos Públicos – Aspecto Maior Borges36, com clareza, apontam que possui
da atividade financeira que busca conse- o fenômeno financeiro um aspecto político, um
guir recursos para o Estado mediante a aspecto econômico, um aspecto técnico e um
realização de operações de crédito ou de aspecto sociológico. Trata-se, portanto, apenas de
captação de poupança. Trata-se do Crédito uma opção de enfoque na análise do fenômeno
Público. financeiro, adequada aos objetivos do seu estudo
por técnicos ligados ao Direito; sendo o objetivo
• Criação de recursos públicos – Arrecada-
a determinação das consequências jurídicas da
ção de recursos para o Estado por meca-
atividade financeira, o foco de estudo deve ser
nismos tributários e não tributários. É a
obrigatoriamente o seu aspecto jurídico, com-
Receita Pública.
posto pela conexão da ação administrativa às
• Gestão de recursos públicos – É o Orça- normas jurídicas que a regulam.
mento Público, o mecanismo de alocação
e controle dos recursos obtidos dentre as O Direito Financeiro, nestes termos, é o
múltiplas destinações, objetivos e custos estudo da atividade financeira do Estado por
da ação estatal. uma perspectiva jurídica. É composto, portanto,
• Dispêndio de recursos públicos – É o pela disciplina jurídica da atividade financeira
efetivo gasto dos recursos no curso da do Estado. Ricardo Lobo Torres o define como
atuação estatal. Denomina-se Despesa “o conjunto de normas e princípios que regu-
Pública, e hoje, com a necessidade de lam a atividade financeira”, sendo sua função
responsabilidade na gestão fiscal e rígido “disciplinar a constituição e a gestão da Fazenda
equilíbrio entre receita e despesa, existe Pública, estabelecendo as regras e procedimentos
uma enorme preocupação com sua limi- para a obtenção da receita pública e a realização
tação e controle. dos gastos necessários à consecução dos objetivos
• Recursos Públicos – Meios para a reali- do Estado37”.
zação das finalidades institucionais do
Estado, para a consecução dos fins que públicos” (BUJANDA, Fernando Sainz de. Hacienda Publi-
lhe são constitucionalmente atribuídos. ca, Derecho Financiero y Derecho Tributario. In Hacienda y
Derecho, v.01. Madrid: IEP, 1975, p. 28). José Souto Maior
Borges afirma que a atividade financeira “se desenvolve,
3. Direito Financeiro basicamente, no campo da receita e despesa, ou seja,
de gestão do patrimônio estatal” (BORGES, José Souto
Maior. Introdução ao Direito Financeiro. São Paulo: Max
A atividade financeira do Estado, no Estado Limonad, 1998, p. 20), enquanto Kiyoshi Harada a define
de Direito, como visto, se submete ao regime como “a atuação estatal voltada para obter, gerir e aplicar
jurídico-administrativo, e, especialmente, ao os recursos financeiros necessários à consecução das
finalidades do Estado que, em última análise, se resumem
princípio da legalidade. Isto significa dizer que na realização do bem comum” (HARADA, Kiyoshi. Direito
toda a atividade de obtenção de receita ou crédi- Financeiro e Tributário. 13. ed. 16. ed. São Paulo: Atlas,
2004, 2007, p. 36).
to, geração de despesa ou elaboração e execução 33
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito
de orçamento deve obedecer ao regramento ma- Administrativo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.
66-83.
terial e formal previamente estabelecido por nor- 34
BORGES, José Souto Maior. Introdução ao Direito Finan-
mas jurídicas editadas pela própria organização ceiro. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 35.
estatal. No Estado de Direito, portanto, “o poder
35
BUJANDA, Fernando Sainz de. Hacienda Publica, Derecho
Financiero y Derecho Tributario. In Hacienda y Derecho,
financeiro está sujeito ao ordenamento jurídico v.01. Madrid: IEP, 1975, p. 13-23.
e seu exercício não é arbitrário, mas limita-se ao 36
BORGES, José Souto Maior. Introdução ao Direito Finan-
ceiro. São Paulo: Max Limonad, 1998, pp. 82-90.
âmbito do direito positivo34”, tendo o fenômeno 37
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e
financeiro nítido perfil jurídico. Tributário. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, p. 12.
Sainz de Bujanda, do mesmo modo, afirma cas sobre determinada matéria (artigo 22 da CF-
se tratar da “disciplina jurídica que regula la 88, p. ex.) ou de cunho material, estabelecendo a
gestión de los medios económicos que el Estado titularidade de determinado ente para a prática
utiliza para el cumplimiento de sus fines38”; de determinado ato (artigo 21 da CF-88, p. ex.).
Souto Maior Borges, por sua vez, o concebe
como a “parte do Direito Público que tem por As competências constitucionais, ainda,
objeto a ordenação das atividades financeiras39”; classificadas de acordo com o grau de participa-
e Alberto Deodato, citando Myrbach, expõe o ção de uma ou de mais entidades na fixação da
conceito de “ramo do Direito Público que estatui disciplina normativa ou no exercício do poder
a regulamentação preceitual das finanças das material, podem ser (a) exclusivas (artigo 21
coletividades públicas40”. da CF-88), (b) privativas (artigo 22 da CF-88),
admitindo delegação, (c) comuns (artigo 23 da
Analisando as definições adotadas por CF-88), (d) concorrentes (artigo 24 da CF-88),
estudiosos em obras mais recentes, se constata ou (e) suplementares (parágrafos primeiro a
que, mantendo o mesmo padrão, Carlos Al- quarto do artigo 24 e inciso segundo do artigo
berto de Moraes Ramos Filho define o Direito 30 da CF-88)44.
Financeiro como “formado pelo conjunto har-
mônico das proposições jurídico-normativas A competência para tratar de Direito Finan-
que disciplinam as relações jurídicas decorren- ceiro é, claramente, de natureza legislativa, ou
tes do desempenho da atividade financeira do seja, confere aos entes federativos o poder, dentro
Estado41”, enquanto Harrison Leite conceitua dos limites formais e materiais fixados na própria
como “ramo do direito público que estuda as regra constitucional, de editar comando jurídico
finanças do Estado em sua estreita relação com de disciplina da atividade financeira do Estado.
sua atividade financeira”, sendo “o conjunto
de normas e princípios que estuda a atividade Esta competência legislativa, pelo regime
financeira do Estado, compreendida esta como da CF-88, é concorrente entre União, Estados e
receita, despesa, orçamento e crédito públicos”42. Distrito Federal (inciso I do artigo 24 da CF-88),
cabendo ainda aos municípios suplementar, no
Seja qual for a definição adotada, o impor- que couber, esta disciplina (inciso II do artigo
tante é se ter em mente que o Direito Financeiro 30 da CF-88).
se concentra na análise jurídica da atividade fi-
nanceira do Estado, não obstante, neste estudo, Isto significa que, em matéria de Direito
se valha de elementos, conceitos e conclusões Financeiro, a União irá estabelecer normas
derivados das análises política, econômica, téc- gerais (parágrafo primeiro do artigo 24 da CF-
nica, e sociológica, em uma constante simbiose. 88), que deverão ainda ser veiculadas por lei
Neste último ponto, é importante a adver- O Texto Constitucional, como veículo nor-
tência feita por José Afonso da Silva, que alerta mativo que traz a estruturação fundamental dos
que “o constituinte foi técnico”, já que “a lei entes estatais, prescreve tanto as finalidades a
federal superveniente não revoga a lei estadual estes atribuídas (artigos 21, 24 e 30, p. ex.), como
nem a derroga no aspecto contraditório, esta a previsão de “estruturas e meios para que estas
apenas perde sua aplicabilidade, porque fica com entidades prestem tais atividades”49.
a eficácia suspensa”; como consequência, “sendo
revogada a lei federal pura e simplesmente, a lei Diversos dispositivos constitucionais se
estadual recobra sua eficácia e passa outra vez a relacionam, com maior ou menor intensidade, à
incidir46”. disciplina do Direito Financeiro, mas podemos
identificar três blocos que tratam mais direta-
Conclui-se, por fim, que todos os entes fe- mente do tema:
derados (União, Estados, Municípios e Distrito
Federal) possuem competência para legislar, em
maior ou menor grau, sobre Direito Financeiro. 45
As normas gerais de Direito Financeiro, assim, devem ser
Não poderia, aliás, ser diferente, já que, como veiculadas por lei complementar, como é o caso da Lei
Complementar 101/2000 (lei de responsabilidade fiscal)
visto, a atividade financeira do Estado é essen- e da Lei 4.320/64 (lei geral de orçamento), recepcionada
cial à consecução das finalidades de qualquer pelo atual regime constitucional com status de lei comple-
mentar.
destes entes, e, portanto, cada um deles necessita, 46
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional
dentro de suas peculiaridades, de uma disciplina Positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 504.
jurídica mais ou menos específica.
47
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário.
17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 47-48)
48
Paulo de Barros Carvalho os denomina veículos secun-
5. Veículos normativos do Direito Financeiro dários, que possuem como característica uniforme o fato
de não apresentarem “por si só, a força vinculante que é
capaz de alterar as estruturas do mundo jurídico-positivo”
Os veículos normativos, como ensina Paulo (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário.
de Barros Carvalho, são “normas jurídicas que 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 57).
49
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Finan-
introduzam no ordenamento outras normas, ceiro. São Paulo: RT, 2006, p. 88.
8860, percebe-se que a definição constitucional 52, fixa como competência do Senado Federal, a
de “normas gerais de finanças públicas” (seção ser exercitada por meio de resolução:
I do capítulo II do Título VI) engloba, ao lado
da disciplina jurídica da atividade financeira do a. Autorização aos entes federativos para
Estado, também questões de natureza monetária realização de operação financeira ex-
e ligadas ao mercado financeiro. terna.
b. Fixação do montante global da dívida
Metodologicamente, não obstante a discipli- consolidada 65 dos entes federativos,
na constitucional assim disponha, é preciso dis- a partir de proposta do Presidente da
tinguir o Direito Financeiro em sentido estrito, República.
que se refere à atividade financeira do Estado, c. Fixação dos limites globais e condições
de Direito do Mercado Financeiro ou Direito para realização de operações de crédito,
Monetário. Lembra Souto Maior Borges que “é externas ou internas, não só pelos entes
errôneo, entretanto, atribuir-se a denominação federativos, mas pela Administração
Direito Financeiro a matérias vinculadas com Pública em geral (autarquias e demais
as finanças privadas, especialmente os bancos, entidades controladas pelo Poder Pú-
sociedades anônimas, consórcios internacio- blico Federal).
nais etc.61”. Nosso objeto de estudo, portanto, d. Fixação de limites e condições para que
“relaciona-se exclusivamente com as finanças a União preste garantia, em operações de
públicas62”, ainda que, em sentido amplo, a crédito externas ou internas, realizadas
política monetária esteja vinculada às Finanças por terceiros.
Públicas, ao menos na esfera federal. e. Fixação de limites globais e condições
da dívida mobiliária 66 dos Estados,
5.3. Resoluções do Senado Federal
5.5 Leis ordinárias de cada ente federativo BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à Ciência
das Finanças. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense,
São as leis específicas sobre o tema, como é o 2003.
caso das próprias leis orçamentárias anuais, leis
de diretrizes orçamentárias e planos plurianuais, BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Finan-
editadas por cada um dos entes federativos no ceiro e Tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
exercício regular de suas atividades.
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma
6. Conclusão outra modernidade. São Paulo: 34, 2010
O Direito Financeiro, deste modo, ao fixar BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito
a disciplina jurídica da atividade financeira tributário. São Paulo: Saraiva, 1963.
do Estado, regula uma das áreas de atuação da
administração pública mais sensível à prática BOBBIO, Norberto. O filósofo e a política: antolo-
de desvios de comportamento e atos lesivos aos gia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003.
interesses e patrimônio público, e, por isso, deve
ter sua importância reconhecida e ser objeto de
estudos que esclareçam seu conteúdo e alcance. 67
CARVALHO, Deusvaldo. LRF: doutrina e jurisprudência.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 172.
68
MENDES, Gilmar Ferreira. In: MARTINS, Ives Gandra da
As normas de Direito Financeiro, ainda, Silva & NASCIMENTO, Carlos Valder do (org.). Comen-
além desta função essencial de controle da ges- tários à Lei de Responsabilidade Fiscal. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2009, p. 358.
tão pública, possuem, no aspecto orçamentário, 69
DEODATO, Alberto. Manual de Ciência das Finanças. 3.
enorme importância na estruturação e implan- ed. São Paulo: Saraiva, 1949, p. 214.
ACIDENTES DE TRABALHO,
DOUTRINA
AÇÕES REGRESSIVAS DO SEGURO
SOCIAL E O SERVIÇO PRESTADO
AOS ENTES PÚBLICOS: E O
MUNICÍPIO PAGA A CONTA?
1. A definição de um problema
Infelizmente a ocorrência de acidentes de trabalho não é tão
incomum, como desejado. Tais eventos, longe de serem uma ex-
clusividade da iniciativa privada, igualmente ocorrem quando se
está a prestar serviços a entidades públicas, como os Municípios.
Quando se está diante da ocorrência de acidentes de trabalho
com pessoas que compõem diretamente o quadro da administração
municipal há diversas discussões, as quais sucumbem, muitas
vezes, à confusão entre o credor e o devedor da indenização decor-
rente do evento lesivo. De fato, se foi o ente público o responsável,
ainda que indireto, pela ocorrência da lesão e o mesmo responsável
pelo adimplemento das parcelas indenizatórias, tal quadro gera
uma imprópria mas verdadeira acomodação de responsabilidades.
Todavia, a questão torna-se um tanto mais complexa quando
se está diante do aparentemente inafastável fenômeno da terceiri-
zação; quando, valendo-se da prestação de serviços de particulares,
o ente público beneficia-se do labor promovido por aqueles que
* Procurador do Município do Salvador
Advogado estão sujeitos a regimes jurídicos diferentes.
Sócio de Msampaio & Souza Advoga-
dos
Pós Graduado em Direito pela UNI- Então indaga-se, a ocorrência de acidentes de trabalho
FACS – Universidade Salvador quando se está a prestar serviços a entes públicos impõe, em des-
Mestre em Direito pela UFBA – Univer-
sidade Federal da Bahia
favor deste, alguma obrigação de ressarcir? É o que se pretende
Professor da UNIFACS identificar.
126 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA
e segurança do trabalho, que resulta em multas, quarta casa decimal, a ser aplicado à respec-
embargos ou interdições, as mais flagrantes atu- tiva alíquota.
ações das SRTs – Superintendências Regionais § 2º Para fins da redução ou majoração a que
do Trabalho. se refere o caput, proceder-se-á à discrimi-
nação do desempenho da empresa, dentro
Nesse sentido, o Tribunal Regional do Tra- da respectiva atividade econômica, a partir
balho da 12ª Região2: da criação de um índice composto pelos
índices de gravidade, de frequência e de
AGRAVO DE PETIÇÃO. EXECUÇÃO custo que pondera os respectivos percentis
FISCAL. MULTA IMPOSTA AO EM- com pesos de cinquenta por cento, de trinta
PREGADOR PELA DELEGACIA RE- cinco por cento e de quinze por cento, res-
GIONAL DO TRABALHO. pectivamente.
São devidas as multas impostas pela Delega- § 4º Os índices de freqüência, gravidade e
cia Regional do Trabalho quando compro- custo serão calculados segundo metodologia
vada a prática reiterada pelo empregador de aprovada pelo Conselho Nacional de Previ-
infrações às leis trabalhistas, relatadas mi- dência Social, levando-se em conta:
nuciosamente pelo Fiscal do Trabalho nos I - para o índice de freqüência, os registros
respectivos Autos de Infração. (AG-PET nº de acidentes e doenças do trabalho informa-
01114-2005-027-12-00-3 (089/2006), 2ª Tur- dos ao INSS por meio de Comunicação de
ma do TRT da 12ª Região/SC, Rel. Edson Acidente do Trabalho - CAT e de benefícios
Mendes de Oliveira. j. 05.07.2006). acidentários estabelecidos por nexos técni-
cos pela perícia médica do INSS, ainda que
No mesmo sentido, a ocorrência de aci- sem CAT a eles vinculados; (...)”
dentes do trabalho igualmente impõe respon-
sabilidades de ordem previdenciária, diria até Há ainda que se falar em repercussão penal
mesmo de ordem tributária. Com efeito, o gozo dos acidentes do trabalho. De fato, é comum a
de benefício previdenciário pelo trabalhador ocorrência de mortes ou lesões corporais em aci-
em razão do acidente pode ocasionar o aumento dentes de trabalho. A conduta dolosa ou culposa
do índice de sinistralidade, não apenas da em- do agente que der causa a esses resultados é que
presa, mas de toda a categoria, o que repercute determinará a tipificação penal da conduta.
diretamente no Fator Acidentário de Prevenção
– FAP, e no cálculo do valor do SAT – Seguro Também pode ocorrer o crime de exposição
de Acidente do Trabalho. O art. 202-A do dec. da vida ou a saúde de outrem a perigo direto
3048/99 assim dispõe: e iminente, previsto no artigo 132 do Código
Penal. O simples descumprimento das regras de
“Art. 202-A. As alíquotas constantes nos segurança e higiene no trabalho, independente
incisos I a III do art. 202 serão reduzidas da ocorrência de acidente, já caracteriza a con-
em até cinqüenta por cento ou aumentadas travenção penal, conforme previsto no artigo 19
em até cem por cento, em razão do desempe- § 2º da Lei nº. 8.213/1991.
nho da empresa em relação à sua respectiva
atividade, aferido pelo Fator Acidentário de Mas o evento acidentário pode ensejar
Prevenção - FAP. consequências muito mais gravosas àquele que
§ 1º O FAP consiste num multiplicador descumpriu o dever de implementar a segurança.
variável num intervalo contínuo de cinco
décimos (0,5000) a dois inteiros (2,0000),
2
Brasil. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. AG-
aplicado com quatro casas decimais, con- -PET nº 01114-2005-027-12-00-3 Rel. Edson Mendes de
siderado o critério de arredondamento na Oliveira. j. 05.07.2006.
Nesse mesmo sentido decidiram alguns Tribu- Mas então precisa-se identificar o que seria
nais de Justiça. Verbis: o acidente de trabalho. Para fins previdenciários,
o legislador, no corpo da Lei 8213/91, identificou
APELAÇÃO-CRIME. HOMICÍDIO CUL- quais seriam aquelas situações consideradas
POSO. ACIDENTE DE TRABALHO. como acidentes de trabalho. É o que está no art.
Vítima que operava máquina empilhadei- 19 e seguintes daquela lei:
ra sem habilitação para tanto. Desvio de
função. Perícia realizada pela subdelegacia Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocor-
do trabalho e emprego da cidade de rio re pelo exercício do trabalho a serviço da
grande, concluindo que o acidente ocorreu empresa ou pelo exercício do trabalho dos
porque a máquina não possuía o necessá- segurados referidos no inciso VII do art.
rio dispositivo de segurança. Negligência 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou
comprovada. Condenação que se impunha. perturbação funcional que cause a morte ou
Redução do apenamento. Diminuição do a perda ou redução, permanente ou tempo-
valor da prestação pecuniária de dois dos rária, da capacidade para o trabalho.
apelantes. Apelos parcialmente providos3. § 1º A empresa é responsável pela adoção
e uso das medidas coletivas e individuais
Homicídio culposo. Acidente de trabalho. de proteção e segurança da saúde do tra-
Não fornecimento de equipamentos neces- balhador.
sários à segurança e à proteção do trabalho. § 2º Constitui contravenção penal, punível
Negligência configurada. Configura culpa com multa, deixar a empresa de cumprir as
na modalidade negligência a omissão dos normas de segurança e higiene do trabalho.
réus quanto ao fornecimento de equipa- § 3º É dever da empresa prestar informações
mentos de segurança para o desempenho de pormenorizadas sobre os riscos da operação
trabalho perigoso, sendo previsível o sinis- a executar e do produto a manipular.
tro, já que se tratando de rede elétrica, le- § 4º O Ministério do Trabalho e da Previ-
sionando e levando à morte os funcionários dência Social fiscalizará e os sindicatos e
por violenta descarga elétrica. (TJRO - Ape- entidades representativas de classe acompa-
lação Criminal: APR 10000220010018184 nharão o fiel cumprimento do disposto nos
RO 100.002.2001.001818-4. Relator(a): parágrafos anteriores, conforme dispuser o
Juiz Oudivanil de Marins. Julgamen- Regulamento.
to: 06/07/2006)4. Art. 20. Consideram-se acidente do tra-
balho, nos termos do artigo anterior, as
Há ainda que se falar acerca da responsabi- seguintes entidades mórbidas:
lidade civil. Com efeito, a responsabilidade civil I - doença profissional, assim entendida
decorrente de acidente de trabalho consiste em a produzida ou desencadeada pelo exer-
indenização por danos material, moral e estético, cício do trabalho peculiar a determinada
e é devida independentemente daquelas outras atividade e constante da respectiva relação
já mencionadas. A responsabilidade civil implica elaborada pelo Ministério do Trabalho e da
a indenização não apenas do que o trabalhador Previdência Social;
perdeu, mas igualmente daquilo que deixou/
deixará de ter (danos materiais, como morais e
estéticos). 3
(TJRS; ACr 70026487322; Rio Grande; Primeira Câmara
Criminal; Rel. Des. Manuel José Martinez Lucas; Julg.
Mas mesmo essa gama de atribuições não foi 23/09/2009; DJERS 15/10/2009; pág. 117)
4
Brasil. TJRO - Apelação Criminal: APR 10000220010018184
suficiente. Era preciso aplacar o mal decorrente RO 100.002.2001.001818-4. Relator(a): Juiz Oudivanil de
da própria ocorrência do acidente. Marins. Julgamento: 06/07/2006.
130 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA
mente nos referimos. O conceito de acidente levantes para a nossa discussão, duas pretensões
de trabalho transborda aquele que, em razão da diferentes do trabalhador: a primeira em face do
conduta do empregador, acontece. INSS; a segunda em face do seu Empregador.
3. Das Ações Acidentárias Em relação ao INSS, como é do conheci-
mento de todos, o trabalhador pode, em função
Em sentido amplo, podemos mencionar do acidente, gozar de uma série de benefícios
que as ações acidentárias se dividem em basica- previdenciários, dentre os quais os auxílios,
mente dois grandes grupos, em razão da relação aposentadoria por invalidez, auxílio acidente,
trilateral entre os trabalhadores, empregadores auxílio doença, etc.
e o INSS.
Em relação ao empregador, para que se
Embora haja uma mistura de relações, o configure a sua responsabilidade civil, e o empre-
que dificulta a leitura, juridicamente é possível gador possa ser condenado a pagar indenização
identificar que entre o trabalhador, o INSS e o por danos materiais e morais, são necessários
empregador há algumas relações jurídicas bem os seguintes requisitos: a) a evidência do dano
definidas. ocorrido; b) a constatação do nexo causal com
o trabalho; e c) a comprovação do ato ilícito
praticado pelo empregador e a caracterização da
A primeira relação é aquela existente entre
culpa deste em qualquer grau.
o empregado e o empregador. O vínculo de em-
prego assegura um tanto de direitos e obrigações
Daí se pode dizer que em razão da ocor-
entre cada um daqueles sujeitos.
rência de determinado acidente, veremos duas
realidades paralelas, mas que sem dúvida, se
De tal relação, inclusive, se pode depre-
entrelaçam.
ender aquilo o que se denomina enquanto a
responsabilidade civil do empregador para com
A primeira realidade é a do litígio direta-
o empregado.
mente entre o empregado e o empregador. A
segunda, entre o empregado e o INSS, sendo que,
A segunda relação é aquela existente entre o embora muitos não se percebam, é preciso a in-
empregado e o INSS. Veja-se que há relação autô- tervenção do empregador nessa relação, também.
noma entre o empregado e o INSS, não obstante
quando se trate de trabalhador empregado, haja Isso porque, como em um ponto de comu-
uma compulsoriedade daquela relação. nicação entre essas duas relações existe um vasto
universo de regras que definem como a atividade
Há ainda outra relação entre o empregador produtiva deve se desenvolver. São as condições
e o INSS. Essa relação não é apenas de caráter para a própria produção.
fiscal, em função das contribuições previdenci-
árias, mas dado o pano de fundo no qual reside As mais claras são as Normas Regulamen-
um contrato de trabalho que o precede, no mais tadoras editadas pelo Ministério do Trabalho e
das vezes o empregador é terceiro interessado Emprego – as NRs. A obediência a essas nor-
naquela relação entre o empregado e o órgão mas, por outro lado, é absolutamente relevante.
previdenciário. Vejamos.
Tais premissas são relevantes porque, como A constatação de um pretenso nexo de
já referimos, em razão da ocorrência de um causalidade entre a atividade do trabalhador e
mesmo acidente de trabalho surgem, como re- o deferimento de um benefício previdenciário,
como veremos, causa embaraços significativos dual e coletiva, a Previdência Social proporá
para as empresas. ação regressiva contra os responsáveis.
Art. 121. O pagamento, pela Previdência
Nesse momento, basta dizer que é possível Social, das prestações por acidente do tra-
a realização de impugnação às perícias do INSS, balho não exclui a responsabilidade civil da
como demonstra a IN nº. 31/2008, para afastar o empresa ou de outrem.
nexo de causalidade entre a atividade do empre-
gador e aquilo que se entendeu como de relação Ou seja, quando restar evidenciada a
direta com o trabalho. negligência quanto às normas padrão de segu-
rança, quando em razão do infortúnio o INSS
deferir o benefício previdenciário em favor do
Veja-se que acidentes acontecem. E como
trabalhador, é possível o ajuizamento de ação
acontecem. Mas é preciso ficar alerta para se
regressiva em face do responsável pelo prejuízo
desfazer a visão de que todo evento que se re-
da coletividade.
conhece como acidente de trabalho pelo INSS
possui como responsável o empregador, fato que Em outras palavras, dada a existência
‘carimba’ uma responsabilidade tremenda por do acidente, além de ser instado a pagar uma
parte do empresário. indenização pela sua relação direta para com
o trabalhador, o empresário será igualmente
Isso porque, embora o INSS tenha reconhe- acionado pelo INSS a indenizar à coletividade
cido a existência de um acidente de trabalho, o pelo prejuízo causado, pelo acréscimo indevido
empregador não é obrigado a suportar tais con- ao risco da atividade. Note-se que essa postura
clusões sem qualquer oportunidade de defesa. se coaduna com aquela esperada no mercado.
Em verdade, a própria regulamentação da O próprio Código Civil reconhece que,
matéria assegura ao empregador meios para nos contratos de seguro ordinários, o agravo
impugnar esse nexo de causalidade. do risco impõe a perda do direito à indenização
pelo segurado:
É quando se consegue demonstrar tais
fatos, quando se pode distinguir entre aqueles Art. 768. O segurado perderá o direito à ga-
que cumprem e os que não cumprem as regras, rantia se agravar intencionalmente o risco
e que por isso devem ser devidamente respon- objeto do contrato.
Art. 769. O segurado é obrigado a comuni-
sabilizados, que se diferenciam os bons e maus
car ao segurador, logo que saiba, todo inciden-
empresários.
te suscetível de agravar consideravelmente o risco
coberto, sob pena de perder o direito à garantia,
Justamente fundado naquele nexo causal
se provar que silenciou de má-fé.
entre a ocorrência do acidente e a inobservân- § 1º O segurador, desde que o faça nos quinze
cia, pelo empregador, das regras atinentes ao dias seguintes ao recebimento do aviso da
desenvolvimento da sua atividade, é que reside agravação do risco sem culpa do segurado,
um dos mais relevantes problemas no âmbito poderá dar-lhe ciência, por escrito, de sua
acidentário. decisão de resolver o contrato.
A Lei nº 8213, nos seus artigos 120 e 121, Em se tratando de responsabilidade aci-
estipula duas regras importantes, no particular: dentária, não há previsão no que diz respeito ao
aumento do risco por conta do obreiro.
Art. 120. Nos casos de negligência quanto
às normas padrão de segurança e higiene do Mas em relação ao empregador, caso cons-
trabalho indicados para a proteção indivi- tatados indícios de que houve culpa ou dolo por
Quando houver vários réus sem que ne- Sistema Especial de Liquidação e de Cus-
nhum deles tenha domicílio no local do ilícito, tódia - SELIC, pela variação a partir do mês
ainda segundo aquela regulamentação, a ação do pagamento;
será ajuizada, preferencialmente, perante o foro II - prestações vincendas a serem pa-
daquele que tiver o domicílio mais próximo. gas mensalmente ou de forma integral.
Havendo mais de um responsável pelo ato ilícito, III - verbas sucumbenciais.
o pólo passivo da ação regressiva será composto Parágrafo único. No caso de pagamento de
em litisconsórcio, formulando-se pretensão prestações vincendas, deverá ser requerida
expressa no sentido da condenação solidária, ou a garantia de caução real ou fidejussória.
seja, independentemente de ordem dos autores
do dano. No mesmo sentido, nota-se que a defi- Ou seja, a forma de atualização dos créditos
nição dos responsáveis deverá levar em conta as da Fazenda, no particular, equipara os valores de-
condutas imputadas a empregadores, tomadores vidos nas ações regressivas a créditos tributários,
de serviço, contratantes e cedentes de mão de dado que estes sofrem diretamente a incidência
obra e órgãos públicos para os quais, direta ou daquele índice. As verbas sucumbenciais são
indiretamente, o segurado trabalhava. aquelas atinentes aos custos do processo, inclu-
sive os com advogados, que podem ser arbitra-
Aqui se revela uma importante questão, dos em 20% (vinte por cento) sobre o valor da
qual seja, a possibilidade do ajuizamento da ação condenação.
regressiva não apenas em face do empregador,
mas igualmente do tomador do serviço, inclusive Mas há interessante questão envolvendo
o ente público. essa atuação. É que, em regra, se identifica
como sendo exclusiva a atuação da Procura-
Em juízo, a autarquia previdenciária, em doria Federal para o auferimento dos aludidos
regra, detalhará minuciosamente o ato ilícito, a créditos. Todavia, há quem defenda, como é
culpabilidade, o nexo causal, e o dano, este carac- o caso de Marcelo Calheiros Cerqueira5 uma
terizado pelas despesas previdenciárias ocorridas necessária ampliação da compreensão das ações
e por ocorrer. Há orientação no sentido de que regressivas, dado que essencialmente cuidam
deverão ser enfatizadas as conclusões técnicas do ressarcimento da própria coletividade, o que
acerca do ato ilícito. autorizaria o manejo daquelas demandas sob um
viés essencialmente coletivo.
Não havendo a exata dimensão das despesas
a serem realizadas com eventual processo de Ao assim se entender, abre-se um novo le-
reabilitação profissional, far-se-á uso da possi- que de possibilidades a serem enfrentadas. Por
bilidade de elaboração de pedido genérico nos exemplo, pode-se, a partir desse novo conceito,
termos do inciso II do art. 286 do CPC, o que permitir que Sindicatos ou mesmo o MPT passe
permite o Juízo não apenas a fixação da extensão a ingressar, igualmente, com ações regressivas,
lesão no curso do processo, mas também a de se visando o ressarcimento do fundo coletivo de
liquidar os danos, depois de julgado o feito, por proteção social.
meio dos denominados artigos de liquidação.
De outro lado, a partir dessa mesma pers-
De todo modo, há orientação no sentido pectiva, seria possível a aplicação de expedientes
de que o pedido de reparação deve ser integral, como os Termos de Ajuste de Conduta – espécies
compreendendo:
I - prestações vencidas, atualizadas me- 5
A aplicabilidade do microssistema processual coletivo
às ações regressivas acidentárias. In Biblioteca Digital
diante a utilização dos valores brutos das Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo
mensalidades, empregando-se a taxa do Horizonte, ano 17, n. 69, jan. 2010.
de acordos extrajudiciais – desta feita com a tária, na hipótese de acidente inclusive em face
União, acerca de obrigações, compromissos e do tomador dos serviços, mesmo que este seja a
composições envolvendo o ressarcimento dos Administração Pública. Dúvida reside, todavia,
valores decorrentes da prestação acidentária. quanto à extensão dessa mesma responsabili-
dade.
Tais ajustes envolveriam não apenas obriga-
ções de pagar, mas também obrigações de fazer Como já foi referido acima, não se pode
ou não fazer, desde que adequadas à prestação negar que há precedentes indicando como sen-
que se necessita. do solidária a responsabilidade do tomador do
serviço, como se depreende:
Note-se que sobre os acordos, quanto às
obrigações de pagar dinheiro, aquela mesma re- ADMINISTRATIVO. ACIDENTE DE
gulamentação atualmente já as autoriza, devendo TRABALHO. PRELIMINAR DE ILE-
ser observadas as seguintes diretrizes: GITIMIDADE PASSIVA DA EMPRESA
CONTRATANTE. REJEITADA. INOB-
I - aplica-se o art. 37-B da Lei nº 10.522, SERVÂNCIA DAS REGRAS DE PRO-
de 19 de julho de 2002 ao parcelamento TEÇÃO E SEGURANÇA DA SAÚDE
do crédito pretendido por meio das ações DO TRABALHADOR. PENSÃO POR
regressivas; MORTE. AÇÃO REGRESSIVA DO INSS.
II - aplicam-se os limites de alçada cons- PROCEDÊNCIA. 1. Sendo responsabilidade
tantes da Portaria PGF que regulamenta a da empresa contratante a fiscalização das ati-
realização de acordos em processo judiciais; vidades executadas em canteiro de obra de sua
III - os honorários advocatícios poderão ser propriedade, não há porque cogitar em falta de
objeto de parcelamento; legitimidade para a causa, visto que a lide tem
IV - havendo opção pelo recolhimento men- por objeto o ressarcimento dos benefícios previ-
sal das parcelas vincendas, deverá ser exigi- denciários desembolsados pelo INSS por morte
da adequada garantia, real ou fidejussória; de empregado no referido canteiro. 2. A empresa
V - parcelas vencidas e vincendas deverão contratada deixou de promover treinamento
ser atualizadas pela SELIC, devendo ser adequado para realização do serviço de ri-
avaliado o interesse em eventual recurso pagem que, segundo concluiu o Laudo de
quando decisão judicial vier a fixar critério Investigação da DRT, foi um dos fatores de
diverso; risco para o acidente. 3. À empresa contra-
tante, por sua vez, enquanto tomadora de
Aquelas previsões autorizam concluir que serviços e executora da obra, cabe fiscalizar
é possível o parcelamento administrativo seguin- as atividades executadas no seu canteiro de
do a mesma lógica do parcelamento ordinário obra, evitando inclusive que um profissional
de débitos tributários, cujo limite é de até 60 habilitado exclusivamente para o trabalho
meses. Do mesmo modo, indica-se que o limite de carpintaria execute a atividade de ripa-
da prestação a parcelar seria de R$ 100,00 para gem sem qualquer treinamento específico
pessoa física e R$ 500,00 para pessoa jurídica. anterior, como no caso em questão. 4. Qual-
quer das envolvidas poderia por conduta própria
5. Da responsabilidade da administração ter afastado o risco do acidente, se cumpridas às
pública, tomador do serviço, nos casos de obrigações que a lei lhes atribuía, o que impõe
ação regressiva. a condenação solidária entre as empresas. 5.
Apelação improvida. (TRF-5 - AC: 480030
Como já mencionamos, há o entendimento RN 0007606-16.2006.4.05.8400, Relator:
de que se deve ajuizar a ação regressiva aciden- Desembargador Federal Francisco Wildo,
Art. 67. A execução do contrato deverá A bem da verdade, como diz Marçal Justen
ser acompanhada e fiscalizada por um Filho6, tal redação implica algumas conside-
representante da Administração especial- rações, para que seja juridicamente adequado
mente designado, permitida a contratação o tratamento firmado pelo dispositivo, o que
de terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo de pedimos licença para transcrever:
informações pertinentes a essa atribuição.
§ 1º O representante da Administração ano- “De regra, a responsabilidade civil do parti-
tará em registro próprio todas as ocorrências cular perante a Administração sujeita-se aos
relacionadas com a execução do contrato, princípios de direito privado. Em qualquer
determinando o que for necessário à regu- caso, não basta o dano para surgir o dever
larização das faltas ou defeitos observados. de indenizar. A conduta do sujeito deve
§ 2º As decisões e providências que ultra- caracterizar-se como culposa, segundo os
passarem a competência do representante princípios de Direito Civil, inclusive no
deverão ser solicitadas a seus superiores tocante a eventuais presunções de culpa. (...)
em tempo hábil para a adoção das medidas O exercício pela Administração da fiscaliza-
convenientes. ção ou acompanhamento não elimina nem
reduz a responsabilidade civil do particular.
Assim sendo, dada a ausência do dever de Cabe a este desenvolver suas atividades com
fiscalizar, não há que se falar em ato culposo ou zelo e perícia, evitando provocar danos de
negligência, por parte da Administração, capaz qualquer natureza a terceiro. O particu-
de autorizar a ação de regresso. lar responde em nome próprio pela sua
conduta.
Todavia, ainda que assim não se entenda, A atividade de fiscalização desenvolvida
deve restar claro que, de regra, a terceirização se pela administração pública não transfere a
dá por meio dos expedientes autorizados na Lei ela a responsabilidade pelos danos provoca-
8.666/93, sendo certo que há tratamento especí- dos pela conduta do particular. Não há, em
fico naquele diploma legal acerca da responsa- princípio, relação de causalidade entre a
bilidade das partes do contrato administrativo. fiscalização estatal e o dano sofrido por
terceiro.
Sucede que o art. 70 da Lei 8666/93 prevê No entanto, o defeito na fiscalização pode
como sendo do contratado a responsabilidade tornar a administração solidariamente
pelos danos causados, decorrentes da execução responsável perante terceiros. Quando o
do contrato: contrato disciplinar a fiscalização em ter-
mos que a atividade do particular dependa
Art. 70. O contratado é responsável pelos da prévia autorização da autoridade ad-
danos causados diretamente à Administração ministrativa, poderá localizar-se relação
ou a terceiros, decorrentes de sua culpa ou dolo de causalidade entre a concretização do
na execução do contrato, não excluindo ou dano e a ação estatal (...)”. (grifos nossos)
reduzindo essa responsabilidade a fiscalização
ou o acompanhamento pelo órgão interessado. Ou seja, seguindo a previsão do art. 70 da
Lei 8666/93, não há que se falar em imposição de
Tal dispositivo, inclusive, deixa claro que responsabilidade para a Administração quanto
não se pode excluir ou reduzir a aludida respon- ao adimplemento das verbas devidas a título de
sabilidade pela fiscalização ou acompanhamento
por parte da Administração, fato que evidencia
a não exoneração da responsabilidade do parti-
6
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações
e Contratos Administrativos. 12. ed. Curitiba: Dialética,
cular, no caso. 2008. p. 750.
138 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA
APLICABILIDADE DE
DECRETOS MUNICIPAIS A DOUTRINA
ENTES DA ADMINISTRAÇÃO
DESCENTRALIZADA SUJEITOS A
REGIME JURÍDICO DE DIREITO
PRIVADO
PARECER EM PROCESSO
ADMINISTRATIVO
conforme disposto no art. 37 da Constitui- requeridos pela interdependência social, que não
ção Brasileira, segundo o qual: ‘A adminis- podem ser assumidos senão pela intervenção da
tração pública direta, e indireta de qualquer força dominante, dizendo que:
dos poderes da União, dos Estados, do Dis-
trito Federal e dos Municípios obedecerá “Quando esses serviços existirem efetiva-
aos princípios da legalidade, impessoalida- mente e forem prestados por organismo
de, moralidade, publicidade e eficiência e, estatal, então estamos diante de serviço
também, ao seguinte....”.3 público.”5
A Doutrina costuma reconhecer a existên- Na verdade, o conceito de serviço público
cia, no Brasil, de empresas públicas e sociedades não é uniforme na doutrina, que apresenta no-
de economia mista que prestam serviço público ções orgânicas, formais e materiais, detendo-se
(embora ditas comerciais ou industriais) e outras no terreno movediço da imprecisão conceitual
que explorem atividades econômicas. ante o maior ou menor grau de intervenção do
Estado e a constante remodelação dos seus fins.
Ocorre que a noção de serviço público
sofreu seguidas alterações ao longo do tempo, No entanto, tem-se por necessário proceder-
tendo sua abrangência dilatada ao mesmo tempo -se a uma diferenciação ao mínimo satisfatória
em que perdia a nitidez dos seus bordos. entre serviço público e atividade econômica.
Adilson Dallari alerta que “atualmente o Eros Grau esclarece que atividade econô-
Poder Público assume formas privadas para mica, é expressão que deve ser tomada em dois
desenvolver atividades tipicamente econômicas, sentidos, enquanto gênero compreendendo duas
de natureza comercial e industrial, enquanto modalidades (serviço público e atividade econô-
que, por sua vez, as empresas privadas desen- mica em sentido estrito); e enquanto espécie que,
volvem ou operam serviços públicos, mediante ao lado de serviço público, se integra no gênero
concessão, permissão ou autorização do Poder atividade econômica.6
Público, ou seja, atuam em lugar da Administra-
ção Pública, desenvolvendo atividades sempre Toshio Mukai assim define: “serviço públi-
ávidas como prestação de serviço público”4, co industrial ou comercial é aquele que o Estado,
apresentando uma noção operativa do que seja ao elegê-lo como tal, exerce-o diretamente ou
serviço público. por interpostas pessoas, e que, por atender a
necessidade essencial ou quase essencial da cole-
Afirma a citado professor da PUC-SP que o tividade, apresenta um interesse público objetivo
entendimento de caracterizar o serviço público em sua gestão. E, atividade econômica do Estado
com o seu caráter de resposta a necessidade es- é aquela que ele resolve assumir, dentro de sua
sencial da população não é suficiente para que se política econômica, observados os princípios
tenha uma idéia real do seu conceito. Segundo constitucionais da Ordem Econômica, por julgar
Dallari, o que caracteriza realmente um serviço que tal atividade consulta ao interesse público da
como público, além de sua essencialidade é o mesma Ordem (interesse público subjetivo).”7
regime jurídico.
O Prof. Cirne Lima entende o serviço públi- 3
Ob. cit., mesma página
co como tratando de uma atividade reconhecida 4
In RDP 94/95
5
In RDP 83/158
como essencial para a coletividade, num dado 6
Elementos de Direito Econômico - SP - RT - pág. 87 e ss.
momento, enquanto Celso Antônio Bandeira 7
Direito Administrativo e Empresa do Estado - Forense,
de Mello o caracteriza como aqueles serviços 1984, pág. 183
Regis Fernandes de Oliveira consagrou tal ção de vantagem frente às empresas particulares,
entendimento em Acórdão da 7ª Câm. do 1º TA sujeitando-se inclusive às obrigações Trabalhis-
Civ. SP: tas e Tributárias.
“no que nos interessa, há fundamentalmen- Perceba-se que as empresas estatais que
te, dois campos de interesse específico de prestam serviço público não sofrem nenhuma
intervenção estatal. Pode prestar serviços restrição ou referência no citado art. 173.
públicos, seja diretamente, seja através de
entidades criadas pelo Estado ou por ele Assim, no dizer de Maria Sylvia Zanella
permitidas ou concedidas, e também pode de Pietro, mesmo quando o Estado fizer gestão
interferir no domínio econômico. privada de serviço público, ainda que de natureza
(...) comercial ou industrial, aplicam-se, no silêncio
Quando, pois, o Estado intervém no do- da lei, os princípios do direito público, inerentes
mínio econômico, seja por qualquer força ao regime jurídico administrativo.9
constitucionalmente permitida, o regime
jurídico a que se submete é previsto no § 2º Portanto, seguindo ainda o raciocínio da
do art. 170 da CF, isto é, sujeita-se ao direito citada autora com relação às empresas governa-
do Trabalho e ao das obrigações. Portanto, mentais que prestam serviço público, “justifica-
há nivelamento completo do Estado com -se o regime jurídico de direito privado apenas
os particulares. Despe-se o Estado de suas quanto à forma de sua organização e funciona-
prerrogativas próprias, para sujeitar-se ao mento, mais compatíveis com a natureza comer-
direito privado. cial ou industrial da atividade assumida pelo
(...) Estado” (ob. cit. pág. 119), devendo ser o regime
Nada obstante, erigem-se outras pessoas jurídico a outros aspectos o predominantemente
jurídicas, que são criadas pelo estado, sob administrativo, colocando a Administração Pú-
roupagem de direito privado, mas desti- blica em posição de supremacia em relação ao
nam-se à prestação de serviços públicos. particular e seguindo-se os princípios da legali-
Aí ressalta diferença de regime jurídico. dade e da indisponibilidade do interesse público.
Embora vistam roupa de direito privado,
ou seja, haja identidade de regime com as Nessa linha, é possível fazer uma distinção
demais empresas privadas, nada impede que entre pelo menos dois dos três tipos de empre-
o Estado transfira a tais entidades algumas sas estatais consagradas constitucionalmente
prerrogativas próprias, de vez que irão pres- (prestadoras de serviço público, exercentes de
tar serviços públicos.”8 atividades econômicas e as que operam em re-
gime de monopólio).
Segue a Constituição de 1988 o mesmo
sentir, motivo pelo qual quando se refere à em- Assim, apesar de todas essas entidades apre-
presa estatal exercente de atividade econômica sentarem o traço comum de serem agentes da
em sentido estrito, expressamente assim o fez. ação estatal visando o alcance de fins públicos, o
regime aplicado e que condiciona sua existência
Exemplo claro é o artigo 173 da CF, quando e atuação, traz consequências amplas.
deixa bem claro que as disposições ali elaboradas
referem-se apenas e tão somente àquela área de
atribuições própria e típica das particulares,
qual seja, a exploração de atividade econômica
8
Boletim de Jurisprudência 1616 da Ass. dos Adv. de São
Paulo
não podendo o Poder Público gozar de nenhum 9
Do Direito Privado na Administração Pública - São Paulo,
privilégio ou vantagem que o coloque em situa- 1989, pág. 111