Você está na página 1de 158

setembro  2013

JAM JURÍDICA é uma revista mensal produzida por


JAM JURÍDICA EDITORAÇÃO E EVENTOS LTDA.

Endereço Comercial:
Av. Praia de Itapuã, Quadra 17, Lotes 49/52,
Shopping Boulevard, Salas D 2.4 e D 2.5
Lauro de Freitas - Bahia
CEP 42700-000
Fones: (71) 3342-4531 / 3342-3756 / 3342-3880
www.jam-juridica.com.br
contato@jam-juridica.com.br

Editor:
JAM Jurídica Editoração e Eventos

Conselho Redacional:
Adilson Abreu Dallari
Afonso H. Barbuda
Alice Maria González Borges
André dos Santos Pereira Araújo
Carlos Alberto Sobral de Souza
Luciano Ferraz
Rafael Carrera

Diretor Comercial
André dos Santos Pereira Araújo
atendimento@jam-juridica.com.br

Revisão:
Rosangela Lyra

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Elizabet Häussler CRB-5/1237

JAM JURÍDICA: Administração Pública, Executivo e Legislativo.


Salvador: Jam-Jurídica Editoração e Eventos Ltda. Ano XVI,
edição especial, setembro, 2013.

Periodicidade Mensal

ISSN 1806-1346

1. Administração Pública - Periódico. 2. Administração


Municipal - Periódico. I. Título.

CDU 35(05)

As idéias esposadas nos opinativos e demais matérias doutrinárias


subscritas pelos colaboradores desta revista são de sua exclusiva
responsabilidade.
COLABORADORES

Adilson Abreu Dallari Edgar Guimarães Hugo de Brito Machado


Advogado Advogado Professor Titular de Direito Tributário da UFC
Professor Titular de Direito Administrativo Mestre e Doutorando em Direito Administra- Presidente do Instituto Cearense de Estudos
da Pontifícia Universidade Católica de São tivo pela PUC/SP Tributários
Paulo/SP Professor de Direito Administrativo e de Lici- Juiz aposentado do TRF – 5ª Região
tações em cursos de Pós-graduação
Afonso H. Barbuda Consultor Jurídico do TCE/PR Ivan Barbosa Rigolin
Chefe da Assessoria Jurídica do Tribunal de Advogado, parecerista e consultor jurídico de
Contas dos Municípios/BA Edite Mesquita Hupsel entes públicos
Advogada Autor de obras jurídicas especializadas na
Alice González Borges Procuradora do Estado da Bahia área do Direito Público
Professora Titular de Direito Administrativo
da UCSAL Evandro Martins Guerra Jair Eduardo Santana
Membro do Conselho Superior do Instituto Advogado Mestre em Direito do Estado pela PUC de São
Brasileiro de Direito Administrativo Professor de Direito Administrativo e Direito Paulo
Financeiro da Faculdade Milton Campos e Consultor de entidades públicas e privadas
André dos Santos Pereira Araújo Universidade FUMEC Advogado especializado em Governança
Administrador Coordenador da pós-graduação em Direito
Pública
Especialista em Gestão Pública Municipal Administrativo do CEAJUFE 
Professor em cursos de pós-gradução
Bacharel em Direito
Pós-graduando em Direito Público – UNI- Fábio Nadal Pedro
João de Deus Pereira Filho
FACS Consultor Jurídico da Câmara Municipal de
Advogado
Jundiaí/SP
Angélica Maria Santos Guimarães Economista
Advogada Fabrício Motta 
Mestra em Direito Público – UFPE Procurador-Geral do Ministério Público junto João Jampaulo Júnior
Procuradora Geral do Município do Salvador ao TCM/GO Advogado
Professora Universitária Mestre em Direito Administrativo pela UFMG Mestre e Doutor em Direito Constitucional
pela PUC/SP
Benjamin Zymler Flavio C. de Toledo Jr. Professor de Direito
Presidente do TCU Economista Consultor em Direito do Estado
Mestre em Direito e Estado – UNB Técnico do Tribunal de Contas do Estado de
Formado em Engenharia Elétrica pelo Institu- São Paulo Jorge Jesus de Azevedo
to Militar de Engenharia – IME Formado em Bacharel em Direito
Direito pela Universidade de Brasília Francisco de Salles Almeida Mafra Filho Pós-graduando em Direito Público – UNI-
Doutor em Direito Administrativo pela UFMG FACS
Carlos Alberto Sobral de Souza Professor Adjunto I de Direito Administrativo
Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado na UFMT José Anacleto Abduch Santos
de Sergipe Advogado
Francisco Ferreira Jorge Neto Procurador do Estado do Paraná
Carlos Ayres Britto Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de São Mestre em Direito Administrativo – UFPR
Presidente do Supremo Tribunal Federal Caetano do Sul Professor de Direito Administrativo
Professor Universitário
Carlos Pinto Coelho Motta (in memoriam) Mestre em Direito das Relações Sociais – Di- José Aras
reito do Trabalho pela PUC/SP Professor de Direito Administrativo da Escola
Carmem Lúcia Antunes Rocha Livre de Direito Josaphat Marinho
Professora Titular de Direito Constitucional Francisco Fontes Hupsel Professor de Direito Administrativo da Facul-
da Faculdade Mineira de Direito da PUC/MG Advogado dade de Direito da UCSAL
Professor substituto de Direito Administrativo
Celso Antônio Bandeira de Mello Gina Copola da UFBA
Advogado Advogada Advogado e Consultor Jurídico de Prefeituras
Professor Titular de Direito Administrativo da Municipais
PUC/SP Gustavo de Castro Faria
Mestre em Direito Processual pela Pontifícia José Francisco de Carvalho Neto
Cláudio Brandão de Oliveira Universidade Católica de Minas Gerais Professor de Direito Administrativo da UCSAL
Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Especialista em Direito Processual Civil pela
Superintendente Geral do TCM – BA
de Janeiro Universidade Gama Filho/RJ
Mestre em Direito na área de Justiça e Ci- Professor dos cursos de pós-graduação em
José Nilo de Castro (in memoriam)
dadania Direito Processual e Poder Judiciário do Ins-
Professor de Direito Administrativo e Cons- tituto de Educação Continuada da PUC Minas
Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcante
titucional Professor e membro do Conselho Acadê-
mico da Faculdade de Direito Padre Arnaldo Advogado
Daniela Libório Janssen Professor da Faculdade de Direito Mackenzie
Mestra e Doutora em Direito Urbanístico Am- Professor do curso de Direito da Faculdade Mestre em Direito Político e Econômico pela
biental de Minas – FAMINAS BH Universidade Mackenzie
Professora da PUC/SP Advogado Mestre em Integração da América Latina pela
Advogada Universidade de São Paulo (USP/PROLAM).
Gustavo Justino de Oliveira
Darcy Queiroz Advogado Juarez Freitas
Assessora Jurídica do Tribunal de Contas dos Doutor em Direito do Estado pela USP Professor de Direito Administrativo – UFRGS
Municípios/BA Professor Universitário e Escola Superior da Magistratura – AJURIS

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | I


COLABORADORES

Karine Lílian de Sousa Costa Machado Moacir Joaquim de Santana Junior Rodrigo Pironti Aguirre de Castro
Auditora Federal de Controle do TCU Bel. em Direito – UFS Mestre em Direito Econômico e Social PUC/
Graduada em Direito Pós-Graduado em Gestão Pública – UNIT PR
MBA em Gestão da Administração Pública Secretário de Controle Interno da Prefeitura Especialista em Direito Administrativo e em
de Aracaju Direito Empresarial
Kiyoshi Harada Diretor Presidente da Empresa de Serviços Professor Universitário
Especialista em Direito Tributário e em Direito Urbanos de Aracaju – EMSURB
Financeiro pela FADUSP Rubens Nunes Sampaio
Mestre em Processo Civil – UNIP Morgana Bellazzi de Oliveira Carvalho Procurador aposentado do Estado da Bahia
Professor de Direito Tributário, Administrativo Especialista em Direito Público e Responsa- Membro do Conselho Estadual do Meio Am-
e Financeiro. biente – SEPRAM – BA
bilidade Fiscal pelo CEPPEV
Ex-Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica Especialista em Processo Civil pelo CCJb
do Município de São Paulo Sarah Maria Pondé
Agente de Controle Externo do TCE/BA
Chefe da UNAI do Tribunal de Contas dos
Advogada
Licurgo Mourão Municípios/BA
Mestre em Direito Econômico
Patrícia Verônica N. C. Sobral de Souza Sérgio de Andréa Ferreira
Pós-graduado em Direito Administrativo,
Contadora e Advogada Advogado
Contabilidade Pública e Controladoria Gover-
Professora de Pós-graduação – UNIT Professor Titular de Direito Administrativo/RJ
namental
Pós-graduada em Auditoria Contábil – UFS Desembargador Federal aposentado
Bacharel em Direito e em Administração
Auditor e Conselheiro substituto do TCE/MG Pós-graduada em Direito Civil e Processo
Professor Universitário Civil Sérgio Ferraz
Assessora de Gabinete do Tribunal de Contas Advogado
Luciano Ferraz do Estado de Sergipe Ex-professor Titular de Direito Administrativo
Advogado da PUC/RJ
Doutor e Mestre em Direito Administrativo Paulo Borba Costa
pela UFMG Advogado Simone da Costa Neves Araújo
Professor de Direito Administrativo da UFMG Procurador do Estado da Bahia Bacharel em Direito
Professor de Direito Financeiro e Finanças Professor da Faculdade de Direito da UCSAL Pós-graduanda em Direito Público – UNI-
Públicas da PUC/Minas FACS
Paulo Modesto
Luiz Alberto Blanchet Professor de Direito Administrativo da Uni- Tatiana Maria Nascimento Matos
Mestre e Doutor em Direito versidade Federal da Bahia – UFBA Advogada
Professor nos cursos de Mestrado e Doutora- Membro do Ministério Público da Bahia
do em Direito Constitucional e Administrativo Toshio Mukai
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Ad-
da Pontifícia Universidade Católica do Paraná Mestre e Doutor (USP)
ministrativo – IBDA
Membro Catedrático da Academia Brasileira e do Instituto dos Advogados da Bahia – IAB
Valéria Cordeiro
de Direito Constitucional
Pós-Graduada em Direito da Administração
Membro do Instituto dos Advogados do Pa- Pedro Henrique Lino de Souza Pública – UFF
raná Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado Atuação na Assessoria Técnica de Licitações
da Bahia no TRE/RJ, Presidente da CPL e Pregoeira
Marcos Juruena Villela Souto (in memoriam)
Consultora e Professora
Petrônio Braz
Marcus Vinícius Americano da Costa Advogado Walter Moacyr Costa Moura
Professor de Direito Constitucional e Direito Assessor Jurídico Assessor Jurídico do Tribunal de Contas dos
do Trabalho da Faculdade de Direito da UC-
Municípios/BA
SAL
Rafael Carrera Freitas
Professor de Direito Constitucional, Munici-
Mestre em Direito Público pela UFBA Weida Zancaner
pal e do Trabalho da Faculdade Ruy Barbosa
Professor Universitário Mestra em Direito Administrativo pela Pontifí-
– BA
Procurador do Município de Salvador cia Universidade Católica de São Paulo
Mestre em Direito – UFBA Professora de Direito Administrativo da Ponti-
Ricardo Maurício Freire Soares fícia Universidade Católica de São Paulo
Maria da Conceição Castellucci Ferreira
Assessora Jurídica do Tribunal de Contas dos Advogado
Professor de Graduação e Pós-Graduação da Yuri Carneiro Coelho
Municípios/BA Advogado
UNIME – Bahia
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Professor Universitário
Maria da Graça Diniz da Costa Belov Diretor Nacional Secretário da ABPCP – As-
Professora Assistente da Cadeira de Direito Federal da Bahia
sociação Brasileira de Professores de Ciên-
Constitucional da Criança e do Adolescente Membro do Instituto dos Advogados Brasi-
cias Penais
– UCSAL leiros e do Instituto dos Advogados da Bahia
Mestre em Direito Público/UFBA
 
Maria do Carmo de Macêdo Cadidé Rita Tourinho
Auditora Jurídica do Tribunal de Contas do Promotora de Justiça do Estado da Bahia
Estado da Bahia Mestra em Direito Público – UFPE
Professora de Direito Administrativo
Maria Elisa Braz Barbosa
Advogada Roberto Maia de Ataíde
Mestra em Direito Administrativo – UFMG Advogado

II | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


SUMÁRIO

SUMÁRIO

DOUTRINA

Servidor Público: mudança de regime jurídico e contrato de trabalho


Camila Lemos Azi Pessoa............................................................................................................................................ 3

Comentários ao código de ética da alta administração pública do município do Salvador


Eduardo Amin Menezes Hassan.................................................................................................................................. 15

As políticas públicas e as Instituições Jurídicas. A extrajudicialidade como alternativa para a efetividade dos
Direitos Sociais
Geórgia Teixeira Jezler Campello................................................................................................................................ 26

Cidades Sustentáveis: o futuro já chegou


Gisane Tourinho Dantas e Luís Gustavo Vilas Boas de Sena................................................................................... 33

Sustentabilidade: um conceito em expansão


Isabel Góes Câmara....................................................................................................................................................... 47

A noção de tributo como dever fundamental  nos sistemas jurídicos de civil law e de common law
José Antônio Garrido.................................................................................................................................................... 57

O Direito fundamental à moradia a partir da Emenda Constitucional N.º 26/2000 e o dever constitucional de
atuação do Poder Público Municipal para sua concretização.
Luciana de Melo Borba Carneiro................................................................................................................................ 78

Considerações acerca da constitucionalidade do artigo 6° da Lei N° 12.462/2011 – Regime Diferenciado de


Contratações Públicas (RDC)
Luciana Rodrigues Vieira Lopes................................................................................................................................. 94

Noções básicas sobre Direito Financeiro


Pedro Leonardo Summers Caymmi............................................................................................................................ 111

Acidentes de trabalho, ações regressivas do Seguro Social e o serviço prestado aos entes públicos: e o município
paga a conta?
Tercio Roberto Peixoto Souza ..................................................................................................................................... 126

PARECER

Parecer em Processo Administrativo


Aplicabilidade de Decretos Municipais a entes da administração descentralizada sujeitos a regime jurídico de
Direito Privado
João Deodato Muniz de Oliveira................................................................................................................................. 143

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | III


Caro Leitor

A edição especial da Revista JAM Jurídica, lançada pela Associação


EDITORIAL
dos Procuradores do Município de Salvador – APMS em parceria
com a JAM, visa divulgar artigos, pareceres e peças elaboradas
pelos Procuradores do Município de Salvador, disseminando as
suas teses e trabalhos no meio jurídico.

Os temas apresentados são fruto do estudo aprofundado do


Direito Municipal demandado pelos casos apresentados e
consultas formuladas à Procuradoria-Geral do Município, que
exigem o enfrentamento das mais diversas questões relacionadas
a nossa cidade.

Assim, é com grande satisfação que apresentamos o volume da


Revista JAM Jurídica Edição Especial 2013.

Associação dos Procuradores do Município de Salvador

Presidente: Francisco Bertino B. de Carvalho


Vice-Presidente: Wilson Chaves de França
1º Secretário: Tércio Roberto Peixoto Souza
2º Secretário: Emanuel Faro Barretto
Tesoureiro: Sheili Franco de Paula
Diretora Cultural: Tamara Freire Mello
Diretor Social: Rafael Santos de Oliveira

Conselho Fiscal - Efetivos:


Thiago Martins Dantas
Lisiane Maria Guimarães Soares
Andrea Claudia Ribeiro Oliveira

Conselho Fiscal - Suplentes:


Geórgia Teixeira Jezler Campello
Eduardo Amin Menezes Hassan

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | V


EDITORIAL

VI | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA
DOUTRINA

SERVIDOR PÚBLICO:
MUDANÇA DE REGIME JURÍDICO DOUTRINA
E CONTRATO DE TRABALHO

Camila Lemos Azi Pessoa*

 
SUMÁRIO:
 
INTRODUÇÃO
REGIME JURÍDICO ÚNICO
DA CONVERSÃO DE REGIME: CONSTITUCIONALIDADE
E EFEITOS SOBRE O CONTRATO DE TRABALHO
COMPETÊNCIA PARA APRECIAÇÃO DOS PLEITOS DE
DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA NOR-
MA DE CONVERSÃO
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
 
1. INTRODUÇÃO
 
 
A Constituição Federal de 1988 alterou significativamente
a disciplina relativa aos servidores públicos no país. Além de
vincular a contratação de servidores à sua prévia aprovação em
concurso público, instituiu, em seu art. 39, o regime jurídico
único, proibindo, em respeito ao princípio da isonomia, a coe-
xistência em um mesmo Ente Público de servidores regidos pela
Consolidação das Leis do Trabalho e pelos estatutos funcionais.  
 
Pela disciplina da Constituição até então vigente, apenas se
exigia a prévia aprovação em concurso público para contratação * Mestre em Direito Privado pela UFBA
de servidores estatutários, de modo que à época da instauração Especialista em Direito Civil e Proces-
sual Civil pela UNESA
da nova ordem constitucional, já faziam parte dos quadros da Procuradora do Município do Salvador
Administração diversos empregados públicos, regidos pela CLT.  Advogada
 
Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 3
DOUTRINA

A fim de proteger estes profissionais, que A fim de burlar esta forma de contratação,
já trabalhavam a bem do serviço, foi-lhes con- tanto para o atendimento de interesses pessoais
ferida estabilidade, desde que tivessem sido dos gestores quanto para a rápida solução das
contratados há mais de cinco anos continuados demandas administrativas por pessoal, os Entes
antes da promulgação da Constituição, nos ter- Públicos passaram a contratar servidores regi-
mos do art. 19 do ADCT. dos não pelo estatuto funcional instituído, mas
  sim pela Consolidação das Leis do Trabalho, os
Diante deste novo panorama, os Entes chamados empregados públicos.  
Públicos, a fim de se adequarem à  nova ordem  
constitucional, elaboraram, em massa, leis es- A Constituição Federal de 1988, contudo,
peciais implantando o regime jurídico único e com o fito de moralizar o processo de contratação
convertendo o regime jurídico de seus antigos de servidores públicos e impedir a coexistência
empregados, contratados sem concurso público, de profissionais no desempenho das mesmas
que passaram aos status de servidores estatutários funções regidos por regimes jurídicos distintos,
e tiveram seus contratos de trabalho extintos. Esta determinou a obrigatoriedade de contratação
foi, inclusive, a providência adotada pela União destes profissionais, estatutários ou celetistas,
com relação aos Servidores Públicos Federais, sempre através de concurso público e fixou o
nos termos do art. 243 da Lei nº 8.112/90, e  pelo regime jurídico único, determinando também
Município do Salvador, nos termos do art. 246 da
que os Entes Públicos só poderiam manter ser-
Lei Complementar Municipal nº 01/91. 
vidores regidos por um mesmo regime jurídico,
 
nos termos do arts. 37, II, e 39, caput:
Ocorre que vêm se proliferando nos foros
 
trabalhistas demandas em que se questiona a
Art.  37 - A administração pública direta e
constitucionalidade destas normas de conversão.
indireta de qualquer dos Poderes da União,
E, com base em sua alegada inconstitucionali-
dos Estados, do Distrito Federal e dos Muni-
dade, diversos servidores estatutários pleiteiam
cípios obedecerá aos princípios de legalidade,
seja declarada a continuidade de seus vínculos
impessoalidade, moralidade, publicidade e
empregatícios iniciados antes de 1988 e con-
denado o Ente Público ao pagamento de todas eficiência e, também, ao seguinte:
as verbas trabalhistas correlatas, em especial o  
FGTS, cuja prescrição é trintenária.   II - a investidura em cargo ou emprego público
depende de aprovação prévia em concurso
O presente trabalho busca analisar esta público de provas ou de provas e títulos, de
questão, discorrendo acerca da constituciona- acordo com a natureza e a complexidade do
lidade destas normas de conversão e dos seus cargo ou emprego, na forma prevista em lei,
efeitos sobre os contratos de trabalho iniciados ressalvadas as nomeações para cargo em co-
antes de 1988.   missão declarado em lei de livre nomeação
  e exoneração;
2. REGIME JURÍDICO ÚNICO  
Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal
Tradicionalmente os servidores públicos e os Municípios instituirão, no âmbito de sua
possuíam sua prestação de serviços disciplinada competência, regime jurídico único e planos de
à parte, através de um estatuto funcional ela- carreira para os servidores da administração
borado pelo Ente Político responsável pela sua pública direta, das autarquias e das fundações
contratação. E para esta contratação, em que o públicas.
servidor seria ocupante de um cargo efetivo, des-  
de a Constituição de 1946 se exigia a sua prévia Surgiu à  época divergência acerca do re-
aprovação em concurso público.   gime único a ser implantado para os servidores
 
4 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA

públicos, se ele necessariamente seria o estatu- “Não há liberdade para a Administração es-
tário ou se o Ente poderia optar pelo celetista. colher entre priorizar a relação estatutária ou
Como bem esclarece José dos Santos Carvalho empregatícia. A regra seria a adoção do regime
Filho, ante a controvérsia estabelecida foram estatutário, e a exceção a adoção do regime
fixadas três posições: celetista, cabível apenas para o desempenho
  de algumas atividades especificas.” (Manual
“1ª.) o regime único indica a obrigatorie- de Direito Administrativo. São Paulo: Ma-
dade de adoção exclusiva do regime esta- lheiros, 2012, p. 228).
tutário; 2ª.) cabe à pessoa federativa optar  
pelo regime estatutário ou trabalhista, mas, Em 1998, a disciplina do art. 39 da Consti-
uma vez feita a opção, o regime deverá ser tuição Federal foi alterada pela Emenda Consti-
o mesmo para a Administração Direta, tucional nº 19, que acabou com a obrigatoriedade
autarquias e fundações de direito público; do regime jurídico único e determinou fosse
3ª.) admite-se a opção por um regime único instituído um conselho de política de adminis-
para a Administração Direta e outro para as tração e remuneração de pessoal, integrado por
autarquias e fundações públicas”. (Manual servidores designados pelos respectivos Poderes.
de Direito Administrativo. 20. ed. Rio de Tal alteração parte da reforma administrativa
Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 573) empreendida naquele ano, teve como pressu-
 
posto a presunção de que o regime celetista
Em que pese a existência de entendimen-
impunha maior produtividade ao serviço público
tos em contrário, como acima mencionado,
na medida em que os profissionais não seriam
mostrava-se majoritário o entendimento de que
beneficiados pela estabilidade ampla garantida
o regime estatutário seria o mais adequado ao
aos servidores estatutários.
atendimento do interesse público. Isto porque
 
ele teria sido criado exatamente para esta finali-
Tal Emenda, contudo, teve sua constitucio-
dade, conferindo aos servidores garantias indis-
nalidade questionada na Ação Direta de Incons-
pensáveis ao exercício pleno e independente de
titucionalidade nº 2.135-4, com base em vícios
suas funções e à Administração a liberdade de
instituí-lo de acordo com suas necessidades, ao formais (sua aprovação não teria respeitado o
passo que o regime regido pela CLT teria sido quanto preconizado pelo art. 60, § 2º, da Cons-
criado para atender às necessidades do setor tituição Federal - quorum de 3/5 para aprovação
privado, voltado prioritariamente à defesa do em dois turnos de votação). Em 2/8/2007 foi
trabalhador. deferida pelo Supremo Tribunal Federal medida
  cautelar suspendendo a eficácia da nova redação
Tanto que Hely Lopes Meireles chegou a conferida ao art. 39 da Constituição Federal, mas
afirmar que: garantindo a eficácia das normas que instituíram
  regime jurídico múltiplo para os servidores após
“A constituição vigente instituiu regime a edição da Emenda e antes da prolação da deci-
jurídico único para os servidores civis da são liminar (efeitos ex nunc).
Administração Pública direta, autárquica  
e fundacional, o que significa ter afastado o Atualmente, portanto, encontra-se em vigor
regime trabalhista utilizado por algumas Admi- na ordem jurídica nacional a determinação ori-
nistrações para a contratação do seu pessoal para ginária do art. 39 da Constituição Federal, sendo
certas atividades.” (Direito Administrativo. exigido o regime jurídico único, estatutário, para
21. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 363) os servidores públicos, modulados os seus efeitos
  apenas para manter-se a validade das normas
No mesmo sentido, se posicionou recente- elaboradas entre a edição da EC 19 e a liminar
mente Silvio Luís Ferreira da Rocha: deferida pelo STF.
   
Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 5
DOUTRINA

3. DA CONVERSÃO DE REGIME: CONS- jurídico único, impossibilidade de manuten-


TITUCIONALIDADE E EFEITOS SO- ção de empregados públicos nos quadros da
BRE O CONTRATO DE TRABALHO Administração Direta e Autárquica (uma vez
  que todos os servidores teriam que ser esta-
Se por um lado a Constituição Federal ins- tutários) e impossibilidade de desligamento
tituiu, em seu art. 39, caput, o regime jurídico destes empregados, havia uma imposição no
único para os servidores públicos, por outro, sentido da transformação do regime jurídico
no art. 19 da ADCT, conferiu estabilidade aos dos empregados públicos, que deveriam passar
servidores admitidos sem concurso há pelo a ser estatutários, independentemente da sua
menos cinco anos continuados antes de sua não aprovação prévia em concurso. E foi para
promulgação, a fim de beneficiar exatamente os dar cumprimento a todos estes imperativos
empregados públicos, únicos que pela disciplina que foram instituídas as normas de conversão,
da Constituição de 1967 poderiam ser admitidos referidas anteriormente.
pela administração pública sem prévia aprovação  
em concurso: A Constitucionalidade destas normas de
  conversão, todavia, foi e continua sendo ques-
Art. 97. Os cargos públicos serão acessíveis tionada, com base em sua suposta afronta ao art.
a todos os brasileiros que preencham os 37, II, da Constituição Federal. Segundo José dos
requisitos estabelecidos em lei.
Santos Carvalho Filho:
§ 1º A primeira investidura em cargo público
 
dependerá de aprovação prévia, em concurso
“Não obstante, o mau hábito cultivado por
público de provas ou de provas e títulos, salvo
décadas tem levado a Administração a ten-
os casos indicados em lei.
tar algumas escaramuças com a finalidade
de relegar a segundo plano a exigência do
O art. 19 da ADCT, todavia, não excluiu os
concurso. Assim, por exemplo, tem sido consi-
empregados públicos estabilizados da obrigato-
deradas inconstitucionais as leis que transforma-
riedade de prévia aprovação em concurso para
vam em estatutários, e, pois, titulares de cargos
que passassem a ocupar cargos públicos. Em seu
§ 1º, vinculou sua investidura a prévia aprovação efetivos, servidores trabalhistas contratados sem
em concurso de efetivação: concurso, mesmo que tivessem mais de cinco
  anos de serviço público antes da promulgação
Art. 19 - Os servidores públicos civis da da Constituição. A norma do art. 19 do ADCT
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos da CF só conferiu estabilização aos servidores,
Municípios, da administração direta, autárquica mas não deu ensejo ao provimento de cargos, sem
e das fundações públicas, em exercício na data que o servidor se submetesse a concurso público
da promulgação da Constituição, há pelo me- e nele fosse aprovado, como exige o art. 37, II,
nos cinco anos continuados, e que não tenham da CLT” (Op. cit. p. 589/590)
sido admitidos na forma regulada no art. 37,  
da Constituição, são considerados estáveis no O próprio art. 243 e seu § 1º, da Lei nº
serviço público. 8.112/90, que converteu o regime jurídico dos
  servidores federais, tem sua constitucionalidade
§ 1º - O tempo de serviço dos servidores referidos questionada na Ação Direta de Inconstituciona-
neste artigo será contado como título quando se lidade nº 2.968, proposta pelo Procurador-Geral
submeterem a concurso para fins de efetivação, da República, exatamente com base nesses fun-
na forma da lei. damentos, ainda pendente de julgamento.
   
Ora, diante das premissas fixadas pela Em que pese a exigência trazida pelo art.
Constituição, quais sejam, instituição do regime 37, II, da Constituição Federal, a alteração do

6 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

regime jurídico dos empregados estabilizados José  Afonso da Silva, a despeito de criticar
foi imposta pelo mesmo texto legal, como já a redação do dispositivo, reconhece a possibili-
esclarecido anteriormente, de modo que uma dade de contratação de servidores para o desem-
solução hermenêutica precisaria ser encontrada penho de funções autônomas, sem a necessidade
para justificar a permanência nos quadros da de prévia aprovação em concurso público:
Administração dos antigos empregados públi-
cos estáveis mas não aprovados em concurso de Deixa a Constituição, porém, uma grave lacuna
efetivação. nessa matéria ao não exigir nenhuma forma de
  seleção para admissão às funções (autônomas)
Tendo em vista que o art. 37, II, da Cons- referidas no art. 37, I, ao lado dos cargos e
tituição impõe a prévia aprovação em concurso empregos. (Curso de Direito Constitucional
público apenas para o provimento de cargo ou Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004,
emprego público, nada impediria que os empre- p. 660)
gados estabilizados passassem a desempenhar  
funções públicas autônomas, não vinculadas a A inconstitucionalidade nas normas de
cargo ou emprego, até que fossem aprovados no conversão, assim, não se encontra na trans-
concurso de efetivação. formação do regime jurídico dos empregados
  estabilizados, mas na sua investidura em cargo
Como esclarece Maria Silvia Zanela Di público sem a prévia aprovação em concurso.
Pietro: Nada obsta, contudo, a sua nomeação para fun-
  ção pública autônoma, imposta, no caso, pelo
“Ao lado do cargo e do emprego, que têm contexto normativo existente.
uma individualidade própria, definida em  
lei, existem atribuições também exercidas Esta solução, inclusive, foi adotada por di-
por servidores públicos, mas sem que lhes versos Entes Públicos, a exemplo do Estado de
corresponda um cargo ou emprego. Fala- Minas Gerais (Lei Estadual nº 10.254/90), que
-se, então, em função dando-se-lhe um conceito criou um quadro funcional a parte para agrupar
residual: é o conjunto de atribuições às quais não os antigos empregados estabilizados que passa-
corresponde um cargo ou emprego. (...) perante ram a ocupar funções públicas autônomas até a
a Constituição atual, quando se fala em sua aprovação posterior em concurso que lhes
função, tem-se que ter em vista dois tipos permitisse ocupar, de forma definitiva, o cargo
de situações: (...) 2. As funções de natureza correspondente à função até então ocupada.
permanente, correspondentes a chefia, direção,  
assessoramento ou outro tipo de atividade para O Superior Tribunal de Justiça reconheceu a
a qual o legislador não crie o cargo respecti- possibilidade de os empregados públicos admiti-
vo; em geral, são funções de confiança, de dos antes de 1988 ocuparem funções autônomas,
livre provimento e exoneração (...). Com isso mas, com relação aos não estabilizados, entendeu
fica explicada a razão de ter o constituinte, no pelo caráter precário de sua contratação:
art. 37, II, exigido concurso público só para a  
investidura em cargo ou emprego; nos casos de ADMINISTRATIVO. FUNÇÃO PUBLI-
função, a exigência não existe porque os que a CA AUTÔNOMA. DISPENSA. ESTADO
exercem ou são contratados temporariamen- DE MINAS GERAIS. LEI ESTADUAL
te para atender as necessidades emergentes NUM. 10.254/90.
da Administração, ou são ocupantes de 1 - OS OCUPANTES DE FUNÇÃO PÚ-
funções de confiança, para as quais não se BLICA AUTÔNOMA, DECORRENTE
exige concurso público.  (12. ed. São Paulo, DA TRANSFORMAÇÃO DE RELAÇÃO
Atlas, 2000, p. 421/422). JURÍDICA CELETISTA LEVADA A
 
Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 7
DOUTRINA

EFEITO PELA LEI ESTADUAL NUM. ou seja, o denominado ‘concurso de efetivação’.


10.254/90, NÃO TEM, PELO MENOS São estáveis e sujeitos ao regime estatutário,
NA VIA ELEITA, DIREITO A REINTE- não podendo, destarte, ser dispensados, sem o
GRAÇÃO, POSTO QUE O VÍNCULO procedimento, a tanto, garantido ao servidor
LABORAL MANTIDO COM O ESTADO estável. Essa dificuldade bem realçada no
DE MINAS GERAIS, ATÉ A OCOR- voto do Relator decorre do art. 37, II, e do
RÊNCIA DA DISPENSA, SEMPRE art. 19, § 1º, da Constituição. Esses servidores
FOI PRECÁRIO E, POR ISSO MESMO, não são mais celetistas, mas estatutários, embora
A QUALQUER MOMENTO RESCIN- fiquem, sem prover cargo, até o concurso de
DÍVEL A PAR DA CONVENIÊNCIA E efetivação para os cargos novos resultantes da
OPORTUNIDADE DA ADMINISTRA- transformação a que se refere o § 2º do art. 276
ÇÃO PÚBLICA. em foco.” (grifos nossos)  
2 - RECURSO ORDINÁRIO IMPROVI-  
DO COM RESSALVA DAS VIAS ORDI- Os posicionamentos posteriores do STF
NÁRIAS. seguem, em sua maioria, esta mesma orienta-
(RMS 9.121/MG, Rel. Ministro VICENTE ção, conferindo efeitos às normas de conversão
LEAL, Rel. p/ Acórdão Ministro FERNAN- e reconhecendo que elas efetivamente tiveram
DO GONÇALVES, SEXTA TURMA, jul- o condão de extinguir os contratos de trabalho
gado em 03/02/1998, DJ 22/06/1998, p. 182) constituídos antes de 1988, entendimento já pa-
  cificado também no âmbito do Tribunal Superior
O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar do Trabalho nos termos da Súmula nº 382.
a constitucionalidade de norma de conversão  
proveniente do Estado do Rio Grande do Sul Súmula nº 382 - TST - Res. 129/2005 - DJ
em sede de controle concentrado de constitu- 20, 22 e 25.04.2005 - Conversão da Orienta-
cionalidade (ADIN 1.150/RS), reconheceu a ção Jurisprudencial nº 128 da SDI-1
inconstitucionalidade do provimento de cargos Mudança de Regime Celetista para Esta-
efetivos pelos antigos empregados públicos sem tutário - Extinção do Contrato. Prescrição
a prévia aprovação em concurso, mas admitiu Bienal
que, com a imposição do regime jurídico único, A transferência do regime jurídico de
os empregados estabilizados poderiam passar a celetista para estatutário implica extinção
estatutários. A conversão de regime seria, assim, do contrato de trabalho, fluindo o prazo
constitucional, permanecendo tais profissionais da prescrição bienal a partir da mudança
nos quadros da Administração sem ocupar cargo de regime.
efetivo. Como esclarecido no voto do Ministro  
Neri da Silveira: A extinção dos contratos de trabalho
  decorrentes da mudança de regime jurídico,
“... quis o legislador estadual submeter ao contudo, não conferiu aos antigos empregados
regime único dos servidores civis aqueles estabilizados o direito ao recebimento de todas
celetistas estabilizados, ut art. 19 do ADCT, as verbas trabalhistas devidas em caso de rescisão
de 1988. É certo, porém, que mesmo estabili- imotivada do contrato de trabalho. Diante da
zados pelo art. 19 do ADCT, não podem estes manutenção da prestação de serviços sem solu-
servidores, que estão amparados pelo regime ção de continuidade e da extinção do contrato
único dos servidores, conforme a regra geral do de trabalho por força de lei, não se reputando a
caput do art. 276 da lei gaúcha nº 10.098/1994, iniciativa imotivada do empregador como causa
ser providos em cargo de provimento efetivo, sem do rompimento do vínculo, as verbas rescisórias
aprovação no concurso especial de efetivação a tradicionalmente devidas não incidiram. Os an-
que se refere o parágrafo 1º do art. 19 da ADCT, tigos empregados tiveram acesso ao seu FGTS

8 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

depositado (Súmula nº 178 do antigo TFR), cebidos em virtude de vantagens fixadas apenas
não se admitindo a incidência de aviso prévio, para servidores estatutários, tese de difícil êxito
obrigação afeita aos rompimentos imotivados do ante a presunção de boa-fé no recebimento destas
vínculo de emprego.   parcelas (que decorre da própria presunção de
  constitucionalidade das normas jurídicas) e de
E como as leis em questão efetivamente seu caráter alimentar.  
puseram fim aos contratos de trabalho, a partir  
de sua promulgação teve início o prazo prescri- O Tribunal Superior do Trabalho vem se
cional de dois anos, previsto pelo art. 7º, XXIX, manifestando, de forma majoritária, no sentido
da Constituição Federal, para que os antigos da inconstitucionalidade das normas de con-
empregados públicos pudessem formular suas versão, ao argumento que estas determinaram
pretensões contra seus antigos empregadores, a transposição dos empregados públicos para o
posição também cristalizada na referida Súmula regime estatutário sem a sua prévia aprovação
nº 382 do TST.   em concurso público, violando o disposto no
  art. 37, II, da Constituição Federal:
Aqueles que se posicionam pela inconstitu-  
cionalidade das normas de conversão de regime, RECURSO DE REVISTA. ADMISSIBI-
contudo, defendem que, ante a ineficácia das LIDADE. COMPETÊNCIA MATERIAL.
normas inconstitucionais, os vínculos emprega- JUSTIÇA DO TRABALHO. TRANSMU-
tícios constituídos antes de 1988 ainda estariam TAÇÃO DE REGIME. CONVERSÃO
em curso, tendo o empregado, assim, o direito ao AUTOMÁTICA POR LEI MUNICIPAL
recebimento de todas as verbas trabalhistas daí DO REGIME CELETISTA PARA O ES-
decorrentes, não incidindo a prescrição bienal, TATUTÁRIO. AUSÊNCIA DE CONCUR-
que só tem seu termo inicial com o rompimento SO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE. Esta
do contrato de trabalho. Corte Superior, seguindo orientação do
  excelso Supremo Tribunal Federal, tem
Como os direitos trabalhistas básicos previs- entendido que é inviável a conversão au-
tos pelo art. 7º da Constituição Federal são tam- tomática de regime jurídico, ante o óbice
bém garantidos aos servidores públicos estatu- contido no artigo 37, II, da Constituição
tários pelo art. 39, § 3º, da Constituição Federal, Federal, razão por que o empregado pú-
o maior ganho destes empregados estabilizados blico, ainda que admitido anteriormente à
seria o FGTS relativo aos últimos trinta anos e vigência da Constituição Federal de 1988,
alguma verba tipicamente trabalhista eventual- sem prévia submissão a concurso público,
mente não paga relativa aos últimos cinco anos, continua regido pelo regime celetista, in-
divergência decorrente dos diferentes prazos dependentemente da existência de norma
prescricionais incidentes no caso (art. 7º, XXIX, estadual ou municipal que estabeleça a
e Enunciado nº 362 do TST).    conversão deste regime para o estatutá-
  rio. Precedentes. (RR 15181220105050551
Por outro lado, reputando-se vigentes os 1518-12.2010.5.05.0551, Relator Emmanoel
contratos de trabalho em questão, tais profissio- Pereira, 5ª. Turma, julgamento 24/04/2013)
nais não poderiam mais se beneficiar das regras
de aposentadoria vigentes apenas para servidores AGRAVO DE INSTRUMENTO EM
públicos estatutários tampouco receber parcelas RECURSO DE REVISTA. 1. INCOMPE-
do regime de previdência próprio dos servidores TÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO.
públicos, devendo migrar para o Regime Geral VÍNCULO CELETISTA. MUDANÇA DE
da Previdência Social. Discute-se, ainda, a pos- REGIME JURÍDICO. O Regional consig-
sibilidade de repetição dos valores por eles re- nou a validade da contratação do reclamante

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 9


DOUTRINA

nos moldes da CLT, porquanto admitido DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE


pelo Estado do Piauí antes do advento da 1988. O Supremo Tribunal Federal firmou
Constituição Federal de 1988, quando a posicionamento, no sentido de que a trans-
prévia submissão dos servidores a concurso posição automática para o regime jurídico
público não era requisito de ingresso em estatutário não alcança os servidores cele-
cargos e empregos públicos. Registrou, ainda, tistas admitidos sem concurso público, nos
não ser possível a transmudação do regime moldes dos artigos 37, II, da Carta de 1988
celetista em estatutário pela simples edição e 19, § 1º, do Ato das Disposições Constitu-
de lei instituidora do regime jurídico único, cionais Transitórias. Não sendo válida a al-
exigindo o concurso público como condição teração do regime jurídico, conforme acima
para a citada conversão, após 1988. Concluiu, exposto, não se há de falar em extinção do
ao final, que o autor não pode ser considerado contrato de trabalho e, consequentemente,
estatutário, razão pela qual é desta Justiça Es- em prescrição total. Recurso de revista de
pecializada a competência para o julgamento que se conhece e a que se dá provimento.
da controvérsia. Nesse contexto, não se há (RR-56700-36.2009.5.13.0020, Rel. Minis-
falar em violação do art. 114, I, da CLT. Pre- tro Pedro Paulo Manus, 7ª Turma, DEJT
cedentes. (...) (AIRR-808-98.2010.5.22.0104, 26/10/2012)
Relatora Ministra Dora Maria da Costa, 8ª  
Turma, DEJT 16/11/2012) De acordo com o quanto já esclarecido,
  percebe-se que a tese da inconstitucionalidade
AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO das normas de conversão por ofensa à regra
DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE do concurso público não tem procedência na
REVISTA. PRESCRIÇÃO. ALTERAÇÃO medida em que a transposição de regime dos
DO REGIME JURÍDICO. EMPREGADO servidores decorreu de um imperativo da pró-
ADMITIDO SEM CONCURSO PÚ- pria Constituição. Se por um lado ela impôs a
BLICO, ANTES DA CONSTITUIÇÃO permanência nos quadros da Administração de
FEDERAL DE 1988. Visto que constata- servidores admitidos sem prévia aprovação em
do equívoco no despacho agravado, dá-se concurso público, por outro ela fixou o regime
provimento ao agravo regimental, para jurídico único, impedindo que os servidores
determinar o processamento do agravo em questão permanecessem com seus vínculos
de instrumento. AGRAVO DE INSTRU- trabalhistas em curso.
MENTO EM RECURSO DE REVISTA.  
PRESCRIÇÃO. ALTERAÇÃO DO RE- E, mais, a Constituição apenas impediu o
GIME JURÍDICO. EMPREGADO AD- provimento de cargos e empregos públicos sem
MITIDO SEM CONCURSO PÚBLICO, a prévia aprovação em concurso. Não impôs
ANTES DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL qualquer óbice à alteração do regime jurídico
DE 1988. A decisão do Tribunal Regional dos servidores celetistas estabilizados, que já in-
foi proferida em aparente violação do artigo tegravam o quadro de pessoal da Administração
37, II, da Constituição Federal, o que auto- há mais de cinco anos antes de sua promulgação.
riza o seguimento do recurso de revista, na  
forma do artigo 896, -c-, da CLT. Agravo de O próprio TST já reconheceu esta tese em
instrumento a que se dá provimento, para alguns julgamentos, reputando prescritas as
determinar o processamento do recurso de pretensões do servidor reclamante:
revista. RECURSO DE REVISTA. PRES-  
CRIÇÃO. ALTERAÇÃO DO REGIME SERVIDOR MUNICIPAL. ADMISSÃO
JURÍDICO. EMPREGADO ADMITIDO SEM CONCURSO PÚBLICO EM PERÍ-
SEM CONCURSO PÚBLICO, ANTES ODO ANTERIOR À PROMULGAÇÃO

10 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA conversão, a sua competência para julgamento


DE 1988. MUDANÇA DE REGIME JU- desta matéria é passível de questionamentos.
RÍDICO. EXTINÇÃO DO CONTRATO.  
PRESCRIÇÃO 1. Consoante entendimento Isso porque o art. 114 da Constituição Fe-
consagrado pelo Supremo Tribunal Fede- deral apenas permite que a Especializada Traba-
ral por ocasião do julgamento da ADI n.º lhista aprecie demandas envolvendo relações de
1150-2/RS, não há falar em transposição trabalho, estando excluída de sua competência
automática do regime celetista para estatu- a apreciação de causas envolvendo servidores
tário em relação aos servidores admitidos públicos estatutários. Esta orientação, inclusive,
em momento anterior à promulgação da restou pacificada pelo Supremo Tribunal Federal
Constituição da República de 1988, sem no julgamento da ADIN 3.395-6/2005.
aprovação em concurso público para fins de  
efetivação. A inviabilidade da transposição Aqueles que defendem a competência da
automática não conduz, todavia, à manu- Justiça do Trabalho para apreciação da questão
tenção do regime anterior, extinto por força aduzem que a competência deve ser fixada com
de lei. Conquanto vedada a transmudação base na natureza da pretensão deduzida em
automática do regime jurídico para os Juízo, qual seja, o reconhecimento da continui-
servidores públicos não concursados, estes dade de vínculo empregatício iniciado antes
servidores passam a ser regidos pelo regi- de 1988 decorrente da afronta ao art. 37, II, da
me estatutário, embora fiquem sem prover Constituição Federal, Este era o entendimento
cargo público até aprovação em concurso predominante no âmbito do Tribunal Superior
especial de efetivação previsto no artigo 19, do Trabalho.
§ 1º, do ADCT. 2. Nos termos da Súmula n.º  
382 desta Corte superior, a transferência do Contudo, ante a presunção de constitucio-
regime jurídico de celetista para estatutário nalidade das leis promulgadas no país, não se
implica extinção do contrato de trabalho, pode olvidar que a apreciação das demandas
fluindo o prazo da prescrição bienal a partir envolvendo questionamentos acerca da cons-
da mudança de regime. Constatando-se que titucionalidade das normas de conversão, deve
a Lei Municipal n.º 1/1990 entrou em vigor partir do pressuposto de que o vínculo empre-
em 12/11/1990 e que a presente reclamação gatício anteriormente havido entre as partes foi
somente foi ajuizada em 16/7/2010, mais extinto, mantendo a relação existente o caráter
de dois anos após o ingresso do reclamante estatutário. Há, assim, a prevalência da questão
no regime jurídico único implementado administrativa de fundo – submissão dos profis-
pelo Município, resulta irremediavelmente sionais ao regime estatutário.
prescrita a pretensão obreira. 3. Agravo de  
instrumento não provido. (AIRR-70000- O Superior Tribunal de Justiça, tribunal que
13.2010.5.13.0026, Rel. Ministro Lelio detém a competência constitucional para dirimir
Bentes Corrêa, 1ª Turma, DEJT 09/11/2012)  conflitos de competência entre a Justiça Comum e
  a Justiça do Trabalho, já se manifestou no sentido
4. COMPETÊNCIA PARA APRECIAÇÃO de que a competência para apreciação de deman-
DOS PLEITOS DE DECLARAÇÃO DE das dessa natureza seria da Justiça Comum, como
INCONSTITUCIONALIDADE DA NOR- se depreende da leitura do julgado a seguir:
MA DE CONVERSÃO  
  CONFLITO NEGATIVO DE COMPE-
A despeito de a Justiça do Trabalho vir TÊNCIA. SERVIDOR PÚBLICO ESTA-
reiteradamente apreciando demandas em que se DUAL. PLEITO RELATIVO AO PERÍO-
questiona a constitucionalidade das normas de DO DE VÍNCULO ESTATUTÁRIO COM

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 11


DOUTRINA

O PODER PÚBLICO. TRANSPOSIÇÃO 4. Conforme entendimento firmado no


DE REGIMES. CELETISTA E ESTA- âmbito desta Corte, a declaração de incons-
TUTÁRIO. ADIN N. 1.150/RS JULGA- titucionalidade da referida expressão não
DA PARCIALMENTE PROCEDENTE impediu que os servidores “estabilizados
PELO STF. RECONHECIMENTO, PELO vinculados à Consolidação das Leis do
SUSCITADO, DA EXISTÊNCIA DE VIN- Trabalho” (caso dos autos) também se sub-
CULO ESTATUTÁRIO ENTRE O SER- metesse ao regime jurídico único instituído
VIDOR E A ADMINISTRAÇÃO. CON- pela lei. Precedente: CC 36.261/RS, Rel.
FLITO CONHECIDO. COMPETÊNCIA Ministro Hamilton Carvalhido, Terceira
DA JUSTIÇA COMUM ESTADUAL. Seção, DJ22/3/2004.
1. Cinge-se a controvérsia em fixar a com- 5. Tendo o TRT da 4ª Região reconhecido
petência para processar e julgar reclama- que, a partir de 19/1/1996 houve a transpo-
ção trabalhista proposta contra órgão da sição do regime celetista ao regime jurídico
administração pública, na qual se pleiteia único do Estado do Rio Grande do Sul, não
diferenças salariais, pagamento de grati- resta dúvida estar o autor da demanda sub-
ficações e de horas extras suprimidas e os metido ao regime estatutário, motivo pelo
consequentes reflexos nas demais verbas qual a competência para julgar os pedidos
trabalhistas, além do recolhimento do referentes ao período posterior àquela data
FGTS, sendo a reclamatória julgada par- é da Justiça comum estadual. Nesse sentido:
cialmente procedente. CC 101.265/AL, Rel. Ministra Maria The-
2. O Tribunal suscitado, ao julgar o recurso reza de Assis Moura, Terceira Seção, DJe
ordinário, afirmou que a ADI 1.150/RS, 1º/7/2009 e AgRg no CC 29.263/RS, Rel.
que julgou inconstitucional a expressão Ministro Hamilton Carvalhido, Terceira
“operando-se automaticamente a transpo- Seção, DJ 29/3/2004.
sição de seus ocupantes”, do § 2º do art. 276 6. Conflito conhecido para declarar a
da Lei Complementar Estadual n. 10.098/94 competência do Juízo da 3ª  Vara Cível de
– que instituiu o regime jurídico único dos Rio Grande - RS. (CC 115.069/RS, Rel.
servidores estaduais – e deu interpretação Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRI-
conforme a Constituição a outros dispo- MEIRA SEÇÃO, julgado em 14/03/2011,
sitivos de lei, não afastou a instituição do DJe 18/03/2011)
regime estatutário.  
3. Reconheceu, ainda, que: “a ADIN n. O mesmo entendimento vem sendo adotado
1.150-2, pelo STF, apenas declarou in- pelo Supremo Tribunal Federal de forma reite-
constitucional a transposição automática rada. Este Tribunal, inclusive, vem dando pro-
dos servidores celetistas para os cargos de vimento a diversas Reclamações Constitucionais
provimento efetivo, sem a realização de voltadas à preservação de sua autoridade nesse
concurso de ‘efetivação’ o que não afasta a particular. Vide os julgados a seguir:
instituição do regime estatutário previsto no  
caput. Estes servidores, consoante referido RECLAMAÇÃO - ADMINISTRATIVO
no próprio acórdão julgador da mencionada E PROCESSUAL CIVIL - DISSÍDIO
Ação Direta de Inconstitucionalidade, não ENTRE SERVIDORES E O PODER PÚ-
são mais celetistas, mas estatutários, muito BLICO - RE Nº 121.111/SP E ADI Nº 3.395/
embora fiquem sem prover cargo, até a re- DF-MC - CABIMENTO DA RECLAMA-
alização do concurso de efetivação para os ÇÃO - INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA
cargos novos, resultantes da transformação DO TRABALHO. 1. Admissibilidade do uso
a que se refere o parágrafo 2º do artigo 276 da reclamação por alegada ofensa à autorida-
em análise”. de do STF e à eficácia de decisão proferida

12 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

em processos de índole subjetiva quando em tais dissídios, o fato de se requerer verbas


a parte reclamante figurou como sujeito rescisórias, FGTS e outros encargos de natureza
processual nos casos concretos versados no símile, dada a prevalência da questão de fundo,
paradigma. 2. A reclamação é meio hábil para que diz respeito à própria natureza da relação
conservar a autoridade do Supremo Tribunal jurídico-administrativa, posto que desvirtuada
Federal e a eficácia de suas decisões. Não se ou submetida a vícios de origem, como fraude,
reveste de caráter primário ou se transforma simulação ou ausência de concurso público. Nesse
em sucedâneo recursal quando é utilizada último caso, ultrapassa o limite da competência do
para confrontar decisões de juízos e tribunais STF a investigação sobre o conteúdo dessa causa
que afrontam o conteúdo do acórdão do STF de pedir específica. 4. A circunstância de se tratar
na ADI nº 3.395-MC/DF. 3. O caráter esta- de relação jurídica nascida de lei local, anterior ou
tutário do vínculo dos antigos ferroviários posterior à Constituição de 1988, não tem efeito
e pensionistas de empresas incorporadas à sobre a cognição da causa pela Justiça comum. 5.
FEPASA não autoriza o exercício da com- Agravo regimental não provido. (Rcl 7633 AgR,
petência da Justiça especializada. 4. Com- Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal
pete à Justiça comum pronunciar-se sobre a Pleno, julgado em 23/06/2010, DJe-173 DIVULG
existência, a validade e a eficácia das relações 16-09-2010 PUBLIC 17-09-2010 EMENT VOL-
entre servidores e o poder público, funda- 02415-02 PP-00268)
das em vínculo estatutário. 5. Reclamação
julgada procedente. (Rcl 4803, Relator(a):  Diante desses precedentes do STF, o TST
Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, vem revendo seu posicionamento, para reco-
julgado em 02/06/2010, DJe-200 DIVULG nhecer a incompetência da Justiça do Trabalho
21-10-2010 PUBLIC 22-10-2010 EMENT para a apreciação de demandas envolvendo
VOL-02420-01 PP-00119) reconhecimento da inconstitucionalidade de
  normas de conversão:
AGRAVO REGIMENTAL NA RECLA-
MAÇÃO - ADMINISTRATIVO E PROCESSU- RECURSO DE REVISTA - ESTADO DO
AL CIVIL - DISSÍDIO ENTRE SERVIDORES PIAUÍ - INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DA
E O PODER PÚBLICO - ADI nº 3.395/DF-MC JUSTIÇA DO TRABALHO - APRECIAÇÃO
- CABIMENTO DA RECLAMAÇÃO - INCOM- DA REGULARIDADE DA TRANSMUDA-
PETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. 1. ÇÃO DO REGIME DE CELETISTA PARA
A reclamação é meio hábil para conservar a autori- ESTATUTÁRIO - MATÉRIA DE CUNHO
dade do Supremo Tribunal Federal e a eficácia de ADMINISTRATIVO AFETA À COMPE-
suas decisões. Não se reveste de caráter primário TÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. O Supremo
ou se transforma em sucedâneo recursal quando Tribunal Federal estabeleceu orientação no
é utilizada para confrontar decisões de juízos e sentido da incompetência da Justiça do Trabalho
tribunais que afrontam o conteúdo do acórdão para processar e julgar controvérsias referentes
do STF na ADI nº 3.395/DF-MC. 2. Compete à à regularidade das relações entre os servidores
Justiça comum pronunciar-se sobre a existência, a e o Poder Público, em virtude de constar a pre-
validade e a eficácia das relações entre servidores tensão explícita ou implícita de que se declare a
e o poder público fundadas em vínculo jurídico- invalidade do vínculo administrativo, matéria,
-administrativo. É irrelevante a argumentação de que se insere na seara do Direito Administrativo,
que o contrato é temporário ou precário, ainda afeta à competência da Justiça Comum. Nessa
que haja sido extrapolado seu prazo inicial, bem quadra, ainda que a pretensão deduzida na lide
assim se o liame decorre de ocupação de cargo se refira a direitos trabalhistas, a questão de fun-
comissionado ou função gratificada. 3. Não do, prejudicial ao exame dos pedidos deduzidos
descaracteriza a competência da Justiça comum, na inicial, refere-se à regularidade do vínculo

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 13


DOUTRINA

jurídico-administrativo estabelecido entre o tra- ção de demandas desta natureza. Na medida em


balhador e o Poder Público, sendo incompetente que as normas de conversão, que expressamente
a Justiça do Trabalho para processar e julgar o puseram fim aos contratos de trabalho havidos
feito, nos termos dos entendimentos adotados com os empregados estabilizados, presumem-se
pelo Supremo Tribunal Federal, notadamente constitucionais, existe, assim, entre as partes um
em sede de julgamento da ADI nº 3.395-6/DF e vínculo de natureza administrativa e não traba-
Rcl nº 9.625/RN. Recurso de revista conhecido e lhista, cujas controvérsias devem ser dirimidas
provido. (TST. Processo RR 26162520115220001 pela Justiça Comum. E, como bem asseverado
2616-25.2011.5.22.0001, Rel. Min Luiz Philippe pelo Supremo Tribunal Federal, “compete à
Vieira de Mello Filho, 7ª. Turma, Julgamento Justiça Comum pronunciar-se sobre a existência,
em 08/05/2013, Publicação DEJT 17/05/2013) a validade e a eficácia das relações entre servi-
  dores e o poder público, fundadas em vínculo
A questão afeita à competência para aprecia- estatutário”.
ção das demandas envolvendo a constitucionali-
dade da conversão de regime jurídico é da Justiça
Comum e não da Justiça do Trabalho, cabendo, REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
assim, a propositura de Reclamação Constitucio-  
nal para garantir o processamento das demandas BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito
perante o foro competente, caso a Justiça laboral do Trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2010.
insista em se reputar competente para tanto.  
  CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual
CONCLUSÃO de Direito Administrativo. 20. ed. Rio de Janei-
  ro: Lumen Juris, 2008.
Ante todo o exposto, percebe-se que as  
normas que transformaram em estatutários os DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Di-
vínculos celetistas dos empregados públicos reito do Trabalho. 8. ed. São Paulo: LTr, 2009.
estabilizados pelo art. 19 da ADCT não pade-  
cem de inconstitucionalidade. Esta reside, sim, DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito
no provimento de cargos públicos por estes Administrativo. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2000. 
profissionais, uma vez que não aprovados em  
concurso público como exige o art. 37, II, da MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administra-
Constituição Federal. tivo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
   
Assim, equivoca-se o Tribunal Superior MELLO. Celso Antônio Bandeira de. Curso de
do Trabalho ao reconhecer a continuidade dos Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros,
vínculos empregatícios havidos entre a Ad- 2005.
ministração e os antigos empregados públicos  
estabilizados uma vez que estes efetivamente NETO. Manoel Jorge e Silva. Curso de Direito
foram rompidos pelas normas de conversão, já Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
tendo, inclusive, incidido a prescrição sobre as 2006.
pretensões dos empregados com relação a tais  
vínculos. Não há que se falar em reconhecimento ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Manual de Di-
da continuidade dos vínculos e muito menos em reito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2012.
pagamento do FGTS de todo o período.  
  SILVA. José  Afonso da. Curso de Direito Cons-
Ademais, percebe-se que a própria Justiça titucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros,
do Trabalho sequer é competente para aprecia- 2004.
 
14 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE
ÉTICA DA ALTA ADMINISTRAÇÃO DOUTRINA
PÚBLICA DO MUNICÍPIO DO
SALVADOR
 

Eduardo Amin Menezes Hassan*


 
 

SUMÁRIO
 
1. Introdução. 2. A ementa do Decreto Municipal nº 23.738/2013
e o princípio da moralidade. 3. Artigo 1º. 4. Artigo 2º. 5. Artigo
3º. 6. Artigo 4º. 7. Artigo 5º. 8. Artigo 6º. 9. Artigo 7º. 10. Artigo
8º. 11. Artigo 9º. 12. Considerações finais. Bibliografia
 
RESUMO

O princípio da moralidade é norma prevista no artigo 37 da


Constituição Federal de 1988, que deve ser aplicada em conjun-
to com os outros princípios constitucionais. Ao ser previsto na
Constituição Federal, esse princípio demonstra uma forte ligação
entre o direito e a moral. A exegese da norma contida no art. 37
da Constituição Federal – que traz em seu caput o princípio da
moralidade administrativa –, foi observada pela Administração
Pública do Município do Salvador ao instituir, por meio do De-
creto Municipal nº 23.738/2013, o Código de Conduta da Alta
Administração Municipal, que terá seus dispositivos comentados
neste artigo.

PALAVRAS-CHAVES: CÓDIGO DE ÉTICA; DECRETO;


DIREITO; ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

1. Introdução
  * Procurador do Município do Salvador
Advogado
A institucionalização da ética é assunto fundamental na admi- Mestrando em Direito Público pela
Universidade Federal da Bahia
nistração pública brasileira. O Município de Salvador, atendendo Pós-graduado em Direito do Estado
aos princípios que regem a administração pública, em especial a mo- pela Universidade Federal da Bahia

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 15


DOUTRINA

ralidade, instituiu o Código de Conduta da Alta O que é uma ementa e qual o seu objetivo
Administração Municipal, Decreto 23.738/2013, num decreto? Ementa vem do latim ementum,
publicado no Diário Oficial do Município em 3 quer dizer, pensamento ou ideia. No caso em
de janeiro de 2013, logo no início da gestão do tela, é um termo aplicado para indicar o fim que
prefeito eleito para o mandato de 2013 a 2016. objetiva o decreto, para que se faça e se execute
o ato nela lembrado. Trata-se de um resumo das
O direito e a moral se complementam, con- intenções do subscritor.
forme já foi afirmado, embora não se confundam
e não haja subordinação de um ao outro. Em Destarte, percebe-se que a ementa traz um
regra, eles corroboram para a resolução de con- resumo das ideias inseridas ao longo dos dis-
flitos sociais. Dessa forma, ao confeccionar um positivos do decreto. Primeiramente, tem-se a
código de ética, o gestor está trazendo a coerção autoridade competente, o prefeito do Município
do direito para observância da moral no âmbito do Salvador, em seguida o fundamento do ato,
da Administração Pública Municipal. “os princípios constitucionais que informam a
Administração Pública”.
Tratar-se-á ao longo deste artigo de comen-
tar os dispositivos do Código de Conduta da Alta Esses princípios estão elencados no artigo
Administração Municipal, Decreto 23.738/2013, 37 da Constituição Federal: “a administração
que nada mais é do que um código de ética para pública direta e indireta de qualquer dos Poderes
o alto escalão da administração pública do Mu- da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
nicípio de Salvador.  Municípios obedecerá aos princípios de legali-
dade, impessoalidade, moralidade, publicidade
A relação da moral com o direito e a ad- e eficiência”.
ministração pública não pode ser banalizada;
destarte, ao se instituir um código de ética, Embora haja vários princípios contidos
demonstra-se, ao menos em tese, a preocupação no dispositivo supracitado, destaca-se, na aná-
por essa temática no seio da cúpula da gestão pú- lise deste trabalho, o princípio da moralidade;
blica municipal de Salvador. intenta-se com ele respeitar a ética na adminis-
tração pública. O princípio da moralidade na
2.  A ementa do Decreto 23.738/2013 e o prin- administração pública é o meio para se tentar
cípio da moralidade garantir uma gestão pública mais justa e ética. “O
  princípio da moralidade impõe que o adminis-
Antes de se ingressar nos comentários aos trador público não dispense os preceitos éticos
dispositivos do Decreto 23.738/2013 propria- que devem estar presentes na sua conduta”.1
mente dito, cumpre analisar a sua ementa:
A abordagem mais sistemática para esti-
O PREFEITO DO MUNICÍPIO DO mular um comportamento ético é desenvolver
SALVADOR, CAPITAL DO ESTADO uma cultura administrativa que crie uma ligação
DA BAHIA, no uso de suas atribuições, entre os padrões éticos e as práticas na gestão
tendo em vista os princípios constitucionais pública. Essa institucionalização dos padrões
que informam a Administração Pública e éticos começa com a compreensão da filosofia
considerando que o exercício dos cargos, da moral e é sustentada por mecanismos como
empregos e funções públicas, especialmente a estrutura, códigos, programas de treinamento
daqueles componentes do alto escalão, deve e comissões de ética.
ser pautado na ética da honestidade, decoro
e compromisso com o interesse público, 1
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito
corolário do bem comum. Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 18.

16 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

Marília Muricy, ao tratar do princípio da quanto o princípio da legalidade exige ação ad-
moralidade na administração pública, afirma: ministrativa de acordo com a lei, o da moralidade
  prega um comportamento do administrador que
Ao incluir o princípio da moralidade ad- demonstre haver assumido como móbil da sua
ministrativa ao lado dos demais que inte- ação a própria idéia do dever de exercer uma boa
gram o artigo 37 da Constituição Federal, administração”.4
o legislador constituinte grifou a íntima
convivência entre o direito e a moral. Tal O princípio da moralidade é uma forma de
convivência mostrou-se resistente a todas as responsabilização jurídica, baseada na moral, do
investidas do chamado positivismo jurídico, administrador público para salvaguardar a supe-
repelindo, desde o positivismo estreito dos rioridade da coerência material do sistema, bem
comentaristas do código de Napoleão até a como sobre a institucionalização da ética. Trata-
leitura arrevesada que alguns insistem em -se de uma positivação constitucional da moral,
fazer da obra de Kelsen, afirmando ter ele isto é, uma tentativa do legislador constitucional
negado qualquer ligação entre o direito e de inserir a moral na administração pública por
o mundo dos valores, o que constitui uma meio de uma norma de direito. E isso é que se
absoluta imprecisão2. busca ao decretar o Código de Conduta da Alta
  Administração Municipal de Salvador.
No que se refere ao princípio da moralidade,
necessário se faz esclarecer alguns pontos. Ini- Ademais, a ementa também dispõe sobre a
cialmente, cumpre explicar que o princípio da quem se direciona o decreto: aos que exercem
moralidade não se confunde com o da legalidade. cargos, empregos ou funções públicas; em es-
Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles, utilizando- pecial, os que estão no alto escalão. Além disso,
-se da arrematação de Hauriou, afirma: aduz o que deve ser observado por esses sujeitos:
a ética, a honestidade, o decoro e o compromisso
[...] E, ao atuar, não poderá desprezar o com o interesse público.
elemento ético de sua conduta. Assim, não
terá que decidir somente entre o legal e o Observe o que Valls afirma sobre conceito
ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o de ética:
inconveniente, o oportuno e o inoportuno,  
mas também entre o honesto e o desonesto. Tradicionalmente ela é entendida como um
Por considerações de direito e de moral, o estudo ou uma reflexão, científica ou filosó-
ato administrativo não terá que obedecer so- fica, e eventualmente até teológica, sobre os
mente à lei jurídica, mas também à lei ética costumes ou sobre as ações humanas. Mas
da própria instituição, porque nem tudo que também chamamos de ética a própria vida,
é legal é honesto, conforme já proclamavam quando conforme aos costumes considera-
os romanos – non omne quod licet honestum dos corretos. A ética pode ser o estudo das
est. A moral comum, remata Hauriou, é im-
posta ao homem para sua conduta externa;
a moral administrativa é imposta ao agente
2
MURICY, Marília. O Princípio da Moralidade Administrativa.
público para a sua conduta interna, segundo Disponível em: < http://terramagazine.terra.com.br/interna/
as exigências da instituição a que serve, e a principio+da+moralidade+administrativa.html.> Acesso em
finalidade de sua ação: o bem comum3. 19 out 2011.
3
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasilei-
ro. 15. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 79.
Conforme se infere das palavras citadas 4
DELGADO, José Augusto. O Princípio da Moralidade
Administrativa e a Constituição Federal de 1988. BDjur,
acima, o princípio da moralidade é independente Brasília, DF. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/
do da legalidade. Nas palavras de Delgado, “en- handle/2011/9917>. Acesso em: 17 out. 2011.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 17


DOUTRINA

ações ou dos costumes, e pode ser a própria alta Administração Pública Municipal, como
realização de um tipo de comportamento5. forma de demonstrar a integridade e a lisura
do processo decisório da Administração Muni-
A valorização da ética como instrumento de cipal”. A ideia transmitida por esse dispositivo
gestão pública insere-se, por inteiro, no esforço é a de que se objetiva tornar públicas e de fácil
de revitalização e modernização da administra- entendimento as regras morais das condutas das
ção pública. Ademais, este é um dos aspectos autoridades da gestão municipal.
que falta para torná-la não só eficiente quanto
aos resultados, mas também democrática no que Inciso segundo: “II – demonstrar, a partir
se refere ao modo pelo qual esses resultados são das autoridades de nível hierárquico superior,
alcançados. os padrões éticos a que se submete a Admi-
nistração Pública Municipal”. Trata-se da
Outro termo merecedor de explicação é o utilização do exemplo das condutas das auto-
decoro. O decoro, neste caso, é a expectativa que ridades, que devem ser seguidas pelo restante
se tem em relação aos servidores públicos do alto dos servidores públicos. O exemplo é uma boa
escalão de uma atuação individual exemplar. forma de se cobrar atitudes morais por parte
Seguem alguns exemplos de condutas contrárias dos subordinados.
ao decoro: o uso de expressões que configuram
crime contra a honra ou que incentivam sua prá- Inciso terceiro: “III – preservar e promover
tica; abuso de poder; recebimento de vantagens a imagem e a reputação do administrador pú-
indevidas; prática de ato irregular grave quando blico”. Ao preservar a imagem e a reputação do
no desempenho de suas funções; revelação do administrador público, está, ao mesmo, tempo
conteúdo de debates considerados secretos. fortalecendo a instituição Município.

Com este Decreto, observa-se uma tentativa Inciso quarto: “IV – estabelecer regras
de institucionalização da ética na administração básicas sobre conflitos de interesses públicos e
pública municipal, com o objetivo de tentar privados e limitações às atividades profissionais
reverter o crescente ceticismo da sociedade a posteriores ao exercício do cargo público”. Não
respeito da moralidade da administração pública se devem tratar os bens públicos como bens pri-
e resgatar e atualizar a noção de serviço público, vados; a repartição pública não é uma extensão
o que abrange inclusive o dever de prestar contas da casa do administrador; com efeito, ele não
do conteúdo ético do desempenho dos servido- deve se utilizar das facilidades que tem como
res, em particular os que têm responsabilidade gestor para enriquecimento pessoal ao deixar
de decisão. o cargo. Além disso, havendo conflito entre o
interesse público e o privado, neste caso, deve
3. Artigo 1º prevalecer o interesse público.
 
O artigo primeiro estabelece as finalidades Inciso quinto: “V - apresentar um conjunto
do supracitado código de ética e aduz: de conceitos que servem de base para dirimir
conflitos entre o interesse privado e o dever
“Art. 1º Fica instituído o Código de Conduta funcional das autoridades públicas da Adminis-
da Alta Administração Municipal com as seguin- tração Pública Municipal”. Deve-se evitar que o
tes finalidades”, citando e explicando uma a uma neopatrimonialismo se institua na administra-
as finalidades dispostas nos incisos deste artigo.

O inciso primeiro afirma: “I – tornar claras 5


VALLS, Álvaro L. M. O Que é Ética? Editora Brasiliense,
as regras éticas de conduta das autoridades da 1994, p. 7.

18 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

ção pública municipal; é preciso ter consciência Destarte, abarcou-se com o parágrafo úni-
de que os bens públicos utilizados pelos gestores co do artigo primeiro toda a cúpula da gestão
na administração pública são do Município e de- administrativa do Município do Salvador, que
vem assim ser utilizados e não como extensão do é escolhida pelo prefeito, devendo-se submeter
patrimônio particular de quem os usa. O dever ao código de ética em comento.
funcional em conflito com o interesse particular,
quando o gestor estiver a serviço do Município, 4. Artigo 2º
deve ater-se aos conceitos pré-estabelecidos pelo  
código de ética na resolução desse entrave. O artigo segundo trata de como devem ser
exercidos os cargos elencados no parágrafo único
A seguir será analisado o parágrafo único, do artigo primeiro; vejamos o que ele descreve:
que indica os sujeitos que devem obedecer às
normas do Código de Ética em comento. Art. 2º O exercício dos cargos mencionados
no parágrafo único do art. 1º é condicionado
Parágrafo único. As normas deste Código ao atendimento dos requisitos gerais e especí-
aplicam-se às seguintes autoridades pú- ficos para provimento dos cargos, empregos e
blicas: I – Secretários do Município de funções públicas, e à rigorosa observância aos
Salvador e Subsecretários; II – diretores, deveres de honestidade, boa-fé, transparência,
titulares de cargos em comissão; III – su- probidade, decoro e compromisso com o inte-
perintendentes, presidentes e diretores de resse público.
agências, autarquias, fundações mantidas
pelo Poder Público, empresas públicas e Os requisitos gerais para ingresso no serviço
sociedades de economia mista. público do Município do Salvador estão previs-
tos no artigo 6º da Lei Complementar Municipal
Observa-se que este Código de Ética não nº 01/91, que aduz:
se aplica a todos os servidores públicos, mas,
especificamente, às autoridades do Município Art. 6º - São requisitos para ingresso no
do Salvador. Todos os cargos e funções acima serviço público do Município:
descritas são de livre nomeação e exoneração I - nacionalidade brasileira ou equiparada;
pelo Prefeito de Salvador, isto é, são cargos que II - gozo dos direitos políticos; III - quita-
decorrem da confiança do chefe do executivo ção com as obrigações militares; IV - nível
municipal, envolvem discricionariedade na sua de escolaridade exigido para o exercício do
escolha. cargo; V - idade mínima de 18 (dezoito)
anos completos; VI - habilitação legal para
Outrossim, infere-se do dispositivo acima o exercício do cargo; VII - boa saúde física
descrito que se objetivou abranger tanto a admi- e mental; VIII - não estar incompatibilizado
nistração direta quanto a administração indire- para o serviço público em razão de penali-
ta. A administração direta é o núcleo da Admi- dade sofrida.
nistração Pública municipal, que corresponde à  
própria pessoa jurídica política do Município do Dessa forma, percebe-se que além de obser-
Salvador e seus órgãos despersonalizados. A ad- var a ética, os escolhidos para os cargos do alto
ministração indireta, por outro lado, é formada escalão deverão observar os requisitos comuns a
por entes personalizados, vinculados, em regra, todos os servidores para investidura nos cargos,
a um órgão da Administração Direta, isto é, uma empregos e funções públicas do Município.
Secretaria, por exemplo: as autarquias, funda-
ções públicas, empresas públicas e sociedades O artigo 2º traz um parágrafo único que
de economia mista. aduz mais alguns requisitos obrigatórios para

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 19


DOUTRINA

a investidura em cargos, empregos e funções I – a atos de gestão patrimonial que en-


públicas do Município: volvam transferência de bens a cônjuge,
ascendentes, descendentes ou parentes na
Parágrafo único. Para cumprimento do linha colateral, aquisição, direta ou indireta,
disposto neste artigo, em até 30 dias após de controle de empresas;
a nomeação, além da declaração de bens II – a atos de gestão de bens, cujo valor possa
e rendas, na forma exigida pela legislação ser substancialmente afetado por decisão
pertinente, a autoridade pública municipal ou política do Governo Municipal, da qual
deverá apresentar ao Conselho Municipal de tenha prévio conhecimento ou acesso a in-
Ética Pública, instituído por este decreto, formações privilegiadas em razão do cargo
informações sobre sua situação patrimonial de que é titular.
que, a seu juízo, possa suscitar conflito com
o interesse público, e informações acerca O inciso primeiro visa proteger o patrimô-
de eventuais ações judiciais a que respon- nio público, bem como fiscalizar por via indireta
da, ressalvadas as hipóteses de segredo de o enriquecimento do gestor por meio de familia-
justiça. res, enriquecimento decorrente de atos de gestão
patrimonial por meio de transferência de bens a
A declaração de bens e rendas tem como parentes próximos. Tenta-se evitar a utilização
propósito demonstrar se houve acréscimo des- dos popularmente denominados “laranjas”, que
proporcional ao patrimônio da autoridade ao servem para burlar não só as leis, como também
deixar o cargo, isto é, serve para demonstrar se a fiscalização.
houve indício ou não de enriquecimento ilícito
por parte da autoridade durante a sua atuação Já o inciso tem como objetivo evitar o uso
como autoridade pública municipal. de informações privilegiadas por parte do ges-
tor para obtenção de acréscimo patrimonial em
As informações sobre eventuais ações ju- virtude desses conhecimentos decorrentes do
diciais servem como parâmetro de análise da cargo que ele exerce.
conduta do individuo, bem como para conhe-
cimento se essa pessoa responde ação criminal Além desses incisos, existem mais dois
ou de improbidade administrativa, mas não são parágrafos que demonstram a importância do
suficientes para uma tomada de decisão caso não Conselho Municipal de Ética Pública para diri-
haja trânsito em julgado, com base no princípio mir dúvidas, bem como o seu dever de manter o
da presunção de inocência. sigilo das informações prestadas pela autoridade
referentes à situação patrimonial, senão veja-se:
5. Artigo 3º
  § 1º Em caso de dúvida relacionada à situ-
Mais uma vez a Administração Pública ação patrimonial específica, a autoridade
do Município demonstra preocupação com as pública deverá dirigir consulta formal ao
alterações patrimoniais das suas autoridades, Conselho Municipal de Ética Pública.
exigindo que se informe as relevantes mudanças § 2º Conselho Municipal de Ética Pública
patrimoniais ocorridas durante a gestão. assegurará o caráter sigiloso das informa-
ções pertinentes à situação patrimonial da
Art. 3º A autoridade pública municipal autoridade pública.
deverá comunicar, imediatamente, ao
Conselho Municipal de Ética Pública, as al- Observa-se que em caso de dúvida relacio-
terações patrimoniais relevantes no seu pa- nada à  situação patrimonial a autoridade não
trimônio, em especial quando se referirem: deve se omitir nem ficar inerte, ao contrário, ela

20 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

tem o dever de informar ao Conselho Municipal dados por pessoa, empresa ou entidade que tenha
de Ética Pública, o qual, por sua vez, deverá interesse em decisão da autoridade ou do órgão
manter o sigilo das informações referentes à a que esta pertença. O objetivo deste dispositivo
situação patrimonial da autoridade. é evitar decisões tendenciosas, mantendo-se a
honestidade, a igualdade dos administrados e a
6. Artigo 4º imparcialidade da autoridade.
 
O art. 4º afirma o seguinte: “a autoridade Poderia suscitar-se a seguinte dúvida:
pública municipal tem o dever de esclarecer a quando se tratar de brindes, a autoridade deve
existência de eventual conflito de interesses, aceitá-los? Qual a diferença entre presente e
bem como comunicar qualquer circunstância ou brinde? Existe a possibilidade de recebimento
fato impeditivo de sua participação em decisão de um presente em virtude do cargo?
coletiva ou em órgão colegiado”.
Brinde é a lembrança distribuída a título de
Trata-se de dispositivo que busca a exigência cortesia, propaganda, divulgação habitual ou por
por parte da autoridade pública no esclarecimen- ocasião de eventos ou datas comemorativas que
to sobre existência de conflito de interesses, nada buscam a promoção de determinada pessoa. O
mais é do que o respeito ao princípio constitu- brinde não deve ter valores altos; razoavelmente
cional da impessoalidade, bem como tentativa de entende-se que seja algo em torno de R$100,00
evitar omissões e obscuridades quando houver (cem reais). Ademais, sua distribuição deve ser
conflitos entre interesses particulares e interesse generalizada, ou seja, não se destinar exclusiva-
público. mente a uma determinada autoridade. Outros-
sim, não é sensato aceitar brindes que determi-
Na segunda parte do artigo, intenta-se nada pessoa distribua com muita frequência. Há
evitar omissão por parte da autoridade quando casos decorrentes de relações diplomáticas que
houver circunstância que implique suspeição ou permitem que a autoridade receba presentes em
impedimento da participação da autoridade em virtude do cargo que exerce.
decisão coletiva ou de órgão colegiado. Ocorren-
do casos em que haja esse tipo de circunstância Não é possível prever-se todos os casos no
que impeça a autoridade de participar, ela tem que se refere às vantagens, decorrentes de fontes
a obrigação de comunicar. privadas, às autoridades. Dessa forma, é preciso
que se analise caso a caso e, em havendo dúvida,
7. Artigo 5º a autoridade municipal deve submeter o fato ao
  Conselho Municipal de Ética Pública.
A norma contida no artigo, abaixo trans-
crita, busca a manutenção do interesse público, 8. Artigo 6º
bem como se evitar favorecimento a terceiros
por meio de prestações indevidas às autoridades. “Art. 6º É vedado o exercício simultâneo dos
cargos mencionados nos incisos I, II e III,
“Art. 5º A autoridade pública municipal não do parágrafo único, do art. 1º, deste Decreto,
poderá receber salário ou qualquer outra com o de presidente de partidos políticos ou
remuneração ou vantagem de fonte privada órgãos de ação partidária.”
em desacordo com a lei.”
Quem estiver ocupando os cargos de Secre-
Além da proibição expressa de salários ou tário do Município de Salvador ou Subsecretá-
remuneração de fontes privadas, entende-se rio; diretor; cargo em comissão; superintenden-
que é também proibida a aceitação de presentes te, presidente e diretor de agências, autarquias,

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 21


DOUTRINA

fundações mantidas pelo Poder Público, empre- Todavia, a exoneração é  ato discricionário
sas públicas e sociedades de economia mista, do Prefeito, que pode ou não acolher a sugestão
não pode ser presidente de partidos políticos ou da Comissão de Ética pública do Município do
órgãos de ação partidária. Salvador. Entende-se ser insustentável a ma-
nutenção de uma autoridade que descumpre o
O que se busca com essa norma é evitar a Código de Conduta em comento.
influência direta de partidos políticos no âmbito
da Administração Pública Municipal e, dessa O gestor não está acima do ordenamento
forma, não permitir a confusão entre gestão jurídico nem dos princípios que regem a admi-
municipal e política partidária. nistração pública. Não se pode conceber uma
boa administração pública regida com excesso
9. Artigo 7º de poder e desvio de finalidade. Dessa forma,
  embora a exoneração da autoridade municipal
Entende-se que há uma relação complemen- seja um ato discricionário do chefe do executi-
tar entre moral e direito e desta relação decorre a vo, o prefeito deve ater-se às recomendações do
necessidade de se utilizar a institucionalização e Conselho Municipal de Ética Pública, sob pena
coerção do direito para fazer com que determina- de se tratar de um órgão meramente formal e
das normas (antes da institucionalização, apenas sem eficácia nas suas decisões.
moral) sejam cumpridas. Daí a necessidade de
O procedimento, próprio do direito, busca a
se institucionalizar a moral na Administração
legitimação das decisões, essa legitimação impli-
Pública, já que a ética não é suficiente para fun-
ca a manutenção da autoridade, isto é, a aceitabi-
damentar a ação do homem.
lidade e obediência às normas. Ademais, tanto a
autoridade foi escolhida pelo prefeito quanto os
Art.7º A inobservância das normas do pre-
membros do Conselho, órgão analisado a seguir.
sente Código de Conduta acarretará a apli-
cação de advertência à autoridade pública
10. Artigo 8º
municipal, observando o devido processo
legal, podendo, em caso de gravidade, o
 
O Conselho Municipal de Ética Pública é o
Conselho Municipal de Ética pública suge- órgão colegiado responsável pelos julgamentos
rir ao Chefe do poder executivo Municipal relacionados ao descumprimento do Código de
a exoneração do responsável. Conduta da Alta Administração e é composto
por cinco membros, que devem ser cidadãos
A norma do dispositivo supracitado tem o residentes em Salvador, nomeados pelo prefeito
mister de criar uma sanção para o descumpri- para um mandato de dois anos, sem remunera-
mento do Código de Conduta em comento. É a ção, admitida uma recondução.
aplicação do velho brocardo: “direito sem sanção
é como tempestade sem trovão, não assusta”, Art. 8º Fica instituído o Conselho Munici-
dessa forma, a sanção visa coagir o indivíduo ao pal de Ética Pública, composto por cinco (5)
cumprimento das normas. membros e número igual de suplentes, no-
meados pelo Prefeito, escolhidos entre cida-
Quando se entender que a natureza do dãos residentes em Salvador, de idoneidade
descumprimento do Código de Conduta é leve, moral e reputação ilibada, para o exercício
aplica-se a advertência. Dependendo do grau e de mandato de (2) dois anos, admitida uma
da relevância do descumprimento, a Comissão de recondução, não podendo a escolha recair
Ética Pública do Município do Salvador poderá em servidor público municipal da ativa.
sugerir ao Chefe do Poder Executivo Municipal Parágrafo único. Os membros do Conselho
a exoneração da autoridade. Municipal de Ética Pública não serão re-

22 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

munerados, sendo, porém, seu desempenho VIII – elaborar o seu Regimento Interno, no
considerado prestação de serviço de relevan- prazo de até 120 (cento e vinte) dias.
te interesse público.  
Parágrafo único. Caberá, ainda, ao Con-
Duas observações devem ser realizadas: a selho, propor um Código de Ética para o
primeira de que o membro do Conselho não Serviço Público Municipal.
pode ser servidor público municipal da ativa;  
e a segunda que o membro escolhido para ser O Conselho Municipal de Ética Pública
conselheiro não terá remuneração; todavia, deve zelar pela aplicação do Código de Condu-
será reconhecido pelo seu desempenho, sendo ta, logo seus membros devem atuar de forma a
considerado prestação de serviço relevante para servir como exemplo às autoridades municipais.
o interesse público. O Conselho é o órgão que recebe as denúncias
relacionadas a descumprimento do Código em
A não utilização de servidores da ativa implica comento, devendo recebê-las e proceder à sua
uma maior imparcialidade por parte dos membros apuração, isto é, averiguar a veracidade dos fatos,
do Conselho ao julgar os casos propostos à Comis- por meio de uma instrução probatória, trazendo
são. Além disso, o fato de não ter remuneração re- aos autos fundamentos que sirvam para concluir
duz a utilização deste órgão como o popularmente o processo com uma decisão justa.
denominado “cabide de emprego”.
A decisão do Conselho deve ser encami-
11. Artigo 9º nhada ao Gabinete do Prefeito para análise e
  conhecimento, tendo em vista ser o Chefe do
As atribuições do Conselho estão elencadas Executivo quem decidirá por uma possível exo-
no artigo nono, que aduz o seguinte: neração da autoridade.

Art. 9º Compete ao Conselho Municipal de Igualmente, cabe à Comissão de Ética diri-


Ética Pública: mir as dúvidas quanto à aplicação do Código de
I – zelar pela aplicação do presente Código Ética em comento, bem como elaborar as normas
de Conduta Pública; para seu cumprimento. Além disso, a Comissão
II – receber e proceder a apuração de deve elaborar seu próprio Regimento Interno,
denúncias relativas a atos praticados por o que deve ser feito em 120 (cento e vinte) dias
integrantes da Alta Administração pública da publicação do Decreto nº 23.738/13, ou seja,
Municipal que importem infração a este a partir de 3 de janeiro de 2013.
Código;
III – aplicar sanções que lhe tenham sido O parágrafo único ainda criou uma última
atribuídas por este código ou em legislação tarefa para o Conselho, a criação de um Código
específica; de Ética para o Serviço Público Municipal.
IV – decidir, originariamente, sobre ques- Tarefa nada fácil, tendo em vista a dificuldade
tões relativas à aplicação deste código; de se abarcar o máximo possível de atitudes
V – conhecer de consultas, denúncias  ou que impliquem descumprimento da moral no
representações relativas aos integrantes da âmbito da Administração Pública, mas devem
Alta Administração Pública Municipal; ser institucionalizadas.
VI – dirimir dúvidas sobre a aplicação deste
Código e deliberar sobre os casos omissos; 12. Considerações finais.
VII – elaborar normas e procedimentos  
necessários ao fiel cumprimento e aperfei- A institucionalização da ética tornou-
çoamento do presente Código de Conduta; -se frequente no âmbito da Administração

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 23


DOUTRINA

Pública e isto tem sido percebido pela criação mento, precisando haver fiscalização e punição
de Comissões de Ética e de Códigos de Ética dos infratores do Código de Ética.
pelos diversos entes federativos, como é o caso
deste ora comentado. O Município de Salvador A criação de um Decreto, que prevê a pos-
se mostra inteirado do assunto dentro de um sibilidade de punição de autoridades que ajam
panorama nacional, por meio da criação de um de encontro à moral, tenta aproximar – o que
Código de Conduta da alta Administração e de para muitos parece ser impossível – a ética da
um Conselho de Ética Municipal, que será res- política de uma forma impositiva. Todavia, se o
ponsável pela implantação do Código de Ética Chefe do Executivo não acatar as sugestões do
para o Serviço Público Municipal. Conselho de Ética, todo esse decreto comentado
perde seu sentido.
A institucionalização tem o papel de permi-
tir uma maior segurança, um consenso esperado Daí a necessidade de, através do procedi-
pela sociedade. Segundo Luhmann, a institucio- mento sem conteúdo – já que este pode implicar
nalização possui uma característica especial, “sua descrédito –, legitimar o Conselho de Ética,
função reside em uma distribuição tangível de dando-lhe a autoridade merecida. Para haver
encargos e riscos comportamentais, que tornam a obediência às suas decisões é preciso que o
provável a manutenção de uma redução social prefeito acolha as decisões dos conselheiros,
vivenciada e que dão chances previsivelmente fortalecendo, assim, essa instituição.
melhores a certas projeções normativas”.6
Espera-se dos gestores públicos municipais
Às vezes será necessário acrescentar de- que ajam de forma ética, respeitando a Consti-
terminados princípios éticos no catálogo dos tuição Federal e a Lei Orgânica do Município
direitos, sendo necessária a positivação para do Salvador. Destarte, ao analisar a ética na ad-
transformar a ética em direito. Segundo Alexy: ministração pública municipal, percebe-se que
ainda há um longo caminho a ser percorrido,
A transformação dos direitos do homem mas que já foi dado o primeiro passo.
em direito positivo é somente então necessá-  
ria, quando, no fundo, é necessário ter direito REFERÊNCIAS
positivo. São três problemas que levam à neces-  
sidade do direito: o problema do conhecimen- ALEXY, Robert. Direito, Razão, Discurso: Estu-
to, o problema da imposição e o problema da dos para a filosofia do direito. Tradução de Luis
organização.7 Afonso Heck. São Paulo: Livraria do Advogado
Editora, 2010.
O direito é uma consequência da comple-
xidade social, que deve se complementar com a CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual
moral, não sendo necessário eliminá-la do seu de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen
conceito. Isso implica um esvaziamento da ética, Juris, 2007.
já que a moral, quando institucionalizada, passa
a ser tutelada pelo direito em busca da utiliza- DELGADO, José Augusto. O Princípio da
ção das ferramentas jurídicas para solução dos Moralidade Administrativa e a Constituição Fe-
problemas éticos da sociedade.
6
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução de
Utilizando-se as ideias de Luhmann, as Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasilei-
normas jurídicas são expectativas estabilizadas ro.1983, p. 81.
7
ALEXY, Robert. Direito, Razão, Discurso: Estudos para
em termos contrafásicos que podem ou não ser a filosofia do direito. Tradução de Luis Afonso Heck. São
cumpridas. Entretanto, espera-se o seu cumpri- Paulo: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 113.

24 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

deral de 1988. BDjur, Brasília, DF. Disponível


em: <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/hand-
le/2011/9917>. Acesso em: 17 out. 2011.

HASSAN, Eduardo. A Relação Complementar


entre a Ética e o Direito. In: Revista de Direito
UNIFACS. Disponível na internet: < http://
www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/
view/2268>, acesso em 26/02/2013.

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tra-


dução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1983

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Adminis-


trativo Brasileiro. 24. ed. atualizada por Eurico
Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José
Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros,
1999.

MURICY, Marília. O Princípio da Moralidade


Administrativa. Disponível em: < http://terra-
magazine.terra.com.br/interna/principio+da+
moralidade+administrativa.html.> Acesso em
19 out 2011.

______. (2001). O Procurador do Estado e a ética


profissional. In: Revista Jurídica APERGS: Ad-
vocacia do Estado. Ano 1, nº 1, Set. 2001 Porto
Alegre: Metrópole, 2001.

VALLS, Álvaro L. M. O Que é Ética? Editora


Brasiliense, 1994.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 25


DOUTRINA

AS POLÍTICAS PÚBLICAS E AS
DOUTRINA
INSTITUIÇÕES JURÍDICAS.
A EXTRAJUDICIALIDADE COMO
ALTERNATIVA PARA A EFETIVIDADE
DOS DIREITOS SOCIAIS
 
 
 

Geórgia Teixeira Jezler Campello*


 
 
 
 
AS POLÍTICAS PÚBLICAS E AS INSTITUIÇÕES JURÍDI-
CAS. A EXTRAJUDICIALIDADE COMO ALTERNATIVA
PARA A EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS
 

* Procuradora do Município do Salvador


Especialista em Direito Tributário pela
PUC/SP
1. INTRODUÇÃO
Especialista em Filosofia Contemporâ-
nea pela Faculdade Mosteiro de São As novas Cartas do pós-guerra abandonaram o modelo de
Bento
Vice-Presidente da Associação Na- constituições regulamentadoras apenas das estruturas institucio-
cional de Procuradores Municipais – nais de poder e sofreram uma remodelação, passando a contemplar
ANPM
Presidente da Comissão de Advocacia
princípios comuns em matéria de direitos. É o que se pode ver da
Pública – OAB/BA Carta das Nações Unidas, da Declaração Universal de Direitos e
vários outros pactos internacionais e regionais, que construíram
um modelo de referência, que orienta os ordenamentos tradu-
zidos em constituição, na onda da modernização política, com
inspiração comum em matéria de direitos fundamentais  e com
influência recíproca, multiplicando a presença de determinado
padrão de constitucionalismo democrático dos direitos no cenário
internacional.

Desse modo, passa-se a apontar o Estado Democrático de 


1
A sociedade de confiança pensada por
Peyrefitte é uma sociedade em expan- Direito  como ambiente próprio da geração da sociedade de
são, ganha-ganha (“se tu ganhas, eu confiança, a sociedade da solidariedade, do projeto comum, da
ganho”); sociedade de solidariedade,
de projeto comum, de abertura, de
abertura, de intercâmbio, de comunicação, nos moldes estabele-
intercâmbio, de comunicação. cidos por Peyrefitte1.

26 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

Esse Estado Democrático de Direito opera 2. O DIREITO CONSTITUCIONAL CON-


com a presença de dois atores, de um lado as TEMPORÂNEO. OS VALORES COMO
pessoas, que compõem o conceito hoje comple- CAMINHO
xo de sociedade, e de outro os órgãos do poder
político, que compõem o conceito também hoje O ambiente filosófico do Direito Constitu-
complexo de Estado; valendo ressaltar que a cional contemporâneo é o do pós-positivismo,
relação entre esses dois protagonistas calca-se na que se caracteriza pela reaproximação entre o
integração, e não mais se estabelecem em bases Direito e a Ética.
hierarquizadas.
Conforme preleciona Ricardo Lobo Tor-
Nessa perspectiva, passam a ser juridici- res2, haveria uma volta  aos valores como ca-
zados valores sociais anteriormente afastados minho para a superação do positivismo, numa
da seara constitucional, e junto com os direitos verdadeira virada kantiana, com a fundamenta-
sociais vão necessariamente as sobreditas rela- ção moral dos direitos humanos e com a busca
ções de colaboração entre Estado e sociedade, e, da justiça fundada no imperativo categórico.
portanto, as relações políticas.
O marco dessas ideias pode ser considera-
Nota-se então, nesses novos tempos, o aban- da a obra A Theory of Justice, de John Rawls. A
proposta de Rawls inicia com a suposição de
dono da força e um direcionamento finalístico
um suposto contrato social – desconectado de
do Estado, o que, por conseguinte, desencadeia
um momento histórico específico –, no qual as
o surgimento de modelos institucionais que
pessoas seriam reunidas numa situação inicial,
viabilizam o alcance dos fins preceituados pelas
denominada de posição original, com o intuito
cartas constitucionais.
de deliberar sobre os princípios que funda-
mentariam as regras do justo – os princípios da
No palco brasileiro, esse fenômeno do novo
justiça – nas instituições, porquanto as institui-
desenho institucional ensejou a previsão de fer-
ções seriam as intermediadoras entre as pessoas
ramentas aptas a manter o controle de omissões
no convívio social. A justiça, segundo ele, é a
administrativas;  a ampliação da possibilidade
primeira virtude das instituições sociais, como
de controle de constitucionalidade exercido pelo a verdade o é dos sistemas de pensamento3.
Judiciário por meio da via concentrada – ação di-
reta de inconstitucionalidade, ação declaratória Rawls afirma, ainda, que o único meio de
de constitucionalidade, ação de descumprimento aqueles reunidos na posição original escolherem
de preceito fundamental – e pela via difusa – por os princípios justos, seria imputando a esses
meio de incidentes processuais a serem julgados legisladores iniciais um véu de ignorância,
por juízes monocráticos e tribunais; a intensifi- segundo o qual cada pessoa ignoraria todas as
cação dos mecanismos e estratégias de ampliação suas circunstâncias pessoais anteriores a essa
do acesso à justiça – Juizados Especiais Cíveis e situação hipotética, a fim de efetuar as escolhas
Criminais, Justiça Itinerante, Advocacia Pública da maneira mais isenta possível. Desse modo,
Defensoria Pública, Ministério Público. se um legislador fosse um grande proprietário
de terras e soubesse disso, seria difícil que ele
Assim, também no Brasil, o constituciona- concordasse que a distribuição equânime de
lismo foi erigido a partir de um sistema de poder
guiado finalisticamente, teve-se por imprescin- 2
TORRES. Ricardo Lobo. Tratado de direito Constitucional,
dível a existência de instrumentos e instituições financeiro e tributário: valores e princípios constitucionais
tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 41.
jurídicas que garantam a aplicação das normas 3
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Brasília: Universi-
constitucionais. dade de Brasília, 1981, p. 27.
 
Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 27
DOUTRINA

terras fosse algo justo. Por outro lado, segundo –, a judicialização das políticas públicas torna-
Rawls, se fosse impossível para esses legislado- -se fatal.
res iniciais saberem se possuem terras ou não,
seria mais fácil concluírem que a distribuição A admissão do controle constitucional de
equitativa de terras é algo justo, haja vista que efetivação das políticas públicas pelo Judiciá-
os legisladores teriam receio de – após ser le- rio pátrio foi reconhecida de forma categórica
vantado o véu de ignorância – descobrirem que pelo Supremo Tribunal Federal, conforme se
não possuíam quaisquer bens materiais. Como depreende do trecho destacado abaixo, do RE
se observa, o egoísmo é o ponto que justifica a 410715 AgR/SP, cujo relator foi o Ministro
necessidade do véu de ignorância para a obten- Celso de Mello, e que versou sobre o direito à
ção dos princípios da justiça. educação infantil, assegurado no art. 208, IV da
Carta Magna. A mencionada decisão afirmou
As bases da nova visão do Direito Consti- que a educação infantil representa prerrogativa
tucional estão calcadas em alguns fatores, quais constitucional indisponível, que, deferida às
sejam: a integração dos valores na atividade crianças, a estas assegura, para efeito de seu de-
interpretativa; a normatividade dos princípios; senvolvimento integral, e como primeira etapa
e a construção dos direitos fundamentais passa do processo de educação básica, o atendimento
a ter como cerne a dignidade da pessoa humana. em creche e o acesso à pré-escola. E nessa esteira
asseverou que:
Os princípios revelam os valores da socie-
dade e deles extrai-se uma ordem com fulcro Embora resida, primariamente, nos Pode-
na qual o Direito passa a ser compreendido e res Legislativo e Executivo, a prerrogativa
aplicado. de formular e executar políticas públicas,
revela-se possível, no entanto, ao Poder
Nesse Estado constitucional de direito, a Judiciário, determinar, ainda que em bases
Constituição passa a valer como norma jurídica excepcionais, especialmente nas hipóteses
e a limitar o conteúdo das leis e atos normativos. de políticas públicas definidas pela própria
Impõe, ademais, deveres ao Estado. E nesse novo Constituição, sejam estas implementadas
paradigma exsurge a supremacia do tribunal pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja
constitucional. omissão – por importar em descumpri-
mento dos encargos político-jurídicos que
Questões de cunho social, político e moral sobre eles incidem em caráter mandatório
passam a ser judicializadas, ao passo em que – mostra-se apta a comprometer a eficácia e
há uma certa retração tanto do Legislativo a integridade de direitos sociais e culturais
quando do Executivo diante da transferência de impregnados de estatura constitucional. A
poder para a esfera judicial. questão pertinente à “reserva do possível”.
 
3. DESAFIOS E OBSTÁCULOS ÀS INSTI- Vale observar, contudo, que nesse enfren-
TUIÇÕES JURÍDICAS tamento de temas de ordem política e social, o
Judiciário depara-se com limites, dentre os quais
Num sistema em que as políticas públicas a sobrecarga do sistema judiciário; a imparciali-
estão constitucionalizadas e que prevê garantias dade do juiz, que o impede de avançar no sentido
de controle do poder; num ambiente permeado de provocar a composição e autorregulação dos
de decepção com a política em geral, bem como litígios e isso decorre do sistema adversarial da
diante do recuo dos representantes políticos dinâmica judicial, que tem por consequência
perante temas polêmicos – sendo-lhes mais uma preocupação apenas com o momento da
conveniente sejam discutidos na seara judicial aplicação do direito posto e não com a construção

28 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

e reconhecimento de novos direitos pelo juiz. car a idéia de legitimidade, que requer além do
Significa dizer que o poder judicial é retrospec- cumprimento das regras jurídicas o atendimento
tivo e reativo, ou seja, só atua quando solicitado da moral administrativa e da finalidade pública;
pelas partes ou por outros setores do Estado. a outra seria para agregar ao princípio da legali-
Dessa forma, a disponibilidade dos tribunais dade a noção de constitucionalidade.
para resolver litígios é abstrata, tornando-se
concreta na solução de conflitos, na medida em O que se observa hoje é a atividade estatal
que houver uma procura social efetiva.4 de funcionalização dos direitos fundamentais,
que se concentra sobre os dois dados que estão,
Alerta Canotilho5 que a forma tradicional na visão de Sabino Cassese, relacionados a dois
de solução de litígios, através dos tribunais e conceitos: à autoridade do governo e à eficiência da
mediante decisão de um juiz imparcial, é consi- máquina estatal. Esses dois elementos – autoridade
derada hoje incapaz de assegurar por si só a paz e eficiência – experimentam sucessivas mudanças,
jurídica e de garantir em tempo razoável  alguns na medida em que as instituições políticas se
direitos e interesses das pessoas. Agrega a isso, o desenvolvem e ultrapassam a sua própria esfera
fato da forma estatal autoritária de fazer justiça de ação tradicional e passam a intervir mais pro-
constituir-se em obstáculo à tendência genera- fundamente na gestão de muitas das organizações
lizada de autorregulação dos litígios. civis da sociedade, de tal sorte que as Adminis-
trações Públicas, para lograrem uma boa atuação
Em que pese os óbices expendidos, não institucional, acabam “constrangidas a renunciar
há obstáculos intransponíveis à institucionali- à autoridade e a buscar o consentimento dos cida-
zação de formas alternativas da justa composição dãos”6 e em todo esse processo de funcionalização
dos conflitos. Até porque o Estado Democrático dos direitos fundamentais a Advocacia Pública
de Direito opera com base na integração e não na exerce papel relevante.
hierarquia entre as pessoas que compõem a  socie-
dade e o Estado, permitindo, assim, a construção Vale asseverar que a Defensoria Pública
de fórmulas de interlocução e convívio entre eles. é instituição essencial à função jurisdicional do

Nessa linha, abre-se caminho para a juridi-


cização das políticas públicas, com o intuito de se 4
Ademais, outras limitações se impõem ao Judiciário, no
estabelecer soluções extrajudiciais de conflitos, que atine à efetivação das referidas políticas, como as bar-
reiras das escolhas políticas, que cabem exclusivamente
onde exercem papel de destaque a Advocacia aos  representantes eleitos  majoritariamente pelo povo
Pública, o Ministério Público e a e a Defensoria e não ao juiz. John Rawls demarcou o papel das cortes
constitucionais, estabelecendo que questões de princípio
Pública. devem ser decididas, em última instância, por cortes cons-
titucionais, com base em argumentos de razão pública. O
papel da razão pública é providenciar os termos do debate
À Advocacia Pública compete, além das
e justificação política para o uso do poder político coercitivo
funções de representação judicial e extrajudicial, nas relações entre cidadãos livres e iguais, que supõe
a atividade de consultoria e assessoramento um tipo de imparcialidade para os julgamentos públicos,
estabelecendo um ideal contratualista para os termos da
jurídico do Executivo, visando a juridicidade cooperação que todos podem endossar.
plena dos atos do referido Poder. O controle Segundo  Rawls (2005, p. 237): “The court fulfills this role
when it clearly and effectively interprets the constitution
da legalidade não é a única atividade afeta aos in a reasonable way; and when it fails to do this as ours
Advogados Públicos, mas também o controle often has, it stands at the center of a political controversy
da legitimidade, moralidade, juridicidade e das the terms of settlement of which are public values.”
5
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria
regras e princípios constitucionais. da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 672
6
CASSESE, SABINO. Cultura e política del diritto ammi-
nistrativo. Prefácio. Bolonha: Il Mulino, 1971. Republicado
O princípio da legalidade vem sofrendo pela Editora Dalloz, Paris, em 2008, em tradução e apre-
modificações de duas ordens. Uma  para abar- sentação atualizadas de MARCEL MORABITO

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 29


DOUTRINA

Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e, para que se efetivem as suas funções essen-
e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, ciais à democracia, terão de enfrentar alguns
na forma do art. 5º, LXXIV (art. 134 da CF/88), desafios, como: i) Desenvolver novos métodos
competindo-lhe também evitar e prevenir a de atuação, buscando caminhos propiciadores
judicialização de relações sociais. da consensualidade e abertura para o diálogo;
ii) Habilitarem-se na atribuição institucional
Assim, a Defensoria tem papel fundamental de intervir preventiva e extrajudicialmente
na  efetivação e na concretização das políticas nos conflitos, buscando conhecimento técnico
públicas, a cargo do Executivo, quando da sua adequado e a necessária interlocução com outros
recusa, retardamento ou insuficiente proteção ramos das ciências. Os referidos conhecimentos
pelo órgão judiciário; e na ampliação decisiva conduzirão as instituições pelo viés da razo-
do acesso à justiça. abilidade, desviando-as de debates de cunho
meramente político; iii) A busca de maior  for-
Também relevante na efetivação de direitos talecimento institucional da Advocacia Pública,
sociais é o Ministério Público. Segundo o artigo do Ministério Público e da Defensoria Pública,
127 da Carta Magna: “O Ministério Público é que lhe garantam independência na condução
instituição permanente, essencial à função ju- dos seus misteres.
risdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa
da ordem jurídica, do regime democrático e dos O grande obstáculo às instituições em
interesses sociais e individuais indisponíveis.” questão é a existência de direitos concedidos
constitucionalmente de forma ampla e não sis-
O Ministério Público serve como canal pri- tematizados normativamente pelo Estado – o
vilegiado às demandas que visam a concretização que, inclusive,  facilitaria as ações de controle.
dos novos direitos e o resgate da cidadania de Nessas hipóteses, de ausência de regulamenta-
parcela da população brasileira, agindo como ção, torna-se temerário às instituições jurídicas
ator privilegiado na consolidação da democracia apresentarem escolhas políticas no lugar dos
no país. gestores públicos, governantes eleitos a partir
de um certame democrático.
As mencionadas instituições são funda-  
mentais na prevenção do litígio em massa, não 4. SOLUÇÕES E ESTRATÉGIAS INOVA-
necessitam de provocação e são dinâmicas, ainda DORAS
mais quando o Estado envereda-se em direção a
um novo movimento social, assumindo a posição As soluções e estratégias para as instituições
de coordenação de interesses diversos. jurídicas desenvolverem o seu papel  de conduto-
ras da máxima garantia dos direitos fundamen-
Cumpre registrar que há outros centros tais, no que se refere a demandas que envolvem
produtores do direito, cujas interpretações do di- grande parte da sociedade, passam também por
reito vigente não correspondem especificamente algumas medidas que devem ser adotadas pela
à interpretação judicial.  Desse modo, esferas não Administração Pública.
estatais podem ser palco de debates de temas de
cunho jurídico e que abrange boa parcela da po- A princípio, cumpre registrar que a au-
pulação, como questões relacionadas à educação sência da transparência na prática pública
e saúde, e nesse contexto as instituições jurídicas reforça a idéia de que as tarefas constitucionais
exercem papel de destaque. não encontram concretização, de modo que se
deve exigir da Administração a divulgação de
Assim, nesses novos centros de debates as informação e o investimento em transparência
instituições jurídicas têm participação constante pública, de sorte que os indivíduos possam ter a

30 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

exata dimensão das políticas públicas efetivadas essenciais à concretização de valores democráti-
pela Administração. cos. São elas a Advocacia Pública, o Ministério
Público e a Defensoria Pública. Esses órgãos
Demandar o Estado no sentido de desenvol- jurídicos exercem função de relevo na prevenção
ver um programa de ações sistematizadas, como dos litígios e na dinamização da implementação
resultado da sua atuação finalística, de modo de políticas públicas que atingem uma massa de
que as suas ações sejam enunciadas e, portanto, beneficiários.
conhecidas da sociedade.
Nessa seara, enfrentam desafios inúmeros,
As instituições jurídicas, que possuem a bem como obstáculos, que podem ser superados
função de garantir os direitos sociais, devem, com o fortalecimento institucional dos referidos
além de conhecê-los, reconhecer os novos su- órgãos; investimento e soluções alternativas na
jeitos de direitos que exsurgem do texto cons- identificação dos sujeitos de direitos que ema-
titucional, viabilizando a criação de estratégias nam do texto constitucional; na exigência de um
de inclusão. planejamento das políticas por parte do Estado,
bem como com a criação de um espaço público
Vale observar que um instrumento extra- de discussão, multidisciplinar, que tenha como
judicial para a solução de conflitos metaindivi- integrantes não só as  instituições jurídicas,
duais muito proveitoso – mais célere que a ação mas órgãos técnicos da Administração Pública,
civil pública – é o Termo de Ajustamento de responsáveis pela execução das políticas e enti-
Conduta – TAC, bastante utilizado pelo Minis- dades representativas da sociedade civil, a fim
tério Público e firmado com gestores, visando de que haja o melhor entendimento em prol da
promover uma tutela preventiva e reparadora realização mais pura dos valores democráticos
dos danos causados aos direitos sociais, evitando inspiradores dos direitos previstos na Consti-
as delongas do processo judicial. tuição Federal.

A rigor, a melhor forma de se aproximar a Com tais razões, a estratégia mais eficaz
realidade fática dos direitos previstos é o inves- na busca de soluções extrajudiciais para a con-
timento na exploração de um espaço público de cretização das políticas públicas é a abertura de
discussão, ou cogestão, contemplando não só as espaço para a discussão das referidas políticas;
instituições jurídicas, mas órgãos da Administra- entretanto, uma discussão permeada de argu-
ção Pública, responsáveis pela execução das polí- mentação não eminentemente jurídica, mas
ticas, como também entidades representativas da plural, reflexo da participação multifacetada
sociedade civil, em cujo ambiente se estabeleça dos atores deste palco, onde todos ganham e que
como elo de entendimento uma linguagem não tem como pano de fundo a solidariedade social,
estritamente técnico-jurídica, mas acessível e tão bem posta na Carta Magna como objetivo
compreensível por todos os envolvidos. da República Federativa do Brasil e tão bem
  descrita por Wladimir Novaes Martinez7 como
5  CONCLUSÃO a projeção do amor individual, exercitado entre
parentes e estendido ao grupo social. O instinto
Em meio  à constitucionalização de valores animal de preservação da espécie, sofisticado e
sociais e aos obstáculos inerentes à estrutura dos desenvolvido no seio da família, que encontra
órgãos judiciários – como o volume de ações e a na organização social ambas as possibilidades
imparcialidade do juiz –, limitadores da oferta de manifestação.
de uma prestação jurisdicional de direitos fun-  
damentais em tempo razoável e de forma efetiva,  7
MARTINEZ, Wladimir Novaes. Princípios do direito previ-
despontam algumas instituições jurídicas como denciário. São Paulo: RT, 1995, p. 78

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 31


DOUTRINA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS RAWLS, John. Political liberalism. New York:


Columbia University Press, 2005.
ASENSI, Felipe Dutra. Curso prático de argu-
mentação jurídica. São Paulo: Elsevier, 2010. __________. Uma Teoria da Justiça. Brasília:
Universidade de Brasília, 1981.
BARROSO, Luis Roberto. O Constituciona-
lismo Democrático no Brasil. Rio de Janeiro: SANTOS, Boaventura de Sousa. Reinventar la
Fórum, 2011. democracia: reiventar el estado. Buenos Aires:
Consejo Latino Americano de ciências Sociales
__________. Constituição, Democracia e Su- – CLASCO, 2006.
premacia Judicial: Direito e Política no Brasil  
Contemporâneo. Disponível em E7C_artigo- TORRES. Ricardo Lobo. Tratado de direito
-constituicao-democracia-supremacia-judicial. Constitucional, financeiro e tributário: valores
pdf . Acesso em 20/05/2013. e princípios constitucionais tributários. Rio de
Janeiro: Renovar, 2005
CARVALHO. Raquel Melo Urbano.  Curso de
Direito Administrativo. Salvador: Jus Podivm, VALLE, Vanice Regina Lírio do. Políticas
2008. Públicas, Direitos Fundamentais e Controle
Judicial. Belo Horizonte: Forum, 2009.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Consti-
tucional e Teoria da Constituição. Coimbra:
RE 410715 AgR/SP, Relator Ministro Celso de
Almedina, 2000.
Mello, DJ 03/02/2006. Acessado no link http://
redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
CASSESE, Sabino. Cultura e política del diritto
jsp?docTP=AC&docID=354801 em 14/07/13
amministrativo. Prefácio. Bolonha: Il Mulino,
1971. Republicado pela Editora Dalloz, Paris, em
2008, em tradução e apresentação atualizadas de
MARCEL MORABITO

COMPARATO. Fabio Konder. As novas funções


judiciais do estado moderno. In: Revista da Aju-
ris. Porto Alegre: AJURIS, n. 37, 1987.

MARTINEZ, Wladimir. Princípios do direito


previdenciário. São Paulo: RT, 1995.

MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública


e a reparação do dano ao meio ambiente. 2. ed.,
atualizada. São Paulo: Editora Juarez de Oli-
veira, 2004.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Qua-


tro Paradigmas do direito administrativo pós-
-moderno; legitimidade, finalidade, eficiência,
resultado. Belo Horizonte: Fórum, 2008.

PEYREFITTE, Alan. A Sociedade de Confian-


ça. Lisboa: Instituto Piaget, 2000.

32 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


CIDADES SUSTENTÁVEIS: O
FUTURO JÁ CHEGOU DOUTRINA
 

Gisane Tourinho Dantas*


Luís Gustavo Vilas Boas de Sena**

Sumário: Introdução – 1. A estrutura normativa brasileira acerca * Procuradora do Município do Salvador,


do desenvolvimento urbano – 2. Cidades sustentáveis – Conside- lotada na Procuradoria Fiscal
Ex-Chefe da Representação da Pro-
rações Finais – Referências.                                                                        curadoria na Secretaria de Serviços
Palavras-chave:  Desenvolvimento urbano; Estatuto da Cidade; Públicos e Prevenção à Violência
Ex-Defensora Pública do Estado de
Cidades sustentáveis. Sergipe
  Mestranda em Direito pela Universida-
  de Federal da Bahia (UFBA)
Especialista em Direito Tributário pelo
Introdução Instituto Brasileiro de estudos Tributá-
  rios (IBET)
Especialista em Direito do Estado pela
Desde que a espécie humana passou a se relacionar em co- Universidade Federal da Bahia (UFBA)
munidades situadas em espaços geográficos bem delimitados, o Especialista Direito pela Escola dos
Magistrados da Bahia: Curso de Pós-
conceito de cidade vem se modificando. O viver em sociedade pro-
-Graduação Lato Sensu Preparatório
vendo e utilizando serviços públicos tem se aprimorado ao longo à Carreira de Magistratura (EMAB/
do curso da história e chega, na atualidade, ao conceito de cidade UCSAL)
Membro associado do Instituto Brasi-
sustentável. leiro de Advocacia Pública
  Possui diversos artigos publicados em
periódicos.
Pela inovadora concepção constitucional acerca do tema de- ** Advogado e Professor
senvolvimento urbano, a sustentabilidade das cidades se constitui Consultor do PNUD (Programa das Na-
na meta máxima a ser perseguida. Por esse prisma, o princípio do ções Unidas para o Desenvolvimento)
para projetos de crédito de carbono
desenvolvimento sustentável – presente no art. 225 da Lei Maior Mestre em Regulação de Energia da
–, é o grande norteador da política urbana no Brasil. Indústria do Petróleo e Gás (UNIFACS)
  Possui diversos artigos publicados em
periódicos
Nesse sentido, conta Humberto Ávila, em sua obra Teoria dos
Princípios, que os princípios remetem o intérprete a valores. Na
verdade, seriam autêntico juízo de valor, ao proteger interesses
específicos nos casos concretos. É que, ao estabelecer princípios, o
1
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princí-
Direito busca apontar o caminho a se percorrer para que se atinja pios. 10. Ed. São Paulo: Malheiros
seu mais alto objetivo: a Justiça1. No caso em tela, a chamada jus- Editores, 2009, p. 64.
tiça social, na medida em que habitar em condições apropriadas
2
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito
Ambiental. 12. ed. Rio de Janeiro:
é um dos pilares do equilíbrio ecológico2. Lumen Juris, 2009.
 
Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 33
DOUTRINA

Na busca pela efetividade das cidades sus- incluída no plano diretor, exigir, nos termos
tentáveis, o Direito brasileiro apresenta uma da lei federal, do proprietário do solo urbano
gama de normas relativas às questões urbanas, não edificado, subutilizado ou não utilizado,
como os planos diretores dos municípios, e, no que promova seu adequado aproveitamento,
âmbito federal, o Estatuto da Cidade, além da sob pena, sucessivamente, de:
própria Constituição de 1988. E é o Estatuto,  
sem dúvida, a grande estrela dessa constelação I - parcelamento ou edificação compulsó-
normativa. rios;
  II - imposto sobre a propriedade predial e
Assim, o presente artigo está dividido de territorial urbana progressivo no tempo;
forma a percorrer o caminho entre a política III - desapropriação com pagamento me-
urbana vigente no Brasil e a atual realidade das diante títulos da dívida pública de emissão
cidades sustentáveis – passando por seu con- previamente aprovada pelo Senado Federal,
ceito hodierno, a fim de responder ao seguinte com prazo de resgate de até dez anos, em
questionamento: a sustentabilidade já é uma parcelas anuais, iguais e sucessivas, asse-
realidade no que tange às cidades brasileiras? Por gurados o valor real da indenização e os
fim, serão expostos alguns exemplos de cidades juros legais.
sustentáveis no mundo.  
  Art. 183. Aquele que possuir como sua área
1.  A estrutura normativa brasileira acerca do urbana de até duzentos e cinqüenta metros
desenvolvimento urbano quadrados, por cinco anos, ininterrupta-
  mente e sem oposição, utilizando-a para sua
Como visto anteriormente, a Constituição moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o
Federal brasileira de 1988 (CF/88) trata, no domínio, desde que não seja proprietário de
Título II do Capítulo VII, sobre a política de outro imóvel urbano ou rural.
desenvolvimento urbano. Senão vejamos: § 1º - O título de domínio e a concessão
  de uso serão conferidos ao homem ou à
Art. 182. A política de desenvolvimento mulher, ou a ambos, independentemente
urbano, executada pelo Poder Público mu- do estado civil.
nicipal, conforme diretrizes gerais fixadas § 2º - Esse direito não será reconhecido ao
em lei, tem por objetivo ordenar o pleno de- mesmo possuidor mais de uma vez.
senvolvimento das funções sociais da cidade § 3º - Os imóveis públicos não serão adqui-
e garantir o bem-estar de seus habitantes. ridos por usucapião.
§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara  
Municipal, obrigatório para cidades com Registre-se que essas diretrizes gerais para a
mais de vinte mil habitantes, é o instrumen- política do desenvolvimento urbano, conforme
to básico da política de desenvolvimento e disposto no art. 182, caput, foram, efetivamente,
de expansão urbana. fixadas em lei, denominada Estatuto da Cidade
§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua ou Lei do Meio Ambiente Artificial (Lei Federal
função social quando atende às exigências nº 10.257/2001).
fundamentais de ordenação da cidade ex-  
pressas no plano diretor. Além da Carta Magna e do Estatuto, os
§ 3º - As desapropriações de imóveis urba- Planos Diretores dos Municípios também inte-
nos serão feitas com prévia e justa indeni- gram a estrutura normativa da política urbana
zação em dinheiro. de desenvolvimento e, naqueles Municípios que
§ 4º - É facultado ao Poder Público mu- não o possuam, a Lei Orgânica do Município
nicipal, mediante lei específica para área serve como instrumento.
 
34 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA

A promulgação do Estatuto da Cidade repre- XVII e diz respeito ao estímulo à utilização, nos
sentou uma verdadeira vitória para as cidades e parcelamentos do solo e nas edificações urbanas,
seus cidadãos, tendo em vista que sua tramitação de sistemas operacionais, padrões construtivos e
no Congresso Nacional durou, aproximadamen- aportes tecnológicos que objetivem a redução de
te, 11 (onze) anos3. impactos ambientais e a economia de recursos
  naturais. Esse dispositivo revela a preocupação
Como já visto, a Lei nº 10.257/2001 (Estatuto em conciliar o desenvolvimento sustentável com
da Cidade) dispõe sobre as normas gerais da po- a economia dos recursos naturais, já que estes
lítica de desenvolvimento urbano, estabelecendo são escassos e finitos. 
comandos de ordem pública e interesse social que  
regulam o uso da propriedade urbana em prol do A cidade sustentável é um verdadeiro di-
bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos reito, conforme previsto no art. 2º, inciso I do
cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. Estatuto da Cidade, e consiste no direito à terra
Portanto, as regras específicas sobre a política urbana, à moradia, ao saneamento ambiental,
urbana são de competência de cada Município. à infraestrutura urbana, ao transporte e aos
  serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as
Interessante destacar que o Estatuto da Ci- presentes e futuras gerações.
dade reconhece a cidade real e seus problemas,  
e o faz quando permite a usucapião coletiva Ora, a cidade sustentável é, na verdade,
para fins de moradia (art. 10) e quando impõe um reflexo da norma constitucional prevista no
limites à especulação imobiliária com os instru- art. 225, caput, que dispõe que o meio ambiente
mentos do parcelamento, edificação e utilização ecologicamente equilibrado (incluindo-se aí as
compulsórios (art. 5º), do IPTU progressivo no cidades, enquanto meio ambiente artificial que
tempo (art. 7º) e da desapropriação (art. 8º), por é) é um direito de todos, ou seja, um direito
exemplo. difuso.
   
O art. 2º, incisos I a XVII, da referida lei Convém observar, também, que sustentável
elenca as diretrizes gerais da política de desen- é  aquela cidade planejada para as presentes e
volvimento urbano, a exemplo da garantia do futuras gerações, de modo que a participação
direito a cidades sustentáveis, da gestão demo- popular é imprescindível para a sua concretiza-
crática da cidade com a participação popular e ção, não sendo à toa que a gestão democrática da
de associações representativas, do planejamento cidade está elencada como uma das diretrizes da
do desenvolvimento das cidades, da ordenação política de desenvolvimento urbano.
e controle do uso do solo, da justa distribuição  
dos benefícios e ônus decorrentes do processo Segundo o arquiteto e urbanista Carlos
de urbanização, da regularização fundiária e Leite4, existem duas vertentes de cidades sus-
urbanização de áreas ocupadas por população tentáveis, a depender do direcionamento da
de baixa renda, uso de instrumentos de política iniciativa:  a primeira vertente tem o foco em
econômica, tributária e financeira e dos gastos “aspectos sociais para promoção da sustentabi-
públicos aos objetivos do desenvolvimento
urbano, bem como da proteção, preservação e
recuperação do meio ambiente natural e constru- 3
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Estatuto da Cidade
ído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, Comentado: Lei 10.257/2001, Lei do Meio Ambiente Arti-
ficial. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista
paisagístico e arqueológico. dos Tribunais, 2008. p. 35.
  4
LEITE, Carlos. A ideia é reinventar. Revista Construir NE
- erguendo o futuro. 16 abr. 2013. Disponível em:< http://
Outra diretriz, recentemente incluída atra- construirnordeste.com.br/novo/entrevistas/carlos-leite-a-
vés da Lei nº  12.836/2013, é prevista no inciso -ideia-e-reinventar/>. Acesso em: 26 jul. 2013.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 35


DOUTRINA

lidade urbana, como governança local, mudan- Município de Salvador (LOUOS), e essas emen-
ças de comportamento e atitudes, revisão dos das fossem, ao final, aprovadas em 29/12/2011,
objetivos do planejamento do uso do solo, entre culminando, dessa maneira, com uma verdadeira
outros”, e incentivando, ao menos, a eficiência substituição ao PDDU da Copa do Mundo6.
por “redução de consumo e desperdício, apoio  
a serviços com baixas emissões de carbono e O Ministério Público Estadual impugnou
revitalização urbana, promovendo a valorização judicialmente, por meio de uma Ação Direta
do espaço público”. de Inconstitucionalidade (ADIN), diversas
  alterações propostas ao PDDU e à LOUOS, a
A segunda vertente investe em alta tecno- exemplo das zonas de especial interesse social
logia alinhada ao conceito de smart sustainable (ZEIS), que são áreas delimitadas para habitação
city, de modo que são “usados equipamentos de baixa renda, e que poderiam ser alteradas ou
e sistemas modernos para que a cidade, espe- extintas pelo PDDU e pela LOUOS, bem como
cialmente nos setores de energia, mobilidade e a questão da construção de empreendimentos
gestão de resíduos, possam alcançar altos índices na orla de Salvador e seus impactos ambiental,
de desempenho em aspectos como emissões de social e econômico7.
gases de efeito estufa e destinação de resíduos”5.  
  Em maio/2013, o novo gestor municipal se
Ademais, para efetivar a cidade sustentável, comprometeu a revisar juntamente com o Par-
além da atuação do Poder Público se faz impe- quet, os pontos de inconstitucionalidade questio-
rativa a participação da sociedade civil, pois a nados. Esse documento, fruto do consenso das
ele também foi conferido o dever de proteger e partes, foi encaminhado ao Tribunal de Justiça
defender o meio ambiente (incluindo-se, é claro, da Bahia (TJ-BA), visando uma modulação dos
o meio ambiente artificial) para as presentes efeitos8.
e futuras gerações. Portanto, imprescindível  
a participação da sociedade civil, por meio de Ocorre que em decisão recente, proferida
audiências públicas, para a elaboração do Plano no dia 24/7/2013, o TJ-BA julgou procedente
Diretor. a ADIN, denegando a modulação de efeitos
  requerida pelo Município juntamente com o Mi-
No âmbito do Município do Salvador, o nistério Público, e, em consequência, anulando
Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano o PDDU e a LOUOS de Salvador, que tinham
(PDDU) foi aprovado por meio da Lei nº sido aprovados pela Câmara Municipal em 20129.
7.400/2008, e foram aprovadas alterações do mes-  
mo em 29 de dezembro de 2011, especialmente
para fins de contemplar a Copa do Mundo, e 5
Ibidem.
desde sua promulgação vem recebendo muitas 6
SALVADOR, Diário do Legislativo – Câmara Municipal do
Salvador. Ano VII, nº 3.791, Sexta-feira a segunda-feira,
críticas. 30 e 31 de Dezembro de 2011 e 1º e 2 de Janeiro de 2012.
  Disponível em:<http://www.cms.ba.gov.br/updol/DOL-681/
index.html>. Acesso em: 30 jul.2013.
A insatisfação e as críticas ocorreram por 7
ARRANJO. Prefeitura de Salvador e o Ministério Público
parte do Ministério Público e de alguns verea- assinam acordo sobre PDDU. Tribuna da Bahia, Salvador,
dores. Esses membros do Legislativo municipal Bahia, 2 mai. 2013. Disponível em:< http://www.tribuna-
dabahia.com.br/2013/05/02/prefeitura-de-salvador-o-
sustentaram que houve uma manobra política -ministerio-publico-assinam-acordo-sobre-pddu>. Acesso
por parte do Poder Executivo  municipal ao em: 24 jul. 2013.
8
Ibidem.
conseguir que os vereadores de sua bancada 9
ARRANJO. Tribunal de Justiça derruba PDDU e LOU-
apresentassem dez emendas ao projeto de lei nº OS. Tribuna da Bahia, Salvador, Bahia, 24 jul. 2013.
446/2011, que tratava sobre a reforma da Lei de Disponível em: <http://www.bahianoticias.com.br/principal/
noticia/141106-tribunal-de-justica-derruba-pddu-e-louos.
Ordenamento do Uso e da Ocupação do Solo do html

36 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

Essa decisão da Corte ensejará muitas difi- g) concessão de direito real de uso;
culdades para a gestão municipal, não se saben- h) concessão de uso especial para fins de
do, ainda, quais as medidas, inclusive judiciais, moradia;
que o Município do Salvador pretende adotar i) parcelamento, edificação ou utilização
para tentar resolver a questão. compulsórios;
  j) usucapião especial de imóvel urbano;
Ainda em relação ao Estatuto da Cidade, l) direito de superfície;
observe-se que o mesmo elenca, no art. 4º, os m) direito de preempção;
instrumentos a serem utilizados na política do n) outorga onerosa do direito de construir
desenvolvimento urbano que, em última análi- e de alteração de uso;
se, objetiva assegurar uma cidade sustentável. o) transferência do direito de construir;
Vejamos: p) operações urbanas consorciadas;
  q) regularização fundiária;
Art. 4º Para os fins desta Lei, serão utiliza- r) assistência técnica e jurídica gratuita para
dos, entre outros instrumentos: as comunidades e grupos sociais menos
  favorecidos;
I – planos nacionais, regionais e estaduais s) referendo popular e plebiscito;
de ordenação do território e de desenvolvi- t) demarcação urbanística para fins de re-
mento econômico e social;
gularização fundiária; (Incluído pela Lei nº
II – planejamento das regiões metropolita-
11.977, de 2009)
nas, aglomerações urbanas e microrregiões;
u) legitimação de posse. (Incluído pela Lei
III – planejamento municipal, em especial:
nº 11.977, de 2009)
a) plano diretor;
VI – estudo prévio de impacto ambiental
b) disciplina do parcelamento, do uso e da
(EIA) e estudo prévio de impacto de vizi-
ocupação do solo;
nhança (EIV).
c) zoneamento ambiental;
  
d) plano plurianual;
Como já visto oportunamente, caberá  a
e) diretrizes orçamentárias e orçamento
cada Município, por meio de seu Plano Diretor,
anual;
f) gestão orçamentária participativa; traçar a política de desenvolvimento e expansão
g) planos, programas e projetos setoriais; urbana.
h) planos de desenvolvimento econômico  
e social; Conforme dispõe a CF/88, o Plano Diretor é
IV – institutos tributários e financeiros: obrigatório para Municípios com mais de 20 mil
a) imposto sobre a propriedade predial e habitantes. Esse rol é ampliado com o Estatuto
territorial urbana - IPTU; da Cidade, sendo também obrigatória a adoção
b) contribuição de melhoria; desse instrumento normativo para Municípios:
c) incentivos e benefícios fiscais e finan- 1- integrantes de regiões metropolitanas e
ceiros; aglomerações urbanas, 2- onde o Poder Público
V – institutos jurídicos e políticos: municipal pretenda utilizar os instrumentos do
a) desapropriação; art. 182, § 4º da CF/88 (parcelamento, IPTU pro-
b) servidão administrativa; gressivo no tempo etc.), 3- integrantes de áreas de
c) limitações administrativas; especial interesse turístico, 4- inseridas na área
d) tombamento de imóveis ou de mobiliário de influência de empreendimentos ou atividades
urbano; com significativo impacto ambiental de âmbito
e) instituição de unidades de conservação; regional ou nacional, e 5- incluídos no cadastro
f) instituição de zonas especiais de interesse nacional de Municípios com áreas suscetíveis à
social; ocorrência de deslizamentos de grande impacto,

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 37


DOUTRINA

inundações bruscas ou processos geológicos ou cada tempo na metrópole seria medido


hidrológicos correlatos.    através de uma ampulheta diferente, e essas
  diminuiriam à medida que o tempo acele-
Enquanto instrumento básico da política de rasse. Assim, o tempo da vida dos moradores
desenvolvimento e expansão urbana, o Plano Di- da cidade seria medido por ampulhetas
retor não deve, data venia, tentar dispor de forma maiores que se enchem mais “lentamente”,
muito pormenorizada sobre as todas as questões enquanto que os tempos de transformação
de interesse da cidade, pois essa situação aca- utilizariam ampulhetas menores por onde
baria por “engessar” e até inviabilizar a gestão “rapidamente” escoasse a areia.
municipal a médio e longo prazo, ao ignorar o (...)
princípio elementar do Direito Urbanístico, que No espaço urbano existiriam diversas am-
é o princípio da mobilidade ou mutabilidade pulhetas, de vários tamanhos, associadas
das normas referentes aos planos urbanísticos10. aos diversos tempos da metrópole. Isso
  justificaria a assincronia com que se es-
Dessa maneira, o Plano Diretor deve con- tende aos tempos (às temporalidades) das
templar questões mais gerais da cidade, de modo ações do processo de planejamento urbano.
que as mudanças e os anseios sociais e econô- Como demonstrado, tais ações apresentam
micos que forem surgindo possam ter soluções temporalidades conflitantes, motivadas
sustentáveis para o curto, médio e longo prazo.
por interesses conflitantes e refletindo no
  espaço urbano contradições que contribuem
Contudo, deverá o Plano Diretor conter,
para a produção de um espaço fragmentado
no mínimo, normas de delimitação das áreas
e desagregador.
urbanas onde poderá ser aplicado o parcela-
mento, edificação ou utilização compulsórios,
 
O mencionado autor conclui que os ins-
considerando a existência de infraestrutura e
trumentos de planejamento urbano geralmente
de demanda para utilização, na forma do art.
não conseguem superar esse anacronismo, pois
5º do Estatuto da Cidade, bem como normas
estão “sempre atuando de maneira reativa e não
sobre sistemas de acompanhamento e controle e
disposições sobre direito de preempção, outorga proativa na tentativa de “normalizar” as impli-
onerosa do direito de construir, operações urba- cações no espaço urbano da cada vez mais rápida
nas consorciadas e sobre transferência do direito evolução dessa sociedade” 12.
de construir (TRASNCON). É o que determina  
o art. 42 do Estatuto da Cidade. A cidade sustentável, preconizada na pós-
  -modernidade a partir da mudança de pensamen-
Outro fundamento para a inadequação de to em relação ao meio ambiente em 1972, como já
o Plano Diretor pretender ser um “superplano” visto oportunamente, e assegurada no Brasil, de
é a questão temporal de sua revisão. O art. 40,
§ 3º do Estatuto da Cidade determina que, a lei
10
CABRAL, Lucíola Maria de Aquino. Autonomia municipal
que instituir o plano diretor deverá ser revista, e desenvolvimento econômico local. São Paulo: Editora
pelo menos, a cada dez anos. Ora, essa norma Fiuza, 2013. p. 257.
temporal impõe que o Município se mantenha 11
Fabiano, Pedro Carlos de Alcântara. O processo de pla-
nejamento urbano e suas temporalidades: uma análise da
sempre atualizado e proativo perante as deman- influência da legislação urbanística na produção do espaço
das da cidade. urbano de Belo Horizonte. Dissertação (Mestrado em
  Geografia) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ci-
ências da Terra. Disponível em: < http://dspace.c3sl.ufpr.br/
Pedro Carlos Fabiano, em sua dissertação de dspace/bitstream/handle/1884/2460/Temporalidades%20
Mestrado, alerta que o tempo nas metrópoles e do%20Processo%20de%20Planejamento%20Urbano%20
%28Vers%C3%A3o%20Final%29.pdf?sequence=1>.
nas cidades de modo geral não é o mesmo tempo Acesso em: 23 jul. 2013. pp. 99-100.
dos poderes econômicos. Ele afirma que11: 12
Ibidem. pp. 102-103.
 
38 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA

maneira explícita, no Estatuto da Cidade, tenta quais, por outro lado, se percebe muitas
restaurar a dignidade humana perdida durante vezes uma tangível e crescente sensação de
o processo de desenvolvimento urbano, espe- afastamento em relação às localidades e às
cialmente durante as décadas de 70 e 80, quando pessoas fisicamente vizinhas, mas social e
“explodiram” as favelas brasileiras. economicamente distantes”15.
   
Desde a Revolução Industrial, a divisão de Nesse sentido, Bauman entende que há 
classes (operários x classe dominante) também ameaça de nova segregação, passando-se da fase
se refletia nas cidades. No Brasil não foi diferen- sólida para a líquida da modernidade, na medida
te, e essa divisão ocorreu de modo mais nítido em que as elites globais se afastam dos antigos
com a intensificação da urbanização do país, nas compromissos que detinham com a população
décadas de 70 e 80, momento em que houve um local e na distância  crescente entre os espaços
“êxodo” em massa do campo para as cidades, urbanos onde vivem os separatistas e o espaço
de modo que esses novos moradores passaram a onde habitam os que foram deixados para trás.
habitar nos locais mais precários possíveis.  
  Outro ponto interessante é que Michael
O Brasil atualmente é urbano, com mais Peter Smith16 afirma que “longe de refletir uma
de 80% da população vivendo nas cidades, mas ontologia estática da existência ou da comunida-
o processo de urbanização ocorreu de forma de, as localidades são construções dinâmicas, em
desigual, “abrangendo poucas cidades que con- formação”. Significa dizer, portanto, que as cida-
centram população e riqueza e multiplicando des estão em constante processo de construção.
pequenos centros urbanos que abrigam uma  
força de trabalho pouco qualificada e fortemente O também sociólogo Jean-Pierre Garnier,
vinculada às atividades primárias13. ao abordar sobre a reestruturação urbana pela
  “destruição criadora” (reestruturação de bairros
É preciso, todavia, atentar para que o atual ou zonas degradadas) e que ocorre em todo o
planejamento urbano das cidades brasileiras planeta, alerta que, muitas vezes, essa renovação
não enseje uma nova forma de segregação de pode trazer o perigo de descarte dos antigos
classes ou raças ou grupos étnicos ou de qual- moradores17. Vejamos:
quer espécie.  
  “Quando um bairro torna-se descolado e en-
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman tra na moda, isso implica que parte dos mo-
ressalta que a questão das cidades na pós-mo- radores será ‘descartada’. A região ‘melhora’,
dernidade é complexa, na medida em que “os mas não para as mesmas pessoas”. Dito de
poderes reais que criam as condições nas quais outra forma, se há “reforma urbana”, ela visa
todos nós atuamos flutuam no espaço global,
enquanto as instituições políticas permanecem,
de certo modo, “em terra”, são locais14. 13
BRASIL. Disponível em:<http://www.brasil.gov.br/noticias/
  arquivos/2010/12/14/ibge-pais-migrou-para-o-interior-e-
-urbanizacao-ja-atinge-80-da-populacao
Bauman afirma, ainda: 14
BAUMAN, Zygmunt.  Confiança e medo na cidade. Tra-
  dução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2009. p. 30.
“Mais ou menos do mundo inteiro, come- 15
Ibidem. p. 25.
çam a se evidenciar nas cidades certas zonas, 16
SMITH, Michael Peter apud BAUMAN, Zygmunt. Confian-
ça e medo na cidade. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de
certos espaços – fortemente correlacionados Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. p. 29.
a outros espaços “de valor”, situados nas 17
GARNIER, Jean-Pierre. O futuro das cidades. Disponível
paisagens urbanas, na nação ou em outros em: <  http://www.forumreformaurbana.org.br/index.php/
artigos-de-interesse/72-direito-a-cidade/220-o-futuro-das-
países, mesmo a distâncias enormes – nos -cidades.html>. Acesso em : 23 jul. 2013.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 39


DOUTRINA

antes “renovar” a população local para que inerentes à sociedade urbana, cujo fundamento
os moradores das zonas centrais dos grandes é antropológico, e que são opostas e comple-
conglomerados urbanos possam exercer mentares. Essas necessidades sociais significam
sua vocação: se impor como habitantes de a necessidade de segurança e de abertura, a ne-
“metrópoles” dinâmicas e atrativas.  cessidade da organização do trabalho e o jogo,
Ainda que efetuada progressivamente, a da unidade e da diferença, do isolamento e do
chegada de grupos sociais pertencentes às encontro, enfim questões humanas que devem
classes assalariadas de maior poder aqui- se refletir no espaço urbano19.
sitivo e profissionais liberais em bairros  
operários é vista, com frequência, como Lefebvre sustenta que há necessidade de
invasão pelos habitantes originais. Para a uma ciência analítica da cidade, que somente
maior parte dos moradores afetados, essa poderá se desenvolver com o avançar da realida-
mudança significa especulação financeira de urbana em formação, ou seja, com a práxis da
e imobiliária, o que acelera sua expulsão e própria cidade. E esse novo humanismo deverá,
substituição no espaço por citadinos mais portanto, ter em consideração o novo homem, o
abastados e educados, desejosos de consti- homem da sociedade urbana.
tuir uma identidade residencial que esteja  
de acordo com a identidade social. O direito à cidade, dessa maneira, significa
  para Lefebvre o direito à vida urbana, mas de
No próximo capítulo, revelaremos que as uma forma renovada, e essa transformação do
cidades sustentáveis são uma tendência e que seio urbano somente seria possível por meio da
já existem algumas cidades com elementos e classe operária20.
indicadores de sustentabilidade e, até mesmo,  
cidades absolutamente sustentáveis. Dessas lições de Lefebvre, devemos con-
  temporizar suas ideias e o contexto político da
2. Cidades sustentáveis época (Guerra Fria e movimento de maio/1968),
  mas podemos destacar e nos valer ainda hoje de
Na obra “Le droit à la ville”  (“O direito à alguns pontos por ele sustentados: a vida urbana
cidade”), publicado em 1968, Henri Lefebvre é dinâmica, oposta e complementar, e o direito à
foi um dos precursores em afirmar que existe, de cidade significa o direito à fruição da vida urbana
fato, um direito à cidade, criticando o urbanismo e de tudo o que ele proporciona.
positivista18.  
  Nesse sentido, e com a nova visão de mun-
Segundo esse autor, a vida urbana ainda do que traz à tona a questão ambiental, como
não começou de fato, e essa nova visão deverá já visto, deve-se falar em um verdadeiro direito
expurgar as ideias, valores, mitos e culpas de uma à  cidade, só que agora com um viés também
sociedade agrária, de predomínio rural. ambiental. É a hora das cidades sustentáveis,
  que são ambientes urbanos que devem assegurar
Portanto, propõe um novo urbanismo, foca- a fruição do direito à terra urbana, à moradia, ao
do na dinâmica do ser humano em consequência saneamento ambiental, à infraestrutura urbana,
da cidade. A reflexão teórica redefine as formas,
as estruturas da cidade, tanto econômicas, quan-
to políticas e culturais, mas tudo isso seria apenas 18
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de Rubens
um reflexo das necessidades individuais. Eduardo Frias. Disponível em:< http://search.4shared.
  com/postDownload/V-LwyoiB/Henri_Lefebvre_-_O_Direi-
to__Ci.html>. Acesso em: 24 jul. 2013. p. 103.
Segue aduzindo que a reflexão teórica 19
Ibidem.
deve também redefinir as necessidades sociais 20
Ibidem.

40 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho rada à dinâmica social da cidade. Hortas urbanas,
e ao lazer, para as presentes e futuras gerações. em paredes e telhados dos edifícios, aproximam
  as cidades das plantações, diminuindo os gastos
E é exatamente essa nova concepção de ci- de combustível dos veículos que transportariam
dade que o Estatuto da Cidade privilegia (art. 2º, a produção do campo para as cidades e smart
inciso I), como visto no tópico anterior. A cidade grids (malhas inteligentes de captação e gera-
sustentável é uma tendência moderna, no Brasil ção de energia limpa), por exemplo, já são uma
e no mundo como um todo. Já começou o pro- realidade, inclusive no Brasil.
cesso de uma verdadeira revolução das cidades.  
  O smart grid já existe em Salvador, mais
A ecologia urbana possui duas vertentes. A precisamente no Estádio de Futebol de Pituaçu.
primeira é a ecologia NAS cidades, que consiste O estádio está equipado com placas que captam
na análise da urbanização como fator que interfe- a energia solar, que transformam em eletricida-
re na ecologia da flora e da fauna. A segunda, por de, e o excesso de energia é redistribuído para a
sua vez, é a ecologia DAS cidades, que tem por malha de energia da Bahia. Funciona da seguinte
meta “compreender como ocorrem as interações maneira:
entre os sistemas sociais e ecológicos, de modo a  
poder propor planos e projetos que mantenham Ele deve gerar 630 MWh por ano, mais do
as funções vitais sociais e ecológicas para um que suficiente para alimentar o próprio estádio,
ecossistema urbano saudável”21. que consome 360 MWh durante partidas e trei-
  namentos. A sobra, 270 MWh, capaz de sustentar
Nesse sentido, propõe-se uma infraestru- 300 casas, será devolvida à malha de energia da
tura urbana verde (ou ecológica), que é verda- Bahia. E esta devolução faz parte do conceito
deiramente multidisciplinar, pois se relaciona mais importante do smart grid 24. 
e depende de análise dos sistemas geológico,  
hidrológico, biológico, social, circulatório e E esse uso de smart grid pode ser feito tam-
metabólico. bém em residências e empresas, o que evitaria o
  desperdício energético. Vejamos:
A infraestrutura verde implica transforma-  
ção (ou retrofit) de áreas impermeabilizadas, que Esta expressão significa “malha inteligen-
têm funções muito específicas e determinadas, te”. Hoje a malha é burra. Mesmo quando
em áreas multifuncionais, visando assegurar “o você não consome eletricidade, ela continua
equilíbrio dinâmico, sustentável e resiliente do sendo produzida. Desperdício. Com um
ecossistema urbano, com a “renaturalização” ou smart grid, dá para saber exatamente onde
“desimpermeabilização” das superfícies minera- está faltando energia e onde está sobrando
lizadas (concreto, asfalto, cimento, cerâmicas, (algo impossível de ser feito hoje). Nisso, dá
pedras, telhas, etc.)22”. para redistribuir a força, evitando apagões.
 
Significa dizer, portanto, que a infraestrutu-
ra verde urbana tem o objetivo de incrementar 21
HERZOG, Cecília Polacow. Cidades para todos: (re)apren-
dendo a conviver com a Natureza. 1. ed. Rio de Janeiro:
a biodiversidade urbana, de modo que “seja
Mauad X: Inverde, 2013. pp. 109-110.
possível ter seus serviços ecossistêmicos onde 22
HERZOG, Cecília Polacow. Cidades para todos: (re)apren-
as pessoas vivem, circulam, trabalham e se di- dendo a conviver com a Natureza. 1. ed. Rio de Janeiro:
Mauad X: Inverde, 2013. pp. 110-111.
vertem: nas cidades”23. 23
Ibidem, p. 111.
  24
ROMERO, Luiz. A Revolução das Cidades – Energia
esperta. Revista Superinteressante. Dez/2012. Disponível
A sustentabilidade urbana pode começar em em: < http://super.abril.com.br/ecologia/revolucao-cidades-
pequenas atitudes e, com o tempo estará incorpo- -energia-esperta-731717.shtml>. Acesso em: 24 jul. 2013.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 41


DOUTRINA

E essa “inteligência” também abre uma pos- pois a cidade, cujo desenho seria convergente
sibilidade surreal: a de que sua casa possa para o centro, poderia ser percorrida a pé; se-
funcionar como uma “microusina” de ener- riam cidades com foco no sistema de transporte
gia. Por exemplo: você instala um painel de de massa, evitando-se os carros (a lógica seria:
energia solar em casa. Enquanto o sol bate, trabalhe a pé ou de bicicleta e passeie de carro);
porém, você provavelmente está no traba- constituiriam cidades fechadas não com muros,
lho. Então como aproveitar a energia que ele mas alambrados que poderiam servir como es-
gera? O conceito da malha inteligente tem a culturas ou como plantação; teriam assegurado
solução: a energia do painel vai para a rede. o verde, seja nas plantações verticais como nas
E ajuda a alimentar a empresa em que você coberturas das edificações; uso de energia reno-
trabalha. No fim do mês, a companhia de vável; informatização total e compreenderiam
energia remunera você pela energia solar – um tema predominante (bairro ou cidade espe-
em créditos para descontar da conta de luz cializado em saúde, educação, esportes e eventos,
ou em dinheiro mesmo.  cidade presídio etc.)29.
   
Em relação às hortas urbanas, estas tam- Uma crise econômica é um momento de-
bém já são uma realidade. Em Nova York, por cisivo para um país, não só do ponto de vista
exemplo, empresas como Brooklyn Grange e a político e econômico, mas também social e
Gotham Green possuem hortas e estufas espalha- comportamental. Na Grécia, por exemplo, a
das pelo topo dos prédios do Brooklyn. Já em São crise estimulou o surgimento de comunidades
Paulo, essa tendência também se iniciou, com sustentáveis, sendo o grupo mais conhecido o
um grupo de agricultores que possui uma  peque- denominado Free and Real.
na horta no bairro da Vila Madalena e outra na  
Avenida Paulista. Para Claudia, de modo que se Propagando o ideal de “Liberdade de re-
procura eliminar/minorar o impacto ambiental cursos para todos, respeito, igualdade e apren-
ao se evitar a embalagem desses hortifrutis e o dizado”, esse grupo foi fundado há três anos na
seu transporte25. ilha de Evia, sendo dez os moradores em tempo
  integral e mais de cem que residem no local
Curitiba, no Paraná, e Bogotá, na Colômbia, parte do ano30. 
são exemplos de cidades sustentáveis. Curitiba,  
por exemplo, possui 30 parques e bosques, sendo Na comunidade não há energia elétrica,
a cidade com um dos melhores índices de áreas as cabanas são residências coletivas e produzi-
verdes do País, contando com cerca de 52 metros das por eles mesmos e os moradores cultivam
quadrados por habitante, totalizando aproxima-
damente 82 milhões de m² 26. Já Bogotá possui
a maior malha de vias para bicicletas (ciclorrutas)
25
ROMERO, Luiz. A Revolução das Cidades – Da terra aos
telhados. Revista Superinteressante. Dez/2012. Disponível
da América Latina27. em: < http://super.abril.com.br/ecologia/revolucao-cidades-
  26
-energia-esperta-731717.shtml>. Acesso em: 24 jul. 2013.
BRASIL. Portal da Prefeitura de Curitiba. Disponível
Inspirado nessas notícias de cidades verdes, em:< http://www.curitiba.pr.gov.br/conteudo/meio-ambien-
o arquiteto e urbanista Lourenço Muller28 pu- te-de-curitiba/182> Acesso em: 26.jul. 2013.
27
COLOMBIA. Disponível em:< http://www.colombia.travel/
blicou recentemente um artigo sobre outra po/turista-internacional/pontos-turisticos-aonde-ir/pontos-
tendência: as smart cities (cidades inteligentes). -toristicos-bogota>. Acesso em: 26 jul. 2013.
  28
MUELLER, Lourenço. A revolução das cidades. Jornal A
TARDE, de 13 jan. 2013, A 2, Ano 101 / n. 34.248.
Essas cidades inteligentes, dentre outras 29
Ibidem.
características, teriam no máximo 50 mil habi- 30
ARRANJO. Crise na Grécia estimula criação de comuni-
dades sustentáveis. Disponível em: < http://ciclovivo.com.
tantes, visando evitar “deseconomias de aglome- br/noticia/crise_na_grecia_estimula_criacao_de_comuni-
ração e ao mesmo tempo permitir fluxos livres”, dades_sustentaveis>; Acesso em: 25 jul. 2013.

42 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

o próprio alimento (agricultura orgânica). O Masdar City, cidade desenhada pelo arqui-
excedente da produção é objeto de escambo em teto britânico Norman Foster, teve sua primeira
outro vilarejo próximo, trocando por produtos etapa concebida em 2006, mas foram necessários
de que necessitem. três anos para o início de sua implantação. O
  investimento da obra é calculado em US$ 22
Estocolmo, na Suécia, é uma cidade verde, bilhões, e “a cidade atualmente conta com seis
e recebeu em 2010 o título de Capital Verde da prédios, uma rua principal, 101 apartamentos
Europa, em virtude de contemplar “um sistema pequenos, uma imensa livraria eletrônica e, no
administrativo integrado que garante a conside- centro de tudo, o Masdar Institute”35.
ração de aspectos ambientais em orçamentos,
planejamentos operacionais, relatórios e mo- Todas as ruas da cidade terão prédios pro-
nitoramentos, e ter o objetivo de zerar o uso de jetados em ângulos que facilitam a criação de
combustíveis fósseis até 2050”31. sombras e ajudam na manutenção de uma tempe-
  ratura agradável, considerando que a cidade está
A cidade de Estocolmo investe no sistema no meio do deserto, cujas temperaturas chegam
de transporte, visando uma melhor mobilidade aos 40ºC.  Masdar City, que deverá ser a primeira
urbana, e desde os anos 80, o transporte público cidade carbono zero, contará com o sistema de
e a bicicleta são prioridades no sistema viário. transporte, todo elétrico, e operando no subsolo,
Registre-se que em 2006 foi criado o pedágio de modo a evitar os congestionamentos36.
urbano nos horários de pico.  
  As ruas da cidade serão resfriadas por uma
No ano de 2000, ainda em Estocolmo, gigantesca torre eólica e os cidadãos contarão
“áreas de aterros passaram a dar lugar a dis- com a presença de uma espécie de “polícia ver-
tritos ecológicos, com a recuperação da área e de”, que será responsável por gerenciar o gasto
o estabelecimento de sistemas alternativos de de energia dos moradores. Ao utilizar qualquer
coleta de resíduos (por sistema subterrâneo de equipamento que consome energia, os dados de
tubos a vácuo), utilização de painéis solares e consumo energético vão para uma central res-
transporte fluvial”32. ponsável por controlar esses gastos, e caso seja
 
Cidade totalmente sustentável como aquela
descrita por Muller já não é uma ideia de ficção 31
ARRANJO. Estocolmo, a Capital Verde Europeia de
científica. Essa cidade do futuro já chegou e está 2010. Disponível em:< http://www.cidadessustentaveis.
em fase de construção: é a cidade de Masdar City, org.br/boas-praticas/estocolmo-capital-verde-europeia-
-de-2010>. Acesso em: 30 jul. 2013.
construída no meio do deserto dos Emirados 32
ARRANJO. Estocolmo, a Capital Verde Europeia de
Árabes Unidos, em pleno Oriente Médio. 2010. Disponível em:< http://www.cidadessustentaveis.
  org.br/boas-praticas/estocolmo-capital-verde-europeia-
-de-2010>. Acesso em: 30 jul. 2013.
A previsão final da construção dessa ci- 33
GUGELMIN, Felipe. Masdar City: bem-vindo à cidade
dade do futuro seria em 2016, mas em virtude do futuro. Disponível em:< http://www.tecmundo.com.br/
futuro/9871-masdar-city-bem-vindo-a-cidade-do-futuro.
da recessão econômica global, a previsão é que htm>. Acesso em: 24 jul. 2013.
seja finalizada entre 2021 e 202533. Masdar City 34
BARBOSA, Vanessa. Masdar City: a cidade do futuro
nasce no deserto árabe. Revista Exame, de 20 fev. 2011.
abrigará cerca de 40 mil habitantes e mais de Disponível em:< http://exame.abril.com.br/meio-ambiente-
mil empresas de tecnologia limpa, além da -e-energia/album-de-fotos/masdar-city-cidade-do-futuro-
universidade Masdar Institute of Science and -nasce-no-deserto-arabe
35
GUGELMIN, Felipe. Op. cit.
Technology, cujo foco é em pesquisa e inovação, 36
BARBOSA, Vanessa. Masdar City: a cidade do futuro
desenvolvida em cooperação com o Massachu- nasce no deserto árabe. Revista Exame, de 20 fev. 2011.
Disponível em:< http://exame.abril.com.br/meio-ambiente-
setts Institute of Technology (MIT) e o Imperial -e-energia/album-de-fotos/masdar-city-cidade-do-futuro-
College34. -nasce-no-deserto-arabe
 
Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 43
DOUTRINA

detectada alguma anormalidade, o operador do países de elevado rendimento, mas também


sistema interrompe por tempo indeterminado uma maior renda per capita. A maior parte das
os privilégios da residência37. cidades europeias que têm altas densidades
  possui centros onde andar a pé e de bicicleta são
Os administradores da cidade afirmam meios de locomoção preferidos por grande parte
que há constantes reclamações dos estudantes, da população.  (...) Dois fatores decisivos são a
especialmente no que pertine à temperatura do otimização dos recursos consumidos na cidade,
ar condicionado (lembre-se que a cidade está incluindo a redução do consumo de energia as-
encravada no deserto), mas que há consenso de sociado a edifícios – aproveita-se a infraestrutura
que é preciso alguns sacrifícios em prol de se geral quando se tem concentrações edificadas
cumprir a meta energética da cidade38. – e transportes: territórios compactos geram
  maiores níveis de acessibilidade e permitem
E o que fazer para que as cidades já existen- a redução da intensidade de viagens. Se nesse
tes sejam sustentáveis? O arquiteto e urbanista modelo de cidade compacta promovem-se den-
Carlos Leite39 afirma que é preciso refazer a sidades qualificadas – com uso misto do solo e
cidade, ou seja, reinventá-la, tornando-a mais multicentralidade ligadas por uma eficiente rede
compacta. Segundo ele, para as cidades com de mobilidade (transportes públicos eficientes,
grande densidade o modelo de desenvolvimento ciclovias e áreas adequadas ao pedestre) –, têm-se
urbano a ser implantado é aquele que otimiza os ingredientes básicos para uma cidade susten-
o uso das infraestruturas urbanas (eficiência tável. Finalmente, lembre-se de que qualquer
energética, melhor uso das águas e diminuição cidade sustentável se desenvolve a partir de uma
da poluição), com o adequado e planejado uso adequada, amigável e ponderada ligação entre o
misto do solo, misturando as funções urbanas ambiente construído e a geografia natural. É fun-
(habitação, comércio e serviços). O urbanista damental respeitar as características geográficas
ainda explica quais os fatores decisivos dessa do território e promover uma boa relação com
otimização: as águas e as áreas verdes.
    
Esse modelo é baseado num sistema de Espera-se que todas essas experiências sejam
mobilidade urbana que conecte os núcleos aden- muito bem-sucedidas e que sirvam de inspiração
sados em rede, promovendo maior eficiência para todas as cidades, as já existentes e as futuras,
nos transportes públicos e gerando um desenho sendo que as primeiras deverão tentar se adequar,
urbano que encoraje a caminhada e o ciclismo, ao máximo, à ideia de sustentabilidade.
além de novos formatos de carros (compactos,  
urbanos e de uso como serviço avançado). A po- Considerações Finais
pulação residente tem mais oportunidades para  
interação social, bem como uma melhor sensação As cidades se traduzem hoje como expressão
de segurança pública, uma vez que se estabelece máxima das relações humanas, no seu inevitável
melhor o senso de comunidade – proximidade, destino de conviver com seus pares – convívio
usos mistos, calçadas e espaços de uso coletivo
vivos – que induz à sociodiversidade territorial
– uso democrático do espaço por diversos gru-
pos de cidadãos. Metrópoles com bons sistemas 37
GUGELMIN, Felipe. Masdar City: bem-vindo à cidade
de transporte público e que têm evitado o seu do futuro. Disponível em:< http://www.tecmundo.com.br/
futuro/9871-masdar-city-bem-vindo-a-cidade-do-futuro.
crescimento desmedido apresentam menores htm>. Acesso em: 24 jul. 2013;
níveis de emissões de gases estufa por pessoa do 38
Ibidem.
que cidades que não têm. Cingapura, por exem-
39
LEITE, Carlos. A ideia é reinventar. Revista Construir NE
- erguendo o futuro., 16 abr. 2013. Disponível em:< http://
plo, tem um quinto da população de carros per construirnordeste.com.br/novo/entrevistas/carlos-leite-a-
capita em comparação com cidades de outros -ideia-e-reinventar/>. Acesso em: 26 jul. 2013.

44 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

esse que vem sistematicamente sendo aprimo- com.br/2013/05/02/prefeitura-de-salvador-o-mi-


rado, tendo as cidades sentido os efeitos dessas nisterio-publico-assinam-acordo-sobre-pddu>.
transformações. Acesso em: 24 jul. 2013.
   
O debate proposto no presente trabalho gira ARRANJO. Crise na Grécia estimula criação
em torno da sustentabilidade como princípio de comunidades sustentáveis. Disponível
jurídico direcionador da política urbana e de em: < http://ciclovivo.com.br/noticia/crise_na_
sua efetiva aplicabilidade nos dias correntes. A grecia_estimula_criacao_de_comunidades_sus-
Ciência do Direito e sua colaboração nessa seara tentaveis>; Acesso em: 25 jul. 2013.
foram analisadas e esmiuçadas, a fim de estabe-  
lecer uma relação entre a cidade e as políticas ARRANJO. Estocolmo, a Capital Verde Europeia
públicas baseadas em pressupostos legais. de 2010. Disponível em:< http://www.cidades-
  sustentaveis.org.br/boas-praticas/estocolmo-
Para além da questão meramente brasileira, -capital-verde-europeia-de-2010>. Acesso em:
é possível depreender da pesquisa aqui apresen- 30 jul. 2013.
tada que já existem exemplos reais de cidades  
sustentáveis em diversos pontos do globo. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 10. ed.
Exemplos hodiernos reais são evidenciados ao São Paulo: Malheiros, 2009.
longo do capítulo 2. BARBOSA, Vanessa. Masdar City: a cidade do
  futuro nasce no deserto árabe. Revista Exame,
Nesse diapasão, pode-se dizer que, pelo de 20 fev. 2011. Disponível em:< http://exame.
menos do ponto de vista normativo, a política abril.com.br/meio-ambiente-e-energia/album-
de desenvolvimento urbano adotada pelo Brasil -de-fotos/masdar-city-cidade-do-futuro-nasce-
está alinhada aos melhores paradigmas interna- -no-deserto-arabe>. Acesso em: 24 jul. 2013.
cionais nesse mister. Com efeito, é de se notar  
que a CF/88, o Estatuto da Cidade e as normas BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade.
municipais – em especial os planos diretores des- Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge
ses entes federativos – estão estruturados sobre Zahar Ed., 2009.
os mais sólidos princípios jurídicos, a exemplo  
do desenvolvimento sustentável. BRASIL. Disponível em:<http://www.brasil.
  gov.br/noticias/arquivos/2010/12/14/ibge-pais-
Dessa maneira, é adequado salientar que o -migrou-para-o-interior-e-urbanizacao-ja-atin-
conceito de cidades sustentáveis está presente ge-80-da-populacao>. Acesso em: 24 jul. 2013.
não só na normatividade e na principiologia do  
Direito brasileiro, como também já apresenta _________.  Constituição da República Fede-
exemplos concretos e aplicabilidade real no rativa do Brasil. Disponível em: < http://
mundo pós-moderno. www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
  constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 13
Referências jul.2011.
   
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambien- _________.  Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001
tal. 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. (Estatuto da Cidade). Disponível em: < http://
  www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/
ARRANJO. Prefeitura de Salvador e o Ministé- l10257.htm>. Acesso em: 23 jul. 2013.
rio Público assinam acordo sobre PDDU. Tri-  
buna da Bahia,  Salvador, Bahia, 2 mai. 2013. _________. Portal da Prefeitura de Curitiba.
Disponível em:< http://www.tribunadabahia. Disponível em:< http://www.curitiba.pr.gov.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 45


DOUTRINA

br/conteudo/meio-ambiente-de-curitiba/182> LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tra-


Acesso em: 26.jul. 2013. dução de Rubens Eduardo Frias. Disponível
  em:< http://search.4shared.com/postDownload/
CABRAL, Lucíola Maria de Aquino. Autonomia V-LwyoiB/Henri_Lefebvre_-_O_Direito__
municipal e desenvolvimento econômico local. São Ci.html>. Acesso em: 24 jul. 2013;
Paulo: Editora Fiuza, 2013.  
  LEITE, Carlos. A ideia é reinventar. Revista
COLOMBIA. Disponível em:< http://www. Construir NE - erguendo o futuro., 16 abr. 2013.
colombia.travel/po/turista-internacional/pontos- Disponível em:< http://construirnordeste.
-turisticos-aonde-ir/pontos-toristicos-bogota>. com.br/novo/entrevistas/carlos-leite-a-ideia-e-
Acesso em: 26 jul. 2013. -reinventar/>. Acesso em: 26 jul. 2013;
   
Fabiano, Pedro Carlos de Alcântara. O processo MUELLER, Lourenço. A revolução das cida-
de planejamento urbano e suas temporalidades: des. Jornal A TARDE, de 13 jan. 2013, A 2, Ano
uma análise da influência da legislação urbanística 101 / n. 34.248;
na produção do espaço urbano de Belo Horizonte.  
Dissertação (Mestrado em Geografia) – Univer- ROMERO, Luiz. A Revolução das Cidades
sidade Federal do Paraná, Setor de Ciências da – Energia esperta. Revista Superinteressante.
Dez/2012. Disponível em: < http://super.abril.
Terra.  Disponível em: < http://dspace.c3sl.ufpr.
com.br/ecologia/revolucao-cidades-energia-es-
br/dspace/bitstream/handle/1884/2460/Tempo-
perta-731717.shtml>. Acesso em: 24 jul. 2013.
ralidades%20do%20Processo%20de%20Plane-
 
jamento%20Urbano%20%28Vers%C3%A3o%20
____________. A Revolução das Cidades – Da
Final%29.pdf?sequence=1>. Acesso em: 23
terra aos telhados. Revista Superinteressante.
jul. 2013.
Dez/2012. Disponível em: < http://super.abril.
 
com.br/ecologia/revolucao-cidades-energia-es-
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Estatuto da
perta-731717.shtml>. Acesso em: 24 jul. 2013;
Cidade Comentado: Lei 10.257/2001, Lei do Meio
 
Ambiente Artificial. 3. ed. rev. Atual. e ampl. São
SALVADOR, Diário do Legislativo – Câmara Mu-
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. nicipal do Salvador. Ano VII, nº 3.791, Sexta-feira
  a segunda-feira, 30 e 31 de Dezembro de 2011 e 1º
GARNIER, Jean-Pierre. O futuro das cidades. e 2 de Janeiro de 2012. Disponível em:<http://
Disponível em:< http://www.forumreformaur- www.cms.ba.gov.br/updol/DOL-681/index.
bana.org.br/index.php/artigos-de-interesse/72- html>. Acesso em: 30 jul.2013.
-direito-a-cidade/220-o-futuro-das-cidades.  
html>. Acesso em : 23 jul. 2013. SMITH, Michael Peter apud  BAUMAN, Zyg-
  munt. Confiança e medo na cidade. Tradução de
GUGELMIN, Felipe. Masdar City: bem-vindo à Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
cidade do futuro. Disponível em:< http://www. 2009.
tecmundo.com.br/futuro/9871-masdar-city-
-bem-vindo-a-cidade-do-futuro.htm>. Acesso
em: 24 jul. 2013.
 
HERZOG, Cecília Polacow. Cidades para todos:
(re)aprendendo a conviver com a Natureza. 1. ed.
Rio de Janeiro: Mauad X: Inverde, 2013. pp.
109-110.
 
46 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA

SUSTENTABILIDADE:
UM CONCEITO EM EXPANSÃO DOUTRINA

Isabel Góes Câmara*

O presente artigo consiste numa reflexão sobre a crescente discus-


são acerca do conceito de sustentabilidade e sua ampliação para
envolver novas vertentes do comportamento humano.
 
Palavras Chaves: sustentabilidade, meio ambiente, desenvolvi-
mento sustentável, sistemas,  novo paradigma, transformação.
 
“Como nunca antes na História, o destino comum nos conclama a
buscar um novo começo.
Isto requer uma mudança na mente e no coração. Requer um novo sentido
de interdependência global e de responsabilidade universal. Devemos
desenvolver e aplicar com imaginação a visão de um modo de vida
sustentável nos níveis local, nacional, regional e global.
Que o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma nova reverência
face à vida, pelo compromisso firme de alcançar a sustentabilidade, a
intensificação dos esforços pela justiça e pela paz e a alegre celebração
da vida.”

CARTA  DA  TERRA (1992-2000) * Procuradora do Município de Salvador


Especialista em Direito Administrativo
pela Universidade Federal da Bahia –
1. Um pouco de história UFBA
Ex-Coordenadora da Procuradoria
Fiscal do Município
É interessante conhecer um pouco da história do conceito Representante da Procuradoria-Geral
de sustentabilidade. do Município junto à Secretaria de
Cidade Sustentável
Membro da Comissão de Meio Ambien-
No século XVI, quando as grandes descobertas estavam te da OAB
acontecendo e navios partiam em busca de novas terras, em busca Ex-diretora cultural da Associação de
Procuradores do Município de Salvador
de conquistar novos territórios, as florestas, especialmente em Uma das Coordenadoras Científicas  
Portugal e Espanha, grandes potências rivais à época, começaram do Congresso Baiano de Direito Muni-
cipal, nas suas quatro edições
a ser devastadas, causando preocupação   quanto  à sua potencial Produtora do Encontro Sustenta, even-
sobrevivência. to ligado à sustentabilidade e coletivos

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 47


DOUTRINA

Entretanto, foi a Alemanha que primeiro lecia a curto prazo nas relações internacionais e,
introduziu o uso da palavra sustentabilidade, em especialmente, as suas preocupações no tocante
1560, na Província da Saxônia, para traduzir a ao consumo de recursos ilimitados, num mundo
preocupação em preservar o uso racional das flo- em constante interdependência, e já àquela época
restas, preservando-as para as futuras gerações. tomando consciência do tamanho do problema a
ser enfrentado.
Foi  também na Província de Saxônia, al-
guns séculos depois, em 1713, que esta palavra O compromisso dos presentes ao encontro
foi transformada em um conceito estratégico, era fomentar a consciência dos líderes mundiais
conforme relata Leonardo Boff1. É que o Capi- e dos responsáveis em tomar as decisões com
tão Hans Carl Von Carlowitz, preocupado com relação aos temas globais importantes para o
a devastação das florestas locais para produção futuro e, com isso, introduzir uma nova visão
de carvão vegetal, que servia de combustível aos que enfocava as consequências a longo prazo da
fornos de mineração, escreveu um tratado sobre constante interdependência global.
organizar, de forma sustentável, as florestas sob
o nome de Silvicultura Oeconomica, em que já A partir de então, novos rumos foram tra-
preconizava o cuidado com o qual deveria ser çados.  A ONU realizou em 1972 a  “Primeira
tratada a floresta,   enfatizando  que somente fos- Conferência Mundial sobre o Homem e o Meio
se cortada a quantidade de lenha necessária que Ambiente“, que por sua vez gerou a criação
pudesse ser suportada pela floresta, permitindo do  Programa das Nações Unidas para o Meio
a continuidade de seu crescimento. E assim Ambiente – PNUMA. E nesta esteira vieram o
fizeram os germânicos, que evoluíram bastante encontro da Comissão Mundial sobre o Meio
nesta sua visão de preservação das florestas e Ambiente e Desenvolvimento, em 1984, cujo
que chegaram a criar uma nova ciência: a silvi- lema era “Uma agenda global para a mudança”,
cultura. E em 1790, Carl Georg Ludwig Hartig tendo gerado o relatório “Nosso futuro comum”.
escreveu outro livro chamado Indicações para a Através deste documento, o termo “desenvolvi-
avaliação e a descrição das florestas, exortando a mento sustentável” foi introduzido no cotidiano
que fosse realizada a avaliação minuciosa do des- das discussões sobre as mudanças que estavam
florestamento, buscando usar as florestas com os sendo percebidas no mundo, em razão da inter-
cuidados necessários para que as futuras gerações venção desmedida do homem no meio ambiente.
continuassem a usufruir das mesmas vantagens
existentes então. E parece que deu resultados, Aliás, o conceito de desenvolvimento sus-
pois ainda hoje a Alemanha possui e preserva tentável criado então permanece em uso até os
algumas das mais lindas florestas do mundo. nossos dias. Ele foi definido como  sendo “aquele
que atende as necessidades das gerações atuais  sem
E aqui saltamos para o ano de 1968 (aliás, comprometer a capacidade das gerações futuras de
um ano especial, conhecido pelas mais diversas atenderem a suas necessidades e aspirações.”  E
mudanças que aconteceram no seu decorrer), com durante a Conferência das Nações Unidas sobre
as  discussões sobre o crescimento irrefreado che- Meio Ambiente e Desenvolvimento, que acon-
gando a um patamar mais global,  que foi criado o teceu no Rio de Janeiro em 1992,  tal conceito
Clube de Roma, cujo primeiro relatório “Os limites foi amplamente difundido, agregando ainda
do crescimento”, lançado em 1970, fez a discussão outro viés, qual seja a inclusão da sociedade  na
tomar o mundo. A convite do industrial italiano tarefa de “erradicar a pobreza, de forma a  reduzir
Aurelio Peccei e do cientista escocês Alexander
King, vários profissionais da área de diplomacia,
indústria, academia e sociedade civil reuniram-se 1
BOFF, Leonardo. Sustentabilidade: o que é – o que não
para discutir o dilema do pensamento que preva- é. Petrópolis, RJ: Vozes. 2012.

48 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

as disparidades sociais nos padrões de vida e melhor para que as mudanças aconteçam, embora reste
atender as necessidades da maioria da população do clara uma crescente  consciência da necessidade
mundo”.  Já aqui se torna perceptível o surgimen- de que tais mudanças aconteçam, e com urgên-
to do tripé Cidadania, Inclusão Social e Meio cia. Embora as soluções estejam surgindo, aqui
Ambiente sob o conceito da Sustentabilidade. e acolá, é preciso realizá-las, (e aqui no sentido
literal da palavra, torná-las reais), o que certa-
Entretanto, a disparidade entre o discurso mente não acontecerá se as estratégias para isso 
lançado no Rio de Janeiro e a prática vivenciada continuarem a envolver somente a economia e
pelo Planeta ficou cada vez mais patente, a ponto a política, pois assim tem sido desde sempre, e o
de a Cúpula da Terra sobre Sustentabilidade e que vemos não referenda o que queremos.
Desenvolvimento, realizada em Johanesburgo
em 2002, ter sido marcada pelo expresso con- Ervin Laszlo2, duas vezes indicado ao prê-
fronto por conta dos interesses econômicos mio Nobel da Paz, fundador e presidente do
corporativos, especialmente sobre o aspecto Clube de Budapeste, associação internacional
da substituição do petróleo  por energias sus- dedicada a desenvolver uma nova forma de
tentáveis, as chamadas energias limpas. O foco pensar e uma nova ética para ajudar a resolver
de Johanesburgo foi o lucro, e a cooperação e o os problemas políticos, econômicos e os de-
desenvolvimento sustentável e acessível para safios ecológicos no século XXI, deixa clara a
todos ficaram fora do debate. dificuldade em avançar na busca de soluções,
embasados tão somente nas propostas formula-
É bem verdade que, em paralelo a tais das pela economia e pela política. É o que relata,
eventos, as discussões continuavam e continuam discorrendo sobre a luta contra a degradação do
a ganhar corpo, principalmente em razão da meio ambiente. Ele afirma “que esses proble-
formação de um senso comum, e cada vez mais mas são produzidos por práticas ecologicamente
crescente, de que mudanças são necessárias  e irresponsáveis, sedentas de lucro, e são combati-
de forma imediata. dos por práticas sedentas de lucro que alegam ser
ecologicamente responsáveis – sendo que essas
Daquela época para os dias atuais, as discus- últimas diferem das primeiras somente pelo fato
sões acentuaram-se. Mas ainda assim, o consenso de que tornam lucrativa a faxina da desordem,
está longe de ser alcançado, e muito em função em vez de criá-la.”
da contínua expansão do conceito de sustenta-
bilidade, que a cada nova onda de compreensão, Para criar soluções novas para a situação
se amplia  para abrigar ideias cada vez mais caótica que é observada cotidianamente neste
criativas. E isto é bom. Isto é muito bom. planeta, é preciso pensar diferente, partindo de
uma nova visão, incluindo a responsabilidade
2. “Não pretendemos que as coi- social e a responsabilidade ambiental como
sas mudem, se sempre fazemos inerentes a qualquer estrutura de negócios.
o mesmo”. Albert Einstein
E o mundo segue tentando buscar novas
Inobstante as discussões travadas ao longo saídas para o impasse que estamos vivendo em
destes anos acerca das causas estruturais dos relação às  questões demográficas, a  incapacida-
problemas ambientais,  ainda é perceptível o de de lidar com a pobreza e a fome do mundo, a
fosso existente entre meio ambiente e desen- devastação dos nossos recursos naturais e meio
volvimento.
2
LASZLO, Ervin. O ponto do Caos: Contagem  regressiva 
E o que nós vemos é a grande incapacidade para evitar o colapso global e promover a renovação do
das nações em promover as reformas necessárias mundo. São Paulo: Cultrix , 2011.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 49


DOUTRINA

ambiente, os  avanços, nem sempre sustentáveis, cessitadas. Na realidade, a maioria delas repassa
da ciência e tecnologia, a frágil estruturação da apenas 0,2% do PNB. Este projeto denominado
economia global e a globalização. Todos estes Estratégia de Redução de Pobreza, baseada nas
são fatores altamente instáveis, e estão sendo Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDMs),
estudados através de uma mesma estrutura de deveria repassar cerca de 150 bilhões de dólares,
pensamento, ou seja, através da mente racional, por ano, durante um período de 20 anos. Ele foi
materialista, dual e manipulativa que caracteriza considerado possível, porque a ONU reconhece
a civilização industrial e de serviços, que ainda que o mundo já possui a tecnologia e o conhe-
experimentamos. cimento para resolver a maioria dos problemas
enfrentados pelos países pobres.
Os principais problemas do nosso tempo,
como os citados acima, são facetas de uma O consultor da ONU para o Projeto, o
única crise, que Fritjof Capra3 chama de crise de economista Jeffrey Sachs, declarou que “a con-
percepção. Ele, assim como Lazlo, entende que secução dos Objetivos de Desenvolvimento do
a maioria de nós, enfatizando as grandes insti- Milênio requer uma parceria global apropriada a
tuições sociais, adere aos conceitos e valores de um mundo interconectado. O mundo realmente
uma visão de mundo obsoleta, nos agarrando a compartilha um destino comum.” E com isso,
um paradigma já inadequado para lidar com o ele calcula que por volta de 2015, este valor
mundo, tal qual ele se nos apresenta hoje. Ainda poderia eliminar situações de extrema pobreza
que em fase de retrocesso, este paradigma expõe que afetam hoje cerca de 1,1 bilhão de pessoas. 
o Universo como um sistema mecânico, o ho- Este documento consolidou várias metas estabe-
mem como uma máquina, a vida como uma luta lecidas nas conferências mundiais ocorridas ao
competitiva e a crença, ainda existente, em um longo dos anos 90, estabelecendo um conjunto de
progresso material ilimitado, a ser conquistado, objetivos para o desenvolvimento e a erradicação
exclusivamente, através do crescimento econô- da pobreza no mundo – os chamados Objetivos
mico e da tecnologia. A essência deste paradigma de Desenvolvimento do Milênio (ODM) – que
é a separação. Nele, não existe a percepção da  devem ser adotados pelos estados membros das
interconectividade e codependência  entre todos Nações Unidas.
os seres vivos, desde a mais elementar unidade
celular  até o nosso sistema solar, que partilha- Este projeto, nos moldes que foi pensado
mos com vários outros planetas. pela ONU, traduz um bom exemplo do novo
paradigma. Aqui não apenas dinheiro é ofereci-
A guerra travada contra a pobreza é um bom do. Aqui há um esforço coletivo para combater
exemplo do pensamento baseado no paradigma as doenças, promover a boa ciência, difundir
antigo, onde a ajuda se dá, basicamente, através amplamente a educação, oferecer infraestrutura
de medidas de repasse financeiro dos países mais crítica e atuar em unidade para ajudar os mais
ricos aos países mais necessitados. Não é levada pobres do planeta. Aqui há a intenção de susten-
em consideração toda uma série de variáveis que tar o crescimento e não apenas enviar recursos,
poderiam ser adotadas para, realmente, erradicar os quais, na maioria das vezes, correm o risco de
a pobreza no planeta. Neste paradigma apenas se serem desviados através do ralo da corrupção.
dá o peixe, não se ensina a pescá-lo. Isso em nada E é interessante observar que, para o Brasil, a
muda a realidade local, ou muito pouco a altera. ONU criou especialmente uma 9ª meta4, qual
seja garantir que as melhorias obtidas na luta
A ONU, entretanto, elaborou a estrutura de
um projeto em que as nações mais ricas ofere-
ceriam a ajuda média de 0,5 % do seu Produto 3
CAPRA, Fritjof. O Tao da Física. 16. ed. São Paulo: Cultrix.
Nacional  Bruto (PNB) àquelas nações mais ne- 1995.

50 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

pelo cumprimento dos objetivos do milênio pro- Enfim, toda a mudança tecnológica que
movam igualdade de condições para brancos e estamos vivenciando, primeiro com o advento
negros. Tal meta foi batizada de “Os objetivos do da internet, depois a propagação das ideias
milênio sem o racismo”, e será levada em conta através das redes sociais, está contribuindo
na análise dos resultados finais da campanha. Ou para desestabilizar as estruturas e instituições
seja, só vamos cumprir os oito objetivos princi- já desgastadas. Mas é preciso ressaltar que a
pais se, em 2015, brancos e negros estiverem em tecnologia foi apenas o gatilho das mudanças.
condições iguais. Provavelmente, impossível! A verdadeira fonte das transformações está sen-
do a emergência de um pensamento novo, um
Então aqui, nesse ponto que nos encon- pensamento vivo,  novos valores, novas regras
tramos agora, e justamente pela existência sendo criadas pelo coletivo, gerando uma massa
de paradigmas antagônicos, existe uma real crítica cada vez maior, pronta para dar o grande
possibilidade de mudanças de base. Estamos salto da mudança.
naquele momento que Fritjof Capra denominou
de  ponto de mutação e Lazslo considera como O paradigma que está emergindo, cada vez
sendo uma janela de decisão. Assim, ao lado de mais forte, diz respeito a uma visão holística,
uma sociedade altamente predatória, e, portanto que enfatiza o todo em vez das partes. Capra
excludente, para a qual os lucros justificam os chama este novo paradigma de visão ecológica do
meios, servindo a poucos em detrimento da ma- mundo, considerando, aqui, a palavra ecológica
nutenção de muitos na pobreza, está surgindo a no seu aspecto mais amplo e profundo, e que
possibilidade do desenvolvimento includente, significa o reconhecimento da interdependên-
assegurando o exercício dos direitos civis, a cia fundamental e funcional de toda a vida que
busca por uma melhor distribuição de renda e existe na Terra. A visão ecológica do mundo, com
melhores acessos aos serviços públicos, como embasamento na ciência, especialmente na física
saúde, educação e moradia. quântica, afirma a existência de uma consciência
de unidade de toda vida e da interdependência
Nós estamos tendo a incrível oportunidade de suas múltiplas manifestações e de seus ciclos
de presenciarmos um choque entre paradigmas, de mudança e de transformações.
e nos confrontamos com a possibilidade de
fazermos uma escolha consciente, enquanto in- A conclusão que aqui se impõe é que novas
divíduos e enquanto coletivo. As mudanças que soluções estão surgindo neste momento, e tais
estão ocorrendo neste momento são difundidas e soluções derivam de novas formas de pensar,
compartilhadas entre nós, na velocidade da luz. novas formas de ver o mundo e de enxergar o
Revoluções estão sendo realizadas, populações futuro. Em 1991, Václav Havel, então presidente
estão indo para as ruas, manifestando todo o da Checoslováquia, durante a sua fala, em sessão
seu descontentamento com o velho e caótico no Congresso dos Estados Unidos, ressaltou que
mundo. E chama a atenção que inexiste uma “sem uma revolução global na esfera da consci-
liderança pessoal nestes movimentos. Existem ência humana, nada mudará para melhor”.
novas ideias, a evolução de uma massa critica
descontente e uma consciência ampliada deste Esta revolução já está acontecendo, bem
descontentamento e das suas diversas causas. neste exato momento.
Esta consciência que está circulando pelo plane-
ta, segue pulsando pelas mudanças que o novo
paradigma traz em seu seio: circularidade nas
decisões, consciência mais evoluída, criatividade
4
Compêndio para Sustentabilidade Ferramentas de Gestão
mais aflorada, determinação em buscar  soluções
de Responsabilidade Socioambiental http://www.instituto-
que atendam à maioria. atkwhh.org.br/compendio/?q=node/19

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 51


DOUTRINA

3. A Transformação Carta da Terra nos dá um norte, ao afirmar


que “devemos decidir viver com um sentido de
A Terra, como sistema vivo que é, está em responsabilidade universal, identificando-nos com a
constante transformação. Seu estado natural é comunidade terrestre como um todo, bem como com
de evolução, de adaptabilidade, de expansão, nossas comunidades locais. Somos, ao mesmo tempo,
alimentando-se sempre de um fluxo de matéria cidadãos de nações diferentes e de um mundo no qual
e energia. No planeta, assim como em todo o as dimensões local e global estão ligadas. Cada um
Universo, tudo está conectado em redes. compartilha responsabilidade pelo presente e pelo
futuro bem-estar da família humana e de todo o
Quando este fluxo de energia aumenta, mundo dos seres vivos.”
pontos de instabilidade podem acontecer, pon-
tos estes que Fritjof  Capra5 denomina “ponto É, portanto, o momento de reexaminarmos
de bifurcação” através do qual   o sistema “tem a nossa forma de pensar, ampliarmos a nossa
a possibilidade  de derivar para um estado consciência para assimilarmos a realidade emer-
totalmente novo, em que podem surgir novas gente, e buscarmos uma visão compartilhada
estruturas e novas formas de ordem”. que privilegie os valores básicos que sustentam
a vida no Planeta, de forma individual e coletiva.
O que se constata neste processo é a capa-
cidade de auto-organização que todo organismo Novos princípios devem ser acolhidos e
vivo, que todo sistema, possui. Esse fenômeno sedimentados, como um padrão de conduta co-
é reconhecido como a origem dinâmica da evo- mum aos indivíduos, às organizações, empresas,
lução, do aprendizado e do desenvolvimento. É governos e instituições transnacionais, com o
a criação de algo novo, a partir do que já existe. intento de cocriar uma via possível de susten-
Em uma única palavra é a Criatividade. E com tação para o Planeta.  A Carta da Terra enfatiza
a Terra não é diferente. quatro princípios basilares, cujo desdobramento
é essencial, para que possamos conseguir este
O momento atual é absolutamente criativo, intento. São eles: 1.Respeitar e cuidar da co-
já  que para que o Planeta possa continuar a munidade de Vida; 2. Integridade ecológica;
existir de forma saudável, nós, os seus habi- 3.Justiça Social e Econômica  e 4. Democracia,
tantes, deveremos também fazer a nossa parte, Não Violência e Paz.
assimilando e vivenciando os novos conceitos
que circulam na rede de conexões vivas, da qual E é a educação a grande base que une estes
somos parte. Devemos buscar uma nova forma princípios norteadores e, sem dúvida, é a ponte
de vivenciarmos a educação, a economia, a reli- que vai proporcionar a transição para o novo
gião, a política, enfim as principais instituições paradigma.
que deram suporte à nossa civilização, como a
conhecemos até então. 4. Educação: o verdadeiro agen-
te da transformação
E para acompanharmos esta evolução é ne-
cessário reconhecer que não existe mais espaço A educação é imprescindível para que o rela-
para soluções únicas. Impossível impor a ho- cionamento humano com a natureza possa acon-
mogeneidade, em um mundo em que imperam tecer, de forma cada vez mais harmônica. Assim,
a diversidade de visões. sob o prisma da sustentabilidade, a educação deve

Por isto é chegada a hora de escolhermos


como, individualmente e em coletivo, iremos 5
CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas. 11. ed. São Paulo:
construir este novo equilíbrio no Planeta. A Cultrix. 2009

52 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

valorizar todo tipo de conhecimento, indepen- e sem medo. E neste caminhar, aprendendo a
dentemente da sua origem, seja ele científico ou refletir, a questionar e a cobrar, a humanidade
proveniente da cultura popular. Todos os saberes segue construindo valores, adquirindo conheci-
são bem-vindos, posto que, como intrínseca ao mentos, atitudes e competências voltadas para
novo paradigma, a inclusão é a regra. a conquista e manutenção do direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
Cabe à educação ambiental atravessar as
fronteiras disciplinares, buscando a integração Desde 1972, quando da Conferência de Es-
de novos conhecimentos, com o olhar voltado tocolmo, a educação ambiental é objeto de aten-
não somente para o presente, mas também para ção especial por todos aqueles que se debruçam
um futuro de médio prazo, já que a sustentabi- sobre a questão do desenvolvimento sustentável.
lidade não pode ser pensada e implementada
apenas com foco no agora.  Só assim tornar-se-á Organismos internacionais como a UNES-
possível a redução das desigualdades, bem como CO têm investido bastante na educação, reco-
a preservação do meio ambiente. nhecendo a sua importância para que o planeta
se torne efetivamente sustentável em todos os
Na abordagem doutrinaria sobre educação aspectos. É o caso do Programa A Década da Edu-
ambiental, existem aqueles  que distinguem en- cação para o Desenvolvimento Sustentável (2005
tre educação para o desenvolvimento sustentável – 2014) que tem a UNESCO como organismo
(EDS) e a educação ambiental, propriamente diretor. E em 2009, a UNESCO promoveu em
dita (EA). A diferença estaria no fato de que a Bonn, na Alemanha, a Conferência Mundial de
EDS se debruça sobre o sistema econômico, a Educação para o Desenvolvimento Sustentável,
globalização, a educação intercultural, o pen- com o fito de avaliar os projetos e traçar prio-
samento estratégico e a educação comunitária. ridades para a segunda parte da década. E daí
Portanto, ela é mais abrangente do que a EA, surgiu uma das realizações mais importantes
cuja abordagem se restringe precipuamente ao desta Conferência, que foi o advento da Decla-
meio ambiente. ração de Bonn, que define os paradigmas da
Educação para o Desenvolvimento Sustentável,
Inobstante tal diferenciação, uma educação enfatizando se tratar de uma proposta transversal
adequada reconhece e estimula a estreita relação que precisa atingir todas as disciplinas, para que
entre os sistemas de conhecimento e os valores cada uma delas ajude a construção de um futuro
humanos, além de explorar o complexo relacio- sustentável, e entre elas destacamos aquela que
namento do indivíduo com a natureza e com seus trata da ajuda para que sociedade possa fazer frente
semelhantes. A eterna busca de equilíbrio entre o às diferentes prioridades e problemas como: água,
indivíduo, a sociedade e a natureza é um grande energia, mudanças climáticas, diminuição do risco de
desafio, que deve ser encarado diuturnamente, desastres, a perda da biodiversidade, a crise alimentar,
já que ele é a resposta à nossa necessidade de as ameaças contra a saúde, a vulnerabilidade social e
sobrevivência neste Planeta. a insegurança. E mais adiante, em outra das suas
declarações, enfatiza a evidência da interdepen-
Para alguns autores, além da busca da satis- dência entre meio ambiente, economia, sociedade e
fação de necessidades materiais, a transcendên- diversidade cultural, no âmbito local e mundial, tendo
cia, a transversalidade cultural, a criatividade e em conta o passado, o presente e o futuro.
o reconhecimento das necessidades espirituais  
humanas tornam-se, também, cada vez mais Enfim, a EDS estimula através dos enfoques
importantes para a educação. O foco é levar a hu- criativos e críticos, a reflexão em longo prazo, a
manidade a alcançar uma vida mais digna, com a inovação e a autonomia para fazer frente às incer-
satisfação de suas necessidades materiais básicas tezas e solucionar problemas complexos, além de

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 53


DOUTRINA

propiciar a visão da interrelação e ecodependência A Carta Magna Brasileira, em seu Capítulo


de todos que habitam este Planeta. Este é um IV, especificamente no  art. 225, delibera sobre
conhecimento que não pode ser adquirido tão o direito que todos têm ao meio ambiente eco-
somente pela compreensão intelectual. Ele precisa logicamente equilibrado, indicando assim que o
ser adquirido através da ação, da experiência, do nosso sistema jurídico encontra-se a serviço do
contato direto com a biodiversidade, explorando- equilíbrio da vida no Planeta. E mais, a nossa
-a e preservando-a. Esta abordagem precisa lei máxima convoca, a tal responsabilidade,
incluir todo o tipo de experiência, indo além não somente o poder público, mas a toda a co-
do meio ambiente natural. O estudante precisa letividade para defendê-lo e preservá-lo para as
fazer o contato com sua realidade, com o urbano futuras gerações.
e as suas incontáveis redes para que possa ser um
agente consciente de sua intervenção e mudança. E aqui, tal como tudo que diz respeito
à sustentabilidade e meio ambiente, se faz uma
Boaventura de Sousa Santos6 trata desta clara projeção de futuro, a médio e longo prazo.
abordagem da realidade mais próxima, através E com isso, é patente a preocupação do legado
de uma perspectiva também pragmática. Assim a ser deixado às gerações futuras, através do
ele considera que ser pragmático significa  abordar comando constitucional.
a realidade a partir das “coisas últimas” de William
James, isto é, das consequências. Quanto menor a dis-
A preservação do meio ambiente é, portan-
tancia entre actos e consequências, mais fácil e mais
to, direito constitucionalmente protegido, que
necessário se torna um saber edificante. Acresce que,
abarca muito além daqueles que já possuem
sendo retórico, o conhecimento pós-moderno aspira à
alguma expectativa de direito, como no caso dos
oralidade, à comunicação face-a-face, a qual, como
nascituros. Assim, como um direito que protege
Walter ONG demonstra, é situacional e contextu-
a Vida, ele é atemporal, protegendo o momento
al, em suma, próxima (1982:36). Favorecendo a
presente e  buscando a preservação futura do
proximidade, o conhecimento pós-moderno é local.” 
delicado equilíbrio dinâmico que tece a rede de
E inobstante tal característica, este localismo,
conexões vivas.
como o chama Sousa Santos, é também interna-
cional, pois ao mesmo tempo ele é relativamente
desterritorializado, é compartilhado por todos, A questão da proteção aos que nem nascitu-
exemplo claro das redes sociais na internet. ros são é  abordada por Juarez Freitas7, quando 
afirma: “trata-se de direito extensivo aos que sequer
Assim, se a educação conseguir fazer com nascituros são, algo que francamente subverte, em lar-
que o ser humano se conscientize de que ele ga medida, a tradição jurídica ocidental, acostumada
não é o dono do Planeta, mas apenas mais um à noção estreita dos direitos subjetivos e a processos
membro da comunidade da Vida,  e que portanto, sucessórios acanhados”.
não pode explorá-lo, inconsequentemente, sem
pensar nas gerações que virão após a dele, o seu Resta evidente que nenhum ramo de ciência
objetivo terá sido plenamente alcançado. pode ignorar o conceito extensivo da sustentabi-
  lidade. E a Ciência Jurídica, talvez mais do que
5. A sustentabilidade como prin- as outras, tem que correr para ajustar-se a uma
cipio norteador da conduta realidade mutável, que exige processos reparató-
humana rios rápidos, sem  o que a prestação jurisdicional
  do Estado restará completamente ineficaz.  Mas
A sustentabilidade trata de valores tão in-
trínsecos à vida no Planeta que a visão jurídica,
que ajuda a regulá-la, não poderia ficar apartada 6
SOUSA SANTOS, Boaventura. Pela mão de Alice: o social
da sua qualificação. e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2001.

54 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

ainda não vemos isto acontecer, com frequência, omisso e cobrar resultados concretos e benéficos
aqui no Brasil, onde o direito não é, em regra, para as gerações presentes e futuras.
acautelatório, agindo a posteriori  do fato pre-
datório. Isso é completamente oposto ao que Quando as soluções de conflito forem, prio-
prega o paradigma sustentável, que está sempre ritariamente, resolvidas através de mediação e
em busca da prevenção, em vez da reparação do de negociação, nas esferas administrativas, em-
dano, na maioria das vezes completamente irre- basada em decisões técnicas viáveis, em vez de
parável. Agregado a isso, como fator de prejuízo alimentar as eternas postulações, certamente as
à rápida prestação jurisdicional, temos o excesso melhores soluções serão encontradas, no menor
de possibilidades recursais que fazem com que tempo possível, tempo este essencial no que diz
o processo se desdobre para o futuro, aqui sim, respeito à sustentabilidade.
de forma quase infinita.
Em termos de sustentabilidade a regra ge-
É certo que muitas mudanças já estão acon- ral é o poder  é, antes de tudo, dever, como afirma
tecendo, mas é preciso que a visão jurídica evolua Juarez Freitas.
no sentido de cuidar da regulação sustentável,  
reconhecendo a importância da mesma como 6. Sustentabilidade. Conceito
parte da proteção à vida. Podemos destacar expandido
algumas destas mudanças normativas  (embora  
a maioria sem grande efetividade), tais como, Assim, de tudo quanto abordamos neste
por exemplo, a Lei 6938/81, que estabeleceu a texto, podemos concluir que a sustentabilidade
Política Nacional de Meio Ambiente, que passou vem tendo o seu conceito cada vez mais expan-
a considerar o meio ambiente como patrimônio dido para absorver novas esferas possíveis, nem
público, assegurado e protegido, tendo em conta todas elas relacionadas com ambiência física.
o seu uso coletivo; a Lei 10.257/2001, Estatuto da
Cidade, que garantiu o direito às cidades susten- Assim, em face de tudo que foi exposto, a
táveis, no seu art. 2º, I; a Lei 9.433/97, Política visão emergente é que o conceito de sustentabili-
Nacional de Recursos Hídricos, que prevê no dade é multidimensional, abrangendo, inclusive,
seu art. 2º, II,  a utilização racional e integrada o de meio ambiente, para incluir os componentes
dos recursos hídricos, com vistas ao desenvol- éticos,  os sociais, os jurídicos, econômicos e os
vimento sustentável; a Lei nº 12.305/2010, que políticos, e também o espiritual, aqui visto como
rege a gestão integrada de resíduos sólidos, a percepção de fazer parte de um Todo maior, de
prevendo a busca de soluções para os resíduos estar conectado com tudo o que há.
sólidos, levando em consideração as dimensões  
política, econômica, ambiental, cultural e social Assim sendo, impossível não sentir espe-
sob a premissa do desenvolvimento sustentável; rança quando todos os ramos do conhecimento
a Lei 8666/93, alterada para incluir no seu art. humano se voltam cada vez mais para a busca
3º o princípio do desenvolvimento sustentável, da uma nova realidade, baseada naquilo que
e a Lei 12.187/2009, que instituiu a Política realmente interessa, na proteção da Vida, nas
Nacional sobre Mudança de Clima. mudanças das relações sociais, na busca e no
compartilhamento de novas soluções, não so-
Entretanto, embora tais legislações já façam mente para quem já está aqui, mas para todas as
parte do nosso ordenamento jurídico, algumas futuras gerações que ainda viverão neste Planeta.
delas, inclusive, há muito tempo, os efeitos
práticos ainda precisam ser apresentados. E isso
pressupõe uma cobrança também da sociedade, 7
FREITAS, Juarez. Sustentabilidade. Direito ao Futuro. 1.
que precisa deixar de lado o comportamento ed. 1. reimp. Belo Horizonte: Fórum, 2011.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 55


DOUTRINA

E mais, é um momento especial para estar REFERÊNCIAS


vivo na Terra. Neste momento, estamos cons-
truindo algo novo e alcançamos a consciência da 1. BOFF, Leonardo. Sustentabilidade: o que é – o
Unidade e de mútua dependência com tudo que que não é. Petrópolis, RJ: Vozes. 2012.
está conosco, humanos, partilhando este espaço.
É tocante observarmos as mobilizações em favor 2. CAPRA, Fritjof. O Tao da Física. 16. ed. São
dos animais, da terra, das tradições culturais Paulo: Cultrix. 1995.
antigas que valorizam o compartir, valorizam o
sentimento de que a Vida é muito mais do que 3. ______. As conexões ocultas. 11. ed. São Paulo:
ter. A Vida é ser, é sentir, é experimentar e para Cultrix. 2009.
ser não precisamos de muito. Precisamos do es-
sencial, precisamos do bem-estar físico, psíquico 4. Compêndio para Sustentabilidade Ferramen-
e espiritual para nos sentirmos pertencendo a tas de Gestão de Responsabilidade Socioam-
este lugar. Nós somos uma Unidade com este biental        http://www.institutoatkwhh.org.br/
Planeta e quando cuidamos da sua preservação, compendio/?q=node/19
estamos cuidando de cada um de nós e de todos
nós ao mesmo tempo. 5. FREITAS, Juarez. Sustentabilidade. Direito ao
Futuro. 1. ed. 1. reimp. Belo Horizonte: Fórum,
Espero que consigamos gerar novas conexões
2011.
baseadas na harmonia, na paz, no compartilha-
mento do saber, para que novas memórias possam
6. LASZLO, Ervin. O ponto do Caos: Contagem 
ser geradas, novos valores possam ser assimilados
regressiva  para evitar o colapso global e promover
e que o passar do tempo os solidifique.
a renovação do mundo. São Paulo: Cultrix, 2011.
E como bem o disseram os sábios que por
7. SOUSA SANTOS, Boaventura. Pela mão de
aqui caminharam e que ainda aqui caminham, o
Alice: o social e o político na pós-modernidade. São
coração é o núcleo desta mudança. No momento
Paulo: Cortez, 2001.
em que a ONU, em 22 de abril de 2009, reco-
nheceu que a Terra é um superorganismo vivo,
é obvio que há um reconhecimento de que todos
os seres que nela habitam estão intrinsecamente
ligados, como um único sistema vivo, onde a
ação de um só de nós afeta toda a corrente da
Vida que aqui floresce. E será tão bom quando
esta conexão puder ser feita através do coração.
 
“Qualquer  caminho é apenas um caminho e não
constitui insulto algum – para si mesmo ou para
os outros – abandoná-lo quando assim ordena o
seu coração. (...) Olhe cada caminho com cuida-
do e atenção. Tente-o várias vezes quantas julgar
necessárias... Então, faça a si mesmo e apenas
a si mesmo uma pergunta: possui este caminho
um coração? Em caso afirmativo, o caminho é
bom. Caso contrário, esse caminho não possui
importância nenhuma.
Carlos Castañeda, Os ensinamentos de Don
Juan.

56 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

A NOÇÃO DE TRIBUTO COMO


DEVER FUNDAMENTAL  NOS DOUTRINA
SISTEMAS JURÍDICOS DE CIVIL
LAW E DE COMMON LAW
 

José Antônio Garrido*

SUMÁRIO

1. Introdução. Delimitação do tema. 2. Direito como objeto cul-


tural. Multiculturalismo e o fenômeno jurídico: 2.1. Uma noção
de cultura; 2.2. O fenômeno do multiculturalismo; 2.3. O Direito
como fenômeno cultural. 3. Bases para a construção da noção de
tributo como dever fundamental: 3.1. Teoria dos deveres funda-
mentais: características, elementos e função; 3.2. O princípio da
solidariedade social; 3.3. O princípio da capacidade contributiva.
4. O tributo no contexto constitucional de Civil Law e de Common
Law: 4.1. Constituições da Europa Continental; 4.2. Constituição
dos Estados Unidos da América e contexto constitucional inglês;
4.3. Constituições latino-americanas. 5. Conclusão. Referências.
Palavras-chave: Multiculturalismo; tributo; dever fundamental;
solidariedade social; capacidade contributiva.
 
* Advogado
Procurador do Município de Salvador
1. Introdução. Delimitação do tema Especialista em Direito Tributário pelas
  Faculdades Jorge Amado/JusPodivm
O tributo é fenômeno que não pertence exclusivamente ao Mestre em Direito Público pela UFBA
Doutorando em Direito Público pela
domínio do direito. De rigor, é instituto milenar que remonta UFBA
a civilizações que não conheciam o Estado constituído como Professor da Pós-Graduação em Pro-
cesso Civil da Fundação Faculdade
organização política. As organizações sociais primitivas contem- de Direito da Universidade Federal da
plavam deveres impostos aos integrantes do grupo que podem ser Bahia (UFBA)
Professor da Pós-Graduação em Direi-
subsumidos à noção comum de tributo – não como instituição
to Tributário da Fundação Faculdade
jurídica, mas como um fenômeno social. Pode ser examinado e ex- de Direito da Universidade Federal da
plicado com base em premissas jurídicas e em dados e concepções Bahia (UFBA)
Professor da Pós-Graduação em Direi-
que pertencem ao campo da economia, da política, das relações to Tributário e Planejamento Tributário
sociais e, inclusive, da religião. Não pertence, pois, nesse passo, à da Faculdade Baiana de Direito

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 57


DOUTRINA

cultura de uma civilização específica, confinada como limite da tributação – esta como atividade
a um referencial de tempo e espaço. Tributo é, do Estado – sói examinar a configuração jurídica
em verdade, um instituto que comporta exame da capacidade contributiva.
sob uma perspectiva multicultural, tanto sob o  
aspecto social, político, econômico e jurídico. Por derradeiro, serão examinados os textos
  de algumas constituições integrantes de siste-
Interessa construir a noção moderna de mas jurídicos de base no direito romano (civil
tributo como dever fundamental, plasmado, law) não apenas da Europa Continental, mas
implícita ou explicitamente, tanto nas Cons- também de países integrantes da América Lati-
tituições integrantes de sistemas jurídicos de na, de colonização europeia, sobretudo ibérica.
matriz romana – também conhecidos como Ver-se-á, pois, que essas constituições guardam
sistema do civil law – como nas Constituições elementos comuns que fundamentam a ideia
que fundamentam os sistemas jurídicos deri- de tributo como dever fundamental. Ao lado
vados ou fortemente influenciados pelo direito disso, demonstrar-se-á que, mesmo no sistema
anglo-saxão – chamados de sistemas jurídicos de common law e nos sistemas jurídicos pautados
de  common law – tenham ou não constituição em suas premissas, é possível construir a noção
jurídica escrita, tal como ocorre na Inglaterra – de tributo como dever fundamental: tomar-se-á
que não dispõe de um texto escrito. como referência a  Constituição dos Estados Uni-
  dos da América e o aqui denominado contexto
Nesse desiderato, pois, o caminho a ser per- constitucional inglês.
corrido envolve, de partida, determinar o Direito  
como objeto cultural e, portanto, influenciado 2. Direito como objeto cultural. Multicultu-
pelo fenômeno do multiculturalismo. Se, em um ralismo e o fenômeno jurídico
primeiro momento, a dominação de civilizações  
por outras em razão de expansão movida por Ponto de partida do presente trabalho resi-
interesses eminentemente políticos, econômicos de, justamente, em fixar o direito como produto
ou religiosos, implicou diretamente a imposição da cultura e um objeto cultural; produzido por
de sistemas jurídicos de uma civilização a outras, uma determinada organização social, segundo
em uma perspectiva mais recente as facetas de os influxos de elementos apresentados na con-
uma globalização cultural e econômica exercem vivência e nos valores por ela expressados e,
forte influência na mutação e adaptação de siste- porque produzidos pela atividade humana, na
mas jurídicos dos países inseridos em economia experiência e, portanto, passíveis de valoração; é
de mercado1. O tributo, pois, como instituto jurí- um objeto cultural. Nesse passo, necessário será
dico de forte viés econômico e político, também fixar alguns pontos em derredor do fenômeno do
sofre esses influxos. multiculturalismo e, em que medida, há reflexo
  disso no fenômeno jurídico.
Fixados estes pontos, calha determinar o  
que se entende por dever fundamental dentro do
1
Cf. LOSANO, Mário G. Os grandes sistemas jurídicos. São
contexto do pensamento constitucional2, fixando Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 6.
suas características, os critérios para a definição 2
“Pode-se pensar na constituição como um projeto histó-
rico que cada geração de cidadãos continua a adoptar.
dos elementos e a função desses deveres. Exsurge
No estado democrático nacional, o exercício do poder
a necessidade de enfrentar o princípio da solida- político cifra-se numa maneira dupla: o tratamento insti-
riedade social, vez que – adiante-se – trata de um tucionalizado dos problemas e a mediação de interesse
regulada processualmente devem simultaneamente ser
dos possíveis elementos normativos a arrimar compreensíveis enquanto um sistema de direitos efecti-
a noção de tributo como dever fundamental, vados”. (HABERMAS, Jürgen. Lutas pelo reconhecimento
no estado democrático constitucional. In: Multiculturalismo.
inerente à ordem constitucional. Ao lado disso, Org.: Charles Taylor. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 125-
também como fundamento mas, de igual modo, 126).

58 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

2.1. Uma noção de cultura 3


Cf. VILANOVA, Lourival. “Notas para um ensaio sobre a
  cultura”. In Escritos jurídicos e filosóficos. Vol. 2. São Paulo:
“Cultura” é signo de difícil redução a um Axis Mvndi-IBET, 2003, p. 277.
4
Cf. VILANOVA, Lourival. “Notas para um ensaio sobre a
enunciado estanque que compreenda todos os cultura”. In Escritos jurídicos e filosóficos. Vol. 2. São Paulo:
elementos que a ideia envolve. É, pois, expressão Axis Mvndi-IBET, 2003, p. 280.
5
Observe-se a ponderação de Luís Recasens Siches: “A
plurívoca de impossível – ou, ao menos, tortuosa cultura não é espírito objetivo: é espírito objetivado pelas
– redução eidética. Está o conceito de cultura na obras humanas. A cultura não vive por si mesma. É algo que
fabrica o homem. Já fabricada, fica aí tal e como foi feita,
base das ciências humanas3, daí a importância fóssil, petrificada. Se muda, se evolui, como efetivamente
de, neste trabalho, enfrentá-lo. ocorre, é por obra de novas mentes humanas, as quais, ao
reviver o legado que receberam de outras gentes, não se
  limitam a revivê-lo estritamente e sim mais, atendendo-se de
Pode-se asseverar que a cultura é uma inter- um modo exclusive ao que encontraram, senão que aportam
novas matrizes de interpretação, de crítica, de superação;
seção de três linhas: (i) um domínio da objetivida- a obra recebida não é revivida servilmente em pura cópia
de includente do puramente natural; (ii) formas fotográfica, senão que ao repensá-la os novos sujeitos a
pensam de outro modo e a corrigem ou a transformam”
de interação e das significações que os homens (Tratado general de filosofía del derecho. 19. ed. México:
incorporam em suas condutas recíprocas dos 2008, p. 104, tradução do autor).
6
Prossegue Clifford Geertz asseverando que a cultura é
homens;  (iii) as significações que os homens pública. Conquanto uma ideação, não existe na cabeça de
incorporam às coisas. São três dimensões que se alguém; embora não física, não é uma identidade oculta.
Uma vez que o comportamento humano é visto como
mostram sempre justas, sem que haja primazia de ação simbólica, o problema se a cultura é uma conduta
nenhuma delas sobre as outras, ou operação como padronizada ou um estado da mente ou mesmo as duas
coisas juntas, de alguma forma perde o sentido. O que se
variável livre. A interconexão é a regra e há de evi- deve indagar é qual a sua importância: o que está sendo
tar o reducionismo, que levaria, respectivamente transmitido com a sua ocorrência e através de sua agência.
Isso pode parecer uma verdade óbvia, mas há inúmeras
ao naturalismo, ao sociologismo e ao culturalismo formas de obscurecê-la, a exemplo de: (i) imaginar que a
idealista4-5-6.  Para o citado autor7, como sistemas cultura é uma realidade “superorgânica” autocontida, com
forças e propósitos em si mesma, i.e., reificá-la; (ii) alegar
entrelaçados de signos interpretáveis – que ele que ela consiste no padrão bruto de acontecimentos com-
próprio qualifica como símbolos – a cultura não portamentais que de fato observamos ocorrer em uma ou
é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos outra comunidade identificável – i.e. reduzi-la; e, a mais
importante, (iii) a ideia de que a cultura está localizada na
casualmente os acontecimentos sociais, os com- mente e no coração dos homens (Ward Goodenough) – é
portamentos, as instituições ou os processos; ela é etnociência, que afirma que a cultura é composta de estrutu-
ras psicológicas por meio das quais os indivíduos ou grupos
um contexto, algo dentro do qual eles podem ser de indivíduos guiam seu comportamento. A cultura é pública
descritos de forma inteligível – isto é, descritos porque o seu significado o é. Dizer que a cultura consiste
em estruturas de significado socialmente estabelecidas, nos
com densidade. termos das quais as pessoas fazem certas coisas como
  sinais de conspiração e se aliam ou percebem os insultos
e respondem a eles, não é mais do que dizer que esse é
Diante dessas ponderações, é possível, para um fenômeno psicológico, uma característica da mente, da
os propósitos do presente trabalho, compreender personalidade, da estrutura cognitiva de alguém, ou o que
quer que seja, ou dizer ainda o que é tantrismo, a genética,
a cultura como um meio para se realizar a regu- a forma progressiva do verbo, classificação dos vinhos, a
lamentação normativa do comportamento, sob Common Law etc. (Cf. GEERTZ, Clifford. A interpretação
das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2012, p. 8-10).
influxo de valores e crenças que animam deter- 7
Cf. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de
minada sociedade. Em cada sistema sócio-legal, Janeiro: LTC, 2012, p. 10-11.
8
Cf. ROSEN, Lawrence. Law as culture. An invitation. Prin-
a forma pela qual outros elementos de cultura se ceton: Princeton University Press. 2006, p. 20.
entrelaçam sobre o aspecto normativo é crucial 9
Segundo Luís Recasens Siches, a cultura pode ser definida
como um sistema de funções da vida humana; o direito, a
para os efeitos do mecanismo8-9-10. arte, a ciência etc. seriam essas funções que não agiriam
  de modo isolado, senão em conexão, como uma unidade
orgânica (cf. SICHES, Luís Recasens. Tratado general de
2.2. O fenômeno do multiculturalismo filosofía del derecho. 19. ed. México: 2008, p. 115).
  10
É a cultura um fato de três dimensões: as significações são
conferidas aos objetos físicos pelos sujeitos (seus criadores
A interseção de culturas e, assim, a influên- e receptores), que entre si estendem uma teia de interrela-
cia que uma exerce sobre a outra, em maior ou ções sociais, justamente em função dessas significações.
menor escala, não é um fenômeno recente. Re- (Cf. VILANOVA, Lourival. “Notas para um ensaio sobre a
cultura”. In Escritos jurídicos e filosóficos. Vol. 2. São Paulo:
monta a período imemorial da história das socie- Axis Mvndi-IBET, 2003, p. 284).

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 59


DOUTRINA

dades. O Multiculturalismo, pois, compreendido Constitucionais contemporâneos pode ser, em


como o fenômeno de influência mútua da cultura parte, explicada e justificada pelo fenômeno
de diversos povos, sempre fora observado. do multiculturalismo. A escolha de valores a
  serem plasmados na Constituição, seja esta um
Entretanto, uma epistemologia constru- texto escrito ou em um conjunto de fatores reais,
ída sob a perspectiva do multiculturalismo, é pode ser examinada sob a perspectiva de uma
recente, identificada a partir de 1920, como epistemologia multiculturalista. Sendo assim,
reação ao positivismo, ao racionalismo e aos a positivação de valores que justificam a com-
determinismos que influenciaram o pensamento preensão do tributo como dever fundamental é
científico pós-iluminismo, sobretudo ao longo
influenciada pelo multiculturalismo.
do século XIX. Edmund Husserl na filosofia, e
Ferdinand Saussure na linguística, puseram em
2.3. O Direito como fenômeno cultural
xeque algumas das premissas do “pensamento
 
positivista”. A eles seguiram-se, no campo da
filosofia e da epistemologia, autores como Jac- Levando-se em conta a divisão feita por
ques Lacan, Michel Foucault, Maurice Merlau- Edmund Husserl, dentro da Teoria Geral dos
-Ponty, Fayerabend, Tomas Khun, Ludwig Objetos, podem ser identificadas quatro regiões
Wittgenstein, Humberto Eco, Paul Ricoeur, ônticas: a) a dos objetos naturais – que se compõe
dentre outros. Identificam-se, segundo Andrea de elementos reais, porque têm existência no tem-
Semprini11, como traços comuns entre esses po e no espaço, estão na experiência e são neutros
autores: (1) o abandono do racionalismo e do
empirismo ingênuos, segundo propugnava a
epistemologia tradicional; (2) o questionamento
11
Cf. SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo. Bauru: EDUSC,
1999, p. 82.
do paradigma realista, que postula uma descon- 12
Sobre o tema, ver SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo
tinuidade de fundo entre o mundo natural e os como vontade e como representação. São Paulo: UNESP,
2005.
conceitos empregados em sua descrição; (3) a 13
Andrea Semprini, então, identifica os quatro aspectos
recusa da teoria da representação, de acordo principais da epistemologia multicultural: (a)  a realidade
com o que as representações são uma descrição social como uma construção, que não tem existência inde-
pendente das personagens que a criam, das teorias que a
externa ao mundo que descrevem e sobre o qual descrevem e da linguagem empregada em sua descrição e
não poderiam exercer qualquer influência; e comunicação; (b) as interpretações são subjetivas, essen-
(4) crítica de uma concepção de verdade como cialmente um ato individual; (c) os valores são relativos, de
modo que a verdade só pode ser relativa, fundamentada
adequação que decorre de afirmação precedente, numa história pessoal ou em convenções coletivas; (d) o
e que assevera que uma teoria das condições da conhecimento é um fato político; é necessário estudar não
verdade depende de uma teoria representacional somente os mecanismos e as modalidades de uma ativida-
de constituinte, mas também as condições concretas onde
do mundo natural12-13. surgem as relações de força que estabelecem os sistemas
  de interesse aos quais serve e os grupos que institui, ou,
Esse fenômeno do multiculturalismo exerce ao contrário, marginaliza ou mesmo neutraliza. Agrega
o citado autor a esses aspectos a (1) Teoria do Sujeito;
influência, outrossim, no exame dos sistemas (2) o peso dos fatores sócio-culturais; (3) ênfase sobre a
jurídicos sob a perspectiva tanto da ciência do dimensão simbólica da ação; e (4) valorização da diferença
ou a importância da interioridade (Cf. SEMPRINI, Andrea.
direito, como de disciplinas zetéticas (filosofia
Multiculturalismo. Bauru: EDUSC, 1999, p. 83-4). Em con-
do direito, sociologia jurídica, antropologia jurí- traparte, o autor alude à epistemologia monocultural, que
dica, história do direito etc.). Noutros termos, a se funda nas seguintes premissas: (a) a realidade existe
independentemente das representações humanas; (b) a
epistemologia multiculturalista auxilia na iden- realidade existe independentemente da linguagem; (c) a
tificação das razões que explicam a presença de verdade é uma questão de precisão de representação; (d)
institutos, categorias e conceitos comuns entre o conhecimento é objetivo; (e) uma redução do sujeito às
suas funções intelectuais e cognitivas; (f) uma desvalori-
os diversos sistemas jurídicos. zação dos fatores culturais e simbólicos da vida coletiva;
  (g) a crença numa base biológica do comportamento; (h)
Nessa perspectiva, a construção da noção orgulho pelas conquistas do pensamento ocidental. (Cf.
SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo. Bauru: EDUSC,
de tributo como dever fundamental nos Estados 1999, p. 85-90)

60 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

de valor; b) a dos objetos ideais – que é formada tiva), unidade (unidade interior do Direito),
por elementos irreais, porque não têm existência abertura e mobilidade. A abertura torna o
no tempo e no espaço, não estão na experiência e sistema suscetível de mudanças; a mobilidade
são neutros de valor; c) a dos objetos culturais – tem como características essenciais: a igualdade
que, por sua vez, se constitui de elementos reais, fundamental da categoria e a substitutibilidade
porque têm existência no tempo e no espaço, estão recíproca dos critérios adequados de justiça.16.
na experiência e são susceptíveis de valoração  
(positivo ou negativo); d) objetos metafísicos – Os sistemas jurídicos constroem-se tendo
são reais, porque têm existência no tempo e no por conteúdo normas jurídicas que, por sua
espaço, não estão na experiência e são susceptíveis vez, valem-se de conceitos construídos direta-
de valoração (positivo ou negativo)14. mente por elas  e, portanto, válidos enquanto
  vigentes essas normas diretamente referidas;
Nessa classificação, o direito, como fenôme- são os conceitos jurídico-positivos, construídos
no, insere-se na categoria de objetos culturais. a partir da experiência (exame do direito positi-
Isso porque é produzido pelo homem, com vo). Forma-se, outrossim, integrando o sistema,
existência referida no tempo e no espaço, pre- categoria de conceitos construídos a partir de
sente na experiência e, portanto, susceptível de premissas de lógica jurídica, com pretensão de
investigação pelo método empírico e, por fim, validez universal e permanente; são os conceitos
passivo de exame axiológico, porque nele há a lógico-jurídicos, com base nos quais se fundam
presença de valores.
as Teorias Gerais, dentre as quais a Teoria Geral
 
do Direito17-18.
Fixado que o direito é expressão, pois, da
 
cultura, os institutos jurídicos são criados sob a
influência ativa de elementos culturais. Destarte,
anseios sociais de igual ou similar jaez plasmados 14
Cf. Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filo-
sofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia
no ordenamento jurídico de variados países im-
pura. Aparecida-SP: Idéias e Letras, 2006. A idéia da
plicaram, pois, a criação de institutos de similar fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008.
essência15. Daí, identificando-se valores a que a 15
Tratando da relação entre cultura e direito, J. J. Calmon
de Passos pontua que o Direito não é um objeto dado ao
cultura de determinado povo confere alta rele- homem pela natureza; é produzido pelo homem, mas não
vância, positivando-os no texto da constituição se reifica, como se dá com os outros produtos, resultado
– ou no contexto constitucional – e estes valores, do trabalho do homem. “Situa-se, pois, no universo do dis-
curso e da ação, somente existindo enquanto discurso e
porque positivados, constituem conteúdo de comunicação, linguagem, processo, fazer, operar. Onto-
normas jurídicas que, por sua vez, reduzem-se logicamente (diria melhor, onticamente), portanto, nada é
jurídico ou antijurídico, lícito ou ilícito na conduta humana.
ora a princípios, ora a regras, é possível afirmar O jurídico é sentido e significação que os homens empres-
que um instituto como o tributo pode ser con- tam a determinados atos seus, para ter atendida certa
siderado, nos sistemas de matriz romana (civil imprescindível e específica necessidade da convivência
social”. (Cf. CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Direito,
law) ou de fundamento no direito costumeiro poder, justiça e processo: julgando os que nos julgam. Rio
(common law), um dever fundamental. É preciso, de Janeiro: Forense, 1999, p. 22).
16
Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e
para tanto, identificar quais são esses valores conceito de sistema na ciência do direito. 3. ed. Tradução
cristalizados em regras constitucionais que, Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian,
constituindo-se em regras ou princípios, vão 2002.
17
Cf. KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. 4. ed. Lisboa:
dar ao tributo a natureza de dever fundamental. Fundação Calouste Gulbekian, 2010, p. 140-58. Cf. TE-
  RAN, Juan Manuel. Filosofía del derecho. 21. ed. México:
3. Bases normativas para a construção da Porrúa, 2012, p. 81-86.
18
A respeito de conceitos lógico-jurídicos e conceitos
noção de tributo como dever fundamental jurídico-positivos, ver nosso: “Sobre os conceitos lógico-
  -jurídicos e os conceitos jurídico-positivos”. In Revista do
Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade
Sistema jurídico, pois, como tal, apresenta Federal da Bahia: Homenagem ao Prof. Dr. George Fra-
as características de ordem (adequação valora- goso Modesto. N.º 13. Salvador: 2006, p. 125-138.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 61


DOUTRINA

O conceito de tributo é da categoria dos 3.1 Teoria dos deveres fundamentais: carac-
jurídico-positivos, construído, ao menos no caso terísticas, elementos e função
do direito brasileiro, a partir de disposições cons-  
titucionais. E bem o faz Ricardo Lobo Torres, Dois aspectos arrimam a existência de
conjugando deliberadamente o enunciado do deveres fundamentais: um de ordem lógica e
art. 3º do CTN com os traços constitucionais, outro de ordem jurídica. Quanto ao aspecto
para afirmar que tributo é o dever fundamen- de ordem lógica, pode-se dizer que os deveres
tal  e consiste em prestação pecuniária, que se fundamentais são expressão da soberania fun-
limita pelas liberdades fundamentais, pautada dada na dignidade da pessoa humana. Quanto
pelas normas-princípios constitucionais da ca- ao fundamento jurídico, este reside na circuns-
pacidade contributiva – como um princípio de tância de a Constituição prever, explícita ou
individualidade, de realidade e para a proteção implicitamente, o dever jurídico. Os deveres
do mínimo existencial19 –, do custo/benefício fundamentais, defende-se, seriam, pois, numerus
ou da solidariedade, e que ostenta a finalidade clausus. Configuram-se como posições jurídicas
primária ou secundária de obtenção de receita passivas, autônomas em relação aos direitos
tanto para as necessidades públicas como para
as atividades protegidas pelo Estado, sendo
exigida a prestação pecuniária de quem tenha 19
Cf. TIPKE, Klaus. YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e o
realizado o fato descrito em lei elaborada de princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malhei-
ros, 2002, p. 32-4. Nessa linha, Tipke afirma que existe
acordo com a competência específica outorgada apenas uma fonte de impostos, a renda, de modo que “o
pela Constituição. princípio da capacidade contributiva significa: todos devem
pagar impostos segundo o montante da renda disponível
  para pagamento de impostos. Quanto mais alta a renda
Vê-se, portanto, que o conceito constitu- disponível, tanto mais alto deve ser o imposto. Para con-
cional de tributo alberga, inexoravelmente, tribuintes com rendas disponíveis altas o imposto deve ser
igualmente alto. Para contribuintes com rendas disponíveis
a noção da exação como o “preço da liberda- desigualmente altas o imposto deve ser desigualmente
de”20, um dever fundamental, ínsito a qualquer alto” (p. 31).
20
Em trabalho anterior, Ricardo Lobo Torres faz alusão a
ordem constitucional; além disso, é pautado essa ideia: “Alguns teóricos do liberalismo, no exame do
pelos princípios constitucionais da capacidade problema do fundamento jurídico da tributação, afirmam
que o imposto é o preço da liberdade. Adotam a teoria do
contributiva, do custo/benefício ou da solida-
benefício e vinculam o pagamento do tributo à contrapres-
riedade. tação estatal representada pela segurança dos direitos
  individuais ou pela entrega de bens e serviços públicos.
(...)
É dever fundamental porque se constitui (...) o tributo é o preço da liberdade para efeito de lhe fixar
dever do homem e do cidadão (ou de unidade a finalidade ética e econômica e a dimensão existencial de
instrumento de alienação do cidadão diante do Estado”.
econômica) que tem especial significado para (A Idéia de liberdade no Estado patrimonial e no Estado
a comunidade e pode por esta ser exigido, vez fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p. 138).
que visa a concretização do bem comum; é uma
21
Cf. NABAIS, José Casalta. O Dever fundamental de pagar
impostos – contributo para a compreensão constitucional
posição jurídica passiva subjetiva, individual, do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004,
universal e permanente e essencial21. Constitui p. 64.
22
Confiram-se as conclusões de José Casalta Nabais:
um contributo inato à condição do indivíduo “1. Como dever fundamental, o imposto não pode ser
que, submetido à soberania do Estado, realiza encarado nem como um mero poder para o estado, nem
como mero sacrifício para os cidadãos, constituindo antes
fatos que denotam capacidade contributiva22,
o contributo indispensável a uma vida em comunidade
e dependem, também, de uma atuação legisla- organizada em estado fiscal. Um tipo de estado que tem na
tiva infraconstitucional para serem criados. E subsidiariedade da sua própria acção (econômico-social)
e no primado da autorresponsabilidade dos cidadãos
aqui calham considerações em derredor dessa pelo seu sustento o seu verdadeiro suporte. Daí que se
categoria jurídica, precisando-se seu conceito, não possa falar num (pretenso) direito fundamental a não
pagar impostos”. (O Dever fundamental de pagar impostos
seus elementos e sua função dentro da Teoria – contributo para a compreensão constitucional do estado
Constitucional. fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004, p. 679).
 
62 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA

fundamentais, subjetivas, individuais à medi- universalidade ou da aplicação categorial; (b) da


da que têm por destinatários os indivíduos e igualdade enquanto proibição do arbítrio; (c) da
(por analogia) as pessoas jurídicas, de natureza não discriminação em razão de critérios subje-
universal e permanente. É possível segregar os tivos ou de critérios interditos pela Constitui-
deveres fundamentais: (i) dos deveres consti- ção; (d) da proporcionalidade nos três aspectos
tucionais orgânicos ou organizatórios; (ii) dos conhecidos: necessidade, adequação, proporcio-
limites aos direitos fundamentais construídos na nalidade em sentido estrito, relativamente à sua
prática; (iii) dos deveres correlativos dos direitos concretização pelo legislador; (e) da aplicabili-
fundamentais, que não mais são a face passiva dade aos estrangeiros e apátridas; (f) da tutela
dos direitos; (iv) das garantias institucionais, judicial29-30.
que são figuras jurídicas em que sobreleva a sua  
natureza objetiva; (v) das tarefas constitucionais 3.2. O princípio da solidariedade social
em sentido estrito, que têm por destinatário  
exclusivamente o Estado e visam vincular os Cumprindo sua função normativa dentro
seus órgãos à produção de certos resultados em do ordenamento jurídico, os textos constitucio-
matéria de organização econômica ou social, nais contemplam as diretrizes, sob a forma de
política ou administrativa23-24.
 
Nada obstante, J. J. Gomes Canotilho segre-
23
Cf. NABAIS, José Casalta. Estudos de direito fiscal: por
um estado fiscal suportável. Coimbra: Almedina, 2005, p.
ga os deveres fundamentais em duas categorias: 15-18.
deveres autônomos e deveres conexos com di- 24
Embora sejam os deveres fundamentais  numerus clau-
sus, segundo J. J. Gomes Canotilho, a constituição não
reitos. O dever fundamental de pagar tributos consagra, entrementes, um catálogo deles à semelhança
estaria na primeira categoria25. Além disso, os dos direitos fundamentais; há apenas o que qualifica de
deveres constitucionais podem ser formais ou deveres fundamentais de natureza pontual, necessa-
riamente baseado em uma norma constitucional ou em
materiais, em analogia de pensamento com a uma lei mediante autorização constitucional. Adverte o
classificação das normas materialmente cons- constitucionalista português, por outro lado, que não se
deve estabelecer uma relação de co-respectividade entre
titucionais e normas formalmente constitucio- os direitos e deveres fundamentais; vale dizer, é incorreto
nais26-27. Do ponto de vista dos sujeitos ativos dos afirmar que o particular está vinculado aos direitos funda-
mentais como destinatário de um dever fundamental – vale
deveres, podem eles ser classificados em quatro
o princípio da assimetria entre direitos e deveres funda-
tipos: (a) deveres que vinculam os cidadãos nas mentais. (Cf. Direito constitucional e teoria da constituição.
suas relações diretas com o Estado, como os de- 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 532-533).
25
Cf. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed.
veres cívico-políticos; (b) deveres que obrigam os Coimbra: Almedina, 2003, p. 533.
indivíduos principalmente nas suas relações com 26
Cf. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed.
Coimbra: Almedina, 2003, p. 534.
a coletividade em geral, como são os deveres de 27
Entretanto, adverte José Casalta Nabais que os deveres
caráter econômico, social ou cultural; (c) deveres que seriam materialmente fundamentais, caso não venham
que são impostos às pessoas nas suas relações contemplados no texto constitucional, podem ser objeto de
positivação por normas infraconstitucionais, assumindo a
com as outras pessoas (ex.: dever dos pais de feição de deveres legais; não deveres fundamentais (Cf. O
educação e manutenção dos filhos); (d) deve- Dever fundamental de pagar impostos — contributo para
a compreensão constitucional do estado fiscal contempo-
res até para consigo próprio, como o dever de râneo. Coimbra: Almedina, 2004, p. 674). 
promover a própria saúde28. O dever relativo ao 28
Cf. NABAIS, José Casalta. O Dever fundamental de pagar
impostos – contributo para a compreensão constitucional
tributo também se insere na primeira categoria e
do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004,
é fundado nos princípios da solidariedade social p. 115.
e da capacidade contributiva.
29
Cf. NABAIS, José Casalta. Estudos de direito fiscal: por
um estado fiscal suportável. Coimbra: Almedina, 2005, p.
  18-19.
No tocante ao regime a que se submetem os 30
Como exemplos de deveres fundamentais – além, pro-
priamente, do tributo – podem ser citados os de prestar o
deveres fundamentais, cumpre destacar que serviço militar, o de compor o júri, servir à Justiça Eleitoral,
se lhe aplicam os seguintes princípios: (a) da dentre outros.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 63


DOUTRINA

normas-princípio ou de normas-regra, que de- então inerte, abstencionista, por um Estado


verão estruturar e pautar o Estado e a sociedade. intervencionista, regulador da atividade econô-
  mica a fim de garantir o bem-estar social obtido
A CF/88, após fixar que o Estado Brasileiro através do desenvolvimento econômico. Um
é Estado Democrático de Direito, estabeleceu, Estado que assegurasse bens jurídicos mínimos
de duas maneiras, os princípios fundamentais aos indivíduos necessários à obtenção do que se
deste: i) como fundamento da República Fede- denomina de bem-estar.
rativa do Brasil; e assim colocou a soberania, a  
cidadania, a dignidade humana, o valor social do O modelo brasileiro é de Estado Social
trabalho e o pluralismo político (art. 1º); ii) como moderado, que respeita os direitos individuais
objetivo da República Federativa do Brasil; e as- e objetiva a satisfação dos direitos sociais, nota-
sim o fez quanto à construção de uma sociedade damente do direito ao bem-estar social. Edvaldo
livre, justa e solidária, à garantia do desenvol- Brito registra, ainda, as formas pelas quais essa
vimento nacional, à erradicação da pobreza e intervenção se apresenta nesse Estado Social,
da marginalização, à redução das desigualdades substitutivo do Estado de Direito (Liberal)33: a)
sociais e regionais, à promoção do bem de todos, pela modificação estatal (autoritária) da ordem
sem discriminação. Desse elenco se extrai que a social por meio da intervenção direta; b) pela
Constituição impôs o dever de perseguir os ideais participação ativa do Estado, ou outro sujeito
de dignidade e de solidariedade31. Interessa, pois, da Administração Pública, nas funções da vida
aqui, a compreensão da noção de solidariedade social, transformando-se o Estado, ele mesmo,
como princípio constitucional, implícito ou em produtor, comerciante ou distribuidor dos
explícito. bens34. Com o objetivo de concretizar os valores
  consagrados nesses princípios é que a Constitui-
O princípio da solidariedade social tem ção autoriza e dá as diretrizes para a intervenção
inspiração nos valores da Revolução Francesa.
Corresponde à fraternidade (que figura ao lado
da liberdade e da igualdade), sendo conceito que
não pertence, prevalentemente, aos domínios 31
Cf. ÁVILA, Humberto. “Limites à tributação com base na
jurídicos. Não apresenta conteúdos materiais es- solidariedade social”. In Solidariedade social e tributa-
ção. Marco Aurélio Greco e Marciano Seabra de Godoi
pecíficos, de modo que pode ser examinado como (Coordenadores). São Paulo: Dialética, 2005, p. 68.
valor ético e jurídico, absolutamente abstrato, e 32
Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucio-
nal e tributário. Vol. II. – valores e princípios constitucionais
como princípio positivado (ou não) nas Cons- tributários. Rio de Janeiro, São Paulo, Recife: Renovar,
tituições32. Surge como princípio contemplado 2006, p. 180-1.
33
Reflexos jurídicos da atuação do Estado no domínio eco-
nas constituições como valor a ser observado
nômico. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 22.
pela sociedade a partir do momento em que 34
Nesse particular, precisas são as lições de Antunes Varela: 
há transição do Estado Liberal, de intervenção “Do Estado liberal passou-se, pelas causas já conhecidas,
ao Estado social, que, no seu modelo radical, ou extremista
mínima, para o Estado Social. se prefere, suprime, ou esvazia, o conteúdo das liberdades
  individuais, elimina a divisão dos poderes e faz da lei mero
instrumento, em regime de partido único, da política dos
Após um processo lento e gradual que se detentores de poder. Já no figurino moderado, a substitui-
iniciou em meados do século XIX e se estendeu ção do Estado liberal se dá pelo Estado social de direito,
até a primeira metade do século XX, houve a que introduz, entre os direitos fundamentais, diversas
garantias e direitos sociais, como procedeu, pela primeira
modificação paulatina de um Estado Liberal, vez a Constituição de Weimar, há 50 anos. Deixando de
calcado nas ideias da revolução francesa de liber- lado o problema da compatibilidade ou da completa fusão
dos elementos do Estado liberal e do Estado social, tem
dade de iniciativa e na abstenção em interferir o jurista de partir para o exame do problema que parece
na vida econômica (Estado de Direito em sua ser o mais importante no encadeamento dessa mudança”.
concepção original), para um Estado Social. “Procedimento jurídico do estado interventivo”. In Direto
econômico. Orlando Gomes e Antunes Varela. São Paulo:
Deu-se, portanto, a substituição de um Estado Saraiva, 1977, p. 156.

64 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

do Estado no domínio econômico35. A satisfação


desses objetivos autoriza o Estado a intervir na 35
“Ao programar tais fins, o constituinte não deixou os meios
em aberto, posto que circunscreveu  os objetivos à base
economia36. da ordem econômica: valorização do trabalho humano
  e a livre iniciativa. Logo, o constituinte disse os escopos
Malgrado a expressão “intervenção” denote que deverão ser alcançados, prescrevendo, também, as
condições, os meios a serem utilizados” (PIMENTA, Paulo
uma atividade que seria transitória, excepcional, Roberto Lyrio. Contribuições de intervenção no domínio
a intervenção do Estado na ordem econômica, econômico. São Paulo: Dialética, 2002, p. 38).
36
E por que o Estado precisou intervir na economia? Ariño
analisado como um fenômeno global, não tem Ortiz37 elenca algumas razões que impõem a interven-
essa característica. Como bem salienta Fábio ção do Estado no domínio econômico. A primeira delas
diz respeito ao fracasso do mercado e a necessidade
Nusdeo37. de sua recriação; a intervenção vem para garantir a livre
  competição no mercado, conferindo-lhe consistência. O
Nesse passo, além da intervenção do Estado segundo motivo é a existência de critérios de equidade
na distribuição, a fim de se eliminarem as desigualdades;
no/sobre o domínio, a mudança de paradigma o capitalismo livre não permitiria isso, cabendo ao Estado
trouxe a consagração de direitos sociais, que ga- o compromisso de garantir a justiça distributiva, com o
objetivo de assegurar uma justa distribuição de renda. A
rantem ao indivíduo a fruição de bens jurídicos terceira razão, e mais criticada, seria a rápida consecução
imprescindíveis a uma existência digna38. de metas de política econômica. Na linha dessas razões,
  segundo Ariño Ortiz, quatro seriam as modalidades de
intervenção: a) regulação econômica; b) atuação fiscal
A solidariedade social atua perante a ex- e financeira, sobretudo utilizando o tributo com função
periência jurídica como valor fundamental, extrafiscal; c) a iniciativa pública, através da criação de
empresas públicas que atuarão em regime de mercado
que, revelado à consciência da sociedade pós- conjuntamente com as empresas privadas; d) reserva ao
-moderna como invariante valorativa, se traduz setor público, com os regimes de monopólio. (Apud  Cf.
FONSECA, João Bosco Leopoldino. Direito econômico. 4.
em princípio geral do direito de conteúdo ime- ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 240-4.
diato, diretamente ligado ao valor primordial da SILVA NETO, Manoel Jorge. Direito constitucional econô-
pessoa humana, passando a influenciar o sentido mico. São Paulo: LTr, 2001, p. 149-51).
37
NUSDEO, Fábio. Curso de economia. Introdução ao direito
e a concretização de normas jurídicas, ou seja, econômico. 3. ed. rev. atual.  São Paulo: Editora Revista
funcionando como verdadeiro referencial her- dos Tribunais, 2001, p. 186: [...] a figura mesma do Estado
intervencionista se supera, pois a palavra intervenção traz
menêutico para a criação e aplicação das regras em si o signo da transitoriedade, conota uma arremetida
pertencentes ao mundo do Direito, bem como seguida da retirada, trai, em suma, uma situação excep-
para construção de significado deôntico de seus cional, anormal. Não é essa, porém, a nova realidade. O
Estado não mais intervém no sistema econômico. Integra-
respectivos modelos39. -o. Torna-se um seu agente e um habitual partícipe de suas
  decisões. O intrometimento e posterior retirada poderão
ocorrer neste ou naquele setor, nesta ou naquela ativida-
Historicamente, esse princípio (da solida- de. Jamais no conjunto. Daí as diversas expressões para
riedade) foi concretizado dentro de cada um dos caracterizar o novo estado das coisas: economia social
de mercado, economia dirigida; economia de comando
Estados, exatamente com fundamento no com- parcial e tantas outras”.
partilhamento de ideais e objetivos e, portanto, 38
A solidariedade social pode ser identificada com ênfase
das previsões de direitos e deveres40. tanto na atribuição de direitos, correspondendo, basica-
mente, à ideia de direitos sociais e de direitos de solidarie-
  dade propriamente ditos  (ex.: direito ao desenvolvimento,
A idéia da solidariedade foi redescoberta na direito ao meio ambiente), quanto de deveres, o que se
implementa com a divisão do trabalho social, definindo os
segunda metade do século XIX e início do sécu- encargos cabíveis aos membros da comunidade, para for-
lo XX, por meio de uma teorização construída mação de patrimônio refletor de interesses convergentes
por economistas (a exemplo de Charles Gide), para a coexistência harmônica em grupo. Nesse passo, a
solidariedade vincula-se ao próprio ideal de vida comum
sociólogos (como Émile Durkheim), e juristas ao determinar os laços de interdependência recíproca, em
(tais como Léon Duguit, Maurice Hauriou e que os indivíduos participantes dessa comunidade passam
a compartilhar entre si direitos e deveres correlatos esta-
Georges Gurvitch). Hoje, a solidariedade pode belecidos na esfera da experiência jurídica e que revelam
ser compreendida em um sentido objetivo e um a sujeição de certos comportamentos à formação de be-
nefícios desfrutados por toda coletividade. A solidariedade
sentido subjetivo: no primeiro, alude à relação social faz com que o Estado adote um papel ativo perante
de pertença e, por conseguinte, de partilha e a sociedade, com a realização de ações interventivas

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 65


DOUTRINA

cor-responsabilidade que liga cada um dos indi-


víduos à sorte e vicissitudes dos demais membros positivas e concretas voltadas para melhoria da situação
de vida de toda comunidade, em particular, aos grupos
da comunidade; no sentido subjetivo (de ética menos favorecidos, garantindo-lhes conteúdo mínimo de
social), em que a solidariedade exprime o sen- sobrevivência digna, em que se procura evitar posições
timento, a consciência dessa mesma pertença à econômicas, políticas, culturais e morais degradantes de
alguns em relação ao tratamento direcionado à totalidade
sociedade41-42. dos membros. De outra parte, a solidariedade social acaba
  por intervir na seara das relações privadas, no campo dos
direitos subjetivos, área demarcada pelas concepções
O princípio da solidariedade impõe à cole- clássicas do valor liberdade, estabelecendo limitações
tividade o dever de contribuir para a satisfação ao pleno exercício da vontade individual, ao prescrever a
necessária relação de ajustamento/compatibilidade entre
das despesas públicas necessárias à satisfação
referida esfera de autonomia privada ao atendimento de
dos direitos públicos subjetivos, positivos ou sua função social, geralmente determinada no contexto
negativos. Implica o dever de concorrer para as normativo constitucional. Cf. CONTIPELLI, Ernani. Soli-
dariedade social tributária. Coimbra: Almedina, 2010, p.
despesas públicas, segundo as possibilidades de 145-7.
cada um (princípio da capacidade contributiva) 39
Cf. CONTIPELLI, Ernani.  Solidariedade social tributá-
ria. Coimbra: Almedina, 2010, p. 163.
e, portanto fundamenta o tributo na relação entre 40
Cf. SACCHETTO, Cláudio. “O dever de solidariedade no
o contribuinte e o Estado. Direito Tributário: o Ordenamento Italiano”. In Solidarie-
  dade e tributação. Marco Aurélio Greco e Marciano Seabra
de Godoi (Coordenadores). São Paulo: Dialética, 2005, p.
Nesse passo, se se considerar que sem a 50.
economia privada – e, consequentemente, os 41
Cf. NABAIS, José Casalta. “O dever de solidariedade no
Direito Tributário: o Ordenamento Italiano”. In Solidarieda-
direitos dos particulares – não podem existir de e tributação. Marco Aurélio Greco e Marciano Seabra
nem mesmo os tributos, é correto, outrossim, de Godoi (Coordenadores). São Paulo: Dialética, 2005, p.
110-2. NABAIS, José Casalta. Estudos de direito fiscal: por
o raciocínio inverso: os tributos são a condição
um estado fiscal suportável. Coimbra: Almedina, 2005, p.
de existência da propriedade; “sem tributos a 82-4.
propriedade não existe”. Se estas premissas são
42
Cumpre distinguir, outrossim, modernamente, outras duas
dimensões do princípio da solidariedade social: a) solida-
aceitas, então todos aqueles que têm direitos – e riedade vertical, solidariedade pelos direitos ou solidarie-
todos são titulares de direitos – são obrigados à dade paterna – a solidariedade e a responsabilidade que a
cada um cabe corre sobretudo pela realização, de um lado,
solidariedade e à solidariedade fiscal, na medida dos direitos sociais a cargo do Estado social e, de outro,
de suas possibilidades43. pelos direitos fundamentais de quarta geração (direito ao
  meio ambiente ecologicamente equilibrado, direitos cole-
tivos etc.); b) solidariedade horizontal, solidariedade pelos
Cumpre, assim, ao sistema jurídico44 a fun- deveres ou solidariedade fraterna – traz à colação, de um
ção integrativa do valor da solidariedade social lado, os deveres fundamentais ou constitucionais que o
Estado não pode deixar de concretizar legislativamente,
com as atividades do Estado que possibilitarão a e, de outro, os deveres de solidariedade que cabem à
sua realização. Para tanto,  obtenção de recurso sociedade civil, entendida esta em contraposição à socie-
dade estadual ou política, como esfera de relações entre
para a satisfação dessas necessidades virá com
os indivíduos, entre os grupos e entre as classes sociais
a repartição do dever de contribuir entre os que se desenvolvem fora da esfera das relações de poder
indivíduos, por intermédio do dever tributário, características das instituições estatais (Cf. NABAIS, José
Casalta. “O dever de solidariedade no Direito Tributário:
na medida da capacidade contributiva revelada o Ordenamento Italiano”. In Solidariedade e tributação.
por cada um. Marco Aurélio Greco e Marciano Seabra de Godoi (Coor-
denadores). São Paulo: Dialética, 2005, p. 115-6. NABAIS,
  José Casalta. Estudos de direito fiscal: por um estado fiscal
3.3. O princípio da capacidade contributiva suportável. Coimbra: Almedina, 2005, p. 87-89).
 
43
Cf. SACCHETTO, Cláudio. “O dever de solidariedade no
Direito Tributário: o Ordenamento Italiano”. In Solidarieda-
De início, cumpre notar que o respeito à de e tributação. Marco Aurélio Greco e Marciano Seabra
capacidade contributiva é ínsito ao conceito de Godoi (Coordenadores). São Paulo: Dialética, 2005, p.
36.
constitucional de tributo, muito bem elabora- 44
Apoiado na teoria dos sistemas desenvolvida por Talcott
do por Ricardo Lobo Torres. Tem por matriz Parsons, afirma Celso Campilongo: “… a cada um dos
quatro grandes desafios funcionais do sistema social
político-ideológica, como bem pontua Cláudio
corresponde uma estrutura normativa e um subsistema
Sacchetto, o princípio da solidariedade social45. específico. A adaptação (…) é a função própria do sistema

66 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

Afora isso, as materialidades possíveis de qual-


econômico. A instrumentalização dos objetivos (…) é a
quer tributo devem referir-se a fato com dimen- função típica do subsistema político. De modo aproxi-
são econômica. Não se pode eleger fato gerador mativo, pois isto não está claro na obra de Parsons, a
função integrativa (…) está coligada às normas sociais e,
de tributo situação que não tenha conteúdo particularmente, às normas jurídicas (solidariedade social
econômico. e cidadania) e a função de manutenção (…) refere-se ao
subsistema de socialização (reprodução de valores sociais,
  educação)” (Política, sistema jurídico e decisão judicial.
Previsto no § 1º do art. 145 da Constituição São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 134).
45
SACCHETTO, Cláudio. “O dever de solidariedade no Di-
brasileira de 1988, o princípio da capacidade reito Tributário: o Ordenamento Italiano”. In Solidariedade
contributiva46 é dirigido ao legislador ordinário e tributação. Marco Aurélio Greco e Marciano Seabra de
Godoi (Coordenadores). São Paulo: Dialética, 2005, p. 10.
e o obriga a respeitar, no exercício da competên- 46  
“§ 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter
cia tributária, as condições econômicas reais de pessoal e serão graduados segundo a capacidade econô-
mica do contribuinte, facultado à administração tributária,
cada indivíduo, segundo o que Alfredo Augusto especialmente para conferir efetividade a esses objetivos,
Becker denominou de signos presuntivos de rique- identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos
da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades eco-
za47-48-49-50. nômicas do contribuinte”.
  47
Cf. BECKER, Alfredo Augusto.  Teoria geral do direito
tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 2002, p. 494-505.
O princípio da capacidade contributiva 48
Regina Helena Costa exprime, em nível técnico-econômi-
deflui do princípio da igualdade em matéria co, os elementos que revelam a capacidade contributiva:
“... têm capacidade contributiva, segundo essa concepção,
tributária – muito embora este a ele não se re- aqueles sujeitos que (a) constituam unidades econômicas
suma. É um critério de aplicação da igualdade51. de possessão ou de emprego de recursos produtivos ou
de riquezas, (b) sejam facilmente identificáveis e avaliáveis
Direcionado aos entes políticos, impõe que, ao pela Fazenda Pública como susceptíveis de imposição e
se criar o tributo, o legislador tenha de respeitar (c) estejam em situação de solvência presumidamente
suficiente para suportar o tributo” (Princípio da capacidade
limites econômicos revelados pelo contribuin- contributiva. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 26).
te objetivamente considerado, sob pena de se 49
Pierre Beltrame aponta como elemento característico dos
sistemas fiscais dos países em vias de desenvolvimento
violarem direitos fundamentais deste, além de, a tributação a partir de signos presuntivos de riqueza. “O
em última análise, vilipendiar o princípio da imposto de tipo indiciário, que consiste em apreender a
capacidade tributária dos contribuintes por intermédio de
dignidade da pessoa humana. sinais exteriores, é utilizado com freqüência crescente
  nos países em vias de desenvolvimento” (BELTRAME,
Pierre. Os Sistemas fiscais. Coimbra: Almedina, 1976. p.
Por essa regra, o legislador tributário há 103). Karl Marx e Friedrich Engels, ainda no século XIX,
sempre de preservar o mínimo vital. O tributo defendiam que, para os países “mais avançados” (rectius,
países capitalistas desenvolvidos), seria necessária a
tem por fundamento a solidariedade social: aplicação de “pesado imposto progressivo” (Cf. “Manifesto
todos têm o dever fundamental52 de contribuir do Partido Comunista”. 2. ed. Bauru: Edipro, 2010, p. 88).
50
A respeito da ideia de capacidade contributiva, Ricardo
para o custeio das despesas públicas, porém na Lobo Torres, em sua tese de doutoramento em filosofia,
medida de suas possibilidades econômicas. O discorrendo sobre a gênese do Estado Fiscal, coloca-a
imbricada com a imunidade do mínimo existencial, sem,
tributo não pode importar em sacrifício patri- contudo, confundir ambas (cf. A Idéia de liberdade no
monial desmesurado, de sorte a comprometer Estado patrimonial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro:
Renovar, 1991, p. 134: “No Estado Fiscal de Direito a tri-
o direito de propriedade privada (art. 5º e art. butação repousa no princípio da capacidade contributiva,
170, II, da CF/88), a existência digna (art. 1º e não mais na só necessidade do governo. Esse princípio,
emanado da idéia de justiça distributiva, vai se concreti-
da CF/88), a livre iniciativa (art. 170, caput, da zar no subprincípio da progressividade, ingressando nas
CF/88) e o livre exercício de atividade econômica Constituições da Franca e do Brasil, entre outras. Passa
a prevalecer, portanto, a regra de justiça segundo a qual
(art. 170, II, da CF/88). cada cidadão deve pagar o imposto de acordo com a sua
  capacidade de contribuir. Mas esse pagamento não atinge
a parcela mínima necessária à existência humana digna,
O princípio da capacidade contributiva que, constituindo reserva da liberdade, limita o poder fiscal
atuará, sobretudo, na calibração do aspecto eco- do Estado.
A imunidade do mínimo existencial sempre possui dicção
nômico da tributação, impedindo que a norma constitucional própria, devendo ser lida nas entrelinhas do
tributária ofenda valores consagrados pelo texto princípio da tributação progressiva. Mas não se confunde
com a justiça, nem com a capacidade contributiva, nem
constitucional. Klaus Tipke53 parte do pressu- com a progressividade, posto que é predicado dos direitos
posto segundo o qual o tributo só pode ser pago da liberdade e é pré-constitucional”).

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 67


DOUTRINA

a partir da renda auferida pelo indivíduo ou da


51
Cf. ÁVILA, Humberto.  Sistema constitucional tributário.
renda acumulada como patrimônio – ou seja, não São Paulo: Saraiva, 2004, p. 358.
se pode aceitar como natural que o indivíduo se 52
Cf. NABAIS, José Casalta. O Dever fundamental de pagar
desfaça de bens outros que não dinheiro apenas impostos – contributo para a compreensão constitucional
do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004,
para pagar tributos. p. 677.
  53
Cf. TIPKE, Klaus. YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e o
princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros,
Nesse diapasão, Alfredo Augusto Becker 2002, p. 31.
chama a atenção para três aspectos deforma- 54
A ideia de capacidade contributiva global associa-se com
dores da noção de capacidade contributiva que a ideia de exame global da violação ou não ao princípio
da vedação ao confisco, como já examinado.
atuaram a partir do momento em que essa noção 55
Cf. BECKER, Alfredo Augusto.  Teoria geral do direito
integrou a norma jurídica e, portanto, sentiu-se a tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 2002, p. 496-498.
56
Como bem salienta Alberto Xavier, o conceito de fato
necessidade de se construir o conceito jurídico- tributário é integrado por um requisito formal, que se
-constitucional da capacidade contributiva. constitui na tipicidade, e por um requisito material, que se
caracteriza pela capacidade contributiva, de sorte que se
Segundo o autor, são as seguintes as constrições poderia definir o fato tributário como o fato típico revelador
jurídicas ao conceito de capacidade contributiva: de capacidade contributiva; “objeto da tipificação é pois
a) exclusão do conceito de capacidade contri- e sempre a capacidade contributiva, cujas expressões
a lei delimita pela formulação de modelos ou tipos, aos
butiva global, i.e., a proporção entre a riqueza quais se devem ajustar as situações da vida para que se
do indivíduo e a carga de todos os tributos que desencadeiem os efeitos tributários” (Os princípios da le-
galidade e da tipicidade da tributação. São Paulo: Revista
ele deverá pagar dentro do ciclo do orçamento dos Tribunais, 1978, p. 77). Nesse contexto, esse mesmo
público54; b) consideração não da totalidade autor afirma que “... no âmbito do direito tributário, [...] a
da riqueza do contribuinte, mas de apenas um segurança jurídica exige que a lei contenha em si mesma
não só o fundamento da decisão, como o próprio critério
fato-signo presuntivo de renda ou capital; por de decidir.
fim, c) a renda ou o capital presumido deve ser O órgão aplicador do direito deve ter na lei predeterminado
o conteúdo da sua decisão, donde resulta que se procura
aquele acima do mínimo indispensável. Becker subtrair ao seu arbítrio ou critério subjetivo a eleição dos
critica a primeira e a segunda deformação que, fatos tributários (como no Direito Penal se retira ao juiz
a livre incriminação dos fatos) mas, mais ainda, que se
em conjunto com a terceira, levaram à formula- lhe pretende retirar o critério da sua tributação, isto é, a
ção de uma regra constitucional muito simples, fixação da medida do tributo. O órgão de aplicação do
e cuja eficácia jurídica acaba por se tornar muito direito encontra-se, deste modo, submetido, quer aos tipos
legais de fatos tributários, quer aos tipos de efeitos tribu-
restrita55-56-57-58. tários decorrentes da verificação dos fatos, abrangendo
  a medida do tributo”. (Os princípios da legalidade e da
tipicidade da tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais,
Segundo Hugo de Brito Machado59, a capa- 1978, p. 73). Em outra obra, Alberto Xavier afirma: “não
cidade contributiva pode ser aferida por diversas bastava ao legislador tipificar os factos tributários, era
formas, a partir dos mais variados indicadores ainda necessário tipificar os efeitos estatuídos” (Manual
de direito fiscal. Lisboa: Almedina, 1974, p. 120).
econômicos. Dentre estes há a renda monetária, 57
A doutrina costuma dividir em capacidade contributiva ab-
o patrimônio e o consumo. De mais a mais, uma soluta-objetiva e capacidade contributiva relativa-subjetiva.
A primeira obrigaria o legislador apenas a eleger como
das grandes questões em torno da capacidade critério material de incidência fatos que revelem indício
contributiva reside em saber o real significado de capacidade econômica, exprimindo aptidão abstrata
do sujeito para concorrer com os gastos públicos; já a
e aplicação da expressão “sempre que possível” capacidade contributiva relativa-subjetiva atine à con-
contida na redação do § 1º do art. 145 da CF/8860. creta e real capacidade de determinado indivíduo para o
  pagamento de certo imposto (Cf. DERZI, Misabel Abreu
Machado. In BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucio-
Liam Murphy e Thomas Nagel pontuam, ao nais ao poder de tributar. 7. ed. (notas de atualização) Rio
tratarem da capacidade contributiva como uma de Janeiro: Forense, 2003, p. 690-1. Cf. COSTA, Regina
Helena. Princípio da capacidade contributiva. 3. ed. São
ideia igualitária, que: (1) se a ideia de tributação Paulo: Malheiros, 2003, p. 27-31).
segundo a capacidade contributiva se concretiza 58
Em síntese, como bem faz Regina Helena Costa, a capa-
pelo princípio da igualdade de sacrifícios, ele cidade contributiva comporta exame sob duplo aspecto: a)
capacidade contributiva absoluta ou objetiva – como pres-
depende da noção radical de que a distribuição suposto jurídico do imposto e como diretriz para eleição
de bem-estar produzida pelo mercado é justa das hipóteses de incidência dos impostos; b) capacidade

68 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

por natureza; (2) se, ao contrário, a ideia de produtiva; ao contrário, o incremento futuro
tributação de acordo com a capacidade contri- dessa riqueza será de susceptível de exação.
butiva é entendida em função da noção de que Essa teoria destaca que a potência econômica
a justiça exige uma redistribuição outra que não deve considerar-se como condição necessária mas
a efetuada pelos retornos de mercado, mas que não suficiente da capacidade contributiva e deve
exige a atuação positiva do Estado, o objetivo da estar, portanto, qualificada à luz dos princípios
equidade vertical da tributação perde sentido constitucionais fundamentais. Segundo o autor,
fora do contexto mais geral da justiça dos gastos na medida em que se entenda que a tributação
do governo61.
  contributiva relativa ou subjetiva – como critério de gra-
Trabalhando o conceito, a fixação e os efei- duação do imposto, sob o enfoque pessoal, aferindo-se
tos do princípio da capacidade contributiva, a capacidade contributiva in concreto e, assim, um limite
à tributação tanto no aspecto global como no aspecto
Francesco Moschetti62 vem fixar três conceitos individual (Cf. Princípio da capacidade contributiva. 3. ed.
introdutórios: (i) a imposição de limites à po- São Paulo: Malheiros, 2003, p. 27-31. Cf. Curso de direito
tributário: Constituição e Código Tributário Nacional. São
testade legislativa tributária encontra expressão Paulo: Saraiva, 2009, p. 73-75).
não só na Constituição Italiana, mas em muitas 59
Cf. MACHADO, Hugo de Brito.  Os Princípios jurídicos
da tributação na Constituição de 1988. 5. ed. São Paulo:
constituições contemporâneas; (ii) o parágrafo
Dialética, 2004, p. 87.
primeiro do art. 5363 da Constituição italiana tem 60
Segundo Edvaldo Brito, no caso do § 1º do art. 145,
eficácia imediata e vinculante; (iii) o conceito a Constituição preserva a tributação de um impasse.
Assim afirma que (i) a justiça social opera no campo da
de capacidade contributiva pressupõe necessa- imposição tributária quando sustentada pelos critérios da
riamente uma referência à potência econômica. personalização dos tributos e da capacidade econômica
do contribuinte; (ii) todos os impostos podem ser regulados
Destaca, de logo, que a capacidade contributiva de modo pessoal; (iii) esses critérios devem instrumenta-
não se reduz à capacidade econômica, embora lizar a medida dos gravames em função da capacidade
aquela seja a expressão de uma potência eco- de pagar. Logo, tanto o legislador quanto o aplicador da
norma terão de adotar fórmulas como a do “justo e razoá-
nômica genérica. Registra que, se é função do vel” para viabilizar o princípio, mediante a adaptação dos
princípio da capacidade contributiva conferir seus elementos à técnica de imposição de cada tributo
da espécie aquinhoada pela norma constitucional (Cf.
racionalidade ao sistema tributário é ilógico “Capacidade Contributiva”. In: MARTINS, Ives Gandra da
atribuir-lhe um conteúdo dedutível precisamente do Silva (coord.). Cadernos de Pesquisas Tributárias. v. 14.
São Paulo: Resenha Tributária, 1989. p. 326).
exame daqueles impostos que se quereria racionalizar 61
Cf. O mito da propriedade. Marcelo Brandão Cipolla (tra-
e não de normas supraordenadas a eles. O equilíbrio dução). São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 43.
entre as exigências individuais e coletivas que 62
Cf. MOSCHETTI, Francesco.  El principio de capacidad
contributiva. Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 1980,
está garantido nos arts. 41 e 4264 da Constituição p. 73-74.
Italiana deve realizar-se também nas relações 63
“Todos têm a obrigação de contribuir para as despesas
públicas na medida de sua capacidade contributiva. O
entre o ente impositor e o contribuinte, de for- sistema tributário é inspirado nos critérios de progressivi-
ma que a exação fiscal respeite à coexistência dade”.
de ambos e seja compatível com a manutenção
64
“Art. 41. L’iniziativa economica privata è libera. Non può
svolgersi in contrasto con l’utilità sociale o in modo da
da organização privada de meios de produção. recare danno alla sicurezza, alla libertà, alla dignità uma-
A partir daí se obtém um critério formal de na. La legge determina i programmi e i controlli opportuni
perché l’attività economica pubblica e privata possa essere
individualização das forças econômicas que indirizzata e coordinata a fini sociali.
constituem a capacidade contributiva. Art. 42.
La proprietà è pubblica o privata. I beni economici appar-
 
tengono allo Stato, ad enti o a privati. La proprietà  privata
Só é capacidade contributiva aquela riqueza è riconosciuta e garantita dalla legge, che ne determina
que possa ser detraída sem prejudicar a sobre- i modi di acquisto, di godimento e i limiti allo scopo di
assicurarne la funzione sociale e di renderla accessibile
vivência da organização econômica gravada. a tutti. La proprietà privata può essere, nei casi preveduti
Salienta Moschetti que o legislador tributário dalla legge, e salvo indennizzo, espropriata per motivi
d’interesse generale.
não poderá assumir como pressuposto do La legge stabilisce le norme ed i limiti della successione
tributo uma riqueza atual que constitua fonte legittima e testamentaria e i diritti dello Stato sulle eredità”.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 69


DOUTRINA

não pode prejudicar a permanência da proprie- fatos concretos da vida. Entretanto, um imposto
dade privada, acaba por acentuar mais a tutela somente aplicável, ou seja, constituído – como
do direito de propriedade do que a sua função frequentemente acontece – mais pela casuística
social. Surge, então, segundo o autor, uma clara que de definições, faria perder de vista a justifi-
antítese entre a capacidade contributiva e o fim re- cação econômica do tributo. A hipótese de inci-
distributivo do imposto65: admite a conformidade dência tributária é, consequentemente, sempre
ao espírito da Constituição de uma mudança na muito articulada tecnicamente, numa série mais
atual distribuição de riqueza, mas exclui que o ou menos ampla de hipóteses que fazem todas
fim fiscal e o redistributivo podem coexistir na referência a um conceito geral que deveria cons-
mesma lei. E não se pode objetar que a redistri- tituir a ratio, a causa do tributo singular.
buição mediante o imposto é necessariamente  
inconciliável com o conceito de capacidade O princípio da capacidade contributiva,
contributiva: é inconciliável só enquanto se como valor positivado, arrima a compreensão
lhe dê um significado restritivo, limitando-o à do tributo como dever fundamental.
única função de tutelar as fontes produtivas. Se  
se diz que o conceito de capacidade contributiva 4. O Tributo no contexto constitucional de Ci-
deve inspirar-se no espírito da Constituição e se vil Law e de Common Law
admite que é conforme a este espírito a mudança  
da riqueza atual, não pode excluir-se depois que Firmadas essas questões, cumpre investigar,
o imposto concorra para esta mudança. Não só por amostragem, de que forma os sistemas cons-
a redistribuição não comporta necessariamente titucionais continentais europeus – portanto, de
a eliminação das fontes produtivas senão que matriz romana – e o sistema da Common Law,
mais bem pressupõe sua permanência; a unifor- cuidam do dever de colaborar com o custeio das
mização das riquezas excluiria para sempre toda despesas públicas, máxime quanto aos deveres
a redistribuição futura66-67.
  65
Sobre o caráter redistributivo do tributo, ver MURPHY,
Aborda Enrico de Mita 68 a capacidade Liam. NAGEL, Thomas. O mito da propriedade. Marcelo
contributiva como justificação do imposto, a Brandão Cipolla (tradução). São Paulo: Martins Fontes,
2005.
ratio do imposto considerado singularmente. A 66
Cf. MOSCHETTI, Francesco.  El principio de capacidad
lei tributária não pode definir os fatos tributá- contributiva. Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 1980,
veis mediante categorias específicas. A norma p. 74-76.
67
Carlos Palao Taboada, examinando o tema da capacidade
jurídica não pode nunca, em geral, alcançar um contributiva, traz duas posições fundamentais sobre esse
completo e rigoroso sistema de definições. E princípio. Firmado o princípio da capacidade contributiva
como princípio jurídico constitucional, surgem dois pólos
isso porque a exigência da aplicação prática da doutrinários: (a) quem entende que o princípio tem um
lei requer sempre uma referência a comporta- conteúdo que é possível concretizar (konkretisieren) e,
mentos práticos dos seres humanos. Exige-se, assim, se inclinam por potencializar sua eficácia como
critério de controle de constitucionalidade da legislação
pois, a simplificação dos conceitos, i.e., a redução fiscal; teve sua manifestação extrema na doutrina italiana,
de um conceito abstrato de fato tributável a que chegou a considerá-lo como único critério de justiça
e constitucionalidade da legislação fiscal, o que trouxe
hipóteses específicas que façam referência a insuperáveis dificuldades; (b) aqueles que, sem negar to-
comportamentos práticos dos contribuintes. A talmente a possibilidade de que o princípio de capacidade
tenha tal eficácia, tendem a considerar que a virtualidade
simplificação não deve caminhar em detrimento
real do princípio é limitada, especialmente se tem em
da racionalidade, não deve fazer perder de vista conta a influência de outros princípios e fins, também com
o objetivo da lei tributária; precisa procurar respaldo constitucional, na elaboração da legislação fiscal. 
(Cf.  El principio de capacidad contributiva como criterio
ajustar as exigências da racionalidade às de de justicia tributaria: aplicación a los impuestos directos e
aplicabilidade. Um imposto que se limitasse a indirectos, p. 287-8).
68
Cf. “O princípio de capacidade contributiva”. In Princípios
ser rigoroso nas suas definições seria inaplicá- e Limites da Tributação. Roberto Ferraz (Coordenação).
vel na medida em que dificilmente referido aos São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 231-3.

70 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

de solidariedade social e capacidade contributi- Mais adiante, no art. 53, o texto constitu-
va, que implicam o dever tributário. Por razões cional afirma que “[todos] têm a obrigação de
óbvias, afigura-se impossível o exame de todas contribuir para as despesas públicas na medi-
as constituições dos países da Europa Conti- da de sua capacidade contributiva. O sistema
nental e dos países da América Latina que têm tributário é inspirado nos critérios de progres-
origem no Civil Law. Em razão disso, optou-se sividade”69.
por selecionar algumas constituições, como a  
italiana, a espanhola e a portuguesa, na Europa;
a brasileira, a argentina, a chilena e a mexicana, Gaspare Falsitta, tratando do significado do art. 53 e sua
69

função solidarística, coloca o art. 53, § 1.º, da Constituição


na América Latina, a fim de realizar o exame italiana como verdadeira norma fundamental (“o pulmão”)
a demonstrar que, por consagrarem, implícita do sistema. O art. 53 afirma o princípio óbvio da legitimida-
ou explicitamente, o princípio da solidariedade de constitucional da imposição tributária e correlativamente
do dever de contribuição, do concurso dos privados às
social como valor fundante da sociedade, trazem despesas públicas. O termo “todos” constitui por parte sua
o tributo para a categoria de dever fundamental. expressão do princípio da universalidade, deve abranger
todos os sujeitos, sem distinção ou privilégios ou discrimi-
No tocante aos sistemas que se fundam no Com- nação de espécie. Doutrina e jurisprudência constitucional,
mon Law, o exame confinar-se-á ao direito inglês quase unanimemente, considerando o art. 53 uma espécie
de projeção, no campo tributário, do princípio fundamental
e à experiência dos Estados Unidos da América codificado no art. 2.º da Constituição, o qual chama todos
do Norte. os membros da coletividade ao adimplemento “dos deve-
  res inderrogáveis de solidariedade política, econômica
e social”, e do princípio da igualdade sancionado no art.
4.1. Constituições da Europa Continental 3.º da Constituição. Salienta o autor que o concurso às
  despesas públicas não é algum correlato à fruição dos
serviços públicos nem tanto menos à medida de tal fruição
Inicie-se o exame das constituições por como alguns autores têm sustentado (Maffezzoni). O § 1.º
aquela que, talvez, seja a mais explícita em do art. 53 exerce no ordenamento tributário uma dupla
derredor da consagração do princípio da soli- função: (a) uma função solidarística – chamando dos que
convivem em sociedade a concorrer às despesas públicas
dariedade, como dever imposto pela República, necessárias à mesma sobrevivência, não só ao progresso
e da capacidade contributiva como também da inteira comunidade em base à força econômica de
cada um; (b) função garantística, vinculando a potestade
fundamento e limite à tributação. tributária a chamar ao concurso só aqueles que tenham
  uma efetiva capacidade de contribuir, na medida e nos
limites dela mesma. A função solidarística emerge da co-
A Constituição Italiana de 1947, promul- lação do art. 53 no título dedicado às “relações políticas”
gada pós-II Guerra Mundial e conhecida como e ainda do seu § 2.º, onde se afirma o princípio segundo
Estatuto Albertino, em art. 2º, afirma que “[a] o qual “o sistema tributário é informado pelo critério da
progressividade”. Afirmar o autor que um sistema tributário
República reconhece e garante os direitos marcado pelo critério, antes de progressividade, de mera
invioláveis do homem, quer como ser individual proporcionalidade não faria consolidar e perpetuar, se não
agravar-se, situações de desigualdade inicial. O art. 3º da
quer nas formações sociais onde se desenvolve a Constituição, de outra parte, depois de haver fixado em
sua personalidade, e requer o cumprimento dos seu § 1.º com o genérico princípio da igualdade, precisa
deveres inderrogáveis de solidariedade política, em seu § 2.º com que é atribuição da República “remover
os obstáculos de ordem econômica e social que, limitando
econômica e social”. de fato a liberdade e igualdade dos cidadãos, impedem o
  pleno desenvolvimento da pessoa humana”. O critério da
progressividade confere por isso ao sistema fiscal uma
Vê-se que o texto é expresso em aludir à so- função não só contributiva mas ainda redistributiva da
lidariedade em dimensão política, econômica e riqueza entre os cidadãos, em atuação tanto do princípio
da solidariedade sancionado no art. 2.º da Constituição,
social. A solidariedade política implica a neces- quando do princípio de igualdade substancial afirmado
sidade de integração entre as diversas entidades no § 2.º do art. 3.º. O princípio da solidariedade, portanto,
políticas do país. A solidariedade econômica, por não só integra o princípio de igualdade, mas também o
enriquece rendendo legítima forma de imposição que,
sua vez, impõe o dever de colaboração econômica ainda que atuando uma discriminação entre os sujeitos
mútua entre os integrantes da sociedade. Por fim, (em particular, em prejuízo dos mais abastados e a favor
dos menos abastados) só enfim se justifica dos fins de
a solidariedade social tem a noção já imposta no solidariedade econômica e social. (Cf. Corso isttuzionale
item precedente. di diritto tributario. Turim: CEDAM, 2003, p. 156-8).
 
Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 71
DOUTRINA

A Constituição Espanhola de 1978, em do Estado “[promover] o aumento do bem-estar


seu artigo 2, afirma que “[a] Constituição se social e económico do povo, em especial das
fundamenta na indissolúvel unidade da Nação classes mais desfavorecidas”.
espanhola”, e “reconhece e garante o direito à  
autonomia das nacionalidades e regiões que a De igual maneira, portanto, o texto cons-
integram e a solidariedade entre todas elas”70; titucional português, ao se pautar no princípio
essa regra se concatena diretamente com o art. da solidariedade social, consagra o tributo como
138, segundo a qual “o Estado garante a realiza- dever fundamental, imposto ao homem, ao cida-
ção efetiva do princípio de solidariedade consa- dão ou às entidades econômicas, de contribuir
grado no artigo 2 da Constituição, velando pelo para a satisfação das despesas públicas.
estabelecimento de um equilíbrio econômico,  
adequado e justo entre as diversas partes do 4.2 Constituição dos Estados Unidos da Amé-
território espanhol, e atendendo em particular rica e contexto constitucional inglês.
às circunstâncias do fato insular”71.  
  Examinando o texto constitucional dos Es-
Nesse passo, César García Novoa afirma tados Unidos da América, não se encontra alusão
que do Estado Social, como evolução do Estado expressa ao princípio da solidariedade social.
Democrático, deve entender-se como aquele Essa circunstância, contudo, não infirma a linha
que configura o  dever de contribuir no marco de raciocínio traçada no presente estudo. No or-
de uma Constituição Financeira; as constitui- denamento jurídico-constitucional estaduniden-
ções garantem o direito de propriedade e a visão se, o vínculo entre o indivíduo e o Estado é dado
de ordem constitucional desde a perspectiva do pela cidadania e pela garantia de liberdade eco-
Estado Social, mas a ação positiva que se impõe nômica; segundo aquele, não ha dúvidas de que o
ao Estado por meio da exigência de prestações dever de solidariedade encontra seu fundamento
de fazer a favor dos cidadãos, configura o tri- na cidadania, vez que se radica na convicção de
buto como categoria substancial derivada da que cada indivíduo goza de proteção e defesa em
própria essência do Estado Social72. Conclui, qualquer parte do mundo, assim como recebe e
nessa linha, que do Estado Fiscal e do Estado sua pátria; é sobretudo a solidariedade política
impositivo se desprende a fórmula legitima- que justifica também o dever de concorrer com
dora do princípio de solidariedade; o dever de
contribuir ao sustento dos gastos públicos se
fundamentaria, precisamente, nesta solidarie- 70
Íntegra do dispositivo:
dade social, a que chama de megaprincípio, do “Artículo 2
La Constitución se fundamenta en la indisoluble unidad
qual o dever de contribuir aos gastos públicos de la Nación española, patria común e indivisible de todos
seria uma concreção73. De igual modo, por- los españoles, y reconoce y garantiza el derecho a la au-
tonomía de las nacionalidades y regiones que la integran
tanto, aludindo ao princípio da solidariedade,
y la solidaridad entre todas ellas”.
a Constituição Espanhola consagra o tributo 71
Íntegra do dispositivo:
como dever fundamental.   “Artículo 138
1. El Estado garantiza la realización efectiva del principio
  de solidaridad consagrado en el artículo 2 de la Cons-
A Constituição Portuguesa de 1976, por sua titución, velando por el establecimiento de un equilibrio
económico, adecuado y justo entre las diversas partes
vez, já no art. 1º, afirma que “Portugal é uma del territorio español, y atendiendo en particular a las
República soberana, baseada na dignidade da circunstancias del hecho insular.
pessoa humana e na vontade popular e empenha- 2. Las diferencias entre los Estatutos de las distintas
Comunidades Autónomas no podrían implicar, en ningún
da na construção de uma sociedade livre, justa caso, privilegios económicos o sociales.”
e solidária”. Traz, pois, a idéia de solidariedade 72
Cf. El concepto de tributo. Buenos Aires/Madrid/Barcelona:
Marcial Pons, 2012, p. 105.
no primeiro dispositivo, colocando como um 73
Cf. NOVOA, César García. El concepto de tributo. Buenos
objetivo. No art. 81, coloca sob  incumbência Aires/Madrid/Barcelona: Marcial Pons, 2012, p. 107.

72 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

base no world wide principle, o que foi indicado 4.3 Constituições latino-americanas
na decisão Cook v. Tait, de 1924, e confirmado  
na decisão Bowling v. Bowers, de 1928, por meio Caso se empreenda uma detida análise das
da qual se explicita a tese acerca da legitimidade Constituições em vigor na América Latina, tam-
da tributação dos cidadãos americanos ainda que bém observar-se-á que os textos contemplam,
residam no exterior74. expressa ou implicitamente, o princípio da so-
  lidariedade social como princípio, fundamento
Convém fazer referência à admoestação ou objetivo do Estado.
de Michael A. Livingston75, para quem uma  
Com efeito, uma das Constituições mais an-
diferença relevante entre América e Europa é
tigas em vigor na América Latina, a Constituição
a natureza ad hoc assistemática do debate ame-
Mexicana de 1917, notabilizou-se por ser uma
ricano em comparação com o original europeu:
das primeiras, juntamente com a Constituição
enquanto os europeus gostam de ver a tribu-
alemã de 1919, a contemplar os direitos funda-
tação progressiva como parte de um conjunto
mentais sociais, conhecidos como direitos de
ideológico coerente, os americanos estão mais segunda geração (rectius dimensão), justamente
aptos a vê-la como uma dentre as adaptações por atribuir ao Estado uma função prestacional
pragmáticas entre a necessidade de manter e consagrar, para a sociedade, o dever de soli-
pelo menos um mínimo de justiça social, de dariedade social. Ficaram conhecidas como as
um lado, e a necessidade de proteger incentivos primeiras constituições sociais e econômicas.
particulares no conjunto da economia, de outro  
lado – um balanço de equity e efficiency –; o que Verifica-se, pois, no art. 31, inciso IV, do
é consentâneo com a tradição americana que texto constitucional mexicano que é  dever de
tende a enfatizar o pensamento pragmático e que todos os mexicanos “Contribuir para os gastos
verdadeiramente o elevou a um tipo não oficial públicos, assim da Federação, como do Distrito
de filosofia nacional. Federal ou do Estado e Município em que resi-
  dam, da maneira proporcional e equitativa que
Examinando a realidade britânica, infere-se disponham as leis”. Contempla, pois, de forma
que, embora não disponha de uma constituição expressa, o dever de todo indivíduo integrante da
escrita, de um texto articulando plasmando nor- sociedade mexicana de concorrer com os gastos
mas constitucionais, de forma sistematizada, há, públicos de modo proporcional e equitativo e,
de rigor uma constituição histórica, consuetudi- conforme disponham as leis. Contempla, pois, o
nária, que, embora flexível, consagra princípios princípio da solidariedade econômica, o critério
de proporcionalidade e equidade, bem como o
e regras que estruturam o Estado e conferem aos
princípio da legalidade aplicada à tributação.
cidadãos direitos e deveres. Com efeito, o rule
 
of law designa os princípios, as instituições e
O exame do texto constitucional argentino
os processos que a tradição e a experiência dos
de 1994, embora com menos explicitação, afir-
juristas e dos tribunais mostraram ser essenciais
para a salvaguarda da dignidade das pessoas
frente ao Estado, à luz da ideia de que o Direito 74
Cf. SACCHETTO, Cláudio. “O dever de solidariedade no
deve dar aos indivíduos a necessária proteção Direito Tributário: o Ordenamento Italiano”. In Solidarieda-
de e tributação. Marco Aurélio Greco e Marciano Seabra
contra qualquer exercício arbitrário de poder76. de Godoi (Coordenadores). São Paulo: Dialética, 2005, p.
  20.
75
Cf. “Progressividade e Solidarietà: uma perspectiva norte-
Contempla, outrossim, o princípio da so- -americana”. In Solidariedade e tributação. Marco Aurélio
lidariedade, o que implica a conclusão de que, Greco e Marciano Seabra de Godoi (Coordenadores). São
Paulo: Dialética, 2005, p. 195.
também no sistema britânico, o tributo pode ser 76
Cf. MIRANDA, Jorge.  Teoria o Estado e da Constitui-
encarado como dever fundamental. ção. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 76-7.
 
Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 73
DOUTRINA

ma que o Governo deverá custear os gastos Esse dever ou vem disposto de modo expresso nas
públicos por meio dos fundos do Tesouro constituições, das mais diversas maneiras, ou é
Nacional que são compostos pelas fontes dessumido dos textos constitucionais, porque ne-
que elenca no art. 4º 77, dentre as quais estão les contido apenas implicitamente. Esse dever de
“as demais contribuições que equitativa e contribuir se dá na exata proporção das possibili-
proporcionalmente à população imponha o dades econômicas do indivíduo, o que se expressa
Congresso Geral”. Da mesma forma que a no princípio da capacidade contributiva, de modo
quase centenária constituição mexicana, alude que todo e qualquer texto constitucional que con-
à equidade e à proporcionalidade na institui- sagre a solidariedade social, ou rateio das despesas
ção do tributo com a função de concorrer aos públicas, mesmo que não faça alusão diretamente
gastos públicos, consagrando o tributo como ao tributo, o coloca como dever fundamental do
dever fundamental. indivíduo, aqui compreendido como o cidadão
  (nato ou naturalizado), estrangeiro (residente
No art. 19, a Constituição Chilena de 1980 ou, mesmo não-residente, se ponha em situação
assegura a todas as pessoas “[a] igual repartição de sujeição tributária) ou a entidade econômica
dos tributos em proporção às rendas ou na pro- (pessoas jurídicas ou entidades econômicas a ela
gressão ou forma que fixe a lei, e a igual reparti- equiparadas).
ção das demais cargas públicas”. Esse dispositi-  
vo, portanto, impõe a solidariedade econômica Mercê  do fenômeno do multiculturalismo,
e social, de modo a considerar que, exigindo-se essa característica do tributo pode ser identi-
a igual repartição das cargas públicas, o tributo, ficada tanto nas constituições de países com
no sistema chileno, é dever fundamental. matriz romano-germânica (Civil Law) como
  nas constituições de países de matriz anglo-saxã
A Constituição brasileira, por sua vez, no (Common Law).
art. 3º, inciso I, põe como objetivo fundamental
da República Federativa do Brasil construir Referências bibliográficas
uma sociedade livre, justa e solidária. Ao tratar  
dos princípios tributários, erige à categoria de ÁVILA, Humberto. “Limites à tributação com
princípio a capacidade contributiva (art. 145, § base na solidariedade social”. In Solidariedade
1º). Como se vê, pois, a Constituição brasileira, social e tributação. Marco Aurélio Greco e Mar-
de igual modo, contempla o princípio da soli- ciano Seabra de Godoi (Coordenadores). São
dariedade social (art. 3º, inciso I) e o princípio Paulo: Dialética, 2005, p. 68-88.
da capacidade contributiva, de sorte que, no
nosso sistema, o tributo é um dever fundamental AYALA, Jose Luis Perez de. BECERRIL,
baseado nos princípios da solidariedade social Miguel Perez de Ayala. Fundamentos de derecho
e da capacidade contributiva, sendo este último tributario. 6. ed. Madrid: Editoriales de derecho
também uma limitação sua. reunidas S.A., 2004.
 
5. Conclusão
 
Ao cabo do presente estudo e cumprindo os 77
“Artículo 4 – El Gobierno federal provee a los gastos de la
objetivos inicialmente traçados, pode-se afirmar Nación con los fondos del Tesoro Nacional, formado del
producto de derechos de importación y exportación; del
que o tributo se constitui como uma espécie de
de la venta o locación de tierras de propiedad nacional,
dever fundamental, decorrente do princípio da de la renta de Correos, de las demaìs contribuciones que
solidariedade social aplicada à atividade finan- equitativa y proporcionalmente a la población imponga el
Congreso General, y de los empréstitos y operaciones de
ceira-tributária do Estado, que impõe a todos o crédito que decrete el mismo Congreso para urgencias de
dever de contribuir para as despesas públicas. la Nacioìn, o para empresas de utilidad nacional”.

74 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais DAVID, René. Os grandes sistemas do direito


ao poder de tributar. 7. ed. atualizada por Misabel contemporâneo. 4. ed. Tradução de Hermínio A.
Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
2003.
DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito tribu-
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tário, direito penal e tipo. 2. ed. rev., atual. e ampl.
tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 2002, São Paulo: RT, 2007.

BELTRAME, Pierre. Os Sistemas fiscais. Coim- FALSITTA, Gáspare. Corso isttuzionale di diritto


bra: Almedina, 1976. tributario. Turim: CEDAM, 2003.

BORGES, José Souto Maior. Direito comunitá- FONSECA, João Bosco Leopoldino.  Direito
rio. São Paulo: Saraiva, 2005. econômico. 4. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Fo-
rense, 2001.
BRACEY, Dorothy H. Exploring Law and Cul-
ture. Long Groove: Waveland Press, 2006. GALDINO, Flávio. Introdução à Teoria dos Custos
dos Direitos – Direitos Não Nascem em Arvores. Rio
BRITO, Edvaldo. Reflexos jurídicos da atuação do de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
Estado no domínio econômico. São Paulo: Saraiva,
1982.
GARRIDO, José  Antônio. “Sobre os conceitos
lógico-jurídicos e os conceitos jurídico-positi-
CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Direito,
vos”. In Revista do Programa de Pós-graduação
poder justiça e processo: julgando os que nos julgam.
em Direito da Universidade Federal da Bahia: Ho-
Rio de Janeiro: Forense, 1999.
menagem ao Prof. Dr. George Fragoso Modesto. N.º
13. Salvador: 2006, p.125-138.
CAMPILONGO, Celso. Política, sistema jurídico
e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad,
GEERTZ, Clifford. A interpretação das cultu-
2002.
ras. Rio de Janeiro: LTC, 2012.
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemá-
tico e conceito de sistema na ciência do direito. 3. ed. GOMES, Orlando. “Constituição econômica
Trad. A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação e Constituição política na democracia plura-
Calouste Gulbekian, 2002. lista”. In  Ensaios de direito civil e de direito do
trabalho. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 13-22,
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional 281 p.
e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina,
2003. ________. Direito econômico e outros ensaios. Sal-
vador: Distribuidora de livros Salvador, 1975.
CONTIPELLI, Ernani. Solidariedade social p. 135.
tributária. Coimbra: Almedina, 2010.
GOMES, Orlando. VARELA, Antunes. Direito
COSTA, Ramón Valdés. Instituciones de derecho econômico. São Paulo: Saraiva, 1977, 295 p.
tributário. 2. ed. Buenos Aires: Depalma, 2004.
HABERMAS, Jürgen. Lutas pelo reconhe-
COSTA, Regina Helena. Princípio capacidade cimento no estado democrático constitucio-
contributiva. 3. ed. atual., rev., ampl. São Paulo: nal. In: Multiculturalismo. Org.: Charles Taylor.
Malheiros, 2003. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 125-164.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 75


DOUTRINA

HUSSERL, Edmund. Idéias para uma fenome- estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina,


nologia pura e para uma filosofia fenomenológica: 2004.
introdução geral à fenomenologia pura. Aparecida-
-SP: Idéias e Letras, 2006. ________. “O dever de solidariedade no Direito
Tributário: o Ordenamento Italiano”. In Soli-
_______. A idéia da fenomenologia. Lisboa: Edi- dariedade e tributação. Marco Aurélio Greco e
ções 70, 2008. Marciano Seabra de Godoi (Coordenadores). São
Paulo: Dialética, 2005, p. 110-140.
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. 4. ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2010. NOVOA, César García. El concepto de tributo.
Buenos Aires/Madrid/Barcelona: Marcial Pons,
LASSALLE, Ferdinand. A Essência da consti- 2012.
tuição. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
NUSDEO, Fábio. Curso de economia. Introdução
LIVINGSTON, Michael A. “Progressividade ao direito econômico. 3. ed. rev. atual.  São Paulo:
e Solidarietà: uma perspectiva norte-americana”. Editora Revista dos Tribunais, 2001.
In Solidariedade e tributação. Marco Aurélio Gre-
co e Marciano Seabra de Godoi (Coordenadores). PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Contribuições
São Paulo: Dialética, 2005, p. 190-197. de intervenção no domínio econômico. São Paulo:
Dialética, 2002.
LOSANO, Mário G. Os grandes sistemas jurídi-
cos. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ROSEN, Lawrence.  Law as culture. An invita-
tion.  Princeton: Princeton University Press.
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Manifesto do 2006.
Partido Comunista. 2. ed. Bauru: Edipro, 2010.
MIRANDA, Jorge. Teoria o Estado e da Constitui- SACCHETTO, Cláudio. “O dever de solida-
ção. Rio de Janeiro: Forense, 2002. riedade no Direito Tributário: o Ordenamento
Italiano”. In Solidariedade e tributação. Marco
MITA, Enrico de. “O Princípio da capacidade Aurélio Greco e Marciano Seabra de Godoi (Co-
contributiva”. In Princípios e limites da tributa- ordenadores). São Paulo: Dialética, 2005, p. 9-52.
ção. Roberto Ferraz (Coordenação). São Paulo:
Quartier Latin, 2005, p. 221-256. SCHOPENHAEUR, Arthur. O mundo como
vontade e como representação. São Paulo: UNESP,
MOSCHETTI, Francesco. El principio de capa- 2005.
cidad contributiva. Madrid: Instituto de Estudios
Fiscales, 1980. SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo. Bauru:
EDUSC, 1999.
MURPHY, Liam. NAGEL, Thomas. O mito da
propriedade. Marcelo Brandão Cipolla (tradução). SICHES, Luis Recasens. Introduccion al estudio
São Paulo: Martins Fontes, 2005. del derecho. 2. ed. Porrúa: México, 1972.

NABAIS, José  Casalta. Estudos de direito fiscal: ________. Tratado general de filosofía del derecho.
por um estado fiscal suportável. Coimbra: Alme- 19. ed. México: 2008.
dina, 2005.
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito
________. O Dever fundamental de pagar impostos Constitucional. 6. ed. atual. Rio de Janeiro, 2010,
– contributo para a compreensão constitucional do 969 p.

76 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

________.  Direito constitucional econômico. São ________.  Os princípios da legalidade e da ti-


Paulo: LTr, 2001, 206 p. picidade da tributação. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1978.
STAMMLER, Rudolph. La génesis del derecho.
Traducción del alemán Wenceslao Roces. Gra-
nada: Comares, 2006.

TERAN, Juan Manuel. Filosofía del derecho. 21.


ed. México: Porrúa, 2012.

TIPKE, Klaus. “A necessidade de igualdade na


execução das leis tributárias”. In Direito Tributá-
rio. vol. 1. Homenagem a Alcides Jorge Costa. Luís
Eduardo Schoueri (coordenação). São Paulo:
Quartier Latin, 2003, p. 361-374.

________. “Sobre a unidade da ordem jurídica


tributária”. In Direito tributário. Estudos em home-
nagem a Brandão Machado. Fernando Antonio
Zivelti e Luis Eduardo Schoueri (Coordenação).
São Paulo: Dialética, 1998, p. 60-70.

TIPKE, Klaus. YAMASHITA, Douglas. Justiça


fiscal e o princípio da capacidade contributiva. São
Paulo: Malheiros, 2002.

TORRES, Ricardo Lobo. “O Conceito constitu-


cional de tributo”. Teoria geral da obrigação tribu-
tária – estudos em homenagem ao Prof.  José Souto
Maior Borges. Coord. Heleno Taveira Torres. São
Paulo: Malheiros editores, 2005, p. 559-593.

________. A Idéia de liberdade no Estado patrimo-


nial e no Estado fiscal. Rio de Janeiro: Renovar,
1991.
________. Tratado de direito constitucional e tribu-
tário. Vol. II. – valores e princípios constitucionais
tributários. Rio de Janeiro, São Paulo, Recife:
Renovar, 2006.

VILANOVA, Lourival. “Notas para um ensaio


sobre a cultura”. In Escritos jurídicos e filosóficos.
Vol. 2. São Paulo: Axis Mvndi-IBET, 2003, p.
277-323.

XAVIER, Alberto. Manual de direito fiscal. Vol.


I. Coimbra: Almedina, 1974.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 77


DOUTRINA

O DIREITO FUNDAMENTAL
DOUTRINA
À MORADIA A PARTIR DA EMENDA
CONSTITUCIONAL N.º  26/2000
E O DEVER CONSTITUCIONAL
DE ATUAÇÃO DO PODER
PÚBLICO MUNICIPAL PARA SUA
CONCRETIZAÇÃO
 
 

 
Luciana de Melo Borba Carneiro*
 
 

 
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Uma acepção ampla do Direito à
Moradia. 2.1. Direito à Moradia: direito humano, fundamental
e social. 2.2. Relação do Direito à Moradia com o Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana. 2.3. A abrangência do direito à
moradia. 3. A Emenda Constitucional n.º 26/2000 e seus efeitos.
3.1. A Emenda Constitucional n.º 26/2000. 3.2. A eficácia e aplica-
bilidade do Direito à Moradia como norma constitucional. 3.3. O
dever constitucional de atuação do Poder Público Municipal para
concretização do direito fundamental à moradia. 4. Considerações
finais. Referências.
 
PALAVRAS-CHAVE: Direito à Moradia. Emenda Constitucio-
nal 26/2000. Eficácia e aplicabilidade. Políticas Públicas.
 

1. Introdução
* Procuradora do Município do Salvador
Pós-graduanda em Direito do Estado
 
pela Universidade Federal da Bahia A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 foi
Pós-graduada em Direito Civil e Em- o documento que primeiro reconheceu formalmente a moradia
presarial pela Universidade Federal de
Pernambuco adequada e digna da pessoa humana, sendo aceita a partir de então
Graduada em Direito pela Universidade como um direito essencial à dignidade do homem. Após, diversos
Católica de Pernambuco
Graduada em Administração de Empre-
tratados internacionais reafirmaram a obrigação dos Estados em
sas pela Universidade de Pernambuco proteger este direito.

78 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

No Brasil, o direito à  moradia estava pre- Nesse contexto, pretendeu-se, inicialmente,


visto na Constituição Federal em vários artigos tecer algumas considerações relevantes sobre o
desde a sua edição no ano de 1988; no entanto, direito à moradia, na qualidade de direito hu-
o mesmo só foi inserido formal e expressamente mano, fundamental e social que é, abordando
no rol dos direitos fundamentais sociais a partir as definições utilizadas para cada categoria,
de 14 de fevereiro de 2000, por meio da Emenda bem como sobre sua relação com o princípio da
Constitucional n.º 26, que foi promulgada exclu- dignidade da pessoa humana, de maneira que
sivamente com a finalidade de inseri-lo como o primeiro capítulo é dividido em três pontos,
direito fundamental social em seu artigo sexto. quais sejam: 1) direito à moradia: direito huma-
  no, fundamental e social; 2) relação do direito à
Apesar do reconhecimento mundial da moradia com o Princípio da Dignidade da Pessoa
importância deste direito, bem como dos ordena- Humana e 3) a abrangência do direito à moradia.
mentos jurídicos dos Estados que reconheceram
e positivaram o direito à moradia, verifica-se No segundo momento, foi abordada a
uma dificuldade no Brasil em sua concretização Emenda Constitucional n.º 26/2000 e seus efeitos
por parte dos Poderes Públicos, em especial, a partir da introdução do direito à moradia no rol
do Poder Público Municipal, seja por falta de dos direitos fundamentais sociais, oportunidade
iniciativa política, seja por falta de programação em que se tratou da eficácia e aplicabilidade do
direito como norma constitucional  – que passou
financeira, entre outras justificativas.
a ser de forma expressa – bem como do dever
 
constitucional de atuação do Poder Público Mu-
O direito à moradia está intimamente ligado
nicipal na execução de políticas públicas capazes
ao princípio da dignidade da pessoa humana. O
de implementar os direitos sociais, notadamente
direito a uma vida digna inclui o direito a uma
à moradia.
moradia digna. Assim, quando a Constituição
Federal assegura o direito à moradia não está se
Na conclusão do segundo capítulo, ganhou
restringindo apenas a um espaço físico, mas sim
atenção o artigo 182 da Constituição Federal
a uma moradia que proporcione ao indivíduo o
de 1988 e o Estatuto da Cidade, lei federal que
atendimento aos demais direitos fundamentais
regulamentou referido dispositivo, trazendo em
com base na dignidade da pessoa humana, a seu texto um rol exemplificativo de instrumentos
exemplo de segurança, privacidade, lazer, dentre para utilização pelos Poderes Públicos na efeti-
outros. vação de suas políticas públicas e programas de
  governo.
Como a maior parte dos direitos sociais, o
direito à moradia possui eficácia jurídica, mas Ao Poder Público Municipal, executor
não possui eficácia social. Os direitos funda- da política urbana, na forma do artigo 182 da
mentais sociais exigem uma prestação positiva Constituição Federal, cabe o poder-dever de
do Estado para que sejam realizados. agir, planejando, elaborando e executando as
  políticas públicas de modo a solucionar ou ao
A partir deste poder-dever de agir do Poder menos minimizar os problemas sociais urbanos
Público para realização dos direitos fundamen- que atingem grande parte da população, em
tais, notadamente em relação ao direito à mo- especial àqueles relacionados à habitação, a fim
radia, objeto do presente estudo, é que surge a de concretizar o direito fundamental à moradia
necessidade de elaboração e execução de políticas erigido a norma constitucional por meio do
públicas como forma de concretizar e efetivar Poder Constituinte Reformador ao publicar a
os direitos fundamentais previstos constitucio- Emenda Constitucional n.º 26, em 14 de feve-
nalmente. reiro de 2000.
 
Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 79
DOUTRINA

2. Uma acepção ampla do Direito à Moradia Sobre direitos fundamentais, MENDES


(2010, p. 309) leciona que:
2.1 Direito à Moradia: direito humano, fun-  
damental e social. Os direitos fundamentais assumem posição
  de definitivo realce na sociedade quando se
De início, importante esclarecer que a dis- inverte a tradicional relação entre Estado e
tinção que a doutrina faz entre direitos humanos indivíduo e se reconhece que o indivíduo
e direitos fundamentais não é apenas de cunho tem, primeiro, direitos, e, depois, deveres
terminológico, mas de alguma forma influencia perante o Estado, e que os direitos que o
na prática a aplicação dos direitos nos diversos Estado tem em relação ao indivíduo se
ordenamentos jurídicos. A própria Constituição ordenam ao objetivo de melhor cuidar das
Federal de 1988 utiliza em títulos diferentes necessidades dos cidadãos.
ora o termo direitos humanos, ora direitos fun-  
damentais, motivo este que já seria suficiente Já no que tange aos direitos humanos,
para mencionada distinção terminológica, no MENDES (2010, p. 311) expõe:
entendimento de Ingo Wolfgang Sarlet.1  
  Os direitos humanos seriam fruto de mo-
Na visão de SARLET (2007, p. 35): mentos históricos diferentes e a sua própria
  diversidade já apontaria para a conveniência
“o termo ‘direitos fundamentais’ se aplica de não se concentrarem esforços na busca
para aqueles direitos do ser humano reco- de uma base absoluta, válida para todos os
nhecidos e positivados na esfera do direito direitos em todos os tempos. Ao invés, seria
constitucional positivo de determinado Es- mais producente buscar, em cada caso con-
tado, ao passo que a expressão ‘direitos hu- creto, as várias razões elementares possíveis
manos’ guarda relação com os documentos para a elevação de um direito à categoria de
de direito internacional, por se referir àque- fundamental, sempre tendo presentes as
las posições jurídicas que se reconhecem condições, os meios e as situações nas quais
ao ser humano como,  independentemente este ou aquele direito deverá atuar.
de sua vinculação com determinada ordem  
constitucional, e que, portanto, aspiram à Sobre a internacionalização dos direitos
validade universal, para todos os povos e humanos, importante trazer à colação entendi-
tempos, de tal sorte que revelam um inequí- mento de PIOVESAN (2010, p. 118):
voco caráter supranacional (internacional)”.  
  Apresentado o breve perfil da Organização
Pode-se afirmar que os direitos humanos Internacional do Trabalho, da Liga das
têm como principal finalidade assegurar condi- Nações e do Direito Humanitário, pode-se
ções mínimas de vida ao ser humano, objetivan- concluir que tais institutos, cada qual ao
do o respeito à sua dignidade. No momento em seu modo, contribuíram para o processo de
que referidos direitos são reconhecidos e positi- internacionalização dos direitos humanos.
vados pelo Estado em sua ordem jurídica, passam Seja ao assegurar parâmetros globais míni-
a ser denominados de direitos fundamentais.
 
1
SARLET, Ingo Wolfgang.  O Direito Fundamental à Mo-
Perceba-se que não há migração da categoria
radia na Constituição: Algumas anotações a respeito do
de direitos humanos para direitos fundamentais, seu contexto, conteúdo e possível eficácia.  In: Revista
eles simplesmente passam a ser direitos humanos Eletrônica sobre a Reforma do Estado. Número 20. Bahia:
2009/2010. Disponível em http://www.direitodoestado.
fundamentais, já que positivados pela ordem com/revista/RERE-20-dezembro-2009-INGO-SARLET.
jurídica de algum Estado. pdf. Acesso em 19 out. 2012.
 
80 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA

mos para as condições de trabalho no plano São prestações positivas, enunciadas em


mundial, seja ao fixar como objetivos inter- normas constitucionais, que possibilitam
nacionais a manutenção da paz e segurança melhores condições de vida aos mais fracos,
internacional, seja ainda ao proteger direi- direitos que tendem a realizar a igualização
tos fundamentais em situações de conflito de situações sociais desiguais. São, portanto,
armado, tais institutos se assemelham na direitos que se conexionam com o direito
medida em que protejam o tema dos direitos de igualdade. Valem como pressupostos do
humanos na ordem internacional. gozo dos direitos individuais na medida
  em que criam condições materiais mais
Observa-se que, a partir do surgimento do propícias ao auferimento da igualdade real,
constitucionalismo, as Declarações de Direitos o que, por sua vez, proporciona condição
passaram a ser inseridas nas Constituições dos mais compatível com o exercício efetivo da
Estados, reconhecendo e positivando direitos liberdade.
que antes estavam previstos apenas em docu-  
mentos internacionais. Verifica-se, pois, que esta Verifica-se que apesar de ser reconhecido
é a principal relação entre os direitos humanos e internacionalmente como direito humano essen-
os ditos fundamentais: desde o momento em que cial à dignidade humana, apenas no ano de 2000
aqueles são inseridos no ordenamento jurídico foi inserido formalmente no texto constitucional
interno de algum Estado passam à condição brasileiro, elevando-se à categoria de direito
de fundamentais e obrigam atuação estatal em humano fundamental, já que positivado no or-
relação a sua aplicação e proteção. denamento jurídico brasileiro de forma expressa.
   
No ordenamento jurídico brasileiro, os di- Todavia, em que pese a incorporação tardia
reitos fundamentais podem ser encontrados ao ao texto constitucional, o direito à moradia
longo do texto constitucional, de forma expressa estava amparado em várias passagens da Cons-
ou implícita em algum princípio constitucional, tituição, a exemplo, da inviolabilidade da casa
bem como em tratados e convenções interna- prevista no inciso XI do art. 5º; do art. 7º, inciso
cionais nos quais o Brasil seja parte signatária. IV, que definiu o salário mínimo como suficiente
  para atender as necessidades vitais básicas dos
De forma expressa, a Constituição Federal trabalhadores e as de suas famílias, incluindo a
de 1988 traz em seu Título II os direitos e garan- moradia, bem como do art. 23, IX, que dispõe:
tias fundamentais, subdividindo-os em grupos, “todos os entes federativos têm competência
quais sejam, 1) direitos e deveres individuais administrativa para promover programas de
coletivos; 2) direitos sociais; 3) direitos de na- construção de moradias e melhoria das con-
cionalidade; 4) direitos políticos; e 5) partidos dições habitacionais e de saneamento básico”,
políticos. entre outros dispositivos que consagram im-
  plicitamente o direito à moradia com base no
O direito à moradia – objeto deste estudo – princípio da dignidade humana que será objeto
foi inserido a partir da Emenda Constitucional de estudo do próximo ponto.
n.º 26/2000 no rol dos direitos sociais, motivo  
pelo qual vamos nos restringir neste trabalho a 3. Relação do Direito à Moradia com o Prin-
este grupo de direitos fundamentais. cípio da Dignidade da Pessoa Humana
   
Sobre direitos sociais, BEZERRA LEITE A dignidade da pessoa humana está pre-
(2008, p. 39-40) cita José Afonso da Silva, que vista na Constituição Federal de 1988, em seu
considera os direitos sociais como dimensão dos art. 1º, inciso III, como um dos fundamentos
direitos fundamentais, afirmando que: do Estado Democrático de Direito, consistindo

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 81


DOUTRINA

em um princípio norteador de todo o sistema de destinos da própria existência e da vida em


normas pátrias bem como servindo de base para comunhão com os demais seres humanos,
aplicação dos diversos princípios que possuam mediante o devido respeito aos demais seres
relação com o respeito à dignidade. que integram a rede da vida.
   
É importante destacar uma distinção A essência do princípio da dignidade da
terminológica entre as expressões “dignidade pessoa humana está na existência digna do
humana” e “dignidade da pessoa humana” tendo indivíduo no sentido de ter suas necessidades
em vista que a primeira é genérica e abrange a básicas atendidas para uma vida saudável. Está
humanidade como um todo, enquanto que a relacionado com todos os direitos fundamentais
segunda faz referência ao ser humano como in- previstos na constituição, a exemplo do direito à
divíduo. E foi esta última expressão a utilizada vida, direito à saúde, direito à educação, direito
pelo legislador constituinte ao inseri-la como à liberdade de expressão, direito à moradia,
fundamento do Estado Democrático de Direito entre outros.
no rol dos princípios fundamentais.  
  Quando a Constituição Federal de 1988
No entendimento de CANUTO (2010, p. menciona no rol dos direitos fundamentais o
232): direito à vida, interpreta-se no sentido de que o
 
ser humano tem direito a uma vida digna, não
O texto constitucional, ao consagrar a
simplesmente o direito de estar vivo.
dignidade da pessoa humana como princí-
 
pio fundamental, demonstra que a pessoa
Ainda nas palavras de SARLET (2009/2010):
não é simples integrante do sistema jurí-
 
dico, pois constitui objeto e objetivo da
Sem um lugar adequado para proteger-se a
Constituição, já que, sem a pessoa, não há
si próprio e a sua família contra as intem-
justificativa para a existência do Estado.
péries, sem um local para gozar de sua inti-
O ser humano é o destinatário das normas
midade e privacidade, enfim, de um espaço
legais e a convergência de todo o ordena-
essencial para viver com um mínimo de
mento jurídico deve ocorrer para efetivar
a dignidade da pessoa humana, formal e saúde e bem- estar, certamente a pessoa não
materialmente. terá assegurada a sua dignidade, aliás, por
vezes, não terá sequer assegurado o direito
Na visão de SARLET (2009, p. 67) à própria existência física, e, portanto, o seu
  direito à vida.
Temos por dignidade da pessoa humana  
a qualidade intrínseca e distintiva reco- É neste sentido que o princípio da digni-
nhecida em cada ser humano que o faz dade da pessoa humana torna-se fundamento
merecedor do mesmo respeito e considera- de todo ordenamento jurídico, servindo de base
ção por parte do Estado e da comunidade, à compreensão e interpretação do sistema de
implicando, neste sentido, um complexo normas constitucionais.
de direitos e deveres fundamentais que  
assegurem a pessoa tanto contra todo e A partir dessa compreensão, pode-se afir-
qualquer ato de cunho degradante e de- mar que o direito a uma vida digna inclui o
sumano, como venham a lhe garantir as direito à moradia digna, que também possui
condições existenciais mínimas para uma um conceito mais amplo do que meramente o
vida saudável, além de propiciar e promover direito a uma casa, conforme detalharemos no
sua participação ativa e corresponsável nos próximo ponto.
 
82 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA

4. A abrangência do direito à moradia tam ao indivíduo uma moradia que corresponda


  não somente ao espaço físico, mas compreenda
No ano de 1948, com a Declaração Universal outros elementos que em conjunto a transfor-
dos Direitos Humanos, a moradia adequada e mem em uma moradia digna, a saber:
digna da pessoa humana foi reconhecida pela
primeira vez em documento formal, sendo aceita Segurança da posse: Todas as pessoas têm
mundialmente como um direito essencial à dig- o direito de morar sem o medo de sofrer
nidade do homem. remoção, ameaças indevidas ou inesperadas.
  As formas de se garantir essa segurança da
O artigo XXV da Declaração Universal posse são diversas e variam de acordo com
dispõe: o sistema jurídico e a cultura de cada país,
região, cidade ou povo.
Toda pessoa tem direito a um padrão de vida Disponibilidade de serviços, infraestru-
capaz de assegurar a si e a sua família saúde e tura e equipamentos públicos: A mora-
bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, dia deve ser conectada às redes de água,
habitação, cuidados médicos e os serviços saneamento básico, gás e energia elétrica;
sociais indispensáveis, e direito à segurança em suas proximidades deve haver escolas,
em caso de desemprego, doença, invalidez, creches, postos de saúde, áreas de esporte e
viuvez, velhice ou outros casos de perda dos
lazer e devem estar disponíveis serviços de
meios de subsistência fora de seu controle.   
transporte público, limpeza, coleta de lixo,
 
entre outros.
A partir de então, diversos tratados inter-
Custo acessível: O custo para a aquisição
nacionais reafirmaram a obrigação dos Estados
ou aluguel da moradia deve ser acessível, de
de proteção a este direito, a exemplo do Pacto
modo que não comprometa o orçamento fa-
Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos
miliar e permita também o atendimento de
e Culturais de 1966.
outros direitos humanos, como o direito à
 
alimentação, ao lazer etc. Da mesma forma,
No Brasil, em que pese a Constituição Fe-
deral de 1988 proteger o direito à moradia em gastos com a manutenção da casa, como as
diversos artigos desde a sua edição, o mesmo só despesas com luz, água e gás, também não
foi inserido formal e expressamente no rol dos podem ser muito onerosos.
direitos fundamentais sociais a partir de 14 de Habitabilidade: A moradia adequada tem
fevereiro de 2000, por meio da Emenda Constitu- que apresentar boas condições de proteção
cional n.º 26, que foi promulgada exclusivamente contra frio, calor, chuva, vento, umidade
com a finalidade de inserir o direito à moradia e, também, contra ameaças de incêndio,
como direito fundamental social em seu art. 6º. desmoronamento, inundação e qualquer
  outro fator que ponha em risco a saúde e a
Entretanto, apesar do reconhecimento vida das pessoas. Além disso, o tamanho da
mundial da importância deste direito bem como moradia e a quantidade de cômodos (quar-
dos ordenamentos jurídicos dos Estados que re- tos e banheiros, principalmente) devem ser
conheceram e positivaram o direito à moradia, a condizentes com o número de moradores.
exemplo do Brasil, verifica-se uma dificuldade, Espaços adequados para lavar roupas, ar-
em sua concretização por parte do Poder Público, mazenar e cozinhar alimentos também são
tema que será abordado com mais detalhes no importantes.
próximo capítulo. Não discriminação e priorização de
  grupos vulneráveis: A moradia adequada
A Organização das Nações Unidas elencou deve ser acessível a grupos vulneráveis da
alguns requisitos indispensáveis que possibili- sociedade, como idosos, mulheres, crianças,

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 83


DOUTRINA

pessoas com deficiência, pessoas com HIV, sentido literal do termo. É inconcebível um in-
vítimas de desastres naturais etc. As leis e divíduo que não possua um teto para se abrigar,
políticas habitacionais devem priorizar o para se proteger dos eventos naturais (chuva, sol,
atendimento a esses grupos e levar em con- vento, etc.), que viva vagando pelas ruas. Todos
sideração suas necessidades especiais. Além procuram por um espaço que possa oferecer um
disso, para realizar o direito à moradia, mínimo de proteção e segurança para si e para
adequada é fundamental que o direito a não sua família.
discriminação seja garantido e respeitado.  
Localização adequada: Para ser adequada, CANUTO (2010, p. 202) explica em sua obra
a moradia deve estar em local que ofereça Direito à Moradia Urbana que, ao se observar
oportunidades de desenvolvimento econô- os gastos e despesas de um indivíduo comum,
mico, cultural e social. Ou seja, nas proximi- verifica-se que a parcela correspondente à mo-
dades do local da moradia deve haver oferta radia abrange um valor relevante no orçamento
de empregos e fontes de renda, meios de doméstico.
sobrevivência, rede de transporte público,  
supermercados, farmácias, correios, e outras Essa família, sem alternativa, adota soluções
fontes de abastecimento básicas. A locali- precárias – ocupações de áreas de risco,
zação da moradia também deve permitir o favelas, loteamentos ilegais – compondo
acesso a bens ambientais, como terra e água, uma realidade que, se não alterada subs-
e a um meio ambiente equilibrado. tancialmente por meio de uma política
Adequação cultural: A forma de construir habitacional sólida e sem interferências
a moradia e os materiais utilizados na cons- político-corporativas, continuará como uma
trução devem expressar tanto a identidade das faces das cidades brasileiras, que cresce
quanto a diversidade cultural dos moradores substancialmente ano a ano.
e moradoras. Reformas e modernizações  
devem também respeitar as dimensões Em razão da relevância do problema e
culturais da habitação. da situação concreta de moradia no país é que o
  Congresso Nacional, exercendo sua competência
É neste sentido que podemos afirmar que reformadora, ampliou o rol dos direitos sociais
o direito à moradia não se resume a ter direito a por meio da publicação da Emenda Constitucio-
um teto e quatro paredes. Em outras palavras, o nal n.º 26, de 14 de fevereiro de 2000, inserindo
direito à moradia não se refere apenas ao espaço o direito à moradia no caput  do art. 6º e, por
físico ocupado pela pessoa, mas consiste no di- conseguinte, elevando-o à categoria de direito
reito a um padrão de vida adequado, incluindo fundamental, conforme já mencionado no ca-
condições salutares de vida, que possam propor- pítulo anterior.
cionar a pessoa humana uma vida com dignidade  
e boa saúde física e mental. O texto constante na Emenda, a título de
  informação, dispõe:
5. A Emenda Constitucional n.º 26/2000 e seus
efeitos Art. 1º O art. 6º  da Constituição Federal
  passa a vigorar com a seguinte redação:
5.1 A Emenda Constitucional n.º 26/2000 “Art. 6º  – São direitos sociais a educação,
  a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a
Pode-se afirmar que a moradia é uma ques- segurança, a previdência social, a proteção
tão de necessidade humana, de sobrevivência. à maternidade e à infância, a assistência
Nesse aspecto, está se falando em moradia como aos desamparados, na forma desta Consti-
espaço físico para abrigo do ser humano, no tuição.” (NR)

84 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

Art.  2º  Esta Emenda Constitucional entra não autoaplicáveis (não autoexecutáveis). Com


em vigor na data de sua publicação. fundamento na teoria de Ruy Barbosa e conside-
Brasília, 14 de fevereiro de 2000. rando algumas críticas, Pontes de Miranda apre-
  sentou seus estudos sobre o tema, com algumas
Percebe-se que a Emenda Constitucional n.º  inovações, sendo seguido por diversos juristas
26 foi promulgada com o fim exclusivo de inserir que propuseram suas classificações, a exemplo
o direito à moradia no rol dos direitos sociais, de José Horácio Meirelles Teixeira, José Afonso
reconhecendo-o e positivando-o como direito da Silva, Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres
fundamental na ordem constitucional brasileira, Brito, e por fim, Maria Helena Diniz, que por ser
em que pese a Lei Maior já amparar este direito a sua classificação na sistematização das normas
em outros artigos anteriormente citados, com constitucionais considerada uma das mais atuais,
fundamento na dignidade da pessoa humana. foi a escolhida para disposição neste artigo.
 
Assim, constata-se a importância do tema SARLET (2008, p. 264) cita a proposta da
em estudo para o Estado Democrático de Di- ilustre doutrinadora em sua obra já mencionada
reito – que tem como um dos fundamentos a neste trabalho, A Eficácia dos Direitos Funda-
dignidade da pessoa humana – já que o legislador mentais, que classificou as normas em quatro
constituinte exerceu o seu poder de reforma grupos, a saber: 1) normas com eficácia absoluta,
para edição de uma Emenda Constitucional cuja aquelas insuscetíveis de modificação mesmo que
única finalidade foi positivar de forma expressa por emenda constitucional, portanto, com uma
o direito à moradia. eficácia plena reforçada, aptas à produção de
  efeitos imediatos; 2) normas com eficácia plena
5.2 A eficácia e a aplicabilidade do Direito que também estão aptas a gerar efeitos imediatos,
à Moradia como norma constitucional sem necessidade de intervenção do poder legis-
  lativo; contudo, diferem das primeiras em razão
De acordo com a doutrina sobre a eficá- de serem suscetíveis de modificação por meio de
cia das normas constitucionais, pode-se afirmar emendas constitucionais; 3) normas com eficácia
que todos os renomados autores que estudaram o relativa restringível, também possuem aplicabi-
tema e propuseram suas classificações a respeito, lidade imediata, produzindo todos os efeitos jurí-
partiram do princípio de que todas as normas dicos nelas previstos, todavia sujeitas a restrições
constitucionais apresentam algum grau de eficá- posteriores previstas em legislação ordinária,
cia, inexistindo, portanto, norma constitucional as quais podem restringir a sua aplicabilida-
ineficaz. de; e por fim, 4) normas com eficácia relativa
  dependente de complementação legislativa, de
Apesar de algumas propostas apresentarem aplicação apenas mediata, pois dependem de lei
mais de três ou quatro tipos de classificação, complementar para o exercício do direito nelas
todas se identificam quando distinguem as consagrado, podendo ainda serem divididas em
normas em dois grupos: as que dependem normas de princípio institutivo (dependentes de
de intervenção legislativa para produzirem lei para dar corpo a instituições, pessoas, órgãos,
seus efeitos e as que possuem normatividade etc.) e normas programáticas (as que dependem
suficiente e estão aptas a gerar efeitos sem in- de programas a serem desenvolvidos mediante
tervenção do legislativo. lei infraconstitucional).
   
O ilustre jurista Ruy Barbosa foi o pre- Por sua vez, SARLET (2008, p. 268) apre-
cursor no estudo do tema com base no modelo senta sua proposta pessoal considerando o
clássico norte-americano, classificando-as entendimento dos diversos juristas citados, da
em normas autoaplicáveis (autoexecutáveis) e seguinte forma:
 
Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 85
DOUTRINA

Em face do exposto, pode-se falar em nor- bem como a quantidade de pessoas que vagam
mas constitucionais de alta densidade nor- nas ruas, sem nenhuma perspectiva de uma vida
mativa, que, dotadas de suficiente normati- digna, incluindo a moradia.
vidade, se encontram aptas a, diretamente e  
sem a intervenção do legislador ordinário, Tudo isso considerando uma visão nas
gerar os seus efeitos essenciais (independen- grandes cidades, pois quando nos reportamos
temente de uma ulterior restringibilidade), às regiões interioranas do país, e podemos citar
bem como em normas constitucionais de o exemplo bastante atual do sertão nordestino,
baixa densidade normativa, que não pos- a situação é  lamentável e salta aos olhos do Go-
suem normatividade suficiente para – de verno e da população como um todo.
forma direta e sem interpositio legislatoris  
– gerar seus efeitos principais, ressaltando- É fácil verificar a ausência de condições
-se que, em virtude de uma normatividade salutares de vida capazes de garantir às pessoas
mínima (presente em todas as normas que ali residem o seu direito à moradia, e por
constitucionais), sempre apresentam certo conseguinte, a uma vida digna, ressaltando-
grau de eficácia jurídica. -se que quando falamos em direito à moradia,
  repita-se, não nos restringimos apenas ao espaço
Conclui-se que o critério utilizado por SAR- físico ocupado pelo indivíduo, mas a todos os
LET para graduar as normas constitucionais no requisitos essenciais já mencionados no capítulo
que se refere a sua eficácia e aplicabilidade é o anterior que possibilitem uma vida com condi-
critério da densidade normativa. Significa que ções salutares.
umas possuem normatividade suficiente e estão  
aptas a gerar efeitos imediatos, outras não pos- Retornando a uma explicação teórica para
suem suficiente normatividade para produzirem justificar a resposta negativa, podemos afirmar
efeitos imediatos, necessitando da intervenção que a moradia não difere dos demais direitos so-
legislativa para tanto. ciais, considerados direitos humanos de segunda
  geração os quais correspondem aos direitos
Após sobreditas considerações gerais sobre culturais e econômicos, que têm relação com
a eficácia das normas constitucionais e trazendo os direitos de igualdade e necessitam de uma
à colação o nosso tema objeto deste estudo, qual prestação positiva do Estado para serem aten-
seja, a inserção do direito à moradia na Consti- didos. Tais distinguem-se dos direitos humanos
tuição de forma expressa, positivando-o como de primeira geração que se referem aos direitos
direito fundamental social, resta-nos questionar civis e políticos, relacionados às liberdades
se a partir da publicação da Emenda n.º 26, em públicas que em sua grande parte dispensam
14/2/2000, a moradia está assegurada a todos, ou uma prestação positiva do Estado, ao contrário,
seja, é possível o titular do direito assegurado na referem-se a uma abstenção estatal, havendo
Constituição exigir do Poder Público de forma exceções logicamente em ambas as categorias,
imediata, uma prestação positiva no sentido de ou seja, não significa que todos os direitos civis
assegurar-lhe uma moradia digna? e políticos demandem ausência de atitude estatal
  nem que todos os direitos sociais demandem
A resposta à indagação acima é de logo ne- uma ação do Estado.
gativa, podendo ser confirmada de imediato por  
qualquer pessoa que resida no país, bastando ape- PIOVESAN (2010, p. 179/180) ao falar
nas observar as condições de moradia de grande sobre o Pacto Internacional dos Direitos Econô-
parte da população nos bairros mais humildes ou micos, Sociais e Culturais em sua obra Direitos
em locais que apresentam muitas vezes risco de Humanos e o Direito Constitucional Internacio-
desabamento, a exemplo de encostas e morros, nal, entende:
 
86 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA

Se os direitos civis e políticos devem ser Cabe registrar a opinião de SARLET no


assegurados de plano pelo Estado, sem sentido de que apesar de o direito à moradia
escusa ou demora, têm a chamada autoapli- ser considerado uma norma programática que
cabilidade –, os direitos sociais, econômicos depende de prestações positivas do Estado que
e culturais, por sua vez, nos termos em que viabilizem o acesso à moradia digna assegurada
estão concebidos pelo Pacto, apresentam pela Constituição, entende ser admissível “um
realização progressiva. direito subjetivo a prestações fáticas, que possa
(...) Enquanto os direitos civis e políticos ser objeto de reconhecimento pelos órgãos do
são autoaplicáveis, na concepção do Pacto, Poder Judiciário”.
os direitos sociais, econômicos e culturais  
estão condicionados à atuação do Estado, Sobre esta matéria, SARLET cita posição do
que deve adotar todas as medidas, tanto famoso jusfilósofo Robert Alexy, nas seguintes
por esforço próprio como pela assistência e palavras:
cooperação internacionais, principalmente
nos planos econômicos e técnicos, até o (...) em síntese, se poderá  reconhecer um
máximo de seus recursos disponíveis, com direito subjetivo ordinário a prestações nas
vistas a alcançar progressivamente a com- seguintes circunstâncias: a) quando impres-
pleta realização desses direitos (art. 2º, § cindíveis ao princípio da liberdade fática; b)
1º, do Pacto). quando o princípio da separação de poderes
  (incluindo a competência orçamentária do
Pode-se afirmar que os direitos sociais, in- legislador), bem como outros princípios
cluindo o direito à moradia, vêm sendo conside- materiais (especialmente concernentes a
rados normas constitucionais programáticas que direitos fundamentais de terceiros), forem
obrigam o Poder Público a agir de forma positi- atingidos de forma relativamente diminuta.
va, elaborando e executando políticas públicas  
capazes de promover, proteger e concretizar a Ultrapassando esta discussão e retornando
aplicação desses direitos, notadamente em rela- ao tema sobre a eficácia do direito à moradia,
ção à moradia, objetivando assegurá-la de forma podemos concluir que o direito à moradia, tendo
a atender o princípio da dignidade humana. sido inserido no rol dos direitos fundamentais
  sociais pela Emenda Constitucional n.º 26/2000,
Importante mencionar entendimento de transformou-se em norma constitucional que
SARLET a respeito desta matéria, em artigo possui eficácia jurídica na medida em que sua
já mencionado neste estudo:  mera edição provoca a revogação de todas as
  normas anteriores que com ela conflitam bem
Por outro lado, também  é certo (pelo menos como impulsiona, e podemos afirmar que até
para expressiva doutrina) que os direitos “obriga”, o Poder Público a elaborar e executar
sociais prestacionais – em que pese sua medidas que viabilizem a concretização do di-
dimensão programática – nem por isso reito assegurado.
perdem em fundamentalidade. Da mes-  
ma forma, importa repisar que mesmo as Entretanto, observa-se pela situação atual
normas constitucionais programáticas não do nosso Estado que o direito à moradia não
são destituídas de eficácia (ainda que even- possui uma eficácia social plena, considerando
tualmente mais reduzida) além de serem que sua efetivação depende de políticas públicas
– na medida da sua eficácia – diretamente por parte do Estado que o implementem nas
aplicáveis, não sendo, de resto, poucos e situações concretas.
inexpressivos os efeitos jurídicos que delas  
se pode extrair independentemente de uma O déficit habitacional brasileiro possui um
intermediação do legislador. índice elevado. CANUTO (2010, p. 203-204)
 
Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 87
DOUTRINA

comenta sobre o assunto, expondo alguns dados n.º 285/2008, que está em trâmite na Câmara dos
de relevância para este estudo: Deputados, cuja última movimentação se deu
  em 24 de outubro de 2009, com a publicação de
O déficit habitacional, em números mais parecer proferido pela Comissão Especial pela
precisos, é de 7.902.699 moradias, o que aprovação da PEC.
significa 14,9% do total do estoque de do-  
micílios. (...) O objeto da PEC mencionada consiste
Os componentes do déficit habitacional em acrescentar artigo ao Ato das Disposições
são: habitação precária, coabitação familiar Constitucionais Transitórias para dispor sobre a
e ônus excessivo com aluguel. A coabitação vinculação de recursos orçamentários da União,
familiar (casas em que vivem mais de uma dos Estados, do Distrito Federal e dos Municí-
família) é a maior responsável pelo déficit, pios aos respectivos Fundos de Habitação de
não importando a região. (...) A habitação Interesse Social.
precária, a que correspondem os domicílios  
improvisados e os rústicos, se sobressai na Apesar de os Poderes Legislativo e Executi-
zona rural e, principalmente, nas regiões vo virem agindo de forma a buscar soluções para
Nordeste e Norte do país. O ônus excessivo o problema e já existirem diversas legislações e
com aluguel é analisado nas áreas urbanas e programas públicos que serão comentados no
é significativo nas regiões Sudeste e Centro-
próximo ponto, a verdade é que ainda existe
-Oeste.
um longo caminho pela frente para que refe-
 
ridas políticas públicas se tornem suficientes
No site da Câmara dos Deputados foi publi-
a regularizar a situação e concretizar de fato
cada em 27 de abril de 2011 a seguinte notícia:
uma moradia digna para todos os cidadãos
brasileiros.
Déficit habitacional no Brasil é de 5,5 mi-
 
lhões de moradias. Mais de 5,5 milhões de
5.3 O dever constitucional de atuação do Po-
moradias precisam ser construídas em todo
der Público Municipal para concretização
o País para acabar com o déficit habitacio-
nal, segundo dados da Pesquisa Nacional do direito fundamental à moradia
de Amostra por Domicílios (Pnad) 2008,  
utilizados pelo Ministério das Cidades. O artigo 182 da Constituição Federal dispõe
Lançado em 2009 e ampliado em março que “A política de desenvolvimento urbano, exe-
do ano passado, o programa Minha Casa, cutada pelo Poder Público municipal, conforme
Minha Vida pretende construir ou reformar diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo
três milhões de moradias até 2014 para fa- ordenar o pleno desenvolvimento das funções
mílias com renda mensal de até dez salários sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus
mínimos. habitantes”.
   
Analisando os índices relativos ao déficit De uma análise do dispositivo, observa-
habitacional, percebe-se a relevância do tema da -se o poder-dever dos Municípios de agir para
moradia. A forma de o Estado tentar minimizar o elaborar e executar as políticas públicas a fim
problema é planejar e executar políticas públicas de atender o interesse público e as finalidades
a fim de cumprir a função social da propriedade previstas constitucionalmente. Sob a ótica do
urbana bem como de assegurar o direito de mo- direito administrativo, quando um poder é
radia previsto no texto constitucional. atribuído à Administração para alcançar o fim
  público, ele passa a representar um dever de agir,
Pertinente citar sobre a existência de uma ao contrário do particular, cujo poder de agir que
nova proposta de emenda à Constituição, a PEC lhe é atribuído é uma faculdade.
 
88 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA

Importante trazer à colação as lições de tica”, dispõe sobre as diretrizes constitucionais


CARVALHO FILHO (2008, p. 38): que devem ser observadas tanto no planejamento
quanto na implantação de políticas públicas
Quando um poder jurídico é conferido a urbanas, a saber:
alguém, pode ele ser exercitado ou não,  
já  que se trata de mera faculdade de agir. a. respeito efetivo aos direitos humanos
Essa a regra geral. Seu fundamento está na b. promoção de medidas de proteção do
circunstância de que o exercício ou não do meio ambiente natural e construído,
poder acarreta reflexos na esfera jurídica do de modo a garantir a função social da
próprio titular. propriedade na cidade;
O mesmo não se passa no âmbito do direito c. incentivo às atividades econômicas que
público. Os poderes administrativos são resultem na qualidade de vida, mediante
outorgados aos agentes do Poder Público sistema produtivo gerador de trabalho e
para lhes permitir atuação voltada aos inte- de distribuição justa da renda e riqueza;
resses da coletividade. (...) Desse modo, as d. combate às causas da pobreza priori-
prerrogativas públicas, ao mesmo tempo em zando os investimentos e recursos para
que constituem poderes para o administra- as políticas sociais (saúde, educação,
dor público, impõem-lhe o seu exercício e habitação);
lhe vedam a inércia, porque o reflexo desta e. democratização do Estado, assegurando
atinge, em última instância, a coletividade, a participação popular no processo de
esta a real destinatária de tais poderes. formulação, planejamento e execução
  de políticas públicas.
As pessoas não residem nos Estados ou na  
União, elas moram nos Municípios. Em razão Essas são orientações para o planejamento
disso, estes entes federados são os responsáveis e implantação de políticas públicas de um modo
em identificar os problemas relacionados à geral, entretanto, perfeitamente aplicáveis no
moradia, elaborar projetos e executá-los a fim que tange às políticas urbanas referentes aos
de solucioná-los, ou ao menos minimizá-los, problemas de habitação dos municípios.
conforme orientações fixadas em lei (esta sim  
de iniciativa da União, a exemplo do Estatuto Discorrendo sobre políticas públicas, CA-
da Cidade, Lei Federal n.º 10.257/2001, que NUTO (2010, p. 181,182):
regulamentou o artigo 182 citado).  
  As políticas públicas atuam e intervêm na
Segundo se depreende do texto constitu- vida social com a finalidade de estender
cional, a missão do Poder Público Municipal os direitos fundamentais, incluídos todos
consiste em ordenar o pleno desenvolvimento os direitos sociais, a todos os indivíduos;
das funções sociais da cidade e garantir o bem- tudo para a materialização de uma ordem
-estar de seus habitantes. Para cumprimento social mais justa. As disparidades sociais
deste fim, o legislador constituinte instituiu se aprofundam cada dia mais e, além das
como obrigação para os municípios que tiverem dificuldades técnicas e financeiras do setor
mais de vinte mil habitantes, a elaboração do público, as políticas públicas não se mos-
plano diretor como instrumento da política de tram duradouras, com limites restritos a
desenvolvimento e de expansão urbana. cada governo, ou seja, passíveis de modifi-
  cação ou paralisação, sempre que um novo
Em oportuna citação de Nelson Saule Jr., governante assume o poder.
GAZOLA (2008, p. 79), em sua obra “Concreti- (...) As políticas públicas devem ser fruto de
zação do direito à moradia digna – teoria e prá- um compromisso Estado-sociedade, com a

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 89


DOUTRINA

finalidade de promover a igualdade, o que Art. 4º Para os fins desta Lei, serão utiliza-
exige, naturalmente, a modificação das si- dos, entre outros instrumentos:
tuações existentes em cada área específica I – planos nacionais, regionais e estaduais
de atuação, mediante a concretização dos de ordenação do território e de desenvolvi-
objetivos presentes nessas políticas. mento econômico e social;
  II – planejamento das regiões metropolita-
Ressalta-se então a importância das políticas nas, aglomerações urbanas e microrregiões;
urbanas para a concretização do direito à mo- III – planejamento municipal, em especial:
radia a fim de buscar sua plena eficácia social. a) plano diretor;
Apesar de reconhecido formalmente, possuindo, b) disciplina do parcelamento, do uso e da
pois, eficácia jurídica, esta não é suficiente para ocupação do solo;
realização do direito. As políticas públicas são c) zoneamento ambiental;
instrumentos necessários previstos em lei que d) plano plurianual;
devem ser exigidos pelos indivíduos para que e) diretrizes orçamentárias e orçamento
tenham seus direitos fundamentais sociais im- anual;
plementados. f) gestão orçamentária participativa;
  g) planos, programas e projetos setoriais;
A Lei n.º 10.257, de 10 de julho de 2001, h) planos de desenvolvimento econômico
denominada de Estatuto da Cidade, regula- e social;
mentou os artigos 182 e 183 da Constituição IV – institutos tributários e financeiros:
Federal, estabelecendo as diretrizes gerais da a) imposto sobre a propriedade predial e
política urbana brasileira bem como normas de territorial urbana - IPTU;
interesse social, trazendo expressamente como b) contribuição de melhoria;
seu objetivo o pleno desenvolvimento da pro- c) incentivos e benefícios fiscais e finan-
priedade urbana e da função social da cidade, ceiros;
nesta última buscando um ambiente em que os V – institutos jurídicos e políticos:
indivíduos possam usufruir de uma boa educa- a) desapropriação;
ção, de moradia digna, de trabalho, de lazer, de b) servidão administrativa;
maneira a respeitar o princípio da dignidade c) limitações administrativas;
humana já mencionado neste artigo. d) tombamento de imóveis ou de mobiliário
  urbano;
Em resumo, o Estatuto disciplina institutos e) instituição de unidades de conservação;
relativos às questões urbanas oferecendo instru- f) instituição de zonas especiais de interesse
mentos para melhor ordenação do solo urbano, social;
levando em consideração o meio ambiente e os g) concessão de direito real de uso;
graves problemas sociais, a exemplo da mora- h) concessão de uso especial para fins de
dia, que atinge, notadamente, a população mais moradia;
carente. i) parcelamento, edificação ou utilização
  compulsórios;
Em seu artigo 4º, fornece um rol de instru- j) usucapião especial de imóvel urbano;
mentos exemplificativos a serem utilizados pelos l) direito de superfície;
Poderes Públicos a fim de efetivar as políticas ur- m) direito de preempção;
banas e, por conseguinte, atender às necessidades n) outorga onerosa do direito de construir
das pessoas quanto à realização dos seus direitos e de alteração de uso;
fundamentais sociais expressos na Constituição o) transferência do direito de construir;
Federal, na forma que se segue: p) operações urbanas consorciadas;
 
90 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA

q) regularização fundiária;  
r) assistência técnica e jurídica gratuita para Vale ainda ressaltar, sem tecer maiores
as comunidades e grupos sociais menos comentários a respeito, sobre o instrumento dis-
favorecidos; posto no inciso III, alínea, “a”, o Plano Diretor,
s) referendo popular e plebiscito; esse sim de competência do Poder Municipal,
t) demarcação urbanística para fins de regu- por meio do qual disciplinará o parcelamento, o
larização fundiária; (Incluído pela Medida uso e ocupação do solo, o zoneamento ambiental,
Provisória nº 459, de 2009) o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias
u) legitimação de posse. (Incluído pela Me- e o orçamento anual, a gestão orçamentária
dida Provisória nº 459, de 2009) participativa, os planos, programas e projetos
t) demarcação urbanística para fins de re- setoriais e por fim, o plano de desenvolvimento
gularização fundiária; (Incluído pela Lei nº econômico e social.
11.977, de 2009)  
u) legitimação de posse. (Incluído pela Lei No que diz respeito à moradia, objeto do
nº  11.977, de 2009) presente estudo, as políticas públicas devem ser
VI – estudo prévio de impacto ambiental planejadas no sentido de promover ações a fim de
viabilizar o acesso à moradia digna e adequada,
(EIA) e estudo prévio de impacto de vizi-
por meio de obras físicas de melhorias habitacionais,
nhança (EIV).
intervenção em áreas de risco; remoção de áreas não
§ 1º Os instrumentos mencionados neste
passíveis de eliminação do risco para áreas no entor-
artigo regem-se pela legislação que lhes é
no, utilização de instrumento de utilização compulsó-
própria, observado o disposto nesta Lei.
ria de imóvel urbano, buscando a promoção humana
§ 2º Nos casos de programas e projetos habi-
a partir da moradia digna e segura2, programas de
tacionais de interesse social, desenvolvidos
regularização fundiária para as áreas ocupadas
por órgãos ou entidades da Administração
de forma irregular, incluindo nestes não apenas
Pública com atuação específica nessa área,
o direito à legalização da ocupação, mas também
a concessão de direito real de uso de imó-
havendo a preocupação com a execução de ações
veis públicos poderá ser contratada coleti- sociais e assistenciais bem como de melhorias
vamente. § 3º Os instrumentos previstos físicas, sanitárias e ambientais nas comunidades
neste artigo que demandam dispêndio de beneficiárias do programa, entre outras ações.
recursos por parte do Poder Público muni-  
cipal devem ser objeto de controle social, É nessa perspectiva do poder-dever de
garantida a participação de comunidades, agir do Poder Público Municipal no que tange
movimentos e entidades da sociedade civil. à execução de políticas públicas que o mesmo
  não deve ficar inerte aguardando ações dos
Importante considerar que a redação dos Poderes Federal e Estadual para concretização
dois primeiros incisos do artigo citado demons- do direito à moradia. São necessárias iniciativa
tra que os instrumentos dispostos para execução e vontade políticas para que sejam identificados
da política urbana não são de competência ex- os problemas, elaboradas as políticas urbanas e
clusiva dos municípios. Dispõem sobre planos executadas. Deve haver programação financeira
nacionais, regionais e estaduais de ordenação bem como uma cooperação entre os Municípios,
do território e desenvolvimento econômico Estados e União para que referidas ações sejam
e social bem como sobre o planejamento das efetivadas de forma bem-sucedida.
regiões metropolitanas, aglomerações urbanas  
e microrregiões, apesar de o art. 182 da Consti-
2
CANUTO, Elza Maria Alves. Direito à moradia urbana.
tuição expressar que o Poder Público Municipal Aspectos da dignidade da pessoa humana. Belo Horizonte:
é o executor da política urbana. Forum, 2010, p. 110.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 91


DOUTRINA

6. Considerações Finais social plena. Sua efetivação depende de políticas


  públicas por parte do Estado que o implementem
Por meio do estudo apresentado, pretendeu- nas situações concretas.
-se demonstrar que o fato de o direito à moradia  
ter sido elevado à categoria de norma constitu- Apesar de o Estado vir agindo de forma a
cional bem como de direito fundamental por buscar soluções para o problema e já existirem
meio da Emenda Constitucional n.º 26/2000, que diversas legislações e programas públicos, a
foi editada e publicada apenas com esta finalida- do Estatuto da Cidade que trouxe diversos
de, não resultou na sua aplicabilidade imediata instrumentos como o Plano Diretor de Desen-
tampouco solucionou os problemas relacionados volvimento Urbano, programa de regularização
à moradia urbana existentes no país. fundiária, entre outros,  a verdade é que ainda
  existe um longo caminho pela frente para que
No entanto, não se pode negar que a cons- referidas políticas públicas se tornem suficien-
titucionalização formal desse direito alertou tes a regularizar a situação e concretizar de
os Poderes Legislativo e Executivo dos entes fato uma moradia digna para todos os cidadãos
federados para agir de forma a encontrar medi- brasileiros
das capazes de concretizar o direito à moradia  
dos cidadãos, seja na elaboração de leis regu- Por fim, é certo que a constitucionalização
lamentadoras do direito constitucionalmente do direito à moradia formalmente por meio da
previsto, seja na implementação dos programas Emenda 26/2000 impulsionou de alguma forma
de governo elaborados com o intuito de sanar os os poderes públicos uma vez que – como norma
problemas de habitação. constitucional positivada e fundamental que
  passou a ser – obriga o Estado a encontrar solu-
No decorrer do trabalho, observou-se que o ções, editando leis e executando os programas
direito à moradia na qualidade de direito funda- de governo elaborados a fim de solucionar ou
mental social, depende de uma prestação positiva minimizar os problemas urbanos relativos à
do Estado, que se dá por meio da elaboração e moradia.
execução de políticas públicas.  
  Referências
Verificou-se que o artigo 182 da Constitui-  
ção Federal, que trata da Política Urbana em BRASIL.  Constituição da República Federativa
geral, foi regulamentado no ano de 2001 (um do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível
ano após a Emenda citada) com a edição da Lei em  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/cons-
Federal n.º 10.257, o denominado Estatuto da tituicao/Emendas/Emc/emc26.htm. Acesso em
Cidade, que trouxe um rol exemplificativo de 22 nov. 2012.
políticas públicas a serem adotadas pelos Poderes
Executivos dos entes federados, não olvidando ____________. Lei Federal n.º 10.257, de 10 de
que a própria Constituição determinou ao Po- julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da
der Público Municipal o papel de executor da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais
política urbana, cabendo ao mesmo, detentor da política urbana e dá outras providências.
do poder-dever de agir, a implementação de Disponível em <http://www.planalto.gov.br/
ações concretizadoras do direito fundamental ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm>. Acesso
à moradia. em 24 nov. 2012.
 
Observando a situação atual das cidades e o ____________.  Congresso. Câmara dos Deputa-
déficit habitacional existente, pôde-se constatar dos.  Projeto de leis e outras proposições. PEC
que o direito à moradia não possui uma eficácia 285/2008 que acrescenta artigo ao Ato das Dispo-

92 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

sições Constitucionais Transitórias para dispor cêncio Martires Coelho, Paulo Gustavo Gonet
sobre a vinculação de recursos orçamentários Branco. 5. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2010.
da União, dos Estados, do Distrito Federal  
e dos Municípios aos respectivos Fundos de PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito
Habitação de Interesse Social. Disponível em Constitucional Internacional. 11. ed. rev. atual. São
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ Paulo: Saraiva, 2010.
prop_pareceres_substitutivos_votos;jsessioni  
d=2399CA523424176512CE494CD986085A. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
node2?idProposicao=406708>. Acesso em 24 fundamentais. 9. ed. rev. atual. e ampl. Porto
de nov. 2012. Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
 
____________.  Congresso. Câmara dos Depu- ___________.  Dignidade da Pessoa Humana e
tados.  Administração Pública. Deficit habita- Direitos Fundamentais na Constituição Federal de
cional no Brasil é de 5,5 milhões de moradias. 1988. 7. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do
Disponível em http://www2.camara.leg.br/ Advogado, 2009.
camaranoticias/noticias/ADMINISTRACAO-  
-PUBLICA/196187-DEFICIT-HABITACIO- ___________. O Direito Fundamental à Moradia
NAL-NO-BRASIL-E-DE-5,5-MILHOES-DE- na Constituição: Algumas anotações a respeito do seu
-MORADIAS.html>. Acesso em 05 dez. 2012. contexto, conteúdo e possível eficácia. In: Revista
Eletrônica sobre a Reforma do estado. Número
____________. O que é direito à moradia? In Mora- 20. Bahia: 2009/ 2010. Disponível em <http://
dia é um direito Humano.  Disponível em <http:// www.direitodoestado.com/revista/RERE-20-
direitoamoradia.org/?page_id=46&lang=pt>. -dezembro-2009-INGO-SARLET.pdf> Acesso
Acesso em 20 nov. 2012. em 19 out. 2012.
 
____________. Declaração Universal dos Direitos
Humanos, Adotada e proclamada pela resolução
217 A (III) da  Assembléia Geral das Nações
Unidas em 10 de dezembro de 1948. Disponível
emhttp://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/
ddh_bib_inter_universal.htm. Acesso em 23
de nov.2012.
 
CANUTO, Elza Maria Alves. Direito à moradia
urbana. Aspectos da dignidade da pessoa huma-
na. Belo Horizonte: Forum, 2010.
 
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual
de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008.
 
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ação civil
pública na perspectiva dos direitos humanos. 2 ed.
São Paulo: LTr, 2008.
 
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito
Constitucional. Gilmar Ferreira Mendes, Ino-

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 93


DOUTRINA

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA
DOUTRINA
CONSTITUCIONALIDADE DO
ARTIGO 6° DA LEI N° 12.462/2011
– REGIME DIFERENCIADO DE
CONTRATAÇÕES PÚBLICAS (RDC)

 
Luciana Rodrigues Vieira Lopes*
 
 

 
Sumário: 1) Introdução: considerações sobre a Lei n° 12.462/11 e
sua aplicação - 2) Conteúdo do artigo 6° da Lei n° 12.462/11 (pu-
blicidade postergada do orçamento estimado nas licitações regidas
pelo RDC) - 3) A forma de divulgação do orçamento estimado na
Lei 8666/93 e na Lei 10520/2002 (pregão) - 4) A previsão contida
no artigo 6° da Lei n° 12.462/11 e o regime da Constituição Federal
de 1988: existe ofensa ao princípio da publicidade consagrado
nos artigos 5°, XXXIII, e 37 da CF? - 4.1) A possibilidade de
limitação dos princípios constitucionais – 4.2) A possibilidade
de ponderação de interesses e princípios constitucionais – 4.3)
O diferimento da publicidade no RDC - 5) Objetivos e riscos da
* Procuradora do Município do Salvador nova regra de divulgação diferida do orçamento estimado – 6)
Pós-graduada em Direito Processual Considerações finais.
Civil pelo Juspodivm/Universidade
Jorge Amado  
Graduada em Direito pela Universidade Palavras-chave: Regime Diferenciado de Contratação Pública;
Federal da Bahia
orçamento estimado da licitação; Princípio da Publicidade.
 

1) Introdução: considerações sobre a Lei 12462/11 e sua apli-


cação
 
Visando recuperar o tempo perdido para dotar o País da in-
fraestrutura necessária para sediar a Copa das Confederações da
Federação Internacional de Futebol Associação - FIFA 2013, a
Copa do Mundo FIFA 2014 e os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos
de 2016, foi editada a Medida Provisória n° 527/11, convertida na

94 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

Lei n° 12.462/20111, publicada no DOU de 05 de contratação será tornado público apenas


agosto de 2011. e imediatamente após o encerramento da

A referida Lei estabeleceu um regime


1
Ressalte-se que o texto original da MP n° 527/11 não con-
diferenciado de contratações públicas (RDC)
templava o Regime Diferenciado de Contratações, tendo
aplicável às licitações e contratos relacionados sido este introduzido por meio de emenda parlamentar.
com os três grandes eventos acima citados, bem Em 11 de outubro de 2011, foi editado o Decreto n° 7.581,
que regulamentou a Lei 12.462/11.
como para as obras de infraestrutura e contra- 2
Lei n° 12.462/11: “Art. 1°. É instituído o Regime Dife-
tação de serviços para os aeroportos das capitais renciado de Contratações Públicas (RDC), aplicável
exclusivamente às licitações e contratos necessários à
dos Estados da Federação distantes até 350Km realização: I – dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de
das cidades sedes dos mundiais.2 2016, constantes da Carteira de Projetos Olímpicos a ser
definida pela Autoridade Pública Olímpica (APO); e II – da
Copa das Confederações da Federação Internacional de
Posteriormente, a Lei n° 12.688, de 18 de Futebol Associação Fifa 2013 e da Copa do Mundo Fifa
julho de 2012, incluiu no âmbito de abrangência 2014, definidos pelo Grupo Executivo – Gecopa 2014 do
Comitê Gestor instituído para definir, aprovar e supervi-
do RDC as obras do PAC – Programa de Acele- sionar as ações previstas no Plano Estratégico das Ações
ração do Crescimento3, a Lei n° 12.722, de 3 de do Governo Brasileiro para realização da Copa do Mundo
FIFA 2014 – CGCOPA 2014, restringindo-se, no caso de
outubro de 2012, incluiu as obras e serviços de
obras públicas, às constantes da matriz de responsabilida-
engenharia no âmbito dos sistemas públicos de des celebradas entre a União, Estados, Distrito Federal e
ensino4 e a Lei n° 12.745, de 19 de dezembro de Municípios; III – de obras de infraestrutura e de contratação
de serviços para os aeroportos das capitais dos Estados
2012, incluiu as obras e serviços de engenharia da Federação distantes até 350km (trezentos e cinquenta
no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS5. quilômetros) das cidades sede dos mundiais referidos nos
incisos I e II.”
Com estas alterações, ampliou-se de forma sig- 3
A Lei n° 12.688/12 alterou a Lei n° 12.462/11 para inserir
nificativa a possibilidade de utilização do RDC, em seu art. 1°, o inciso IV, com a seguinte redação: “IV
que foi criado, como visto, apenas para aplicação – das ações integrantes do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC)”.
em certos e específicos eventos. 4
A Lei n° 12.722/12 alterou a Lei n° 12.462/11 para inserir
em seu art. 1°, o § 3°, com a seguinte redação: “§ 3°- Além
das hipóteses previstas no caput, o RDC também é apli-
A Lei n° 12.462/11 sofreu, e ainda sofre, cável às licitações e contratos necessários à realização de
severas críticas6, especialmente com relação à obras e serviços de engenharia no âmbito dos sistemas
públicos de ensino.”
possibilidade de transferência do planejamento 5
A Lei n° 12.745/12 alterou a Lei n° 12.462/11 para inserir,
ao terceiro contratado para a execução das obras e em seu art. 1°, o inciso V, com a seguinte redação: “V –
ao sigilo do orçamento estimado – que macularia das obras e serviços de engenharia no âmbito do Sistema
Único de Saúde – SUS”.
o princípio constitucional da publicidade – ora 6
Importante mencionar que existem duas ações diretas de
objeto do presente trabalho, que visa abordar o inconstitucionalidade (ADI n° 4.645 e n° 4.655) questionan-
do a constitucionalidade da Lei n° 12.462/11. A primeira
disciplinamento legal do tema, tecendo consi- delas, proposta por partidos políticos, impugna a consti-
derações acerca do posicionamento da doutrina tucionalidade sob o aspecto formal, apontando o descabi-
mais abalizada e da jurisprudência recente do mento da utilização da medida provisória e a extrapolação
da competência parlamentar para emendar o texto original
Tribunal de Contas da União. da medida provisória submetida ao Congresso. Além
  disso, questiona especificamente a constitucionalidade
da disciplina instituída pelo art. 6°, relativamente ao sigilo
2)  Conteúdo do artigo 6° da Lei n° 12.462/11 inicial do orçamento estimado, por ofensa ao princípio da
(publicidade postergada do orçamento publicidade, consagrado nos artigos 5°, XXXIII, e 37 da CF.
A segunda ADI, proposta pelo Procurador-Geral da Repú-
estimado nas licitações regidas pelo RDC)
  blica, questiona igualmente a constitucionalidade formal da
Lei n° 12.462/11 e ainda a constitucionalidade material de
O artigo 6° da multicitada Lei assim esta- diversos de seus dispositivos (art. 1°, I e II; 2°, parágrafo
único, V; 4°, §1°, II e § 2°; 8°, § 5°; 9°, caput e parágrafos;
belece: 14, parágrafo único, II; 29, I; 30, I e II e parágrafos 1° ao
  5°; 36, § 1°; e 65), mas não questiona a constitucionalidade
do art. 6°. Ambas as ações encontram-se (até a data de
Art. 6°. Observado o disposto no § 3°, o conclusão deste trabalho) pendentes de apreciação pelo
orçamento previamente estimado para a STF.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 95


DOUTRINA

licitação7, sem prejuízo da divulgação do de- detalhado em planilhas que expressem a compo-
talhamento dos quantitativos e das demais sição de todos os seus custos unitários;”
informações necessárias para a elaboração
das propostas. Além desta previsão, o artigo 6°, inciso IX,
§ 1°. Nas hipóteses em que for adotado o alínea “f ”, da citada Lei considera como elemen-
critério de julgamento por maior desconto, a to necessário do projeto básico o “orçamento
informação de que trata o caput deste artigo detalhado do custo total da obra, fundamentado
constará do instrumento convocatório. em quantitativos de serviços e fornecimento
§ 2°. No caso de julgamento por melhor téc- propriamente avaliados.”
nica, o valor do prêmio ou da remuneração
será incluído no instrumento convocatório. Por sua vez, o artigo 40, § 2°, inciso II,
§ 3°. Se não constar do instrumento convo- define que “constituem anexos do edital, dele
catório, a informação referida no caput deste fazendo parte integrante: (...) II – orçamento
artigo possuirá caráter sigiloso e será dispo- estimado em planilhas de quantitativos e preços
nibilizada estrita e permanentemente aos unitários”.
órgãos de controle externo e interno.
  Já o § 1° do artigo 44 veda expressamente
“a utilização de quaisquer elementos, critério ou
A simples leitura dos dispositivos legais
fator sigiloso, secreto, subjetivo ou reservado que
acima transcritos impõe reconhecer que o orça-
possa ainda que indiretamente elidir o princípio
mento estimado da licitação, no RDC, não será
da igualdade entre os licitantes”.
divulgado até o encerramento do certame, exceto
nas hipóteses em que for adotado como critério
Em suma, a Lei 8666/93 preocupou-se em
de julgamento por maior desconto e no julga-
assegurar que o orçamento seja suficiente, com-
mento por melhor técnica (deve ser divulgado
pleto, detalhado e público, de modo a permitir a
o valor da remuneração ou do prêmio).8
prévia e adequada compreensão da composição
de todos os custos envolvidos na futura execução
Ressalte-se, contudo, que a regra do sigilo
do objeto licitado. 
do orçamento estimado não vale para os órgãos
de controle externo e interno, que poderão O Tribunal de Contas da União assim se
permanentemente ter acesso às informações manifestou sobre o tema:
orçamentárias vedadas ao público.  
  Cabe lembrar que a Lei n° 8.666/1993 es-
3) A forma de divulgação do orçamento esti- tabelece, de forma expressa, que tanto o
mado na Lei 8666/93 e na Lei 10520/2002 projeto básico da licitação quanto o demons-
(pregão) trativo do orçamento estimado em planilhas
  de quantitativos e custos unitários devem
Na Lei 8666/93 (Lei Geral de Licitações e constituir partes integrantes do edital (art.
Contratos da Administração Pública) o orça- 40, § 2°, I e II). Por óbvio, não se trata de
mento da obra ou serviço é um documento de exigência meramente formal ou que não
precedência obrigatória ao desencadeamento da
licitação, devendo vir expressamente divulgado
no instrumento convocatório. 7
O caput do art. 9° do Decreto n° 7.581/11 refere-se à “ad-
judicação do objeto” como momento em que o orçamento
se tornará público.
O artigo 7°, § 2°, inciso II, da referida lei pre- 8
O Decreto n° 7.581/11 incluiu também, como uma exceção
vê que: “As obras e os serviços somente poderão à regra do sigilo, a hipótese em que for adotado o critério
de julgamento por maior oferta – devendo ser divulgado
ser licitados quando: (...) II – existir orçamento no edital o preço mínimo de arrematação. (art. 9°, § 2°, III)

96 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

mereça observância. A ausência desses orçamento estimado da licitação no instrumen-


documentos, a par de ir de encontro às dis- to convocatório, ressaltando, contudo, que a
posições legais, acarreta a impossibilidade existência deste orçamento é necessária e deve
de o concorrente ter a noção da dimensão do constar dos autos10.
serviço a ser licitado para aquilatar se pode-
rá ou não participar do certame. 15. Nesse Nessa linha de pensamento, Jorge Ulysses
contexto, frustrada estará a norma se esses Jacoby Fernandes11 defende que a não divulgação
documentos não integrarem, de fato, o ins- prévia do orçamento no pregão não ofende a
trumento convocatório entregue aos interes- literalidade da lei a ainda apresenta vantagens,
sados, como me parece ter ocorrido no caso a saber:
em exame. (TCU. Acórdão n° 2.048/2006,  
Plenário. Processo 021.228/2006-3. Rel. a. Inibe a tentativa de o licitante limitar seu
Min. Benjamin Zymler. Sessão: 8.11.2006. preço ao estimado nas pesquisas;
DOU 13.11.2006.) b. Permite ao pregoeiro obter na fase de
  lances e na negociação preços inferiores
Como visto, a divulgação prévia do orça- aos da pesquisa;
mento estimado do certame, na prática, serve c. Não vincula os preços à época da pesqui-
como parâmetro para a elaboração das propostas sa, permitindo à equipe de apoio atualizá-
pelos licitantes, bem como visa propiciar a estes -los até o dia da própria sessão do pregão.
e, principalmente, à Administração, o exame
da exequibilidade das propostas, inclusive para
 
Em sentido contrário, Marçal Justen Fi-
possibilitar a aplicação do quanto disposto no lho entende ser aplicável ao pregão o previsto na
artigo 48 da Lei 8666/939. 
Lei Geral de Licitações no que tange à vedação
ao sigilo do orçamento estimado, possibilitando
Já a Lei Federal n° 10.520/2002, que ins-
a publicidade prévia deste. Para o citado autor:
tituiu a modalidade de licitação denominada
pregão no ordenamento jurídico brasileiro, ao
 
É inquestionável que o pregão se submete à
contrário do quanto estipulado na Lei Geral
principiologia consagrada na Lei n° 8.666,
de Licitações, não prevê o orçamento estimado
sendo inafastável a constante e permanente
como presença obrigatória do edital.
aplicação subsidiária de seus dispositivos.
Com efeito, o seu artigo 4°, inciso III, dispõe
que “do edital constarão todos os elementos defi-
nidos na forma do inciso I do art. 3°, as normas 9
“Art. 48. Serão desclassificadas: I – as propostas que
que disciplinarem o procedimento e a minuta não atendam às exigências do ato convocatório; II – as
do contrato, quando for o caso;”. propostas com valor global superior ao limite estabelecido
ou com preços manifestamente inexeqüíveis, assim consi-
derados aqueles que não venham a ter demonstrada a sua
Já o artigo 3°, caput e inciso I, estabelecem viabilidade através de documentação que comprove que
o custo dos insumos são coerentes com os de mercado
que “a fase preparatória do pregão observará o e que os coeficientes de produtividade são compatíveis
seguinte: I – a autoridade competente justificará a com a execução do objeto contratado, condições estas
necessidade de contratação e definirá o objeto do necessariamente especificadas no ato convocatório da
licitação (...)”
certame, as exigências de habilitação, os critérios 10
Art. 3°, III, da Lei 10.520/02: “III – dos autos do procedi-
de aceitação das propostas, as sanções por inadim- mento constarão a justificativa das definições referidas
no inciso I deste artigo e os indispensáveis elementos
plemento e as cláusulas do contrato, inclusive com técnicos sobre os quais estiverem apoiados, bem como o
fixação dos prazos para fornecimento”. orçamento, elaborado pelo órgão ou entidade promotora
da licitação, dos bens ou serviços a serem licitados:”
11
FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Sistema de Registro
Destarte, no pregão, não há exigência de Preços e Pregão Presencial e Eletrônico. 4. ed. Belo
expressa da obrigatoriedade da divulgação do Horizonte: Fórum, 2011, p. 558.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 97


DOUTRINA

(...) Cabe reconhecer que se trata, no caso, Importante salientar, neste ínterim, que em
de normas gerais de licitação, que somente qualquer licitação, inclusive no RDC, haverá
deixariam de ser aplicáveis se existisse uma a estipulação prévia do orçamento estimado14
disciplina especial pertinente ao tema no (que não se confunde com a divulgação deste),
âmbito do pregão ou se a intrínseca espe- até porque isto é essencial para a definição do
cialidade da disciplina do pregão excluísse objeto, dos custos envolvidos com sua execução,
a sua incidência. Nenhuma das hipóteses da escolha da modalidade licitatória e, no curso
se verifica. As normas sobre publicidade do certame, para a análise da documentação de
de orçamentos, prevista na Lei n° 8.666, qualificação econômico-financeira dos licitan-
apresentam natureza geral e se aplicam no tes (como capital social mínimo ou patrimônio
âmbito do pregão.12  líquido mínimo) e da exequibilidade das propos-
tas; entretanto, não haverá a prévia publicidade
Não obstante a posição acima esposada, deste orçamento – que, no caso do RDC, será
a discussão sobre o tema encontra-se supera- divulgado apenas no final (salvo as exceções
da diante do entendimento pacífico firmado mencionadas acima).
pelo TCU, no sentido de não ser obrigatória a
inserção no edital do pregão do valor estimado Neste sentido Egon Bockmann Moreira e
da contratação, ante a ausência de previsão le- Fernando Vernalha Guimarães se manifestaram:
gislativa expressa.  
Enfatize-se que mesmo nos casos excep-
O sumário de um dos acórdãos proferi- cionais do RDC a restrição à divulgação do
dos pelo TCU acerca do tema assim tratou a orçamento não importa, evidentemente,
matéria: a desnecessidade de sua elaboração pré-
  via. A licitação deverá ser precedida pela
3. “Orçamento” ou “valor orçado” ou formulação do orçamento, que é documento
“valor de referência” ou simplesmente fundamental da etapa interna – bem como
“valor estimado” não se confunde com sua submissão, se for o caso, aos órgãos de
preço máximo. O “valor orçado” a de- controle. A sua falta poderá gerar a nulidade
pender de previsão editalícia pode even- dos atos subseqüentes.15
tualmente ser definido como “preço má-  
ximo” a ser praticado em determinada 12
JUSTEN FILHO, Marçal. Pregão: comentários à legislação
licitação, mas não necessariamente. do pregão comum e eletrônico. 5. ed. São Paulo: Dialética,
4. Nas modalidades licitatórias tradicio- 2009, p. 99.
13
No mesmo sentido: “Na licitação na modalidade pregão,
nais, de acordo com o art. 40, § 2°, II, da o orçamento estimado em planilhas de quantitativos e
Lei n° 8666/93, o orçamento estimado preços unitários não constitui um dos elementos obriga-
deve figurar como anexo do edital, tórios do edital, devendo estar inserido obrigatoriamente
no bojo do processo relativo ao certame. Ficará a critério
contemplando o plano de referência e, do gestor, no caso concreto, a avaliação da oportunidade
se for o caso, o preço máximo que a Ad- e conveniência de incluir esse orçamento no edital ou de
informar, no ato convocatório, a sua disponibilidade aos
ministração se dispõe a pagar. No caso interessados e os meios para obtê-lo.” (TCU. Acórdão n°
do pregão, a jurisprudência do TCU é 114/2007, Plenário. Processo 023.782/2006-4. Rel. Min.
Benjamin Zymler. Sessão: 7.2.2007. DOU, 9.2.2007). E
no sentido de que a divulgação do valor ainda: Acórdãos n° 644/2006, 1925/2006, 517/2009 e
orçado e, se for o caso, do preço máximo, 1784/2009, todos do Plenário do TCU.
caso este tenha sido fixado, é meramente
14
Assim prevê a Lei n° 12.462/11 (RDC), nos seguintes arti-
gos: 2°, parágrafo único, VI; 4°, V; 9°, § 2°, II; 10, parágrafo
facultativa. (TCU, Acórdão n° 392/2011. único e 41.
Plenário, Processo 033.876/2010-0. Rel. 15
MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES, Fernando
Vernalha. Licitação Pública. A Lei Geral de Licitações/
Min. José Jorge, Sessão: 16.2.2011. LGL e o Regime Diferenciado de Contratações/RDC. 1.
DOU de 23.02.2011)13 ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 159.
 
98 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA

Ademais, convém lembrar que a Adminis- administração pública; afinal, em um Estado


tração não pode assumir compromissos financei- participativo, o acesso às informações é essencial
ros sem a adequada previsão de recursos, sendo para propiciar o controle da atividade estatal e
imperiosa a indicação da dotação orçamentária dos agentes públicos.
antes do lançamento do certame16. Tal previsão
de recursos será feita com base no orçamento Celso Antônio Bandeira de Mello assevera
estimado da licitação.  que:
   
4) A previsão contida no artigo 6° da Lei n° (...) se os interesses públicos são indisponí-
12.462/11 e o regime da Constituição Fe- veis, se são interesses de toda a coletividade,
deral de 1988: existe ofensa ao princípio os atos emitidos a título de implementá-los
da publicidade consagrado nos artigos 5°, hão de ser exibidos em público. O povo
XXXIII, e 37 da CF? precisa conhecê-los, pois este é o direito
  mínimo que assiste a quem é a verdadeira
Como acima mencionado, a Lei n° 8.666/93 fonte de todos os poderes, consoante dispõe
define obrigações específicas de publicidade e o art. 1°, parágrafo único, da Constituição
ampla divulgação do orçamento estimado ela- do País. O princípio da publicidade impõe
borado pela Administração, para todas as moda- a transparência na atividade administrati-
lidades licitatórias, enquanto que a nova Lei n° va exatamente para que  os administrados
12.462/11 prevê justamente o contrário, o sigilo possam conferir se está sendo bem ou mal
deste orçamento estimado até o encerramento conduzida.18
do certame, salvo algumas exceções.  
Hely Lopes Meirelles acrescenta:
Diante desta inovação, surgiram questio-  
namentos a respeito da constitucionalidade O princípio da publicidade dos atos e con-
da previsão contida no artigo 6° da Lei acima tratos administrativos, além de assegurar
citada, em especial, de que haveria ofensa ao seus efeitos externos, visa a propiciar seu
princípio da publicidade, consagrado nos artigos conhecimento e controle pelos interessados
5°, XXXIII, e 37 da Constituição Federal – que diretos e pelo povo em geral, através dos
assim dispõem: meios constitucionais – mandado de seguran-
  ça (art. 5°, LXIX), direito de petição (art. 5°,
Art. 5°, XXXIII. Todos têm direito a rece- XXXIV, ‘a’), ação popular (art. 5°, LXXIII),
ber dos órgãos públicos informações de seu ‘habeas data’ (art. 5°, LXXII), suspensão dos
interesse particular, ou de interesse coletivo direitos políticos por improbidade administrati-
ou geral, que serão prestadas no prazo da lei,
sob pena de responsabilidade, ressalvadas
aquelas cujo sigilo seja imprescindível à
segurança da sociedade e do Estado.17 16
Assim determina o art. 7°, § 2°, III da Lei 8666/9, ao
Art. 37. A administração pública direta estipular que as obras e os serviços somente poderão
ser licitados quando houver previsão de recursos orça-
e indireta de qualquer dos Poderes da
mentários que assegurem o pagamento das obrigações
União, dos Estados, do Distrito Federal e decorrentes de obras ou serviços a serem executados no
dos Municípios obedecerá aos princípios exercício financeiro em curso. 
17
No inciso LX do art. 5°, a Constituição Federal mais uma
da legalidade, impessoalidade, moralidade, vez se reporta ao princípio da publicidade ao dispor que
publicidade e eficiência (...). “a lei só poderá restringir a publicidade dos autos proces-
  suais quando a defesa da intimidade ou o interesse social
o exigirem”.
Como visto, as previsões constitucionais 18
MELLO, Celso Bandeira de. Curso de Direito Administra-
recomendam a publicidade de informações pela tivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 46.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 99


DOUTRINA

va (art. 37, § 4°) (...)”. E complementa: “A O próprio artigo 5°, XXXIII, traz uma
publicidade, como princípio da adminis- exceção à publicidade ao possibilitar o sigilo
tração pública (CF, art. 37, caput), abrange quando este for imprescindível à segurança da
toda a atuação estatal, não só sob o aspecto sociedade e do Estado.
da divulgação oficial de seus atos como,
também, de propiciação de conhecimento Neste ínterim, importante trazer à baila o
da conduta interna de seus agentes.19 entendimento de André Guskow Cardoso:
   
Na mesma toada, Uadi Lamêgo Bulos O cidadão deve ter condições permanentes de
ressalta que o princípio da publicidade tem acompanhar, de forma ampla, a gestão estatal
por finalidade “manter a total transparência na pelos governantes eleitos e outros agentes
prática dos atos da Administração Pública”.20 políticos. No entanto, isso não significa que
todo e qualquer ato praticado pelo Estado e,
Exatamente nesse sentido, Demian Guedes em especial, pela Administração tenha que
compreende que o princípio da publicidade: ser previamente objeto de ampla publicidade.
Há vários exemplos de ações da Administra-
(...) não se exaure com a exteriorização do ção que não são objeto de prévia publicidade.
ato administrativo ao público, após a sua Isso não significa que tais ações não devam
hermética realização pela Administração. sujeitar-se a ampla divulgação após a sua
Publicidade e transparência impõem ao adoção pelo Poder Público. Tome-se como
Poder Público uma atuação translúcida exemplo a adoção de determinada medida
durante a preparação da decisão administra- pela autoridade monetária (Banco Central)
tiva, na sua exposição final (impondo-se sua sobre o regime cambial. Evidentemente
motivação e publicação propriamente dita) certas ações não podem ser precedidas de
e, posteriormente, durante sua execução.21 qualquer divulgação, sob pena de sua ine-
  ficácia. Pode-se imaginar também hipótese
Neste contexto, o sigilo do orçamento im- de medidas específicas de fiscalização de
posto pelo RDC configuraria infração ao princí- trânsito (blitz), em que sua prévia divulgação
pio da publicidade? Entendemos que não, pelos
motivos a seguir expostos.
  19
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro.
São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 94
4.1) A possibilidade de limitação dos princí- 20
BULOS. Uadi Lamêgo. Constituição Federal Anotada. São
pios constitucionais Paulo: Saraiva, 2000. p. 563. 
  21
GUEDES, Demian. A presunção de veracidade e o Estado
Democrático de Direito: uma reavaliação que se impõe.
Um primeiro ponto a ser observado é a In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO,
Floriano de Azevedo (Coord.). Direito administrativo e seus
existência de limites à exigência de transparência novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 250.
na atuação estatal. 22
Esta lei dispõe sobre os procedimentos a serem obser-
vados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios
para garantir o acesso a informações previsto no inciso
Com efeito, mesmo em um Estado em que XXXIII do art. 5°, no inciso II do § 3° do art. 37 e no § 2°
houve grandes avanços no campo da transparên- do art. 216 da Constituição Federal. Subordinam-se ao seu
regime os órgãos públicos integrantes da administração
cia dos atos públicos, como no Brasil, onde recen- direta dos Poderes Executivos, Legislativo, incluindo as
temente foi editada a Lei de Acesso à Informação Cortes de Contas, e Judiciário e do Ministério Público, além
– n° 12.527/1122  –, há determinados assuntos em das autarquias, fundações públicas, empresas públicas,
sociedades de economia mista e demais entidades contro-
que se autoriza o sigilo; este, entretanto, deve ser ladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito
justificado, não pode ser desarrazoado ou arbitrá- Federal e Municípios. O objetivo desta norma é assegurar
o direito fundamental de acesso à informação e tem como
rio. Muitas vezes o sigilo é importante, inclusive, uma das diretrizes a “observância da publicidade como
para proteger a ordem jurídica. preceito geral e do sigilo como exceção” (art. 3°, I)

100 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

frustraria por completo a finalidade perse- Nenhum direito é absoluto. Assim, no caso
guida pela ação estatal. Do mesmo modo, em estudo, deve ser analisado o que deve prevale-
a ação de fiscalização exercida pelos órgãos cer: o interesse público à informação (publicida-
de vigilância sanitária sobre determinados de) ou o interesse público de economia dos gastos
estabelecimentos comerciais poderia se frus- públicos, de maior eficiência na contratação e de
trar caso houvesse a sua prévia divulgação. moralidade na condução do certame.
Enfim, há situações em que a publicidade
prévia de determinada ação estatal acarreta a Tratando sobre as colisões entre direitos
sua ineficácia. Torna a medida inócua. Nesses fundamentais e interesses da sociedade, Daniel
casos a publicidade poderá ser diferida para Sarmento assim se manifestou:
momento posterior à prática do ato ou à  
consolidação de seus efeitos. Tais exemplos Já se tornou lugar-comum a afirmação de
demonstram que a imposição derivada do que, apesar da relevância ímpar do papel
princípio da ampla publicidade das ações que desempenham nas ordens jurídicas
estatais encontra determinados limites. democráticas, os direitos fundamentais não
Não é plausível que a publicidade prévia são absolutos. A necessidade de proteção
e ampla seja aplicada de forma genérica e de outros bens jurídicos diversos, também
indiscriminada, com prejuízo à consecução revertidos de envergadura constitucional,
dos objetivos de interesse coletivo buscados pode justificar restrições aos direitos fun-
com a prática de determinado ato ou medida damentais. Tem-se entendido que o caráter
pelo Estado. Nas hipóteses em que a publici- principiológico das normas constitucio-
dade antecipada a respeito de determinado nais protetivas dos direitos fundamentais
ato ou ação estatal possa colocar em risco o permite ao legislador que, através de uma
próprio objetivo buscado, necessariamente ponderação constitucional dos interesses
deve admitir-se que a publicidade se dê de em jogo, estabeleça restrições àqueles di-
forma diferida.23 reitos, sujeitas, no entanto, a uma série de
  limitações (são os chamados ‘limites dos
Em resumo, não restam dúvidas de que a limites’)25
publicidade, como os demais princípios consti-  
tucionais, pode sofrer limitações estabelecidas Egon Bockmann Moreira e Fernando Ver-
na própria constituição, autorizados por esta nalha Guimarães complementam:
– quando prevê a edição de lei restritiva –, ou  
podem decorrer de restrições não expressamente
referidas no texto constitucional24, desde que 23
CARDOSO, André Guskow. O Regime Diferenciado de
haja uma justificativa razoável para tanto, não Contratações Públicas: a questão da publicidade do orça-
podendo ser admitido abuso na mitigação da mento estimado. In: JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA,
César A. Guimarães (Coord.). O Regime Diferenciado de
transparência da atuação estatal. Contratações Públicas (RDC): comentários à Lei n° 12.462
  e ao Decreto n° 7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p.
82.
4.2) A possibilidade de ponderação de interes- 24
SARMENTO, Daniel. Supremacia do interesse público? As
ses e princípios constitucionais colisões entre direitos fundamentais e interesses da cole-
  tividade. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES
NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito administrativo
Além da possibilidade de imposição de res- e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
trições aos princípios constitucionais, impende p. 126.
25
SARMENTO, Daniel. Supremacia do interesse público?
salientar que estes podem sofrer ponderações, As colisões entre direitos fundamentais e interesses
devendo ser analisado em cada caso qual o inte- da coletividade. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de;
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito
resse em jogo que deve prevalecer, observando-se
administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte:
sempre a proporcionalidade. Fórum, 2008. p. 118

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 101


DOUTRINA

Em segundo ponto, o princípio da publici- Como visto, o citado autor já faz uma ponde-
dade não impede que a divulgação de certas ração aos princípios constitucionais ao defender
informações inerentes à atividade seja ca- que estes devem ser harmonizados com os resul-
librada com vistas à preservação de outros tados econômicos pretendidos pela Administra-
interesses de relevância pública associados. ção. Assevera ainda que, no campo da licitação,
Sem que se elimine a difusão pública do or- os princípios da eficiência, da economicidade
çamento, é perfeitamente possível dosá-la na e da moralidade devem prevalecer, atuando os
esfera da licitação, no propósito de preservar princípios da ampla competição, da publicidade
o princípio da contratação mais vantajosa – e, e da isonomia apenas como instrumentos para
até, como instrumento de combate a práticas consecução do objetivo principal – a seleção da
de conluio e formação de cartéis.26 proposta mais vantajosa para a celebração do
  contrato administrativo.
Para Marcos Juruena Villela Souto, na li-
citação deve ser haver uma harmonização entre André Guskow Cardoso, ao tratar da neces-
resultados econômicos e princípios jurídicos: sidade de ponderação de princípios consagrados
  pela Constituição, assim se manifestou:
Para mensuração da eficiência de um ins-
tituto de Direito, é  preciso que a lógica
 
A questão envolve necessariamente a pon-
(econômica) de resultados não seja afastada
deração de princípios e valores consagrados
ou anulada pela lógica (ética) dos princípios.
pela Constituição, ante o princípio constitu-
Fundamental, pois, a busca da harmoniza-
cional da publicidade (e as obrigações dele
ção entre os resultados econômicos e prin-
decorrentes). A despeito de sua inequívoca
cípios jurídicos. Este é o desafio do direito
importância, o princípio da publicidade
econômico e esta é a provocação. No campo
pode ceder diante de outros princípios e
da licitação, seu objetivo constitucional é
valores constitucionalmente consagrados.
a seleção da proposta mais vantajosa para
(...)28
firmar contrato com a Administração.
 
O fundamento está no atendimento dos
princípios constitucionais da eficiência, da Em suma, havendo mais de um princípio
economicidade e da moralidade. Para aten- constitucional em jogo, é plenamente possível
dimento de tais princípios, outros, de ordem que haja uma ponderação destes para que não
instrumental, devem ser observados, a saber, ocorra frustração dos objetivos ou finalidades
a ampla competição, a publicidade e a isono- perseguidos pela Administração, salvaguardan-
mia, devendo ser proporcionada igualdade do o interesse público.
de oportunidades de acesso e de tratamento
entre os interessados em contratar com a
Administração. (...) Ocorre que sem sempre 26
MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES, Fernando
– e não raro – a melhor proposta nos autos Vernalha. Licitação Pública. A Lei Geral de Licitações/
LGL e o Regime Diferenciado de Contratações/RDC. 1.
não é a melhor do mercado. Nesse caso, o ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 160-161.
procedimento não atinge seu fim constitu- 27
SOUTO, Marcos Juruena Villela. Licitações e controle
cional nem econômico. Em síntese, o que se da eficiência: repensando o princípio do procedimento
formal à luz do ‘placar eletrônico’. In: ARAGÃO, Alexan-
pretende, como atendimento dos princípios dre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo
constitucionais, é a melhor proposta no mer- (Coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas.
Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 553-554.
cado e não só no processo. (...) Esses deveres 28
CARDOSO, André Guskow. O Regime Diferenciado de
de eficiência e economicidade se realçam Contratações Públicas: a questão da publicidade do orça-
num contexto de Reforma do Estado, que mento estimado. In: JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA,
César A. Guimarães (Coord.). O Regime Diferenciado de
busca a implementação de políticas públicas Contratações Públicas (RDC): comentários à Lei n° 12.462
para fortalecer a competição.27 e ao Decreto n° 7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 83.
 
102 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA

Assim, sopesando-se os princípios já men- princípio da publicidade. Argumenta-se que as


cionados, entendemos que o princípio constitu- informações orçamentárias são de enorme rele-
cional da publicidade pode perfeitamente ceder vância para o controle popular sobre os gastos
diante de outros princípios e valores também públicos, sendo que não podem restar subtraídos
consagrados na Constituição Federal, como os do dever de publicidade que pesa (como regra)
princípios da economicidade, eficiência e mora- sobre a atividade administrativa.
lidade, culminando com o alcance do bem alme- O argumento não procede. É que não há, na
jado pela Administração, qual seja, a obtenção hipótese do RDC, propriamente subtração da
da proposta mais vantajosa para a administração, publicidade do orçamento, uma vez que ele será
com efetiva economia dos gastos públicos. amplamente divulgado imediatamente depois
  da disputa. Trata-se, portanto, de impor apenas
4.3) O diferimento da publicidade no RDC a restrição subjetiva e temporal à veiculação do
  orçamento, não se podendo falar em sigilo ou
Além da possibilidade de imposição de certos confidencialidade das informações. Ademais – e
limites à exigência de publicidade na atuação esta- como dito acima –, a contratação não se consu-
tal e, também, à possível ponderação de princípios mará sem que haja sua plena disponibilização.
constitucionais, não menos importante salientar Logo, não haverá ato jurídico de assunção de
que, no RDC, não há propriamente subtração da compromissos financeiros pela Administração
publicidade do orçamento estimado, haja vista sem a devida e prévia divulgação do orçamento
que este orçamento é disponibilizado permanen- relativo àquela obra ou serviço.29
temente aos órgãos de controle interno e externo  
e será amplamente divulgado ao final do certame. No mesmo sentido, tratando especificamen-
te da questão do princípio da publicidade e do
Por este ângulo, não haveria infração algu- sigilo previsto no artigo 6°, da Lei n° 12.642/11,
ma ao princípio constitucional da publicidade, defendeu André Guskow Cardoso:
apenas sua observância seria postergada para o  
final da licitação. Ou seja, o que o artigo 6° da A rigor, o diferimento da publicidade do
Lei do RDC promove é um mero adiamento do orçamento estimado estabelecido pelo art.
momento em que os administrados e licitantes 6° da Lei n° 12.642 é válido e compatível
ficam sabendo do preço orçado pela administra- com a Constituição. De um lado, tem-se
ção naquela licitação. o princípio da publicidade, que tem como
objetivos precípuos, no caso das licitações
Ressalte-se que, caso a administração não públicas, (i) a participação do maior número
divulgue corretamente o orçamento após o en- de interessados, (ii) a proteção à igualdade
cerramento do certame ou em sendo constatadas entre os licitantes e (iii) viabilizar o amplo
irregularidades neste orçamento que possam controle da atividade administrativa na
contaminar as propostas apresentadas, causando licitação e do contrato dela decorrente. De
prejuízo ao erário ou aos próprios licitantes, os outro, (a) a busca da maior competição en-
mecanismos de controle judicial, como a ação tre os licitantes, tendo como consequência
popular, a ação civil pública e até mesmo o man- (b) a redução de possibilidade de conluio
dado de segurança, estarão sempre à disposição. entre eles na participação em licitações e
(c) a obtenção de propostas mais vantajo-
Sobre o tema, posicionaram-se Egon Bock-
mann Moreira e Fernando Vernalha Guimarães:
  MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES, Fernando
29

Vernalha. Licitação Pública. A Lei Geral de Licitações/


Uma crítica que poderia ser contraposta ao LGL e o Regime Diferenciado de Contratações/RDC. 1.
orçamento sigiloso está  na suposta ofensa ao ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 160.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 103


DOUTRINA

sas. Ressalte-se que nenhum dos objetivos tenderá a formular proposta com valor próximo
buscados com a ampla publicidade é atin- daquele ofertado.
gido pela regra do art. 6°, da Lei n° 12.462.
Não se pode afirmar que a não divulgação Com isso, a divulgação prévia do valor
do orçamento estimado com o edital possa estimado da licitação acaba elevando o valor da
automaticamente reduzir a participação de contratação e, por conseguinte, ao aumento dos
eventuais interessados. Tampouco é válido gastos públicos.
reputar que haveria a possibilidade de
tratamento desigual entre os licitantes ou Isto sem contar com um problema frequente
redução do controle da atividade da Ad- na fase interna do certame: a elaboração de pes-
ministração. Portanto, além de não haver a quisas de preço fora da realidade de mercado,
supressão das finalidades perseguidas com com valores superiores ao quanto usualmente
a publicidade prévia, regra consagrada pela praticado nas vendas para compradores na ini-
Lei n° 12.462 permite a busca de finalidades ciativa privada.
adicionais. Se aplicada adequadamente (e
sem distorções) tem o potencial de gerar Como é cediço, o valor estimado da licitação
benefícios adicionais, sem qualquer prejuízo é obtido com base em pesquisa de preços, cujos
para os valores protegidos pelas imposições orçamentos são fornecidos na maioria das vezes
derivadas do princípio da publicidade.30 pelos próprios fornecedores que participarão do
  certame.
Diante do exposto, defendemos a constitu-
cionalidade do quanto disposto no artigo 6° da Na prática, estes fornecedores, sabendo que
Lei n° 12.462/11, por não haver qualquer ofensa o orçamento apresentado irá subsidiar a forma-
ao princípio constitucional da publicidade. ção do preço estimado da licitação, fornecem
  orçamentos altos na fase da pesquisa de preços
5) Objetivos e riscos da nova regra de divul- fazendo com que o valor estimado da licitação
gação diferida do orçamento estimado também seja alto, desvirtuando todo o intuito da
  pesquisa – que seria a obtenção do preço médio
Quando um particular vai fazer uma com- praticado no mercado para balizar a estimativa
pra, ele já sabe até quanto pode pagar, mas não de custo da futura licitação.
sabe antecipadamente até quanto a loja ou for-
necedor do bem ou serviço poderá oferecer de Por conseguinte, a divulgação prévia do
desconto (até chegar ao preço final de venda). Ou orçamento estimado faz com que, na fase da
seja, o comprador tem liberdade para formular disputa, os licitantes apresentem propostas em
sua proposta, sem saber de antemão o preço final valor próximo ou igual ao estimado – que, na
pelo qual o vendedor poderá vender o produto. prática, já superam o valor real do objeto licitado.
Já o vendedor não sabe previamente até quanto
o comprador pode pagar. Não é de hoje que a doutrina, vislumbrando
o que acontece diuturnamente nas fases inter-
Diante desta realidade de mercado, por que nas das licitações, reconhece que, em regra, a
a Administração Pública já vai revelar antecipa-
damente o valor máximo que pode pagar? 
CARDOSO, André Guskow. O Regime Diferenciado de
30

Contratações Públicas: a questão da publicidade do orça-


É intuitivo que se a Administração de logo mento estimado. In: JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA,
apresenta o quanto está disposta a pagar pelo César A. Guimarães (Coord.). O Regime Diferenciado de
Contratações Públicas (RDC): comentários à Lei n° 12.462
produto ou serviço, o licitante interessado em
e ao Decreto n° 7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p.
vencer a licitação com a maior margem de lucro 87-88.

104 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

pesquisa de mercado (utilizada para obtenção Em suma, o valor estimado servirá como
do orçamento estimado do certame) não reflete limite máximo orçamentário de contratação,
a realidade do mercado. Neste sentido, confira- não mais como parâmetro para elaboração das
-se o apontamento de Marcos Juruena Villela: propostas como atualmente ocorre.
 
Atualmente, a pesquisa de mercado envolve Neste sentido, salienta Benedicto de Tolosa
uma consulta formal e prévia, a pelo menos Filho:
três empresas do ramo, adotando-se a média  
dos valores fornecidos ou, alternativamente, No entanto, não comungo com a tese espo-
se promove a consulta ao Sistema de Re- sada por alguns de que a não divulgação do
gistro de Preços (que não se confunde com preço de referência ou do valor máximo que
cadastro de preços, embora ambos reflitam, a Administração se dispõe a pagar fere os
apenas, a realidade de preços praticada pela princípios da moralidade e da transparência.
Administração, que raramente reflete a rea- Verifica-se no trato do dia a dia ministran-
lidade do mercado). Isso também não é nem do cursos, palestras, prestando serviços de
substitui a licitação e, por isso, de sua parte, assessoria e consultoria que a fixação do
os fornecedores também não se sentem preço máximo ou a divulgação do preço
confortáveis em informar previamente suas de referência tem servido para balizar os
melhores condições. Logo, tudo indica que valores propostos pelos licitantes cujas ofer-
a pesquisa preliminar da Administração não tas aproximam-se claramente dos valores
vai refletir a melhor realidade do mercado referenciais, além de servir para facilitar a
e, com isso, o procedimento (até aqui, ainda formação de cartéis. Portanto a revelação do
interno) começará mal.31 preço máximo ou a revelação antecipada do
  preço estimado faz com que as propostas dos
Na Lei 12.462/11, o legislador ordinário licitantes orbitem em torno do valor fixado
reconheceu que a prévia divulgação do orça- ou estimado, circunstância que pode preju-
mento influencia os licitantes a oferecer preços dicar a obtenção de melhores condições de
próximos ao valor estimado ou, até mesmo, contratação.32
idêntico a este, dificultando a livre competição  
e, por conseguinte, a obtenção da proposta mais Egon Bockmann Moreira e Fernando Ver-
vantajosa para a Administração. nalha Guimarães vão além ao afirmar:
 
É fato que esta alteração trazida pelo art. Note-se que a restrição a certas informações
6° da citada Lei não vai solucionar o problema relativas ao orçamento é ferramenta cada
da pesquisa de preços distante da realidade de vez mais utilizada internacionalmente como
mercado. obstáculo à corrupção e à superação de defi-
ciências na licitação. A limitação à sua am-
Entretanto, com o diferimento da publi- pla publicidade pretende evitar a prática do
cidade do orçamento estimado apenas para o
final do certame, minimiza-se muito o risco
de apresentação de propostas baseadas apenas
31
SOUTO, Marcos Juruena Villela. Licitações e controle
da eficiência: repensando o princípio do procedimento
no orçamento estimado; afinal, sem saber qual formal à luz do ‘placar eletrônico’. In: ARAGÃO, Alexan-
foi o valor estimado da licitação, os licitantes dre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo
(Coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas.
terão que apresentar preços mais condizentes Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 557.
com a realidade, dispondo até de suas melhores 32
TOLOSA FILHO, Benedicto de.Incorporação de disposi-
ções da Lei n° 12.462/11 (RDC) à Lei n° 8.666/93. Revista
condições de preço, se de fato quiserem ser Zênite – Informativo de Licitações e Contratos (ILC),
competitivos e vencer a licitação. Curitiba: Zênite, n. 216, p. 167-168, fev. 2012.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 105


DOUTRINA

alinhamento das ofertas com o valor orçado internacionais que indicam ‘que essa prática
pela Administração. Argumenta-se que sua desestimula o conluio e outras condutas
divulgação prévia aos participantes da lici- anticoncorrenciais, motivo pelo qual o sigilo
tação minimiza os ganhos que a pressão da da estimativa orçamentária é adotado em
disputa poderia gerar – atenuando os efeitos diversos países, como os Estados Unidos
benéficos da livre concorrência. A veicula- e nações integrantes da União Européia’.
ção precedente do orçamento pode inibir (...) Em outras palavras, há demonstrações
a prática de descontos mais significativos, objetivas no âmbito da ciência econômica
eis que os interessados têm incentivos para de que, em regra, a não divulgação do orça-
oferecer preços aproximados àquele que a mento estimado pela Administração para
Administração já estimou para a contra- determinadas contratações tem como efeito
tação. Afinal, o reconhecimento acerca de o incentivo a comportamentos competitivos
certo orçamento para a contratação presume pelos licitantes, conduzindo potencialmente
a disposição da Administração em praticá- à obtenção de propostas mais vantajosas,
-lo; mais que isso, instala a certeza quanto derivadas da ampliação da disputa. Trata-se
à existência de recursos necessários à sua de influenciar o comportamento dos licitan-
execução. Portanto, no caso da publicidade tes, por meio da supressão de determinada
prévia, não há qualquer estímulo a que os informação ao início da fase de disputa, de
interessados ofereçam valores significati- modo a obter propostas mais reduzidas.
vamente mais baixos que o orçamento (o Não há dúvidas de que tais objetivos são
que significa dizer que a Administração igualmente protegidos pela Constituição
está destinada a pagar mais caro e a não e constituem verdadeiro pressuposto da
se beneficiar dos ganhos de eficiência do licitação pública.34
contratado).33  
  Do exposto, resta claro que o principal pon-
André  Guskow Cardoso sintetizou o se- to positivo da alteração trazida no RDC quanto
guinte: ao sigilo do orçamento estimado é a possibilida-
  de de aumento da competitividade (ampliando
Conforme indicado durante as discussões os efeitos da livre concorrência); com isso, o ente
para a aprovação do texto da MP n° 527 (e público se beneficiará com a obtenção de preços
apreciação das emendas parlamentares) e mais vantajosos, propiciando economia ao erário
confirmado pelas informações prestadas e maior eficiência do certame.
pelo Presidente da República no âmbito
das ADI em trâmite no STF, objetivou-se Por fim, importante mencionar que além
com a referida regra ‘a proteção ao erário, dos pontos positivos da norma em comento,
assegurando que as propostas dos licitantes existem os riscos que envolvem a sua aplicação.
correspondam a um valor pelo qual estejam
dispostos a executar a obra, sem que os
preços convirjam artificialmente para pata-
mares próximos ao orçamento anunciado, 33
MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES, Fernando
Vernalha. Licitação Pública. A Lei Geral de Licitações/
quando poderiam ser mais baixos’. Segundo LGL e o Regime Diferenciado de Contratações/RDC. 1.
alegado nas informações, ‘quando os licitan- ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 157-158.
tes desconhecem o orçamento estimado, a
34
CARDOSO, André Guskow. O Regime Diferenciado de
Contratações Públicas: a questão da publicidade do orça-
tendência é que apresentem propostas mais mento estimado. In: JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA,
atrativas para a Administração, atendendo César A. Guimarães (Coord.). O Regime Diferenciado de
Contratações Públicas (RDC): comentários à Lei n° 12.462
ao princípio da eficiência e da economi- e ao Decreto n° 7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p.
cidade’. Há igualmente menção a estudos 84-85 e 87.

106 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

Marçal Justen Filho, ao comentar a Lei tório em razão de indícios de violação do


n° 8666/93, apontou: sigilo do orçamento, caberá a invalidação do
  certame e punição de todos os envolvidos
Depois e como já  se apontou anterior- com a referida prática. É que, nesse caso, os
mente, a manutenção do segredo acerca do benefícios perseguidos pela não divulgação
orçamento ou preço máximo produz um do orçamento são anulados pela aplicação
enorme risco de reintrodução de práticas indevida da regra da Lei n° 12.462.36
extremamente nocivas, adotadas antes da  
Lei n° 8666. É que se algum dos licitantes Em que pese o risco de vazamento da in-
obtiver (ainda que indevidamente) infor- formação acerca do valor estimado, o que pode
mações acerca do referido valor, poderá vir a frustrar o princípio da igualdade entre
manipular o certame, formulando proposta os licitantes, a existência deste não invalida a
próxima ao mínimo admissível. O sigilo norma que estabelece o sigilo, uma vez que é
acerca de informação relevante, tal como o inerente a este o risco de sua descoberta irregu-
orçamento ou preço máximo, é incentivo lar, devendo, portanto, a Administração adotar
a condutas reprováveis. Esse simples risco medidas preventivas rigorosas para ocultar o
bastaria para afastar qualquer justificativa orçamento estimado no decorrer do certame,
para adotar esta praxe.35 bem como adotar medidas repressivas não menos
  rigorosas para aqueles responsáveis pela burla à
Também tratando dos riscos derivados da determinação legal.
nova regra trazida pela Lei n° 12.462/11, André  
Guskow Cardoso assim se manifestou: 6) Considerações finais
   
Ressalte-se que não podem ser desconside- A Lei n°  12.462/2011 estabeleceu um regi-
rados os riscos associados ao diferimento me diferenciado de contratações públicas (RDC)
da publicidade a respeito do orçamento aplicável às licitações e contratos relacionados
estimado nas licitações submetidas ao à Copa das Confederações da Federação Inter-
regime da Lei n° 12.462. O principal ris- nacional de Futebol Associação – FIFA 2013, a
co reside na desnaturação do sigilo e no Copa do Mundo FIFA 2014 e os Jogos Olímpi-
fornecimento de informações a respeito do cos e Paraolímpicos de 2016, bem como para as
orçamento estimado pelo agente público a obras de infraestrutura e contratação de serviços
apenas um determinado licitante que, com para os aeroportos das capitais dos Estados da
isso, seria beneficiado com informação não Federação distantes até 350km das cidades sedes
disponibilizada aos demais. Trata-se de dos mundiais.
uma disfunção do regime do sigilo inicial
do orçamento estimado que não pode ser Posteriormente, a Lei n° 12.688, de 18 de ju-
desconsiderada. De qualquer modo, da lho de 2012, incluiu no âmbito de abrangência do
possibilidade de eventual quebra indevida RDC as obras do PAC – Programa de Aceleração
do sigilo do orçamento em favor de deter-
minado licitante não decorre a invalidade
35
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações
da disciplina da Lei n° 12.462. Ela é válida e contratos administrativos. 14. ed. São Paulo: Dialética,
e compatível com a Constituição, como de- 2010, p. 550.
monstrado acima. No entanto, recomenda-
36
CARDOSO, André Guskow. O Regime Diferenciado de
Contratações Públicas: a questão da publicidade do orça-
-se rigor absoluto na apuração de situações mento estimado. In: JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA,
que possam conduzir a este resultado de- César A. Guimarães (Coord.). O Regime Diferenciado de
Contratações Públicas (RDC): comentários à Lei n° 12.462
turpado e punição dos responsáveis. Mais e ao Decreto n° 7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p.
do que isso, pairando dúvidas concretas a 91.
respeito da lisura do procedimento licita-
Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 107
DOUTRINA

ao Crescimento, a Lei n° 12.722, de 3 de outubro ausência de previsão legislativa expressa.


de 2012, incluiu as obras e serviços de engenharia
no âmbito dos sistemas públicos de ensino e a Lei Ressalte-se, contudo, que em qualquer li-
n° 12.745, de 19 de dezembro de 2012, incluiu citação, inclusive no RDC, haverá a estipulação
as obras e serviços de engenharia no âmbito prévia do orçamento estimado, até porque isto é
do Sistema Único de Saúde – SUS, ampliando essencial para a definição do objeto, dos custos
consideravelmente o âmbito de abrangência da envolvidos com sua execução, da escolha da
referida lei do RDC, bem como o período de sua modalidade licitatória e, no curso do certame,
vigência (até então o novo regime seria restrito para a análise da documentação de qualificação
aos grandes eventos acima mencionados). econômico-financeira dos licitantes (como
capital social mínimo ou patrimônio líquido
A Lei n°  12.462/11 sofreu, e ainda sofre, mínimo) e da exequibilidade das propostas;
severas críticas. Uma delas está relacionada ao entretanto, não haverá a prévia publicidade
seu artigo 6°, que estipula o sigilo do orçamento deste orçamento – que, no caso do RDC, será
estimado até o encerramento do certame, exceto divulgado apenas no final (salvo as exceções
nas hipóteses em que for adotado como critério mencionadas acima).
de julgamento por maior desconto, no julgamen-
to por melhor técnica (deve ser divulgado o valor Diante da inovação trazida pelo artigo 6°
da remuneração ou do prêmio) e na hipótese em da Lei n° 12.462/11, surgiram questionamen-
que for adotado o critério de julgamento por tos a respeito da sua constitucionalidade, ante
maior oferta – devendo ser divulgado no edital a suposta ofensa ao princípio da publicidade,
o preço mínimo de arrematação. consagrado nos artigos 5°, XXXIII, e 37 da
Constituição Federal.
Ressalte-se, contudo, que a regra do sigilo
do orçamento estimado não vale para os órgãos As previsões constitucionais recomendam a
de controle externo e interno, que poderão publicidade de informações pela administração
permanentemente ter acesso às informações pública; afinal, em um Estado participativo, o
orçamentárias vedadas ao público. acesso às informações é essencial para propiciar
o controle da atividade estatal e dos agentes
A referida regra do sigilo vai de encontro públicos.
ao quanto estipulado na Lei 8666/93 (Lei Geral
de Licitações e Contratos da Administração Pú- Entretanto, entendemos que o sigilo do
blica), tendo em vista que nesta o orçamento da orçamento imposto pelo RDC não configura
obra ou serviço é um documento de precedência infração ao princípio da publicidade.
obrigatória ao desencadeamento da licitação,
devendo vir expressamente divulgado no ins- Um dos motivos para tal conclusão é a pos-
trumento convocatório. sibilidade de imposição de limites à exigência
de transparência na atuação estatal.
Já na Lei Federal n° 10.520/2002, que ins-
tituiu a modalidade de licitação denominada Com efeito, não restam dúvidas de que a
pregão no ordenamento jurídico brasileiro, não publicidade, como os demais princípios consti-
há exigência expressa da obrigatoriedade da di- tucionais, pode sofrer limitações estabelecidas
vulgação do orçamento estimado da licitação no na própria constituição, autorizados por esta
instrumento convocatório. Destarte, o entendi- – quando prevê a edição de lei restritiva –, ou
mento pacífico firmado pelo TCU foi no sentido podem decorrer de restrições não expressamen-
de não ser obrigatória a inserção no edital do te referidas no texto constitucional, desde que
pregão do valor estimado da contratação, ante a haja uma justificativa razoável para tanto, não

108 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

podendo ser admitido abuso na mitigação da sua observância seria postergada para o final
transparência da atuação estatal. da licitação. O que o artigo 6° da Lei do RDC
promove é um mero adiamento do momento em
Além da possibilidade de imposição de res- que os administrados e licitantes ficam sabendo
trições aos princípios constitucionais, é cediço do preço orçado pela administração naquela
que estes podem sofrer ponderações, analisando- licitação.
-se em cada caso qual o princípio ou interesse
em jogo que deve prevalecer. Nenhum princípio Com o diferimento da publicidade do orça-
é absoluto. mento estimado apenas para o final do certame,
minimiza-se muito o risco de apresentação de
No caso em estudo, importante analisar o propostas baseadas apenas no orçamento estima-
que deve prevalecer: o interesse público à infor- do, afinal, sem saber qual foi o valor estimado da
mação (publicidade) ou o interesse público de licitação, os licitantes terão que apresentar preços
economia dos gastos públicos, de maior eficiên- mais condizentes com a realidade, dispondo até
cia na contratação e de moralidade na condução de suas melhores condições de preço, se de fato
do certame. quiserem ser competitivos e vencer a licitação.

Havendo mais de um princípio constitu- Resta claro que o principal ponto positivo
cional em jogo, é plenamente possível que haja da alteração trazida no RDC quanto ao sigilo
uma ponderação destes para que não ocorra do orçamento estimado é a possibilidade de
frustração dos objetivos ou finalidades perse- aumento da competitividade (ampliando os
guidos pela Administração, salvaguardando efeitos da livre concorrência). Com isso, o ente
o interesse público. Assim, sopesando-se os público se beneficiará com a obtenção de preços
princípios já mencionados, entendemos que o mais vantajosos, propiciando economia ao erário
princípio constitucional da publicidade pode e maior eficiência do certame.
perfeitamente ceder diante de outros princípios
e valores também consagrados na Constituição Em que pese o risco de vazamento da in-
Federal, como os princípios da economicidade, formação acerca do valor estimado, o que pode
eficiência e moralidade, culminando com o vir a frustrar o princípio da igualdade entre
alcance do bem almejado pela Administração, os licitantes, a existência deste não invalida a
qual seja, a obtenção da proposta mais vantajosa norma que estabelece o sigilo, uma vez que é
para a administração, com efetiva economia dos inerente a este o risco de sua descoberta irregu-
gastos públicos. lar, devendo, portanto, a Administração adotar
medidas preventivas rigorosas para ocultar o
Além da possibilidade de imposição de cer- orçamento estimado no decorrer do certame,
tos limites à exigência de publicidade na atuação bem como adotar medidas repressivas não menos
estatal e, também, à possível ponderação de prin- rigorosas para aqueles responsáveis pela burla à
cípios constitucionais, não menos importante determinação legal.
salientar que, no RDC não há propriamente sub-  
tração da publicidade do orçamento estimado, REFERÊNCIAS
haja vista que este orçamento é disponibilizado  
permanentemente aos órgãos de controle interno BULOS. Uadi Lamêgo. Constituição Fede-
e externo e será amplamente divulgado ao final ral Anotada. São Paulo: Saraiva, 2000.
do certame.  
CARDOSO, André Guskow. O Regime
Destarte, não haveria infração alguma ao Diferenciado de Contratações Públicas: a ques-
princípio constitucional da publicidade, apenas tão da publicidade do orçamento estimado. In:

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 109


DOUTRINA

JUSTEN FILHO, Marçal; PEREIRA, César A. SOUTO, Marcos Juruena Villela. Licitações e
Guimarães (Coord.). O Regime Diferenciado de controle da eficiência: repensando o princípio do
Contratações Públicas (RDC): comentários à procedimento formal à luz do ‘placar eletrônico’.
Lei n° 12.462 e ao Decreto n° 7.581. Belo Hori- In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES
zonte: Fórum, 2012. NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito
  administrativo e seus novos paradigmas. Belo
FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Sistema Horizonte: Fórum, 2008.
de Registro de Preços e Pregão Presencial e  
Eletrônico. Belo Horizonte: Fórum, 2011. TOLOSA FILHO, Benedicto de. Incorporação
  de disposições da Lei n° 12.462/11 (RDC) à Lei
GUEDES, Demian. A presunção de veracidade e n° 8.666/93. Revista Zênite – Informativo de
o Estado Democrático de Direito: uma reavalia- Licitações e Contratos (ILC). Curitiba: Zênite,
ção que se impõe. In: ARAGÃO, Alexandre San- n. 216, p.167-170, fev. 2012.
tos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo
(Coord.). Direito administrativo e seus novos
paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
 
JUSTEN FILHO, Marçal. Pregão: comentários
à legislação do pregão comum e eletrônico. São
Paulo: Dialética, 2009.
 
________.  Comentários à lei de licitações e
contratos administrativos. 14. ed. São Paulo:
Dialética, 2010.
 
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Admi-
nistrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros
Editores, 2004.
 
MELLO, Celso Bandeira de. Curso de Direito
Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores,
2001.
 
MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES,
Fernando Vernalha. Licitação Pública. A Lei
Geral de Licitações/LGL e o Regime Dife-
renciado de Contratações/RDC. São Paulo:
Malheiros, 2012.
 
SARMENTO, Daniel. Supremacia do interesse
público? As colisões entre direitos fundamentais
e interesses da coletividade. In: ARAGÃO, Ale-
xandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano
de Azevedo (Coord.). Direito administrativo
e seus novos paradigmas. Belo Horizonte:
Fórum, 2008.
 
110 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA

NOÇÕES BÁSICAS SOBRE 


DIREITO FINANCEIRO DOUTRINA

Pedro Leonardo Summers Caymmi*

PALAVRAS-CHAVE:
DIREITO FINANCEIRO – ATIVIDADE FINANCEIRA DO
ESTADO – LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL – ORÇA-
MENTO PÚBLICO – ESTADO DE DIREITO

SUMÁRIO
01. Introdução. 02. Atividade financeira do Estado. 02.1. Neces-
sidades públicas. 02.2. Funções institucionais do Estado. 02.3.
Atividade Financeira do Estado. 03. Direito Financeiro. 04.
Competência no Direito Financeiro. 05. Veículos normativos
do Direito Financeiro. 5.1. Constituição Federal de 1988. 5.2.
Lei Complementar. 5.3. Resoluções do Senado Federal. 5.4. Atos
normativos infralegais da União: portarias federais. 5.5 Leis or-
dinárias de cada ente federativo. 06. Conclusão.

1. Introdução

O presente trabalho busca elucidar algumas premissas básicas


para a compreensão do conteúdo, papel e funcionamento do Di-
reito Financeiro, disciplina jurídica de grande importância para
a regulação do Estado de Direito, mas, não obstante, objeto de
escassa divulgação entre os estudiosos e profissionais jurídicos,
até mesmo aqueles cotidianamente envolvidos no trato da coisa
pública. * Professor de Direito Financeiro e Tribu-
tário da Faculdade de Direito da UFBA
* Mestre em Direito Público (UFBA)
Traça-se, inicialmente, um quadro do objeto de regulação * Procurador do Município do Salvador/
pelo Direito Financeiro, que é a atividade financeira do Estado; BA

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 111


DOUTRINA

analisam-se, então, as características do Direito Estas necessidades coletivas, no mundo


Financeiro, seu conteúdo e mecanismos de moderno, em função da complexidade das
fixação de disciplina normativa, concluindo organizações sociais, adquirem ainda uma
com observações sobre sua importância para o enorme dimensão. Tem-se desde o crescimento
controle da atividade estatal por meios jurídicos. da demanda pelas necessidades mais básicas
(fornecimento de energia, de água, segurança
2. Atividade financeira do Estado pública, vias de circulação, espaços públicos
de lazer e discussão), até o surgimento de
Necessidades públicas novas necessidades, ligadas ao surgimento
da sociedade de risco6 (proteção ambiental e
O homem, como lembra Edvaldo Brito1, assistência social, p. ex.), e ao incremento das
é um sujeito de necessidades. Sejam estas ne- pretensões dos indivíduos (criação de oportu-
cessidades ligadas à sua própria subsistência, nidades econômicas e de trabalho, atividade
como comida, água e descanso, ou motivadas de fomento).
por condicionamentos sociais, como educação,
cultura e consumo de bens materiais2, o fato O ente responsável pela satisfação destas
é que o ser humano sempre precisa e deseja, necessidades, que, como será  visto adiante, em
e, por consequência, necessita suprir estes regra é a organização estatal, deve realizar desde
anseios. atuações que demandam prestações negativas
(garantir o livre exercício da liberdade e da
Estas necessidades do homem, por sua propriedade, não interferindo nestes direitos
vez, podem ser classificadas em individuais, e assegurando que outros igualmente não in-
comuns ou coletivas, em função do mecanismo
de sua satisfação. As individuais são aquelas
que dizem respeito a cada um singularmente,
podendo ser satisfeitas por iniciativa isolada e, 1
BRITO, Edvaldo.  Reflexos jurídicos da intervenção do
muitas vezes, até mesmo existindo conflito entre Estado no domínio econômico. São Paulo: Saraiva, 1982,
o benefício individual e o que seria melhor para p. 3.
2
O homem deseja e necessita, ao contrário dos demais
a coletividade3. animais, porque não possui um condicionamento biológico
pleno. Esta “abertura biológica” do homem, que o torna
“incompleto” e sujeito de desejos e anseios, deve ser
As necessidades comuns são aquelas que, complementada por um “fechamento sociológico”, pela atu-
em essência, não deixam de se referir a cada ação das instituições sociais e, mais marcadamente, pela
ação estatal (Ver MACHADO, João Baptista. Introdução
indivíduo isoladamente, mas a coletividade, ao Direito e ao discurso legitimador. 14. reimp. Coimbra:
visando otimizar esforços e recursos, opta por Almedina, 2004, pp. 07-09).
as satisfazer em regime de cooperação, existindo
3
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Finan-
ceiro. São Paulo: RT, 2006, p. 58.
“necessidades individuais iguais de pessoas que 4
BRITO, Edvaldo.  Reflexos jurídicos da intervenção do
sentem os mesmos desejos que se juntam soman- Estado no domínio econômico. São Paulo: Saraiva, 1982,
p. 5.
do seus recursos e seus esforços4”. 5 
Note-se que essa compulsoriedade da satisfação pelo
modo coletivo pode decorrer tanto de circunstâncias de
Já as necessidades coletivas ou públicas são fato quanto da imposição do próprio agrupamento social.
Alberto Deodato lembra que “o Estado vai organizando
aquelas que envolvem o interesse da sociedade o serviço público particular com o caráter de imposição
como um todo, e, por isso, não podem ser al- geral”, dando como exemplo o serviço de esgoto, já que “o
indivíduo é obrigado a ter esgotos, porque tal serviço tanto
cançadas por iniciativa individual ou por agru- interessa ao indivíduo como à coletividade, por ser uma
pamentos determinados. A sua satisfação deve medida de higiene pública” (DEODATO, Alberto. Manual
de Ciência das Finanças. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1949,
se dar compulsoriamente em caráter coletivo5, pp. 17).
sendo um dos fundamentos da própria organi- 6
BECK, Ulrich.  Sociedade de risco: rumo a uma outra
zação institucional da sociedade. modernidade. São Paulo: 34, 2010.

112 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

terfiram7), até aquelas que buscam satisfazer Funções institucionais do Estado


uma expectativa de ação estatal que propicie
aos administrados o acesso a direitos (direito ao O ente responsável pela satisfação destas
trabalho, saúde, educação, moradia, lazer), por necessidades coletivas, por sua vez, é, em re-
meio das denominadas políticas públicas8. gra, o Estado. A organização institucional que
representa o todo coletivo e age para satisfação
Todas essas atribuições, obviamente, com- das suas necessidades, fruto da vida social, é o
preendem uma série de ações, que, por sua vez, Estado11, que, hoje, se baseia em dois primados:
implicam uma série de custos e gastos (contrata-
ção de pessoal, aquisição de bens duráveis e pro- 7
Estas necessidades garantidas prioritariamente por
dutos de consumo) a serem realizados pelo ente “prestações negativas”, entretanto, na verdade envolvem
responsável. As necessidades públicas, assim, igualmente atividades positivas na sua efetivação, sendo
também geradoras de altos custos. A garantia da liberdade,
são  finalidades  que necessitam de meios, mate- por exemplo, envolve não só a não interferência estatal na
riais, pessoais e financeiros, para sua realização. liberdade dos indivíduos, mas, do mesmo modo, a cons-
trução de presídios, o policiamento ostensivo e a polícia
investigativa. É por isso que Gustavo Amaral afirma que
É importante deixar claro, de logo, que a de- “os direitos fundamentais investem o indivíduo em um sta-
finição de quais sejam estas necessidades públicas tus  jurídico no qual lhe é facultado formular pretensões
perante o Estado, pretensões essas que podem dirigir-se
é fruto de uma decisão política contingencial, a uma abstenção estatal (pretensão negativa) ou a uma
ou seja, variável no tempo e no espaço. Trata-se ação do Estado (pretensão positiva)” (AMARAL, Gusta-
vo. Direito, escassez e escolha. Rio de Janeiro: Renovar,
de definição historicamente relativa, alertando 2001, pp. 101).
José Souto Maior Borges que “variáveis motivos 8
Políticas públicas, na definição de Fábio Konder Compara-
to, são essencialmente programas de ação estatal. Afirma
políticos e que não podem ser determinados a este autor que “a política aparece, antes de tudo, como
priori comandam a atuação do Estado no sentido uma atividade, isto é, um conjunto organizado de normas e
de promover a satisfação de certas necessidades co- atos tendentes à realização de um objetivo determinado”,
ou seja, “unificados por sua finalidade”, não obstante “os
letivas”, e por isso o ente de satisfação exerce “uma atos, decisões e normas que a compõem, tomados isola-
série constante de opções das necessidades sociais damente, são de natureza heterogênea e submetem-se
a um regime jurídico que lhes é próprio”. (COMPARATO,
a serem satisfeitas pela rede de serviços públicos”9. Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade
de políticas públicas. In: MELLO, Celso Antônio Bandeira
A definição das necessidades públicas de (org.). Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba, v.2.
São Paulo: Malheiros, 1997, pp. 353).
perseguidas por determinada comunidade, 9
BORGES, José Souto Maior. Introdução ao Direito Finan-
portanto, dependem de uma opção política, pois, ceiro. São Paulo: Max Limonad, 1998, pp.13-14.
10
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Finan-
como afirma Régis Fernandes de Oliveira, “não ceiro. São Paulo: RT, 2006, pp. 57-58.
existem necessidades indefinidas, etéreas e que 11
Estando fora do objetivo do trabalho, deixamos de apre-
sentar grande teorização sobre o conceito de Estado,
ficam ao sabor dos literatos”. É cada organização partindo, de qualquer modo, da visão geral preconizada
social, lembra este autor, que vai fixar, “no texto por Norberto Bobbio. Bobbio registra que as visões sobre
constitucional e nas leis posteriores, quais as o papel do Estado permitem sua divisão em concepções
de Estado “da parte do povo”, ou “da parte do príncipe”,
necessidades que vai encampar como públicas10”. sendo opostas as justificações do uso absoluto e exclusivo
da força. Bobbio ainda diferencia que o Estado, na doutrina
tradicional, é um mal necessário, em função da natureza do
Analisando a organização social brasileira homem; já na doutrina marxista, é um mal não necessário,
atual, por exemplo, grande parte destas opções ou ao menos se tornará cada vez menos necessário, com
políticas pode ser aferida diretamente do Texto a mudança nas condições históricas, que também alteraria
a natureza do homem.
Constitucional, como prescrito nos artigos quin- Neste ponto, superando eventuais distinções ideológicas
to a oitavo (direitos fundamentais e sociais), 21 entre modelos de Estados e funções ou papel do Estado
em cada organização social, aponta que os juristas, em
(atribuições da União), 23 (atribuições comuns geral, defendem uma concepção  neutra  do Estado, ou
a todos os entes federados), 30 (atribuições dos ao menos o mais neutra possível, que identifique o seu
núcleo mínimo, seja qual for sua justificação. É a teo-
municípios) e 170 a 181 (ordenação da atividade ria formal ou formalista, “tão ao gosto dos juristas, para
econômica), entre outros. os quais se pode falar de Estado, no sentido próprio da

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 113


DOUTRINA

a busca do bem-estar social e a obtenção do desen- economia de mercado14. Tudo o que ele realiza
volvimento econômico12. gera custos, e esses custos precisam ser supri-
dos, tais como a remuneração dos servidores
Este papel do Estado é, ao mesmo tempo, públicos e terceiros prestadores de serviços, a
o seu fator de legitimação e de justificação. A compra, manutenção ou aluguel de imóveis, a
organização estatal foi teoricamente criada para aquisição de suprimentos e material de consu-
a satisfação das necessidades públicas (motor de mo, a constituição de entes da Administração
constituição), ou, ao menos, ainda que isto não Indireta ou a participação econômica do Estado
seja historicamente verdade, e se trate de mero em outras entidades15.
mecanismo ideológico de dominação, a continui-
dade desta sua função é poderoso mecanismo de O Estado, portanto, não pode ser encarado
legitimação da atividade pública. como uma entidade lúdica, e, a partir do mo-
mento em que lhe são conferidas atribuições,
O Estado, como ente de satisfação de ne- devem lhe ser igualmente conferidos os recursos
cessidades, atua tanto de modo direto (garantia necessários à realização destas atribuições, pois
de segurança pública, exercício de jurisdição “o ideário contido em norma constitucional
na solução de conflitos), como pela promoção somente pode se tornar eficaz diante da dispo-
de políticas públicas, ou seja, pela adoção de nibilidade de meios aptos a gerir os interesses16”.
medidas transformadoras da realidade social que Desta maneira, quem estabelece os fins deve
propiciem ou facilitem aos indivíduos o alcance necessariamente assegurar os meios necessários
de determinadas situações de fato (acesso ao à sua consecução, ou seja, “da mesma forma que
trabalho e emprego, moradia, desenvolvimento
econômico, ordenação urbana).
palavra, quando em um determinado agrupamento social
A complexa sociedade moderna, como já ex- formou-se um poder que detém o monopólio da força,
posto, acarreta um crescimento das necessidades mais precisamente da força legítima: aqueles que detêm
esse monopólio consideram ilegítimo o uso da força por
públicas, e, por consequência, um aumento parte de qualquer outro grupo”. Essa concepção de Es-
das atribuições do Estado. Régis Fernandes de tado, portanto, o identifica sempre que, de fato, ocorra o
MONOPÓLIO DA FORÇA por um ÓRGÃO CENTRAL DE
Oliveira realiza interessante estudo sobre a di- PODER, “independentemente dos objetivos aos quais e
versidade e dimensão da atividade do Estado13, refere” (BOBBIO, Norberto. O filósofo e a política: antolo-
gia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003, pp. 77-87).
que engloba (a) a intervenção no domínio econô- 12
BRITO, Edvaldo.  Reflexos jurídicos da intervenção do
mico, (b) a atividade de fomento, (c) a criação e Estado no domínio econômico. São Paulo: Saraiva, 1982,
manutenção dos entes da administração indireta pp. 03-10.
13
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Finan-
para consecução de finalidades específicas, (d) ceiro. São Paulo: RT, 2006, pp. 38-56.
o exercício do poder de polícia administrativa, 14
Alerta Sainz de Bujanda que “es lógico que la Adminis-
tración de un Estado – como la de cualquier otra entidad
(e) a emissão, guarda e registro de documentos pública o privada – tenga que utilizar medios personales,
relevantes, (f) a sua atividade instrumental ou materiales e jurídicos para lograr el cumplimiento de sus
“custo burocrático”, e (g) a prestação de serviços fines” (BUJANDA, Fernando Sainz de. Hacienda Publica,
Derecho Financiero y Derecho Tributario. In Hacienda y
públicos. Derecho, v.01. Madrid: IEP, 1975, pp. 10-11).
15
Celso Ribeiro Bastos, após lembrar que os fins últimos do
Estado “compreendem a segurança pública, a realização
Todas estas atividades do Estado sem dú- de Direito, a prestação do ensino, da saúde etc.”, ressalta
vida são geradoras de despesas e custos. Cada que “esses fins não se cumprem sem que tenham um
uma delas envolve o “consumo” de recursos suporte financeiro”, e, por isso, é “indispensável que haja
recursos econômicos para enfrentar o custo da implemen-
humanos e bens materiais, e tudo isso tem tação desses objetivos” (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de
um valor economicamente apreciável. O ente Direito Financeiro e Tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2001, pp. 09).
estatal, especialmente no Estado Capitalista de 16
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Finan-
Direito, não está mais completamente fora da ceiro. São Paulo: RT, 2006, pp. 23.

114 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

o Estado tem finalidades a alcançar, deve ter os lares em favor do Estado tem caráter excepcional,
meios necessários para satisfazer os objetivos da só existindo em hipóteses específicas, como a
comunidade17”. ocupação administrativa prevista no inciso XXV
do artigo quinto da CF-88 e atividades como
A obtenção destes “meios necessários”, composição de mesas eleitorais e júri26. O Estado
sejam eles de natureza material, humana, orga- Moderno, ensina Kiyoshi Harada, “substitui,
nizacional ou institucional, pode ser reduzida, ao acertadamente, esses processos pelo regime da
final, à idéia de obtenção de recursos pecuniários despesa pública, que consiste no pagamento
ou “dinheiro”18, recursos públicos que serão uti- em dinheiro dos bens e serviços necessários à
lizados diretamente na realização da atividade realização do bem comum27”, concentrando-se a
pública e na consecução das políticas públicas, obtenção de recursos pelo Estado na arrecadação
ou que financiarão os meios necessários para de dinheiro28.
tanto, como contratação e pagamento de pessoal
e aquisição de bens, equipamentos e material.
Torna-se necessário para a organização estatal,
17
Idem, pp. 24.
neste ponto, fixar qual o mecanismo de obtenção 18
Lembra José Souto Maior Borges que “aspecto caracte-
deste dinheiro, como ocorrerá a alocação dos re- rístico da finança do Estado Moderno é o seu conteúdo
cursos arrecadados em suas múltiplas atividades pecuniário” (BORGES, José Souto Maior. Introdução ao
Direito Financeiro. São Paulo: Max Limonad, 1998, pp.
e qual a disciplina para o seu dispêndio, o que 24).
se denomina, globalmente, atividade financeira 19
HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 16. ed.
São Paulo: Atlas, 2004, 2007, pp. 35-37.
do Estado. 20
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Finan-
ceiro. São Paulo: RT, 2006, pp. 60-67.
21
BUJANDA, Fernando Sainz de. Organización politica y
Atividade Financeira do Estado derecho financiero. In Hacienda y Derecho, v.01. Madrid:
IEP, 1975, pp. 119-466.
22
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Financeiro e
O objetivo da atividade financeira do Es- Tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 10.
tado é determinar como se dará  a obtenção de 23
BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à Ciência das Finan-
recursos para fazer frente aos custos da atuação ças. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 125.
24
DEODATO, Alberto. Manual de Ciência das Finanças. 3.
do Estado, bem como o regramento da realização ed. São Paulo: Saraiva, 1949, pp. 40-41.
destes.
25
FERRAZ, Roberto. Da hipótese ao pressuposto de inci-
dência – em busca do tributo justo. In SCHOUERI, Luiz
Eduardo (coord.). Direito tributário – Homenagem a Alcides
Historicamente, em tempos antigos, a Jorge Costa, v.I. São Paulo: Quartier Latin, 2003, pp. 179-
186.
obtenção de meios materiais pelo Estado se 26
BORGES, José Souto Maior. Introdução ao Direito Finan-
dava em regra in natura, fosse por requisição ceiro. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 24.
27
HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 16. ed.
direta aos súditos, pelo saque e reivindicação São Paulo: Atlas, 2004, 2007, p. 36.
dos espólios de guerra, ou pelo simples confis- 28
Ensina Celso Ribeiro Bastos:
Na verdade, a moeda possui características que lhe são
co baseado no poder de império estatal, como
muito peculiares. Em primeiro lugar é um bem que não
lembram Kiyoshi Harada19, Régis de Oliveira20, serve em si mesmo para nada; só se presta a servir de
Sainz de Bujanda21, Celso Ribeiro Bastos 22, instrumento de trocas. Com o dinheiro pode-se adquirir
todo e qualquer bem, este sim revestido de utilidade. O
Aliomar Baleeiro23, Alberto Deodato24 e Rober- dinheiro é, em consequência, o meio de troca por exce-
to Ferraz25. Os gastos públicos, por sua vez, não lência. Daí porque a atividade financeira do Estado tem
por objeto a obtenção de recursos monetários. (...) Em
possuíam maior disciplina, sendo efetuados de consequência, o Estado necessita como fonte primordia-
acordo com as conveniências e interesses dos líssima dos recursos econômicos para a sua atuação de
arrecadar valores na forma de dinheiro, com o qual possa,
governantes. também aqui, de forma praticamente generalizada, saldar
os seus compromissos. É em dinheiro que os Estados
quitam seus débitos. (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de
Modernamente, entretanto, a requisição Direito Financeiro e Tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
direta de coisas e da força de trabalho de particu- 2001, p. 10)

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 115


DOUTRINA

Além disso, o modelo organizacional do Es-


tado de Direito29, que pressupõe a submissão do
29
O Estado de Direito é um modelo de organização estatal
instrumento da delimitação precisa das esferas pública e
ente estatal aos seus próprios comandos norma- privada, pela existência de comandos normativos (jurídi-
tivos, impõe o regime da legalidade tanto na ob- cos) prescrevendo padrões e possibilidades de compor-
tamento tanto dos particulares submetidos ao império do
tenção quanto no gasto de recursos pelo Estado. Estado quanto do próprio órgão de poder. Tem-se como
O dinheiro passa a ser requisitado da população exemplo de definições neste mesmo sentido: CARRAZZA,
mediante um procedimento formal prévio, para Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário.
14. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, pp. 272-273; CANO-
que esta ou seus representantes “autorizem” sua TILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
cobrança30 e, ao mesmo tempo, tenham mecanis- Constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2002, pp. 243-254;
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tribu-
mos para identificar e “fiscalizar” o seu gasto e tário. São Paulo: Saraiva, 1963, pp. 186-195; ATALIBA,
sua alocação. O Estado de Direito, deste modo, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: RT, 1985,
pp. 93-96.
traz a ideia de responsabilidade na gestão da O Estado, nesta concepção, age segundo um quadro de
coisa pública, inclusive (e principalmente) do possibilidades pré-fixado pelas normas jurídicas, atuando
dinheiro público. segundo o “marco normativo” previamente traçado, que
funciona como um modelo para suas ações futuras, que
define suas possibilidades  e finalidades de ação. Além
A Atividade Financeira do Estado pode ser disso, o Estado de Direito, como garantia de manutenção
da delimitação entre as esferas pública e privada e da
assim definida como a atividade da Adminis- submissão da atividade do Estado a este “marco nor-
tração Pública para obtenção, criação, gestão e mativo”, prevê mecanismos de fiscalização e controle da
dispêndio de recursos públicos. Aliomar Baleei- própria atividade estatal, em regra mediante a partição dos
poderes públicos de forma harmônica e independente, e a
ro, de modo semelhante, afirma que a atividade atribuição a um dos poderes do exercício da fiscalização
financeira estatal consiste em “obter, gerar, criar, dos demais.
O Estado de Direito, portanto, visa “conformar as estruturas
gerir e despender o dinheiro indispensável às do poder político e a organização da sociedade segundo
necessidades, cuja satisfação o Estado assumiu a medida do direito” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito
Constitucional e Teoria da Constituição. 06. ed. Coimbra:
ou cometeu àqueloutras pessoas de direito pú- Almedina, 2002, p. 243), como afirma Canotilho, o que
blico31”. Diversos autores trazem ainda outras resulta na idéia, expressa nas palavras de Lourival Vila-
definições que, não obstante apresentem di- nova, de que “só há Estado de Direito ali onde são postos
direitos individuais e garantias e os órgãos de poder se
vergências pontuais, convergem quanto ao seu movem dentro de competências prefixadas normativa-
núcleo essencial32. mente” (VILANOVA, Lourival. Fundamentos do Estado
de Direito. Escritos jurídicos e filosóficos, v.1. São Paulo:
Axis Mundi/ IBET, 2004, pp.421). Estas competências
Podemos, ao analisar o conceito proposto, pré-fixadas, naturalmente, também se aplicam à disciplina
assim o segmentar para uma análise mais deta- jurídica da atividade financeira do Estado, alterando sua
conformação prévia e fixando as bases da responsabili-
lhada: dade na gestão fiscal.
30
Sainz de Bujanda afirma que “para el ciudadano del
siglo XIX lo esencial era, en la materia que nos ocupa,
• Atividade Administrativa – Conduta asegurarse de que la Administración solo podria amputar
estatal submetida ao regime jurídico- su patrimonio o sus rentas privadas en la medida y con
los requisitos establecidos en el presupuesto – aprobado
-administrativo, que, como sintetizado por por los representantes del pueblo”, e também, do outro
Celso Antônio Bandeira de Mello, possui lado, que “esa misma Administración habria de destinar
dois postulados fundamentais, que são: a los fondos recaudados en la forma prevista también de
modo taxativo en el presupuesto” (BUJANDA, Fernando
supremacia do interesse público sobre o Sainz de. Organización politica y derecho financiero.  In
interesse privado e a indisponibilidade Hacienda y Derecho, v.01. Madrid: IEP, 1975, p. 323).
31
BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à Ciência das Finan-
do interesse público33. Isto significa di- ças. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 4.
zer que, como será mais detalhadamente 32
Régis Fernandes de Oliveira define a atividade financeira
exposto a seguir, a atividade financeira do do Estado como “a arrecadação de receitas, sua gestão e a
realização do gasto, a fim de atender às necessidades pú-
Estado, como atividade estatal típica, se blicas” (OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito
sujeita a todos os princípios de regência da Financeiro. São Paulo: RT, 2006, p. 59). Sainz de Bujanda,
por sua vez, a conceitua como “la acción administrativa del
administração pública (legalidade, mora- Estado, dirigida a la obtención e inversión de los medios
lidade, eficiência, impessoalidade, publi- económicos destinados al sostenimiento de los servicios

116 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

cidade, razoabilidade, proporcionalidade, Ressalte-se que não se quer com isso dizer
motivação), bem como às formalidades a que a atividade financeira do Estado se resume
esta inerentes. a este perfil jurídico. Sainz de Bujanda35 e Souto
• Obtenção de Recursos Públicos – Aspecto Maior Borges36, com clareza, apontam que possui
da atividade financeira que busca conse- o fenômeno financeiro um aspecto político, um
guir recursos para o Estado mediante a aspecto econômico, um aspecto técnico e um
realização de operações de crédito ou de aspecto sociológico. Trata-se, portanto, apenas de
captação de poupança. Trata-se do Crédito uma opção de enfoque na análise do fenômeno
Público. financeiro, adequada aos objetivos do seu estudo
por técnicos ligados ao Direito; sendo o objetivo
• Criação de recursos públicos – Arrecada-
a determinação das consequências jurídicas da
ção de recursos para o Estado por meca-
atividade financeira, o foco de estudo deve ser
nismos tributários e não tributários. É a
obrigatoriamente o seu aspecto jurídico, com-
Receita Pública.
posto pela conexão da ação administrativa às
• Gestão de recursos públicos – É o Orça- normas jurídicas que a regulam.
mento Público, o mecanismo de alocação
e controle dos recursos obtidos dentre as O Direito Financeiro, nestes termos, é o
múltiplas destinações, objetivos e custos estudo da atividade financeira do Estado por
da ação estatal. uma perspectiva jurídica. É composto, portanto,
• Dispêndio de recursos públicos – É o pela disciplina jurídica da atividade financeira
efetivo gasto dos recursos no curso da do Estado. Ricardo Lobo Torres o define como
atuação estatal. Denomina-se Despesa “o conjunto de normas e princípios que regu-
Pública, e hoje, com a necessidade de lam a atividade financeira”, sendo sua função
responsabilidade na gestão fiscal e rígido “disciplinar a constituição e a gestão da Fazenda
equilíbrio entre receita e despesa, existe Pública, estabelecendo as regras e procedimentos
uma enorme preocupação com sua limi- para a obtenção da receita pública e a realização
tação e controle. dos gastos necessários à consecução dos objetivos
• Recursos Públicos – Meios para a reali- do Estado37”.
zação das finalidades institucionais do
Estado, para a consecução dos fins que públicos” (BUJANDA, Fernando Sainz de. Hacienda Publi-
lhe são constitucionalmente atribuídos. ca, Derecho Financiero y Derecho Tributario. In Hacienda y
Derecho, v.01. Madrid: IEP, 1975, p. 28). José Souto Maior
Borges afirma que a atividade financeira “se desenvolve,
3. Direito Financeiro basicamente, no campo da receita e despesa, ou seja,
de gestão do patrimônio estatal” (BORGES, José Souto
Maior. Introdução ao Direito Financeiro. São Paulo: Max
A atividade financeira do Estado, no Estado Limonad, 1998, p. 20), enquanto Kiyoshi Harada a define
de Direito, como visto, se submete ao regime como “a atuação estatal voltada para obter, gerir e aplicar
jurídico-administrativo, e, especialmente, ao os recursos financeiros necessários à consecução das
finalidades do Estado que, em última análise, se resumem
princípio da legalidade. Isto significa dizer que na realização do bem comum” (HARADA, Kiyoshi. Direito
toda a atividade de obtenção de receita ou crédi- Financeiro e Tributário. 13. ed. 16. ed. São Paulo: Atlas,
2004, 2007, p. 36).
to, geração de despesa ou elaboração e execução 33
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito
de orçamento deve obedecer ao regramento ma- Administrativo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.
66-83.
terial e formal previamente estabelecido por nor- 34
BORGES, José Souto Maior. Introdução ao Direito Finan-
mas jurídicas editadas pela própria organização ceiro. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 35.
estatal. No Estado de Direito, portanto, “o poder
35
BUJANDA, Fernando Sainz de. Hacienda Publica, Derecho
Financiero y Derecho Tributario. In Hacienda y Derecho,
financeiro está sujeito ao ordenamento jurídico v.01. Madrid: IEP, 1975, p. 13-23.
e seu exercício não é arbitrário, mas limita-se ao 36
BORGES, José Souto Maior. Introdução ao Direito Finan-
ceiro. São Paulo: Max Limonad, 1998, pp. 82-90.
âmbito do direito positivo34”, tendo o fenômeno 37
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e
financeiro nítido perfil jurídico. Tributário. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, p. 12.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 117


DOUTRINA

Sainz de Bujanda, do mesmo modo, afirma cas sobre determinada matéria (artigo 22 da CF-
se tratar da “disciplina jurídica que regula la 88, p. ex.) ou de cunho material, estabelecendo a
gestión de los medios económicos que el Estado titularidade de determinado ente para a prática
utiliza para el cumplimiento de sus fines38”; de determinado ato (artigo 21 da CF-88, p. ex.).
Souto Maior Borges, por sua vez, o concebe
como a “parte do Direito Público que tem por As competências constitucionais, ainda,
objeto a ordenação das atividades financeiras39”; classificadas de acordo com o grau de participa-
e Alberto Deodato, citando Myrbach, expõe o ção de uma ou de mais entidades na fixação da
conceito de “ramo do Direito Público que estatui disciplina normativa ou no exercício do poder
a regulamentação preceitual das finanças das material, podem ser (a) exclusivas (artigo 21
coletividades públicas40”. da CF-88), (b) privativas (artigo 22 da CF-88),
admitindo delegação, (c) comuns (artigo 23 da
Analisando as definições adotadas por CF-88), (d) concorrentes (artigo 24 da CF-88),
estudiosos em obras mais recentes, se constata ou (e) suplementares (parágrafos primeiro a
que, mantendo o mesmo padrão, Carlos Al- quarto do artigo 24 e inciso segundo do artigo
berto de Moraes Ramos Filho define o Direito 30 da CF-88)44.
Financeiro como “formado pelo conjunto har-
mônico das proposições jurídico-normativas A competência para tratar de Direito Finan-
que disciplinam as relações jurídicas decorren- ceiro é, claramente, de natureza legislativa, ou
tes do desempenho da atividade financeira do seja, confere aos entes federativos o poder, dentro
Estado41”, enquanto Harrison Leite conceitua dos limites formais e materiais fixados na própria
como “ramo do direito público que estuda as regra constitucional, de editar comando jurídico
finanças do Estado em sua estreita relação com de disciplina da atividade financeira do Estado.
sua atividade financeira”, sendo “o conjunto
de normas e princípios que estuda a atividade Esta competência legislativa, pelo regime
financeira do Estado, compreendida esta como da CF-88, é concorrente entre União, Estados e
receita, despesa, orçamento e crédito públicos”42. Distrito Federal (inciso I do artigo 24 da CF-88),
cabendo ainda aos municípios suplementar, no
Seja qual for a definição adotada, o impor- que couber, esta disciplina (inciso II do artigo
tante é se ter em mente que o Direito Financeiro 30 da CF-88).
se concentra na análise jurídica da atividade fi-
nanceira do Estado, não obstante, neste estudo, Isto significa que, em matéria de Direito
se valha de elementos, conceitos e conclusões Financeiro, a União irá estabelecer normas
derivados das análises política, econômica, téc- gerais (parágrafo primeiro do artigo 24 da CF-
nica, e sociológica, em uma constante simbiose. 88), que deverão ainda ser veiculadas por lei

04. Competência no Direito Financeiro


38
BUJANDA, Fernando Sainz de. Hacienda Publica, De-
recho Financiero y Derecho Tributario. In Hacienda y
As competências constitucionalmente Derecho, v.01. Madrid: IEP, 1975, p. 33.
conferidas aos entes federativos pela Constitui- 39
BORGES, José Souto Maior. Introdução ao Direito Finan-
ceiro. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 91.
ção Federal de 1988 envolvem a atribuição de 40
DEODATO, Alberto. Manual de Ciência das Finanças. 03.
determinado poder a cada ente, representando ed. São Paulo: Saraiva, 1949, p. 25.
uma “faculdade juridicamente atribuída a uma
41
RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes. Curso de
Direito Financeiro. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 66.
entidade ou a um órgão ou agente do Poder 42
LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. 02. Ed.
Público para emitir decisões43”. Estas compe- Salvador: Juspodivm, 2013, p. 20.
43
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional
tências constitucionais podem atribuir poder de Positivo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 479.
cunho normativo, para a edição de normas jurídi- 44
Idem, p. 481.

118 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

complementar (artigo 163 da CF-88)45. Fixadas as gerais e abstratas, gerais e concretas, individuais


normas gerais pela União, com caráter nacional, e abstratas ou individuais e concretas47”, ou seja,
ou seja, obrigando a todos, poderão os demais os continentes que possuem por conteúdo as nor-
entes federativos, dentro das suas respectivas mas jurídicas. O Direito Financeiro, como parte
esferas de interesse predominante, exercitar a sua do Direito Público e da disciplina da atividade
competência suplementar (parágrafo segundo básica da Administração Pública, começa a ser
do artigo 24 e inciso II do artigo 30 da CF-88). disciplinado no Texto Constitucional, passando
pelas leis complementares de normas gerais,
Deve-se ainda lembrar que, tratando-se de resoluções do Senado Federal, leis ordinárias (as
competência concorrente, conforme os pará- leis orçamentárias, p. ex.) e chegando aos veícu-
grafos terceiro e quarto do artigo 24 da CF-88, los normativos infralegais de regulamentação48,
enquanto não existir lei federal de normas gerais como regulamentos, instruções normativas e
sobre determinado ponto, poderão os demais portarias.
entes exercer competência legislativa plena sobre
este, obviamente com eficácia limitada ao seu Traça-se, a seguir, o perfil fundamental
próprio âmbito material e espacial. Sobrevindo, dos principais veículos normativos do Direito
no entanto, lei federal de normas gerais, fica- Financeiro.
rá suspensa a eficácia da lei estadual no que esta
lhe for contrária. 5.1. Constituição Federal de 1988

Neste último ponto, é importante a adver- O Texto Constitucional, como veículo nor-
tência feita por José Afonso da Silva, que alerta mativo que traz a estruturação fundamental dos
que “o constituinte foi técnico”, já que “a lei entes estatais, prescreve tanto as finalidades a
federal superveniente não revoga a lei estadual estes atribuídas (artigos 21, 24 e 30, p. ex.), como
nem a derroga no aspecto contraditório, esta a previsão de “estruturas e meios para que estas
apenas perde sua aplicabilidade, porque fica com entidades prestem tais atividades”49.
a eficácia suspensa”; como consequência, “sendo
revogada a lei federal pura e simplesmente, a lei Diversos dispositivos constitucionais se
estadual recobra sua eficácia e passa outra vez a relacionam, com maior ou menor intensidade, à
incidir46”. disciplina do Direito Financeiro, mas podemos
identificar três blocos que tratam mais direta-
Conclui-se, por fim, que todos os entes fe- mente do tema:
derados (União, Estados, Municípios e Distrito
Federal) possuem competência para legislar, em
maior ou menor grau, sobre Direito Financeiro. 45
As normas gerais de Direito Financeiro, assim, devem ser
Não poderia, aliás, ser diferente, já que, como veiculadas por lei complementar, como é o caso da Lei
Complementar 101/2000 (lei de responsabilidade fiscal)
visto, a atividade financeira do Estado é essen- e da Lei 4.320/64 (lei geral de orçamento), recepcionada
cial à consecução das finalidades de qualquer pelo atual regime constitucional com status de lei comple-
mentar.
destes entes, e, portanto, cada um deles necessita, 46
SILVA, José Afonso da.  Curso de Direito Constitucional
dentro de suas peculiaridades, de uma disciplina Positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 504.
jurídica mais ou menos específica.
47
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário.
17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 47-48)
48
Paulo de Barros Carvalho os denomina veículos secun-
5. Veículos normativos do Direito Financeiro dários, que possuem como característica uniforme o fato
de não apresentarem “por si só, a força vinculante que é
capaz de alterar as estruturas do mundo jurídico-positivo”
Os veículos normativos, como ensina Paulo (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário.
de Barros Carvalho, são “normas jurídicas que 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 57).
49
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Finan-
introduzam no ordenamento outras normas, ceiro. São Paulo: RT, 2006, p. 88.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 119


DOUTRINA

a. Disciplina das finanças públicas (artigos simples maioria relativa dos presentes à sessão


163 a 169) – Traz as regras fundamentais de votação.
do Direito Financeiro, como o procedi-
mento de elaboração e conteúdo das leis Outro traço característico da lei comple-
orçamentárias. mentar é que, na maior parte dos casos, esta, não
obstante processada no Congresso Nacional e
b. Disciplina do Sistema Tributário Nacio-
editada pela União, possui caráter nacional. Ter
nal (artigos 145 a 162) – Trata da princi-
caráter nacional significa que determinadas
pal receita pública no moderno Estado
leis complementares, “expedidas pelo Con-
Capitalista de Direito, o tributo, objeto
gresso Nacional, valem para todo o território
de estudo do Direito Tributário. Prevê
nacional, alcançando todas as pessoas que nele
ainda as regras de repartição de receitas
estejam e que são de cumprimento obrigatório
tributárias entre os entes federativos, dis-
pelos Estados, Municípios, Distrito Federal e
ciplinando as chamadas “transferências
Territórios52”.
constitucionais tributárias”.
c. Disciplina constitucional do controle Este caráter nacional se revela de modo
interno e externo do Poder Público (ar- mais claro quando a lei complementar possui a
tigos 70 a 75) – Fixa o regramento básico função de veicular normas gerais sobre determi-
do funcionamento dos mecanismos de nada disciplina jurídica, ou seja, fixar o padrão
controle público, que, em grande parte, uniforme dos principais institutos da matéria,
exercem o controle das Finanças Públi- garantindo “uma mesma disciplina normativa,
cas, por intermédio do Poder Legislativo em termos conceituais, evitando o caos e a de-
e dos Tribunais de Contas. sarmonia53”. É exatamente este o caso do Direito
Financeiro, tanto por se tratar de matéria sujeita
5.2. Lei Complementar à competência legislativa concorrente (inciso
I e parágrafo primeiro do artigo 23 da CF-88),
A lei complementar é diploma legislativo
com função precípua de expansão do Texto Cons-
titucional, tendo por “objetivo (conteúdo) a com-
plementação da Constituição, quer ajuntando-lhe 50
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tri-
butário Brasileiro. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005,
normatividade, quer operacionalizando-lhe os p. 102.
comandos50”. Materialmente, a lei complementar 51
Alexandre de Moraes faz um compêndio das posições
favoráveis e contrárias à superioridade hierárquica da
deve obrigatoriamente ser o veículo normativo lei complementar sobre a lei ordinária ainda quando não
utilizado para o desdobramento de determinadas existente reserva constitucional de determinada matéria
matérias, por imposição constitucional (artigos (MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpre-
tada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002,
146, 161 e 163 da CF-88, p. ex.), sendo contro- pp.1170-1176). É importante lembrar, neste ponto, que o
versa a sua superioridade hierárquica sobre a lei posicionamento do Supremo Tribunal Federal, expresso
no julgamento da ADC 01/DF, de 01.02.1993, é que “só
ordinária na disciplina de outras questões além se exige lei complementar para as matérias para cuja dis-
daquelas que lhe são expressamente reservadas ciplina a Constituição expressamente faz tal exigência, e,
se porventura a matéria, disciplinada por lei cujo processo
pelo Texto Constitucional51.
legislativo observado tenha sido o da lei complementar,
não seja daquelas para que a Carta Magna exige essa
Formalmente, a lei complementar se carac- modalidade legislativa, os dispositivos que tratam dela se
têm como dispositivos de lei ordinária”.
teriza pela exigência de um quorum privilegiado 52
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Finan-
de votação para sua aprovação, que é da maio- ceiro. São Paulo: RT, 2006, pp. 82-83.
53
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tri-
ria absoluta dos parlamentares (artigo 69 da CF- butário Brasileiro. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005,
88), ao contrário da lei ordinária, aprovada por p. 122.

120 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

quanto por específica disposição constitucional Um exemplo é a lei complementar 91/97,


(artigo 16354 e parágrafo nono do artigo 16555 da que fixa, em seu artigo primeiro, os crité-
CF-88). rios para participação dos municípios no
fundo instituído pela alínea b do inciso I
As leis de normas gerais de Direito Finan- do artigo 159 da CF-8859, elegendo como
ceiro, portanto, devem ser leis complementares. parâmetro o número de habitantes do
As principais em matéria financeira são: município.

d. Lei federal 4.320, de 17 de março de É importante apontar e diferenciar neste


1964. É a “Lei geral de Orçamento momento que, observando-se o artigo 164 da CF-
(LGO)”, que traz normas gerais de
Direito Financeiro para “elaboração e
controle dos orçamentos e balanços”. 54
Art. 163. Lei complementar disporá sobre:
Traça a disciplina fundamental dos orça- I - finanças públicas;
mentos, receitas, despesas e da execução II - dívida pública externa e interna, incluída a das autar-
quias, fundações e demais entidades controladas pelo
orçamentária, trazendo ainda a definição Poder Público;
do exercício financeiro, período-base III - concessão de garantias pelas entidades públicas;
IV - emissão e resgate de títulos da dívida pública;
do orçamento público. Formalmente, é V - fiscalização financeira da administração pública direta
lei ordinária, mas sofreu recepção com e indireta;
VI - operações de câmbio realizadas por órgãos e enti-
alteração de status material pelos Textos dades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Constitucionais subsequentes à sua edi- Municípios;
VII - compatibilização das funções das instituições oficiais
ção, sendo, no regime constitucional de de crédito da União, resguardadas as características e
1988, materialmente lei complementar. condições operacionais plenas das voltadas ao desen-
volvimento regional.
e. Lei complementar 101, de 4 de maio 55
§ 9º - Cabe à lei complementar:
I - dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos,
de 2000, também chamada de “Lei de a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei
Responsabilidade Fiscal (LRF)”. Fixa de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual;
regras fundamentais para a “responsa- II - estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial
da administração direta e indireta bem como condições
bilidade na gestão fiscal”, como limites para a instituição e funcionamento de fundos.
de despesas e a imposição de uma série
56
FIGUEIREDO, Carlos Maurício; NÓBREGA, Marcos. Lei
de Responsabilidade Fiscal. 4. ed. Rio de Janeiro: Elsevier,
de requisitos para renúncias de receitas 2005, p. 1.
e realização de operações de crédito. 57
PERIN, Jair José. A lei de responsabilidade fiscal. Revista
Tributária e de Finanças Públicas, n. 59. São Paulo: RT,
Diploma legal verdadeiramente revolu- 2004, p. 134.
cionário, que busca “impor novo padrão 58
Art. 161. Cabe à lei complementar:
I - definir valor adicionado para fins do disposto no art.
de conduta fiscal aos gestores56”, a LRF 158, parágrafo único, I;
“configura um sistema de planejamento, II - estabelecer normas sobre a entrega dos recursos de
de execução orçamentária e de disciplina que trata o art. 159, especialmente sobre os critérios de
rateio dos fundos previstos em seu inciso I, objetivando
fiscal57”, visando a estabilidade fiscal promover o equilíbrio sócio-econômico entre Estados e
pelo equilíbrio receita-despesa e pela entre Municípios;
III - dispor sobre o acompanhamento, pelos beneficiários,
contenção da dívida pública. do cálculo das quotas e da liberação das participações
previstas nos arts. 157, 158 e 159.
f. Leis de Repartição de Receitas Tributá- 59
Art. 159. A União entregará:
rias. São as leis complementares que fi- I - do produto da arrecadação dos impostos sobre renda
e proventos de qualquer natureza e sobre produtos indus-
xam a disciplina geral das transferências trializados, quarenta e sete por cento na seguinte forma:
constitucionais tributárias entre os entes (...)
b) vinte e dois inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo
federativos (artigos 157 a 159 da CF-88), de Participação dos Municípios;
conforme prevê o artigo 161 da CF-8858. (...)

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 121


DOUTRINA

8860, percebe-se que a definição constitucional 52, fixa como competência do Senado Federal, a
de “normas gerais de finanças públicas” (seção ser exercitada por meio de resolução:
I do capítulo II do Título VI) engloba, ao lado
da disciplina jurídica da atividade financeira do a. Autorização aos entes federativos para
Estado, também questões de natureza monetária realização de operação financeira ex-
e ligadas ao mercado financeiro. terna.
b. Fixação do montante global da dívida
Metodologicamente, não obstante a discipli- consolidada 65 dos entes federativos,
na constitucional assim disponha, é preciso dis- a partir de proposta do Presidente da
tinguir o Direito Financeiro em sentido estrito, República.
que se refere à atividade financeira do Estado, c. Fixação dos limites globais e condições
de Direito do Mercado Financeiro ou Direito para realização de operações de crédito,
Monetário. Lembra Souto Maior Borges que “é externas ou internas, não só pelos entes
errôneo, entretanto, atribuir-se a denominação federativos, mas pela Administração
Direito Financeiro a matérias vinculadas com Pública em geral (autarquias e demais
as finanças privadas, especialmente os bancos, entidades controladas pelo Poder Pú-
sociedades anônimas, consórcios internacio- blico Federal).
nais etc.61”. Nosso objeto de estudo, portanto, d. Fixação de limites e condições para que
“relaciona-se exclusivamente com as finanças a União preste garantia, em operações de
públicas62”, ainda que, em sentido amplo, a crédito externas ou internas, realizadas
política monetária esteja vinculada às Finanças por terceiros.
Públicas, ao menos na esfera federal. e. Fixação de limites globais e condições
da dívida mobiliária 66 dos Estados,
5.3. Resoluções do Senado Federal

As resoluções são instrumento normativo


60
Art. 164. A competência da União para emitir moeda será
exercida exclusivamente pelo banco central.
utilizado para veicular as matérias de compe- § 1º - É vedado ao banco central conceder, direta ou indi-
tência privativa do Senado Federal, nos termos retamente, empréstimos ao Tesouro Nacional e a qualquer
órgão ou entidade que não seja instituição financeira.
do artigo 52 da CF-88, ou seja, são “normas que § 2º - O banco central poderá comprar e vender títulos de
trazem em seu conteúdo matéria de competência emissão do Tesouro Nacional, com o objetivo de regular
do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputa- a oferta de moeda ou a taxa de juros.
§ 3º - As disponibilidades de caixa da União serão de-
dos ou do Senado” como resume Manoel Jorge positadas no banco central; as dos Estados, do Distrito
e Silva Neto63. Federal, dos Municípios e dos órgãos ou entidades do
Poder Público e das empresas por ele controladas, em
instituições financeiras oficiais, ressalvados os casos
O procedimento de sua elaboração está previstos em lei.
61
BORGES, José Souto Maior. Introdução ao Direito Finan-
prescrito pelo próprio Regimento Interno da ceiro. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 107.
Casa Legislativa; após discussão na forma do 62
Idem, p. 107.
regimento, a espécie normativa é aprovada por
63
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitu-
cional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 318-319.
maioria simples e promulgada pelo Presidente 64
Isto não significa que o Presidente da República não possa
do Senado Federal, não havendo participação, participar do processo legislativo das resoluções, já que,
em muitos casos é dele a iniciativa do projeto, como no
neste momento, do Presidente da República, caso daquelas que fixam os limites de endividamento do
ou seja, não se trata de ato sujeito a sanção ou Poder Público, como será estudado em capítulo próprio.
veto64.
65
O conceito de dívida consolidada está no inciso I do artigo
29 da Lei de Responsabilidade Fiscal, e engloba toda
dívida contraída a longo prazo pelo ente público, além de
As resoluções do Senado Federal são muito algumas de curto prazo, desde que orçamentárias.
66
O conceito de dívida mobiliária está no inciso II do artigo
importantes na disciplina da dívida pública. O 29 da Lei de Responsabilidade Fiscal, e compreende a
texto constitucional, nos incisos V a IX do artigo dívida pública derivada da emissão de títulos.

122 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

Distrito Federal e Municípios (a dívida prescrições possuem eficácia impositiva sobre


mobiliária da União tem o seu limite todas as ordens jurídicas parciais da Federação,
fixado por lei federal, a partir de proposta afetando, além da União, Estados, Municípios
enviada pelo Presidente da República ao e o Distrito Federal.
Congresso Nacional – inciso II do artigo
30 da LRF). Isso ocorre em função de previsões da lei
complementar 101/2000 (LRF), lei complemen-
A justificativa para tal atribuição ao Sena- tar de normas gerais em Direito Financeiro, que,
do Federal, exercendo competência normativa conforme o inciso I do artigo 163 e parágrafo
própria, é o papel desta Casa Legislativa como nono do artigo 165 da CF-88, tem aplicabilidade
representativa das unidades federadas junto ao sobre todos os entes da Federação, tendo caráter
governo central. Sendo a dívida pública maté- nacional e de expansão/complementação do
ria atinente a cada um dos entes federativos, Texto Constitucional, como visto.
afetando diretamente sua autonomia, entendeu
por bem a CF-88 deixar grande parte da sua A LRF prescreve, em seu artigo 67, a criação
disciplina a cargo do Senado Federal, para lhes de um CONSELHO DE GESTÃO FISCAL, de
assegurar maior representatividade no trato da formação colegiada, que buscaria a “adoção de
questão. normas de consolidação das contas públicas”, ou
seja, fixaria os padrões da contabilidade pública,
inclusive, entre eles, a classificação orçamentária
Atualmente, as principais resoluções vi-
de receitas e despesas.
gentes sobre o tema são a RSF 40/01 (limites e
condições para a dívida consolidada de Estados
Ocorre que esse órgão colegiado, até a pre-
e Municípios) e a RSF 43/01 (limites e condições
sente data, não foi criado, e não existe previsão
para operações de crédito).
para sua implantação e funcionamento. Resol-
vendo o hiato regulatório ocasionado por essa
5.4 Atos normativos infralegais da União:
omissão, a própria LRF, no parágrafo segundo
portarias federais.
do seu artigo 50, para permitir a uniformização
e consolidação das contas públicas dos diversos
Existem ainda, com importância no Direito níveis federativos, prescreve que o “órgão central
Financeiro, portarias interministeriais baixadas, de contabilidade da União”, até a instituição do
isolada ou conjuntamente, pela Secretaria do Conselho de Gestão Fiscal, dará as diretrizes
Tesouro Nacional (STN), órgão do Ministério ou normas gerais para consolidação das contas
da Fazenda, e pela Secretaria de Orçamento e públicas.
Finanças (SOF), órgão do Ministério do Planeja-
mento. A mais importante delas, no momento, é É verdade que é questionável a possibilida-
a portaria STN/SOF 163/2001, que, entre outras de da LRF, como lei complementar de normas
coisas, traz a base da classificação orçamentária gerais, basicamente delegar a disciplina de parte
de receitas e despesas públicas. do seu conteúdo específico, constitucionalmente
determinado, para atos normativos federais,
O papel destas portarias no atual sistema representando risco ao equilíbrio federativo que
jurídico financeiro não deixa de causar alguma um ato interno federal imponha obrigações aos
perplexidade à primeira vista, já que, não obs- demais entes federativos; uma coisa é a própria
tante se trate de atos normativos originalmente lei complementar fazer isso, com base na CF-88,
infralegais e federais, possuem efeitos extrema- outra, distinta, é um ato do Poder Executivo da
mente amplos, sendo obrigatória sua obediência União, ainda que baseado na lei complementar,
por  todos os níveis federativos, ou seja, suas exercer tal papel.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 123


DOUTRINA

O Supremo Tribunal Federal, no entanto, tação dos programas de governo e efetivação do


como noticia Deusvaldo Carvalho, quando “o projeto constitucional de Estado, lembrando
Governo de Minas Gerais impetrou uma Ação Alberto Deodato que o orçamento é o “quadro
Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) obje- orgânico da economia pública”, é “o espelho da
tivando arguir a inconstitucionalidade dessas vida do Estado e, pelas cifras, se conhecem os
normas”, teve essa alegação “indeferida liminar- detalhes de seu progresso, da sua cultura e da
mente pelo STF, por entender que essa norma sua civilização”, podendo ser “uma alavanca
não afronta a autonomia dos entes federados”67. da prosperidade ou uma arma para apressar a
O Ministro Gilmar Mendes, do mesmo modo, decadência do Estado”69.
ao comentar esse dispositivo, afirma que “não
há qualquer inconstitucionalidade neste dis- Espera-se, diante deste quadro, que o pre-
positivo”, já que “a lei resolveu um problema sente estudo forneça os esclarecimentos básicos
procedimental”, pois “é necessário tempo para para o início de um estudo mais aprofundado
que o referido Conselho de Gestão Fiscal seja do tema.
implantado”68.  
 
Isso parece apontar, portanto, que, na REFERÊNCIAS
prática, não obstante as restrições levantadas,
as portarias federais exercem hoje papel de lei AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha.
complementar quanto à organização orçamen- Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
tária e contábil das receitas e despesas públicas,
especialmente a já citada portaria interministe- ATALIBA, Geraldo. República e Constituição.
rial STN/SOF 163/2001. São Paulo: RT, 1985.

5.5 Leis ordinárias de cada ente federativo BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à Ciência
das Finanças. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense,
São as leis específicas sobre o tema, como é o 2003.
caso das próprias leis orçamentárias anuais, leis
de diretrizes orçamentárias e planos plurianuais, BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Finan-
editadas por cada um dos entes federativos no ceiro e Tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
exercício regular de suas atividades.
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma
6. Conclusão outra modernidade. São Paulo: 34, 2010

O Direito Financeiro, deste modo, ao fixar BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito
a disciplina jurídica da atividade financeira tributário. São Paulo: Saraiva, 1963.
do Estado, regula uma das áreas de atuação da
administração pública mais sensível à prática BOBBIO, Norberto. O filósofo e a política: antolo-
de desvios de comportamento e atos lesivos aos gia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003.
interesses e patrimônio público, e, por isso, deve
ter sua importância reconhecida e ser objeto de
estudos que esclareçam seu conteúdo e alcance. 67
CARVALHO, Deusvaldo. LRF: doutrina e jurisprudência.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 172.
68
MENDES, Gilmar Ferreira. In: MARTINS, Ives Gandra da
As normas de Direito Financeiro, ainda, Silva & NASCIMENTO, Carlos Valder do (org.). Comen-
além desta função essencial de controle da ges- tários à Lei de Responsabilidade Fiscal. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2009, p. 358.
tão pública, possuem, no aspecto orçamentário, 69
DEODATO, Alberto. Manual de Ciência das Finanças. 3.
enorme importância na estruturação e implan- ed. São Paulo: Saraiva, 1949, p. 214.

124 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

BORGES, José Souto Maior. Introdução ao Direito HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributá-


Financeiro. São Paulo: Max Limonad, 1998. rio. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2004, 2007.

BRITO, Edvaldo. Reflexos jurídicos da interven- LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro.


ção do Estado no domínio econômico. São Paulo: 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2013.
Saraiva, 1982.
MACHADO, João Baptista. Introdução ao Direito
BUJANDA, Fernando Sainz de. Hacienda y e ao discurso legitimador. 14. reimp. Coimbra:
Derecho, v.01. Madrid: IEP, 1975. Almedina, 2004.

MARTINS, Ives Gandra da Silva & NASCI-


CANOTILHO, José  Joaquim Gomes. Direito
MENTO, Carlos Valder do (org.). Comentários à
Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed.
Lei de Responsabilidade Fiscal. 4. ed. São Paulo:
Coimbra: Almedina, 2002.
Saraiva, 2009.

CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de


constitucional tributário. 14. ed. São Paulo: Ma- Direito Administrativo. 21. ed. São Paulo: Ma-
lheiros, 2000. lheiros, 2006.

CARVALHO, Deusvaldo. LRF: doutrina e juris- MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil


prudência. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. interpretada e legislação constitucional. São Paulo:
Atlas, 2002.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito
Tributário. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito
Financeiro. São Paulo: RT, 2006.
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de
Direito Tributário Brasileiro. 8. ed. Rio de Janeiro: PERIN, Jair José. A lei de responsabilidade fiscal.
Forense, 2005. Revista Tributária e de Finanças Públicas, n. 59.
São Paulo: RT, 2004.
COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o
juízo de constitucionalidade de políticas públi- RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Mora-
cas.  In: MELLO, Celso Antônio Bandeira de es. Curso de Direito Financeiro. São Paulo: Saraiva,
(org.). Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba, 2012.
v.2. São Paulo: Malheiros, 1997, pp.343-359.
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito
Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
DEODATO, Alberto. Manual de Ciência das
2006.
Finanças. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1949.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Consti-
FERRAZ, Roberto. Da hipótese ao pressu- tucional Positivo. 26. ed. São Paulo: Malheiros,
posto de incidência – em busca do tributo jus- 2006.
to. In SCHOUERI, Luiz Eduardo (coord.). Di-
reito tributário – Homenagem a Alcides Jorge Costa, TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Finan-
v.I. São Paulo: Quartier Latin, 2003, pp.179-186. ceiro e Tributário. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
1998.
FIGUEIREDO, Carlos Maurício; NÓBREGA,
Marcos. Lei de Responsabilidade Fiscal. 4. ed. Rio VILANOVA, Lourival. Escritos jurídicos e filosó-
de Janeiro: Elsevier, 2005. ficos, v.1. São Paulo: Axis Mundi/ IBET, 2004.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 125


DOUTRINA

ACIDENTES DE TRABALHO,
DOUTRINA
AÇÕES REGRESSIVAS DO SEGURO
SOCIAL E O SERVIÇO PRESTADO
AOS ENTES PÚBLICOS: E O
MUNICÍPIO PAGA A CONTA?
 

Tercio Roberto Peixoto Souza*

1. A definição de um problema
 
Infelizmente a ocorrência de acidentes de trabalho não é tão
incomum, como desejado. Tais eventos, longe de serem uma ex-
clusividade da iniciativa privada, igualmente ocorrem quando se
está a prestar serviços a entidades públicas, como os Municípios.
 
Quando se está diante da ocorrência de acidentes de trabalho
com pessoas que compõem diretamente o quadro da administração
municipal há diversas discussões, as quais sucumbem, muitas
vezes, à confusão entre o credor e o devedor da indenização decor-
rente do evento lesivo. De fato, se foi o ente público o responsável,
ainda que indireto, pela ocorrência da lesão e o mesmo responsável
pelo adimplemento das parcelas indenizatórias, tal quadro gera
uma imprópria mas verdadeira acomodação de responsabilidades.
 
Todavia, a questão torna-se um tanto mais complexa quando
se está diante do aparentemente inafastável fenômeno da terceiri-
zação; quando, valendo-se da prestação de serviços de particulares,
o ente público beneficia-se do labor promovido por aqueles que
* Procurador do Município do Salvador
Advogado estão sujeitos a regimes jurídicos diferentes.
Sócio de Msampaio & Souza Advoga-  
dos
Pós Graduado em Direito pela UNI- Então indaga-se, a ocorrência de acidentes de trabalho
FACS – Universidade Salvador quando se está a prestar serviços a entes públicos impõe, em des-
Mestre em Direito pela UFBA – Univer-
sidade Federal da Bahia
favor deste, alguma obrigação de ressarcir? É o que se pretende
Professor da UNIFACS identificar.
 
126 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA

2. Conceito de Acidente de Trabalho – noção elementos capazes de reduzir a sua capacidade de


comum e noção legal prover, a si ou aos seus, dos meios de sustento.
   
Veja-se que os acidentes de trabalho são um É um grande garantidor, digamos, do pro-
grande mal que aflige o nosso país. Pesqui- vimento de meios para a sobrevivência daqueles
sas1 estimam que se perca, apenas no Brasil, o que produzem as riquezas do Brasil. Ao trabalha-
equivalente a meio milhão de dias de trabalho, dor, garante o seu sustento, independentemente
em razão de acidentes de trabalho. da capacidade econômica do empregador, seja ele
  pequeno, médio ou grande.
Além desses custos, diluídos por toda eco-  
nomia nacional, há que se considerar, ainda, os Isso porque os acidentes às vezes acontecem,
riscos do próprio empregador de ser acionado e não se poderia deixar o empregado de um pe-
para responder perante o Poder Judiciário, em queno negócio vulnerável à situação financeira
diversos âmbitos, em razão dos aludidos aciden- do seu empregador, às vezes, sem força econômi-
tes de trabalho. ca suficiente sequer para desenvolver a contento
  a sua atividade.
Não foi sem propósito que passamos a  
reconhecer os riscos da atividade produtiva. A Por uma questão de método, não há como
bem da verdade, atualmente vivemos naquilo falar em ação acidentária e/ou ações regressivas
o que filosoficamente se tem denominado de sem que antes se trate, ainda que sumariamente,
‘sociedade do risco’. sobre a posição em que se encontra o direito
  à saúde dentro do Direito brasileiro e sobre a
Qualquer conduta humana gera riscos, noção de acidente de trabalho.
alguns tolerados, outros não. Alguns com reper-  
cussão, outros não. Daí porque faz-se necessária Como todos sabem, o direito à saúde dos
a criação de uma série de mecanismos para trabalhadores, historicamente, foi dos primeiros
resguardar alguma paz social diante de tantos móveis da luta entre trabalhadores e emprega-
riscos, que podem ser controlados, mas podem dores. Durante a revolução industrial não havia
igualmente fugir ao controle a qualquer tempo. uma maior preocupação do empresariado com
  a saúde e segurança, principalmente dos que se
Exemplo típico é a instituição dos seguros relacionavam às fábricas.
obrigatórios dos proprietários de automóveis.  
Reconhecendo o risco que o trânsito dessas má- Isso, aliado à falta de higiene, jornadas
quinas gera para a sociedade, todo proprietário excessivas, exploração de crianças e mulheres
é obrigado a arcar com os custos de um seguro geravam acidentes, que, se não destruíam a
capaz de assegurar uma indenização mínima força de trabalho (matando trabalhadores ou
para as vítimas dos infortúnios relacionados deixando-os inválidos), reduziam a sua capaci-
com aqueles. dade de produzir, sensivelmente.
   
Mas não foi só. A universalização da previ- Por isso se faz referência ao surgimento da
dência social surgiu justamente nesse contexto. Medicina do Trabalho em 1830, quando um pro-
  prietário de industria têxtil, Robert Dernham,
A finalidade daquele instituto, o INSS buscou orientação médica para evitar acidentes
– Instituto Nacional do Seguro Social, é justa- com os seus empregados.
mente o de gerir os benefícios previdenciários  
e garantir alguma segurança, prevenir a miséria 1
Santana, Vilma Sousa et. al. In. Rev. Saúde Pública 2006;
daquele que foi vítima do infortúnio ou de outros 40(6):1004-12.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 127


DOUTRINA

Existem diversas normas, de caráter inter- trabalhadores marítimos no mar e no porto; a


nacional, e ainda do Direito brasileiro, passando de nº 164 trata da saúde e assistência médica aos
pela Constituição Federal, as Leis, os Regula- marítimos; a de nº 167, sobre segurança e saúde
mentos e as Instruções que tratam do tema, fato na construção; e a de nº 176, sobre segurança e
que gera uma ampla gama de atribuições e res- saúde nas minas.
ponsabilidades, apenas em relação ao emprega-  
dor, dado que existe uma outra gama de direitos Na legislação brasileira, a Constituição
e obrigações relacionadas ao vínculo obrigatório Federal apresenta diversas previsões que visam
entre o trabalhador e INSS – Instituto Nacional proteger a saúde e segurança do trabalhador.
do Seguro Social. Desde o epíteto geral da dignidade humana,
  erigido a fundamento da República (art. 1º,
Do ponto de vista internacional, por exem- III), passando pelo direito social à saúde (art.
plo, pode-se fazer menção a diversas conven- 6º) ou mesmo à redução dos riscos inerentes ao
ções da OIT – Organização Internacional do trabalho (previsto no art. 7º, XXII), são várias as
Trabalho, que regulamentam de algum modo previsões que demonstram a inequívoca opção
o exercício da atividade laboral em situações da sociedade brasileira pelo valor à saúde dos
de risco para a saúde e segurança ocupacionais, que trabalham.
dentre as quais:  
  Além da CF/88, há ainda diversas previsões
A Convenção nº 12, que trata da indenização no direito infraconstitucional, como por exem-
por acidente de trabalho na agricultura; a de plo as previsões da Lei nº 8213/91, ou da própria
nº 19, que trata da igualdade de tratamento CLT (arts. 154/201) e outras tantas como a Lei
dos trabalhadores estrangeiros e nacionais nº 6.514/77, a Lei nº 9976/2000 (produção de
em indenização por acidente de trabalho; a cloro), a Lei nº 8876/1994 (mineração), todas que
de nº 42, que cuida da indenização das do- cuidam de regulamentar os riscos e as normas
enças profissionais; a de nº 119, que dispõe de saúde, higiene e segurança.
sobre a proteção do trabalhador das máqui-  
nas; a de nº 134, que trata da prevenção de Mas isso não ficou a cargo apenas da en-
acidentes do trabalho dos marítimos; a de tidade estatal. Por previsão constitucional,
nº 136, de versa sobre a proteção contra os facultam-se aos próprios interessados, no caso
riscos de intoxicação provocados pelo ben- os trabalhadores, por meio das convenções e
zeno; a de nº 139, que busca fixar diretrizes acordos coletivos, ou mesmo através das CIPA
de prevenção e controle de riscos profissio- – Comissão Interna de Prevenção de Acidentes,
nais causados por substâncias ou agentes a implementação e mesmo o incremento das
cancerígenos; a de nº 48, que versa sobre condições de segurança e saúde ocupacionais.
a proteção dos trabalhadores contra riscos Todas essas normas orientam o exercício da
profissionais devidos à contaminação do ar, atividade produtiva.
ao ruído e às vibrações no local de trabalho.  
  Isso porque, como se sabe, o fenômeno de
Mas existem outras tantas. A Convenção um acidente de trabalho pode gerar consequên-
nº 152 dispõe sobre a segurança e higiene nos cias variadas, em diversos âmbitos: administra-
trabalhos portuários; a de nº 155, versa sobre tivo, previdenciário, penal, civil.
segurança e saúde dos trabalhadores e o meio  
ambiente de trabalho; a de nº 161 cuida dos Apenas por exemplo, no que concerne
serviços de saúde do trabalho; a de nº 162 trata à responsabilidade administrativa, a ocorrência
da utilização do asbesto/amianto com segurança; de acidentes de trabalho pode ensejar a demons-
a de nº 163 indica critérios de bem-estar dos tração do descumprimento das normas de saúde

128 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

e segurança do trabalho, que resulta em multas, quarta casa decimal, a ser aplicado à respec-
embargos ou interdições, as mais flagrantes atu- tiva alíquota.
ações das SRTs – Superintendências Regionais § 2º Para fins da redução ou majoração a que
do Trabalho. se refere o caput, proceder-se-á à discrimi-
  nação do desempenho da empresa, dentro
Nesse sentido, o Tribunal Regional do Tra- da respectiva atividade econômica, a partir
balho da 12ª Região2: da criação de um índice composto pelos
  índices de gravidade, de frequência e de
AGRAVO DE PETIÇÃO. EXECUÇÃO custo que pondera os respectivos percentis
FISCAL. MULTA IMPOSTA AO EM- com pesos de cinquenta por cento, de trinta
PREGADOR PELA DELEGACIA RE- cinco por cento e de quinze por cento, res-
GIONAL DO TRABALHO. pectivamente.
São devidas as multas impostas pela Delega- § 4º Os índices de freqüência, gravidade e
cia Regional do Trabalho quando compro- custo serão calculados segundo metodologia
vada a prática reiterada pelo empregador de aprovada pelo Conselho Nacional de Previ-
infrações às leis trabalhistas, relatadas mi- dência Social, levando-se em conta:
nuciosamente pelo Fiscal do Trabalho nos I - para o índice de freqüência, os registros
respectivos Autos de Infração. (AG-PET nº de acidentes e doenças do trabalho informa-
01114-2005-027-12-00-3 (089/2006), 2ª Tur- dos ao INSS por meio de Comunicação de
ma do TRT da 12ª Região/SC, Rel. Edson Acidente do Trabalho - CAT e de benefícios
Mendes de Oliveira. j. 05.07.2006). acidentários estabelecidos por nexos técni-
  cos pela perícia médica do INSS, ainda que
No mesmo sentido, a ocorrência de aci- sem CAT a eles vinculados; (...)”
dentes do trabalho igualmente impõe respon-  
sabilidades de ordem previdenciária, diria até Há  ainda que se falar em repercussão penal
mesmo de ordem tributária. Com efeito, o gozo dos acidentes do trabalho. De fato, é comum a
de benefício previdenciário pelo trabalhador ocorrência de mortes ou lesões corporais em aci-
em razão do acidente pode ocasionar o aumento dentes de trabalho. A conduta dolosa ou culposa
do índice de sinistralidade, não apenas da em- do agente que der causa a esses resultados é que
presa, mas de toda a categoria, o que repercute determinará a tipificação penal da conduta.
diretamente no Fator Acidentário de Prevenção  
– FAP, e no cálculo do valor do SAT – Seguro Também pode ocorrer o crime de exposição
de Acidente do Trabalho. O art. 202-A do dec. da vida ou a saúde de outrem a perigo direto
3048/99 assim dispõe: e iminente, previsto no artigo 132 do Código
  Penal. O simples descumprimento das regras de
“Art. 202-A. As alíquotas constantes nos segurança e higiene no trabalho, independente
incisos I a III do art. 202 serão reduzidas da ocorrência de acidente, já caracteriza a con-
em até cinqüenta por cento ou aumentadas travenção penal, conforme previsto no artigo 19
em até cem por cento, em razão do desempe- § 2º da Lei nº. 8.213/1991.
nho da empresa em relação à sua respectiva  
atividade, aferido pelo Fator Acidentário de Mas o evento acidentário pode ensejar
Prevenção - FAP. consequências muito mais gravosas àquele que
§ 1º O FAP consiste num multiplicador descumpriu o dever de implementar a segurança.
variável num intervalo contínuo de cinco
décimos (0,5000) a dois inteiros (2,0000),
2
Brasil. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. AG-
aplicado com quatro casas decimais, con- -PET nº 01114-2005-027-12-00-3 Rel. Edson Mendes de
siderado o critério de arredondamento na Oliveira. j. 05.07.2006.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 129


DOUTRINA

Nesse mesmo sentido decidiram alguns Tribu- Mas então precisa-se identificar o que seria
nais de Justiça. Verbis: o acidente de trabalho. Para fins previdenciários,
  o legislador, no corpo da Lei 8213/91, identificou
APELAÇÃO-CRIME. HOMICÍDIO CUL- quais seriam aquelas situações consideradas
POSO. ACIDENTE DE TRABALHO. como acidentes de trabalho. É o que está no art.
Vítima que operava máquina empilhadei- 19 e seguintes daquela lei:
ra sem habilitação para tanto. Desvio de  
função. Perícia realizada pela subdelegacia Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocor-
do trabalho e emprego da cidade de rio re pelo exercício do trabalho a serviço da
grande, concluindo que o acidente ocorreu empresa ou pelo exercício do trabalho dos
porque a máquina não possuía o necessá- segurados referidos no inciso VII do art.
rio dispositivo de segurança. Negligência 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou
comprovada. Condenação que se impunha. perturbação funcional que cause a morte ou
Redução do apenamento. Diminuição do a perda ou redução, permanente ou tempo-
valor da prestação pecuniária de dois dos rária, da capacidade para o trabalho.
apelantes. Apelos parcialmente providos3.  § 1º A empresa é responsável pela adoção
  e uso das medidas coletivas e individuais
Homicídio culposo. Acidente de trabalho. de proteção e segurança da saúde do tra-
Não fornecimento de equipamentos neces- balhador.
sários à segurança e à proteção do trabalho. § 2º Constitui contravenção penal, punível
Negligência configurada. Configura culpa com multa, deixar a empresa de cumprir as
na modalidade negligência a omissão dos normas de segurança e higiene do trabalho.
réus quanto ao fornecimento de equipa- § 3º É dever da empresa prestar informações
mentos de segurança para o desempenho de pormenorizadas sobre os riscos da operação
trabalho perigoso, sendo previsível o sinis- a executar e do produto a manipular.
tro, já que se tratando de rede elétrica, le- § 4º O Ministério do Trabalho e da Previ-
sionando e levando à morte os funcionários dência Social fiscalizará e os sindicatos e
por violenta descarga elétrica. (TJRO - Ape- entidades representativas de classe acompa-
lação Criminal: APR 10000220010018184 nharão o fiel cumprimento do disposto nos
RO 100.002.2001.001818-4. Relator(a): parágrafos anteriores, conforme dispuser o
Juiz Oudivanil de Marins. Julgamen- Regulamento.
to: 06/07/2006)4. Art. 20. Consideram-se acidente do tra-
  balho, nos termos do artigo anterior, as
Há  ainda que se falar acerca da responsabi- seguintes entidades mórbidas:
lidade civil. Com efeito, a responsabilidade civil I - doença profissional, assim entendida
decorrente de acidente de trabalho consiste em a produzida ou desencadeada pelo exer-
indenização por danos material, moral e estético, cício do trabalho peculiar a determinada
e é devida independentemente daquelas outras atividade e constante da respectiva relação
já mencionadas. A responsabilidade civil implica elaborada pelo Ministério do Trabalho e da
a indenização não apenas do que o trabalhador Previdência Social;
perdeu, mas igualmente daquilo que deixou/
deixará de ter (danos materiais, como morais e
estéticos). 3
(TJRS; ACr 70026487322; Rio Grande; Primeira Câmara
  Criminal; Rel. Des. Manuel José Martinez Lucas; Julg.
Mas mesmo essa gama de atribuições não foi 23/09/2009; DJERS 15/10/2009; pág. 117)
4
Brasil. TJRO - Apelação Criminal: APR 10000220010018184
suficiente. Era preciso aplacar o mal decorrente RO 100.002.2001.001818-4. Relator(a): Juiz Oudivanil de
da própria ocorrência do acidente. Marins. Julgamento: 06/07/2006.
 
130 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA

II - doença do trabalho, assim entendida III - a doença proveniente de contaminação


a adquirida ou desencadeada em função acidental do empregado no exercício de sua
de condições especiais em que o trabalho atividade;
é realizado e com ele se relacione direta- IV - o acidente sofrido pelo segurado ainda
mente, constante da relação mencionada que fora do local e horário de trabalho:
no inciso I. a) na execução de ordem ou na realização de
§ 1º Não são consideradas como doença do serviço sob a autoridade da empresa;
trabalho: b) na prestação espontânea de qualquer
a) a doença degenerativa; serviço à empresa para lhe evitar prejuízo
b) a inerente a grupo etário; ou proporcionar proveito;
c) a que não produza incapacidade labo- c) em viagem a serviço da empresa, inclusi-
rativa; ve para estudo quando financiada por esta
d) a doença endêmica adquirida por se- dentro de seus planos para melhor capaci-
gurado habitante de região em que ela se tação da mão-de-obra, independentemente
desenvolva, salvo comprovação de que do meio de locomoção utilizado, inclusive
é resultante de exposição ou contato direto veículo de propriedade do segurado;
determinado pela natureza do trabalho. d) no percurso da residência para o local de
§ 2º Em caso excepcional, constatando-se trabalho ou deste para aquela, qualquer que
que a doença não incluída na relação pre- seja o meio de locomoção, inclusive veículo
vista nos incisos I e II deste artigo resultou de propriedade do segurado.
das condições especiais em que o trabalho é § 1º Nos períodos destinados a refeição ou
executado e com ele se relaciona diretamen- descanso, ou por ocasião da satisfação de
te, a Previdência Social deve considerá-la outras necessidades fisiológicas, no local
acidente do trabalho. do trabalho ou durante este, o empregado é
Art. 21. Equiparam-se também ao acidente considerado no exercício do trabalho.
do trabalho, para efeitos desta Lei: § 2º Não é considerada agravação ou com-
I - o acidente ligado ao trabalho que, embora plicação de acidente do trabalho a lesão que,
não tenha sido a causa única, haja contribu- resultante de acidente de outra origem, se
ído diretamente para a morte do segurado, associe ou se superponha às conseqüências
para redução ou perda da sua capacidade do anterior.
para o trabalho, ou produzido lesão que  
exija atenção médica para a sua recuperação; Antigamente se referia ao acidente como
II - o acidente sofrido pelo segurado no local um mal súbito. Era apenas o acontecimento
e no horário do trabalho, em conseqüência imprevisível, que causa um dano, dentro do
de: ambiente de trabalho.
a) ato de agressão, sabotagem ou terrorismo  
praticado por terceiro ou companheiro de Mas aquele conceito não era adequado e foi
trabalho; ampliado para dar maior segurança social. Daí
b) ofensa física intencional, inclusive de surgiram as hipóteses das doenças ocupacionais,
terceiro, por motivo de disputa relacionada os acidentes de trajeto, e mesmo aqueles nos
ao trabalho; quais há culpa da vítima, mas que relacionados
c) ato de imprudência, de negligência ou de àquela unidade produtiva, como necessários à
imperícia de terceiro ou de companheiro dar uma proteção ao trabalhador e, consequen-
de trabalho; temente, a toda a sociedade.
d) ato de pessoa privada do uso da razão;  
e) desabamento, inundação, incêndio e Daí  porque é possível referir que o deno-
outros casos fortuitos ou decorrentes de minado acidente de trabalho possui um escopo
força maior; muito mais amplo do que aquele a que comu-

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 131


DOUTRINA

mente nos referimos. O conceito de acidente levantes para a nossa discussão, duas pretensões
de trabalho transborda aquele que, em razão da diferentes do trabalhador: a primeira em face do
conduta do empregador, acontece. INSS; a segunda em face do seu Empregador.
   
3. Das Ações Acidentárias Em relação ao INSS, como é do conheci-
  mento de todos, o trabalhador pode, em função
Em sentido amplo, podemos mencionar do acidente, gozar de uma série de benefícios
que as ações acidentárias se dividem em basica- previdenciários, dentre os quais os auxílios,
mente dois grandes grupos, em razão da relação aposentadoria por invalidez, auxílio acidente,
trilateral entre os trabalhadores, empregadores auxílio doença, etc.
e o INSS.  
  Em relação ao empregador, para que se
Embora haja uma mistura de relações, o configure a sua responsabilidade civil, e o empre-
que dificulta a leitura, juridicamente é possível gador possa ser condenado a pagar indenização
identificar que entre o trabalhador, o INSS e o por danos materiais e morais, são necessários
empregador há algumas relações jurídicas bem os seguintes requisitos: a) a evidência do dano
definidas. ocorrido; b) a constatação do nexo causal com
o trabalho; e c) a comprovação do ato ilícito
 
praticado pelo empregador e a caracterização da
A primeira relação é aquela existente entre
culpa deste em qualquer grau.
o empregado e o empregador. O vínculo de em-
 
prego assegura um tanto de direitos e obrigações
Daí  se pode dizer que em razão da ocor-
entre cada um daqueles sujeitos.
rência de determinado acidente, veremos duas
 
realidades paralelas, mas que sem dúvida, se
De tal relação, inclusive, se pode depre-
entrelaçam.
ender aquilo o que se denomina enquanto a
 
responsabilidade civil do empregador para com
A primeira realidade é a do litígio direta-
o empregado.
mente entre o empregado e o empregador. A
  segunda, entre o empregado e o INSS, sendo que,
A segunda relação é aquela existente entre o embora muitos não se percebam, é preciso a in-
empregado e o INSS. Veja-se que há relação autô- tervenção do empregador nessa relação, também.
noma entre o empregado e o INSS, não obstante  
quando se trate de trabalhador empregado, haja Isso porque, como em um ponto de comu-
uma compulsoriedade daquela relação. nicação entre essas duas relações existe um vasto
  universo de regras que definem como a atividade
Há  ainda outra relação entre o empregador produtiva deve se desenvolver. São as condições
e o INSS. Essa relação não é apenas de caráter para a própria produção.
fiscal, em função das contribuições previdenci-  
árias, mas dado o pano de fundo no qual reside As mais claras são as Normas Regulamen-
um contrato de trabalho que o precede, no mais tadoras editadas pelo Ministério do Trabalho e
das vezes o empregador é terceiro interessado Emprego – as NRs. A obediência a essas nor-
naquela relação entre o empregado e o órgão mas, por outro lado, é absolutamente relevante.
previdenciário. Vejamos.
   
Tais premissas são relevantes porque, como A constatação de um pretenso nexo de
já referimos, em razão da ocorrência de um causalidade entre a atividade do trabalhador e
mesmo acidente de trabalho surgem, como re- o deferimento de um benefício previdenciário,

132 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

como veremos, causa embaraços significativos dual e coletiva, a Previdência Social proporá
para as empresas. ação regressiva contra os responsáveis.
  Art. 121. O pagamento, pela Previdência
Nesse momento, basta dizer que é possível Social, das prestações por acidente do tra-
a realização de impugnação às perícias do INSS, balho não exclui a responsabilidade civil da
como demonstra a IN nº. 31/2008, para afastar o empresa ou de outrem.
nexo de causalidade entre a atividade do empre-  
gador e aquilo que se entendeu como de relação Ou seja, quando restar evidenciada a
direta com o trabalho. negligência quanto às normas padrão de segu-
rança, quando em razão do infortúnio o INSS
 
deferir o benefício previdenciário em favor do
Veja-se que acidentes acontecem. E como
trabalhador, é possível o ajuizamento de ação
acontecem. Mas é preciso ficar alerta para se
regressiva em face do responsável pelo prejuízo
desfazer a visão de que todo evento que se re-
da coletividade.
conhece como acidente de trabalho pelo INSS  
possui como responsável o empregador, fato que Em outras palavras, dada a existência
‘carimba’ uma responsabilidade tremenda por do acidente, além de ser instado a pagar uma
parte do empresário. indenização pela sua relação direta para com
  o trabalhador, o empresário será igualmente
Isso porque, embora o INSS tenha reconhe- acionado pelo INSS a indenizar à coletividade
cido a existência de um acidente de trabalho, o pelo prejuízo causado, pelo acréscimo indevido
empregador não é obrigado a suportar tais con- ao risco da atividade. Note-se que essa postura
clusões sem qualquer oportunidade de defesa. se coaduna com aquela esperada no mercado.
   
Em verdade, a própria regulamentação da O próprio Código Civil reconhece que,
matéria assegura ao empregador meios para nos contratos de seguro ordinários, o agravo
impugnar esse nexo de causalidade. do risco impõe a perda do direito à indenização
  pelo segurado:
É quando se consegue demonstrar tais  
fatos, quando se pode distinguir entre aqueles Art. 768. O segurado perderá o direito à ga-
que cumprem e os que não cumprem as regras, rantia se agravar intencionalmente o risco
e que por isso devem ser devidamente respon- objeto do contrato.
Art. 769. O segurado é  obrigado a comuni-
sabilizados, que se diferenciam os bons e maus
car ao segurador, logo que saiba, todo inciden-
empresários.
te suscetível de agravar consideravelmente o risco
 
coberto, sob pena de perder o direito à garantia,
Justamente fundado naquele nexo causal
se provar que silenciou de má-fé.
entre a ocorrência do acidente e a inobservân- § 1º O segurador, desde que o faça nos quinze
cia, pelo empregador, das regras atinentes ao dias seguintes ao recebimento do aviso da
desenvolvimento da sua atividade, é que reside agravação do risco sem culpa do segurado,
um dos mais relevantes problemas no âmbito poderá dar-lhe ciência, por escrito, de sua
acidentário. decisão de resolver o contrato.
   
A Lei nº 8213, nos seus artigos 120 e 121, Em se tratando de responsabilidade aci-
estipula duas regras importantes, no particular: dentária, não há previsão no que diz respeito ao
aumento do risco por conta do obreiro.
Art. 120. Nos casos de negligência quanto  
às normas padrão de segurança e higiene do Mas em relação ao empregador, caso cons-
trabalho indicados para a proteção indivi- tatados indícios de que houve culpa ou dolo por

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 133


DOUTRINA

parte do mesmo, será possível o ajuizamento de regulamentadoras do Ministério do Traba-


ação regressiva contra aquele. lho e Emprego, normas de segurança afetas
  à atividade econômica, normas de segurança
Tal situação tem ensejado, inclusive, uma relativas à produção e utilização de má-
ação prioritária por parte da AGU – Advocacia- quinas, equipamentos e produtos, além de
-Geral da União, como veremos. outras que forem determinadas por autori-
  dades locais ou que decorrerem de acordos
Por enquanto, basta indicar que estimativas ou convenções coletivas de trabalho. 
da AGU dão conta de que seria algo em torno de  
40 (quarenta) bilhões de reais os prejuízos em ra- A previsão do inciso II seria para a busca
zão dos acidentes inadvertidamente produzidos. da responsabilidade não propriamente do em-
  pregador, mas do motorista que causa lesão a
4. Das Ações Regressivas e a Atuação da terceiro segurado do INSS (como na hipótese
Procuradoria Federal Especializada do acidente de trajeto em que a responsabilidade
  foi de um terceiro).
Como já suscitado, há a possibilidade de o  
INSS – Instituto Nacional do Seguro Social pre- Mas não seriam apenas essas as hipóteses.
tender, através da ação de regresso, a respectiva A regulamentação prevê  ainda que a partir do
indenização por parte do eventual responsável exame concreto de fatos e dos correspondentes
pela ocorrência do acidente, e, portanto, ao fim argumentos jurídicos, outras hipóteses de res-
e ao cabo, da própria concessão de benefício ponsabilização, incluindo crimes na modalidade
previdenciário. culposa, poderão dar ensejo ao ajuizamento de
  ação regressiva.
A própria AGU – Advocacia-Geral da  
União, a responsável pelo acompanhamento e Ainda quanto à denominada ação regres-
promoção das demandas dessa natureza, por siva, a mesma, segundo a Portaria nº 06/2013,
meio da Portaria Conjunta nº 6, de 18 de janeiro será proposta quando estiverem presentes os
de 2013, dá algumas dicas acerca do adequado elementos suficientes de prova da ocorrência do
delineamento do tema. ato ilícito, da culpabilidade, do nexo causal e da
  realização de despesas previdenciárias. Conside-
Em primeiro lugar, reconhece-se que a rando que esses são vários elementos, é preciso
ação regressiva tem cabimento em decorrência que o empregador esteja atento às nuances em
de atos ilícitos. Para tanto, compreende-se por cada um dos aspectos mencionados.
atos ilícitos suscetíveis ao ajuizamento de ação  
regressiva os seguintes: Apesar de ainda termos algumas discussões
  acerca de qual o local em que se devem ajuizar as
I - o descumprimento de normas de saúde ações regressivas, há o entendimento majoritário
e segurança do trabalho que resultar em de que estas deverão ser apresentadas na Justiça
acidente de trabalho; Federal, seguindo a regra geral do ajuizamento
II - o cometimento de crimes de trânsito no foro do domicílio do réu.
na forma do Código de Trânsito Brasileiro;  
III - o cometimento de ilícitos penais dolo- Quando o réu for pessoa jurídica e pos-
sos que resultarem em lesão corporal, morte suir estabelecimentos em lugares diferentes, o
ou perturbação funcional; ajuizamento, segundo a orientação prevista no
Parágrafo único. Consideram-se normas âmbito da AGU, deverá ser realizado no foro
de saúde e segurança do trabalho, dentre do domicílio do estabelecimento onde tiver
outras, aquelas assim definidas na Conso- ocorrido o ato ilícito. O mesmo se dará quando
lidação das Leis do Trabalho, as normas houver vários réus.
 
134 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA

Quando houver vários réus sem que ne- Sistema Especial de Liquidação e de Cus-
nhum deles tenha domicílio no local do ilícito, tódia - SELIC, pela variação a partir do mês
ainda segundo aquela regulamentação, a ação do pagamento;
será ajuizada, preferencialmente, perante o foro II - prestações vincendas a serem pa-
daquele que tiver o domicílio mais próximo. gas mensalmente ou de forma integral. 
Havendo mais de um responsável pelo ato ilícito, III - verbas sucumbenciais.
o pólo passivo da ação regressiva será composto Parágrafo único. No caso de pagamento de
em litisconsórcio, formulando-se pretensão prestações vincendas, deverá ser requerida
expressa no sentido da condenação solidária, ou a garantia de caução real ou fidejussória. 
seja, independentemente de ordem dos autores  
do dano. No mesmo sentido, nota-se que a defi- Ou seja, a forma de atualização dos créditos
nição dos responsáveis deverá levar em conta as da Fazenda, no particular, equipara os valores de-
condutas imputadas a empregadores, tomadores vidos nas ações regressivas a créditos tributários,
de serviço, contratantes e cedentes de mão de dado que estes sofrem diretamente a incidência
obra e órgãos públicos para os quais, direta ou daquele índice. As verbas sucumbenciais são
indiretamente, o segurado trabalhava. aquelas atinentes aos custos do processo, inclu-
  sive os com advogados, que podem ser arbitra-
Aqui se revela uma importante questão, dos em 20% (vinte por cento) sobre o valor da
qual seja, a possibilidade do ajuizamento da ação condenação.
regressiva não apenas em face do empregador,  
mas igualmente do tomador do serviço, inclusive Mas há interessante questão envolvendo
o ente público. essa atuação. É que, em regra, se identifica
  como sendo exclusiva a atuação da Procura-
Em juízo, a autarquia previdenciária, em doria Federal para o auferimento dos aludidos
regra, detalhará minuciosamente o ato ilícito, a créditos. Todavia, há quem defenda, como é
culpabilidade, o nexo causal, e o dano, este carac- o caso de Marcelo Calheiros Cerqueira5 uma
terizado pelas despesas previdenciárias ocorridas necessária ampliação da compreensão das ações
e por ocorrer. Há orientação no sentido de que regressivas, dado que essencialmente cuidam
deverão ser enfatizadas as conclusões técnicas do ressarcimento da própria coletividade, o que
acerca do ato ilícito. autorizaria o manejo daquelas demandas sob um
  viés essencialmente coletivo.
Não havendo a exata dimensão das despesas  
a serem realizadas com eventual processo de Ao assim se entender, abre-se um novo le-
reabilitação profissional, far-se-á uso da possi- que de possibilidades a serem enfrentadas. Por
bilidade de elaboração de pedido genérico nos exemplo, pode-se, a partir desse novo conceito,
termos do inciso II do art. 286 do CPC, o que permitir que Sindicatos ou mesmo o MPT passe
permite o Juízo não apenas a fixação da extensão a ingressar, igualmente, com ações regressivas,
lesão no curso do processo, mas também a de se visando o ressarcimento do fundo coletivo de
liquidar os danos, depois de julgado o feito, por proteção social.
meio dos denominados artigos de liquidação.  
  De outro lado, a partir dessa mesma pers-
De todo modo, há orientação no sentido pectiva, seria possível a aplicação de expedientes
de que o pedido de reparação deve ser integral, como os Termos de Ajuste de Conduta – espécies
compreendendo:
 
I - prestações vencidas, atualizadas me- 5
A aplicabilidade do microssistema processual coletivo
às ações regressivas acidentárias. In Biblioteca Digital
diante a utilização dos valores brutos das Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo
mensalidades, empregando-se a taxa do Horizonte, ano 17, n. 69, jan. 2010.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 135


DOUTRINA

de acordos extrajudiciais – desta feita com a tária, na hipótese de acidente inclusive em face
União, acerca de obrigações, compromissos e do tomador dos serviços, mesmo que este seja a
composições envolvendo o ressarcimento dos Administração Pública. Dúvida reside, todavia,
valores decorrentes da prestação acidentária. quanto à extensão dessa mesma responsabili-
  dade.
Tais ajustes envolveriam não apenas obriga-  
ções de pagar, mas também obrigações de fazer Como já foi referido acima, não se pode
ou não fazer, desde que adequadas à prestação negar que há precedentes indicando como sen-
que se necessita. do solidária a responsabilidade do tomador do
  serviço, como se depreende:
Note-se que sobre os acordos, quanto às  
obrigações de pagar dinheiro, aquela mesma re- ADMINISTRATIVO. ACIDENTE DE
gulamentação atualmente já as autoriza, devendo TRABALHO. PRELIMINAR DE ILE-
ser observadas as seguintes diretrizes: GITIMIDADE PASSIVA DA EMPRESA
  CONTRATANTE. REJEITADA. INOB-
I - aplica-se o art. 37-B da Lei nº 10.522, SERVÂNCIA DAS REGRAS DE PRO-
de 19 de julho de 2002 ao parcelamento TEÇÃO E SEGURANÇA DA SAÚDE
do crédito pretendido por meio das ações DO TRABALHADOR. PENSÃO POR
regressivas; MORTE. AÇÃO REGRESSIVA DO INSS.
II - aplicam-se os limites de alçada cons- PROCEDÊNCIA. 1. Sendo responsabilidade
tantes da Portaria PGF que regulamenta a da empresa contratante a fiscalização das ati-
realização de acordos em processo judiciais; vidades executadas em canteiro de obra de sua
III - os honorários advocatícios poderão ser propriedade, não há porque cogitar em falta de
objeto de parcelamento;  legitimidade para a causa, visto que a lide tem
IV - havendo opção pelo recolhimento men- por objeto o ressarcimento dos benefícios previ-
sal das parcelas vincendas, deverá  ser exigi- denciários desembolsados pelo INSS por morte
da adequada garantia, real ou fidejussória;  de empregado no referido canteiro. 2. A empresa
V - parcelas vencidas e vincendas deverão contratada deixou de promover treinamento
ser atualizadas pela SELIC, devendo ser adequado para realização do serviço de ri-
avaliado o interesse em eventual recurso pagem que, segundo concluiu o Laudo de
quando decisão judicial vier a fixar critério Investigação da DRT, foi um dos fatores de
diverso;  risco para o acidente. 3. À empresa contra-
  tante, por sua vez, enquanto tomadora de
Aquelas previsões autorizam concluir que serviços e executora da obra, cabe fiscalizar
é possível o parcelamento administrativo seguin- as atividades executadas no seu canteiro de
do a mesma lógica do parcelamento ordinário obra, evitando inclusive que um profissional
de débitos tributários, cujo limite é de até 60 habilitado exclusivamente para o trabalho
meses. Do mesmo modo, indica-se que o limite de carpintaria execute a atividade de ripa-
da prestação a parcelar seria de R$ 100,00 para gem sem qualquer treinamento específico
pessoa física e R$ 500,00 para pessoa jurídica. anterior, como no caso em questão. 4. Qual-
  quer das envolvidas poderia por conduta própria
5. Da responsabilidade da administração ter afastado o risco do acidente, se cumpridas às
pública, tomador do serviço, nos casos de obrigações que a lei lhes atribuía, o que impõe
ação regressiva. a condenação solidária entre as empresas. 5.
  Apelação improvida. (TRF-5 - AC: 480030
Como já mencionamos, há o entendimento RN 0007606-16.2006.4.05.8400, Relator:
de que se deve ajuizar a ação regressiva aciden- Desembargador Federal Francisco Wildo,

136 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

Data de Julgamento: 15/09/2009, Segunda percentuais dos débitos judiciais, na linha


Turma, Data de Publicação: Fonte: Diário da jurisprudência do egrégio STJ.
da Justiça Eletrônico - Data: 05/10/2009 - 3. Quanto aos honorários, esta Corte tem
Página: 339 - Ano: 2009) entendimento pacificado de que devem ser
  fixados em 10% sobre o valor da condena-
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. Omis- ção, desde que tal percentual não represente
são do acórdão. Multa. 10%. A multa de valor ínfimo ou exorbitante, o que não é
10%, prevista no art. 538 do CPC, somente o caso dos autos. (TRF-4 - APELAÇÃO
pode ser aplicada depois de imposta, nos CIVEL : AC 3904 RS 2000.71.07.003904-9.
anteriores embargos de declaração, a multa Processo: AC 3904 RS 2000.71.07.003904-
de 1%. Responsabilidade civil. Concurso 9. Relator(a): MARGA INGE BARTH
de agentes. Responsabilidade solidária. A TESSLER. Julgamento: 01/04/2009. Órgão
vítima do acidente pode promover ação Julgador: QUARTA TURMA)
contra o causador do evento. Se houver  
co-autores não integrantes dessa relação Perceba-se, nos aludidos precedentes, em
processual, isso não significa que a conde- que se impõe a responsabilidade solidária,
nação do réu deva ser proporcional; a este toma-se por premissa o fato de que qualquer
resta eventual direito de regresso contra co- das envolvidas poderia ter afastado o risco do
-responsáveis. Recurso conhecido em parte acidente, e em razão disso, caberia a responsa-
e provido em parte, quanto à multa. (REsp bilidade indistinta, tudo conforme a previsão do
403.526/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO art. 942 do CC:
DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado  
em 18/06/2002, DJ 12/08/2002, p. 221) Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa
  ou violação do direito de outrem ficam sujeitos
CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver
AÇÃO REGRESSIVA DE RESSARCI- mais de um autor, todos responderão solidaria-
MENTO DE DANOS ADVINDOS DE mente pela reparação.
ACIDENTE DO TRABALHO. DENUN-  
CIAÇÃO DA LIDE. FABRICANTE. RES- Aliás, é fundado naquele dispositivo em
PONSABILIDADE SOLIDÁRIA. SELIC. que, justamente, se dá  o posicionamento insti-
HONORÁRIOS. tucional da AGU.
1. Demonstrada a responsabilidade da em-  
presa na qual o empregado realizava suas Todavia, não nos parece ser essa a solução
atividades, assim como do fabricante da mais adequada para o caso. Em primeiro lugar,
máquina na qual ocorreu o acidente, uma porque inexiste cominação legal que imponha à
vez que faltaram com os meios de segurança Administração o dever de fiscalizar as condições
requeridos para evitar o acidente de tra- de saúde e segurança dos serviços que lhe são
balho, há que confirmar a procedência do prestados. A previsão da fiscalização se dá em
pleito regressivo. relação ao objeto do contrato administrativo,
2. Os juros moratórios são devidos à taxa sendo da responsabilidade de cada uma das
de 0,5% ao mês até  o advento dos efeitos partes os efeitos da sua inexecução:
do Novo Código Civil. A contar do período  
de vigência desse diploma legal, por obra do Art. 66.  O contrato deverá ser executado
seu artigo 406, é aplicável a taxa SELIC, que fielmente pelas partes, de acordo com as
engloba além dos juros a atualização mo- cláusulas avençadas e as normas desta Lei,
netária, ficando inclusive a partir de então respondendo cada uma pelas conseqüências
afastada a correção monetária segundo os de sua inexecução total ou parcial.

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 137


DOUTRINA

Art. 67.  A execução do contrato deverá A bem da verdade, como diz Marçal Justen
ser acompanhada e fiscalizada por um Filho6, tal redação implica algumas conside-
representante da Administração especial- rações, para que seja juridicamente adequado
mente designado, permitida a contratação o tratamento firmado pelo dispositivo, o que
de terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo de pedimos licença para transcrever:
informações pertinentes a essa atribuição.  
§ 1º  O representante da Administração ano- “De regra, a responsabilidade civil do parti-
tará em registro próprio todas as ocorrências cular perante a Administração sujeita-se aos
relacionadas com a execução do contrato, princípios de direito privado. Em qualquer
determinando o que for necessário à regu- caso, não basta o dano para surgir o dever
larização das faltas ou defeitos observados. de indenizar. A conduta do sujeito deve
§ 2º  As decisões e providências que ultra- caracterizar-se como culposa, segundo os
passarem a competência do representante princípios de Direito Civil, inclusive no
deverão ser solicitadas a seus superiores tocante a eventuais presunções de culpa. (...)
em tempo hábil para a adoção das medidas O exercício pela Administração da fiscaliza-
convenientes. ção ou acompanhamento não elimina nem
  reduz a responsabilidade civil do particular.
Assim sendo, dada a ausência do dever de Cabe a este desenvolver suas atividades com
fiscalizar, não há que se falar em ato culposo ou zelo e perícia, evitando provocar danos de
negligência, por parte da Administração, capaz qualquer natureza a terceiro. O particu-
de autorizar a ação de regresso. lar responde em nome próprio pela sua
  conduta.
Todavia, ainda que assim não se entenda, A atividade de fiscalização desenvolvida
deve restar claro que, de regra, a terceirização se pela administração pública não transfere a
dá por meio dos expedientes autorizados na Lei ela a responsabilidade pelos danos provoca-
8.666/93, sendo certo que há tratamento especí- dos pela conduta do particular. Não há, em
fico naquele diploma legal acerca da responsa- princípio, relação de causalidade entre a
bilidade das partes do contrato administrativo. fiscalização estatal e o dano sofrido por
  terceiro.
Sucede que o art. 70 da Lei 8666/93 prevê No entanto, o defeito na fiscalização pode
como sendo do contratado a responsabilidade tornar a administração solidariamente
pelos danos causados, decorrentes da execução responsável perante terceiros. Quando o
do contrato: contrato disciplinar a fiscalização em ter-
  mos que a atividade do particular dependa
Art. 70. O contratado é responsável pelos da prévia autorização da autoridade ad-
danos causados diretamente à Administração ministrativa, poderá localizar-se relação
ou a terceiros, decorrentes de sua culpa ou dolo de causalidade entre a concretização do
na execução do contrato, não excluindo ou dano e a ação estatal (...)”. (grifos nossos)
reduzindo essa responsabilidade a fiscalização  
ou o acompanhamento pelo órgão interessado. Ou seja, seguindo a previsão do art. 70 da
  Lei 8666/93, não há que se falar em imposição de
Tal dispositivo, inclusive, deixa claro que responsabilidade para a Administração quanto
não se pode excluir ou reduzir a aludida respon- ao adimplemento das verbas devidas a título de
sabilidade pela fiscalização ou acompanhamento
por parte da Administração, fato que evidencia
a não exoneração da responsabilidade do parti-
6
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações
e Contratos Administrativos. 12. ed. Curitiba: Dialética,
cular, no caso. 2008. p. 750.
 
138 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013
DOUTRINA

ressarcimento ao Seguro Social, na hipótese de público. Afinal, a partir do quanto se depreende


ocorrido acidente e despendida a verba previ- do regime geral da responsabilidade regressiva,
denciária, dado que não há, em princípio, relação previsto no art. 120 da Lei 8213/91, nota-se que
entre a atuação administrativa e a ocorrência do o legislador exigiu a comprovação da aludida
aludido acidente. culpa do empregador, no particular.
   
Em verdade, os ônus decorrentes dos aludi- Ora, se se exige a comprovação da culpa
dos acidentes de trabalho não podem ser impos- para a imposição da responsabilidade direta por
tos ao tomador do serviço, mas exclusivamente parte do empregador, responsável imediato pela
ao contratado para tanto, salvo quando a ativi- gestão do serviço prestado, com mais razão seria
dade do particular decorrer de expressa atuação se exigir a demonstração inequívoca da culpa e
da Administração, aí sim porque condicionada participação da Administração no evento aciden-
à decisão administrativa. tário, a fim de que se pudesse impor ao tomador
  qualquer responsabilidade pelo ressarcimento.
Desse modo, em regra a ocorrência do aci-  
dente no âmbito dos contratos de terceirização Do contrário, na hipótese de ampliado
firmados pela Administração não autoriza qual- o escopo da responsabilidade do tomador do
quer cominação de responsabilidade na ação de serviço, estar-se-ia, mais uma vez, a privatizar
regresso. A hipótese será de completa isenção da os lucros decorrentes da contratação com a Ad-
Administração, no particular, em homenagem ao ministração, e a coletivizar os prejuízos, com a
aludido art. 70 da Lei 8666/93. cominação, a quem não deu causa diretamente,
  dos riscos decorrentes da atividade produtiva.
6. Considerações Finais
 
Como dito, o valor social do trabalho é es-
sencial no contexto do Estado brasileiro, sendo
o seguro social meio mais do que essencial para
a construção de um país capaz de enfrentar os
desafios da modernidade. Sem dúvida, cabe
àquele que injustamente agrava os riscos sociais,
uma maior participação na constituição desse
mesmo fundo.
 
Todavia, nas hipóteses em que a contratação
decorre da atuação administrativa, é legítima a
limitação da responsabilidade estatal quanto à
responsabilidade regressiva.
 
Com efeito, apenas na hipótese em que hou-
ver a participação da administração no evento
acidentário, ou seja, em que o dano for provocado
pela conduta da Administração, será possível
a cominação de alguma responsabilidade ao
tomador, na ação regressiva.
 
Tal conclusão impõe, ainda, a demonstra-
ção da ocorrência da culpa, por parte do ente

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 139


PARECER
DOUTRINA

APLICABILIDADE DE
DECRETOS MUNICIPAIS A DOUTRINA
ENTES DA ADMINISTRAÇÃO
DESCENTRALIZADA SUJEITOS A
REGIME JURÍDICO DE DIREITO
PRIVADO
 
PARECER EM PROCESSO
ADMINISTRATIVO

João Deodato Muniz de Oliveira*


 
 
 
 
Palavras-chave:
Decretos Municipais; Empresas Públicas; Sociedades de Econo-
mia  Mista
 
SUMÁRIO
Sinopse Fática
Fundamentação Jurídica
Conclusão
 
 
Processo nº. ............
Origem: Companhia de Governança Eletrônica do Salvador –
COGEL
Assunto: Aplicabilidade de Decretos Municipais à COGEL
 
PARECER
* Consultor Jurídico com Especialização
em Direito Administrativo pela Funda-
1. SINOPSE FÁTICA ção Faculdade de Direito da Bahia
e em Direito Tributário pelo Instituto
  Brasileiro de Estudos Tributários
A Companhia de Governança Eletrônica do Salvador – Procurador do Município do Salvador
COGEL, nova denominação da Companhia de Processamento Membro do Instituto dos Advogados da
Bahia
de Dados do Salvador – PRODASAL, consulta a PGMS acerca Advogado

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 143


DOUTRINA

da aplicabilidade de Decretos Municipais em a toda a Sociedade e que, de conseguinte, têm


relação a ela, em face do seu regime jurídico de de ser conhecidos e controlados por todos os
direito privado e autonomia administrativa. membros do corpo social, através de mecanismos
  que a Sociedade, constitucional e/ou legalmente,
Sabe-se que a dita entidade constitui-se em instituiu como pertinentes à fiscalização e cor-
uma sociedade de economia mista, instituída reção dos negócios públicos.”2
na forma da Lei nº 3.601, de 18 de fevereiro de  
1986, inicialmente denominada PRODASAL Nessa linha, as empresas públicas e as socie-
e atualmente denominada COGEL, em face dades de economia mista, conquanto modeladas
do disposto no art. 19 da Lei nº 7.610, de 13 de sobre figurino tomado de empréstimo, em geral,
fevereiro de 2009. do direito mercantil, são visceralmente distintas
  da generalidade das pessoas de direito privado,
2. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA daí porque Celso Antonio Bandeira de Mello
  aduz:
O advento das empresas públicas e so-  
ciedades de economia mista se deve, segundo “Com efeito, os sujeitos que nascem do
José Nabantino Ramos1, analisando o direito sopro estatal, seja quando instaurados com
comparado, a três fenômenos distintos, quais personalidade de direito público, seja quan-
sejam: 1) a estatização de empresas privadas, do criados com personalidade de direito
cuja forma jurídica originária é mantida pelo privado, têm como traço essencial, como
novo titular, que é o Estado; 2) a necessidade marca que os distingue de quaisquer outros,
de substituir, no campo econômico, os antigos como signo que lhes preside a existência e
e maiores estabelecimentos públicos, adminis- comanda a intelecção de suas naturezas, o
trados diretamente pelo Estado, por entidades fato de serem criaturas instrumentais do
capazes de “agire com la rapidita ed efficienza Estado; são seres que gravitam na órbita
necessarie al pronto adeguamento delle exigenze pública. Estão, tanto quanto o próprio Es-
di mercato ...” nas palavras de Giorgio Stefani tado, atrelados à realização de interesses do
(Corso di Finanza Pubblica; Ed. Cedam, Pádua, todo social e os recursos que os embasam
1990, pág.134); 3) os objetivos socializadores, são, no todo ou em sua parte majoritária,
que negam a particulares a propriedade de meios originários de fonte pública. Tais criaturas
de produção. existem para que o Estado, por seu intermé-
  dio, conduza de modo satisfatório assuntos
As sociedades de economia mista e as que dizem respeito a toda a coletividade.
empresas públicas são meros instrumentos de Exatamente por isto – tal como o Estado
ação do Estado para realizar atividades que lhe – encontram-se sujeitas a todos os contro-
digam respeito.  São, portanto, auxiliares do les públicos necessários para a certeza e a
Poder Público, devendo ajustar-se às diretrizes segurança de que, ao desenvolverem seus
e aos controles públicos, já que são entidades da cometimentos, manter-se-ão estritamente
“administração pública indireta”, nos termos afiveladas ao cumprimento do escopo para
do art. 4º do Decreto-lei nº. 200/67, modifica- o qual foram concebidas e atenderão ob-
do pelo Decreto-lei nº. 900/69, com alterações sequiosamente aos deveres de legalidade,
posteriores. impessoalidade, moralidade e publicidade,
 
De acordo com a lição de Celso Antonio
Bandeira de Mello, essas entidades são “figuras
1
In RDP 17/101
2
Sociedades Mistas, Empresas públicas e o regime de
pelas quais se realiza administração pública, vale Direito Público, REDAE – Revista Eletrônica de Direito
dizer, administração de interesses que pertencem Administrativo Econômico, nº 10 / 2007

144 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

conforme disposto no art. 37 da Constitui- requeridos pela interdependência social, que não
ção Brasileira, segundo o qual: ‘A adminis- podem ser assumidos senão pela intervenção da
tração pública direta, e indireta de qualquer força dominante, dizendo que:
dos poderes da União, dos Estados, do Dis-  
trito Federal e dos Municípios obedecerá “Quando esses serviços existirem efetiva-
aos princípios da legalidade, impessoalida- mente e forem prestados por organismo
de, moralidade, publicidade e eficiência e, estatal, então estamos diante de serviço
também, ao seguinte....”.3 público.”5
   
A Doutrina costuma reconhecer a existên- Na verdade, o conceito de serviço público
cia, no Brasil, de empresas públicas e sociedades não é uniforme na doutrina, que apresenta no-
de economia mista que prestam serviço público ções orgânicas, formais e materiais, detendo-se
(embora ditas comerciais ou industriais) e outras no terreno movediço da imprecisão conceitual
que explorem atividades econômicas. ante o maior ou menor grau de intervenção do
  Estado e a constante remodelação dos seus fins.
Ocorre que a noção de serviço público  
sofreu seguidas alterações ao longo do tempo, No entanto, tem-se por necessário proceder-
tendo sua abrangência dilatada ao mesmo tempo -se a uma diferenciação ao mínimo satisfatória
em que perdia a nitidez dos seus bordos. entre serviço público e atividade econômica.
   
Adilson Dallari alerta que “atualmente o Eros Grau esclarece que atividade econô-
Poder Público assume formas privadas para mica, é expressão que deve ser tomada em dois
desenvolver atividades tipicamente econômicas, sentidos, enquanto gênero compreendendo duas
de natureza comercial e industrial, enquanto modalidades (serviço público e atividade econô-
que, por sua vez, as empresas privadas desen- mica em sentido estrito); e enquanto espécie que,
volvem ou operam serviços públicos, mediante ao lado de serviço público, se integra no gênero
concessão, permissão ou autorização do Poder atividade econômica.6
Público, ou seja, atuam em lugar da Administra-  
ção Pública, desenvolvendo atividades sempre Toshio Mukai assim define: “serviço públi-
ávidas como prestação de serviço público”4, co industrial ou comercial é aquele que o Estado,
apresentando uma noção operativa do que seja ao elegê-lo como tal, exerce-o diretamente ou
serviço público. por interpostas pessoas, e que, por atender a
  necessidade essencial ou quase essencial da cole-
Afirma a citado professor da PUC-SP que o tividade, apresenta um interesse público objetivo
entendimento de caracterizar o serviço público em sua gestão. E, atividade econômica do Estado
com o seu caráter de resposta a necessidade es- é aquela que ele resolve assumir, dentro de sua
sencial da população não é suficiente para que se política econômica, observados os princípios
tenha uma idéia real do seu conceito.   Segundo constitucionais da Ordem Econômica, por julgar
Dallari, o que caracteriza realmente um serviço que tal atividade consulta ao interesse público da
como público, além de sua essencialidade é o mesma Ordem (interesse público subjetivo).”7
regime jurídico.  
 
O Prof. Cirne Lima entende o serviço públi- 3
Ob. cit., mesma página
co como tratando de uma atividade reconhecida 4
In RDP 94/95
5
In RDP 83/158
como essencial para a coletividade, num dado 6
Elementos de Direito Econômico - SP - RT - pág. 87 e ss.
momento, enquanto Celso Antônio Bandeira 7
Direito Administrativo e Empresa do Estado - Forense,
de Mello o caracteriza como aqueles serviços 1984, pág. 183

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 145


DOUTRINA

Regis Fernandes de Oliveira consagrou tal ção de vantagem frente às empresas particulares,
entendimento em Acórdão da 7ª Câm. do 1º TA sujeitando-se inclusive às obrigações Trabalhis-
Civ. SP: tas e Tributárias.
   
“no que nos interessa, há fundamentalmen- Perceba-se que as empresas estatais que
te, dois campos de interesse específico de prestam serviço público não sofrem nenhuma
intervenção estatal. Pode prestar serviços restrição ou referência no citado art. 173.
públicos, seja diretamente, seja através de  
entidades criadas pelo Estado ou por ele Assim, no dizer de Maria Sylvia Zanella
permitidas ou concedidas, e também pode de Pietro, mesmo quando o Estado fizer gestão
interferir no domínio econômico. privada de serviço público, ainda que de natureza
(...)  comercial ou industrial, aplicam-se, no silêncio
Quando, pois, o Estado intervém no do- da lei, os princípios do direito público, inerentes
mínio econômico, seja por qualquer força ao regime jurídico administrativo.9  
constitucionalmente permitida, o regime  
jurídico a que se submete é previsto no § 2º Portanto, seguindo ainda o raciocínio da
do art. 170 da CF, isto é, sujeita-se ao direito citada autora com relação às empresas governa-
do Trabalho e ao das obrigações. Portanto, mentais que prestam serviço público, “justifica-
há nivelamento completo do Estado com -se o regime jurídico de direito privado apenas
os particulares. Despe-se o Estado de suas quanto à forma de sua organização e funciona-
prerrogativas próprias, para sujeitar-se ao mento, mais compatíveis com a natureza comer-
direito privado. cial ou industrial da atividade assumida pelo
(...)  Estado” (ob. cit. pág. 119), devendo ser o regime
Nada obstante, erigem-se outras pessoas jurídico a outros aspectos o predominantemente
jurídicas, que são criadas pelo estado, sob administrativo, colocando a Administração Pú-
roupagem de direito privado, mas desti- blica em posição de supremacia em relação ao
nam-se à prestação de serviços públicos. particular e seguindo-se os princípios da legali-
Aí ressalta diferença de regime jurídico. dade e da indisponibilidade do interesse público.
Embora vistam roupa de direito privado,  
ou seja, haja identidade de regime com as Nessa linha, é possível fazer uma distinção
demais empresas privadas, nada impede que entre pelo menos dois dos três tipos de empre-
o Estado transfira a tais entidades algumas sas estatais consagradas constitucionalmente
prerrogativas próprias, de vez que irão pres- (prestadoras de serviço público, exercentes de
tar serviços públicos.”8 atividades econômicas e as que operam em re-
  gime de monopólio).
Segue a Constituição de 1988 o mesmo  
sentir, motivo pelo qual quando se refere à em- Assim, apesar de todas essas entidades apre-
presa estatal exercente de atividade econômica sentarem o traço comum de serem agentes da
em sentido estrito, expressamente assim o fez. ação estatal visando o alcance de fins públicos, o
  regime aplicado e que condiciona sua existência
Exemplo claro é o artigo 173 da CF, quando e atuação, traz consequências amplas.
deixa bem claro que as disposições ali elaboradas  
referem-se apenas e tão somente àquela área de
atribuições própria e típica das particulares,
qual seja, a exploração de atividade econômica
8
Boletim de Jurisprudência 1616 da Ass. dos Adv. de São
Paulo
não podendo o Poder Público gozar de nenhum 9
Do Direito Privado na Administração Pública - São Paulo,
privilégio ou vantagem que o coloque em situa- 1989, pág. 111

146 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013


DOUTRINA

As empresas estatais prestadoras de serviço para a realização das atividades imediatas


público possuem a prevalência de normas de do Estado.”10
caráter administrativo.  
  Ou nas palavras de Hely Lopes Meirelles:
Já as empresas governamentais destinadas  
a desenvolver atividades econômicas em sen- “a empresa pública se apresenta como
tido estrito não poderão auferir vantagens que ente paraestatal, permanecendo na zona
possam significar um desenvolvimento da sua de transição entre os instrumentos de
posição em relação às empresas privadas que ação administrativa do Poder Público e
atuem no mesmo setor, aplicando-se, regras de as entidades privadas de fins industriais.
direito privado. Essa é a conclusão básica. Sujeita-se ao controle do Estado, uma dupla
  linha, administrativa e política, já que o seu
Outro aspecto merece ser realçado e que patrimônio, a sua direção e os seus fins são
não pode ser obscurecido por uma interpretação estatais. Vale-se, tão somente, dos meios da
ligeira dos preceitos constitucionais. iniciativa privada para atingir seus fins de
  interesse público.”11
A presença do Estado no campo privado,  
atuando lado a lado com empresas particulares O fato é  que a personalidade jurídica de
e sob o regime jurídico de direito privado, não é direito privado conferida a sociedades de eco-
suficiente para encobrir um elemento essencial nomia mista ou empresas públicas, sejam elas
e que, por vezes, passa despercebido: o Estado prestadoras de serviço público ou exploradoras
continua, por assim dizer, sendo Estado, isto é, de atividade econômica, não significa que, por
permanece sendo a organização institucionaliza- tal circunstância, desgarrem da órbita pública ou
da de bens e um agente para a realização de servi- que, de acordo com a lição de Celso Antonio Ban-
ço de interesse público. A aplicação de recursos deira de Mello, seja menor o “nível de seus com-
por todos nós cidadãos continua a ser orientada prometimentos com objetivos que transcendem
nos limites da legalidade e finalidade, timbrando interesses privados”12, por isso, assujeitam-se
mesmo toda a atuação de tais entidades. elas a um conjunto de regras de direito público,
  que vincam sua originalidade em contraste com
Portanto, é bem de ver-se a necessidade da as demais pessoas de direito privado.
presença do controle estatal mesmo nas empresas  
públicas que explorem atividades econômicas, Com efeito.  Se as sociedades de economia
uma vez que não é possível imaginar-se uma mista ou empresas públicas fossem pessoas
entidade cujos objetivos sejam de interesse cole- submissas a um regime jurídico idêntico ao
tivo, possa estar liberta de uma série de restrições que é  aplicado à generalidade das pessoas de
inerentes a esse mesmo escopo. direito privado, não existiriam como categoria
  jurídica autônoma, conforme bem observou
Conclua-se, assim, com Almiro Couto e Fritz Fleiner.13
Silva que:  
  Tem-se, assim, que a personalidade de di-
“O regime jurídico dessa atividade estatal, reito privado infundida a tais entidades é apenas
portanto, não  é mais o regime jurídico
tradicional de Direito Privado ou de Direi-
to Privado Público, mas um regime jurídico 10
In RDP 83/147
de Direito Privado Administrativo que quer 11
Direito Administrativo Brasileiro, 16. ed., pág. 321
12
Cf. ob. cit.
dizer: a utilização pela Administração, de 13
Príncipes Genéraux du Droit Administratif Allemand, 1933,
instrumento e forma, de Direito Privado trad. francesa de CH. Einsenman, págs. 82-83

Ano XVIII, edição especial, setembro/2013 | 147


DOUTRINA

um meio para o melhor cumprimento de inte-


resses que transcendem os interesses privados
e não um fim em si, daí porque Celso Antonio
Bandeira de Mello, no trabalho já referenciado,
aduz:
 
“Bem por isso, as normas de direito privado
comparecem no que concerne ao seu regime
operacional (e ainda assim com restrições),
pois o que se pretendeu foi tão somente
outorgar-lhes meios de ação dotados de
maior agilidade e desenvoltura do que os
dispostos para as pessoas públicas.  Já as
normas de direito público irrompem – às
vezes em concomitância com disposições
de direito privado – sobretudo no que atina
aos seus mecanismos de controle (em nome
dos quais não raro refluem também sobre
seus procedimentos operacionais), pois não
haveria razão, nem interesse, nem possibili-
dade jurídica, de exonerá-las de contenções
e contrastes aplicáveis sobre quem está, por
definição, preposto ao cumprimento de in-
teresses do Estado, do qual é mero auxiliar,
e maneja, só por isto, recursos originaria-
mente captados, no todo ou em parte, de
fonte pública”.
 
3. CONCLUSÃO
 
Justamente em razão do interesse público
prevalente sobre tais entidades, as normas que
o Poder Público, como seu controlador, venha
a editar e que expressamente a estas se refiram,
devem ser respeitadas não sendo, portanto, lícito
ignorá-las sob o argumento de que a natureza
jurídica de direito privado, por elas ostentada,
a tal autorizaria.
 
S.M.J., é o Parecer
 
Salvador, ...
 
João Deodato Muniz de Oliveira
Procurador do Município

148 | Ano XVIII, edição especial, setembro/2013

Você também pode gostar