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Tiragem: 50283 Pág: 28

País: Portugal Cores: Cor

Period.: Semanal Área: 28,88 x 35,68 cm²

ID: 32909058 26-11-2010 | Ípsilon Âmbito: Informação Geral Corte: 1 de 2


Um português, dois espanhóis e um
italiano encontram-se numa oficina
fessor de teatro, director do grupo.
O projecto iberizou-se logo a seguir
africana com “A Varanda do Frangi-
pani”, ainda em 1999, “Mar Me Quer”
As formas teatrais vras em “Ki Fatxiamo Noi Kui”, pleno
de verbo em “Ñaque”, o segundo es-
de Commedia dell’Arte em Itália e à primeira criação, com a partida de (2001), “Mundau” (2003), “Geração do Meridional estão pectáculo. O Teatro Meridional con-
decidem fazer um espectáculo jun- Stéfano Filippi, o italiano. O espectá- W” (2004), “A Montanha da Água Li- seguiu uma síntese feliz entre referên-
tos. Querem criar um teatro itineran- culo seguinte, cuja ideia assentava lás” (2005) e “Lisboa Invisível” (2008). a sul: no coração, cias e contexto portugueses, mas
te, despojado, para todos os públicos, como uma luva à companhia, é “Ña- Ao mesmo tempo, continua a fazer nada provincianos, e uma linguagem
assente no trabalho do actor, no es- que, ou sobre Piolhos e Actores”, o espectáculos a partir das técnicas da mais do que na artística própria. É uma das compa-
pírito das antigas companhias do Sul texto de Sanchis Sinisterra sobre uma Máscara, do Clown e da Commedia nhias com mais internacionalizações.
da Europa. No ano seguinte, estreiam dupla de actores famintos na Espanha dell’Arte e encena as duas principais
mente, no tronco O grupo era candidato ao Prémio Eu-
em Casablanca “Ki Fatxiamo Noi Kui”
– “o que fazemos nós aqui”, em ita-
dos Currais de Comédias. Até ao final
da década, recebem prémios, fazem
peças de Beckett, “Endgame” (2004)
e “Waiting for Godot” (2006), que
e nos membros, mais ropa (que este ano também distinguiu
a encenadora britânica Katie Mitchell
liano disfarçado –, espectáculo em digressões, ganham as atenções do pode não parecer mas têm tudo a ver do que na cabeça. e noutras edições Pippo Delbono, Ro-
que quatro Zanni vindos da guerra (o público e da crítica. Em 2000, o Me- com memórias de actores. As inúme- drigo Garcia e François Tanguy) des-
Zanni é uma das personagens da ridional faz “uma espécie de Tratado ras viagens pelo país fazem do Meri- Um outro tempo, de 2007. O júri valorizou a “atenção
Commedia dell’Arte) se deparam de Tordesilhas”, como diz Miguel Se- dional uma das mais relevantes com- antropológica para com a vida huma-
com um estrado e começam a brin- abra, e divide-se em dois ramos, um panhias de digressão portuguesas e outra respiração, na em geral, afirmando, por outro
car. E assim nasceu, em Marrocos, em Espanha, constituído por Alvaro tornam o grupo um caso nacional. Em lado, a dignidade humana e reivindi-
o Teatro Meridional. Quase duas Lavín e Julio Salvatierra, e outro em 2005 conseguem um espaço próprio,
criado em palco para cando a tolerância e a aceitação do
décadas depois, este mês, estreou
na sala Garrett do Teatro Dona Ma-
Portugal, com Miguel Seabra e Natália
Luiza. O grupo lusofoniza-se, obtendo
na antiga Galeria da Mitra, em Lisboa,
ao Poço do Bispo. O código genético
fruição dos demais Outro”. Foi este Outubro. Por alguma
razão, calhou na época em que deci-
ria II um espectáculo sobre o antes sucesso com espectáculos sobre as do grupo parece estar nos dois pri- diram enfrentar os últimos 80 anos
e depois do ano em que Portugal lembranças de imagens e sons do pa- meiros espectáculos: a identidade de história nacional com “1974”.
mudou de regime – “1974”. Do quar- ís – “Para além do Tejo” (2004), “À territorial – seja do sul da Europa seja
teto fundador, resta o português, Manhã” (2006), “Por detrás dos Mon- da lusofonia –, colocada em cena atra- Num país estrangeiro
Miguel Seabra, actor, encenador, pro- tes” (2007) – e revelando uma costela vés de jogos teatrais, quase sem pala- Durante muito, muito tempo, a hu-

PEDRO CUNHA
“1974” é o espectáculo que
o teatro português pedia já há
que tempos: um ponto de vista,
radicalmente subjectivo,
sobre o antes e depois de 1974

Do quarteto
fundador,
resta o
português,
Miguel
Seabra, actor,

Um teatro a sul do encenador,


professor de
teatro, direc-
tor do grupo

tempo
RUI GAUDÊNCIO

O prémio europeu Novas Realidades Teatrais veio abrilhantar o mais recente


O que aconteceu antes de “1974”? Jorge Louraço
Tiragem: 50283 Pág: 29

País: Portugal Cores: Cor

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manidade não teve telemóveis. Em dores começam por se colocar pro-
países da Europa, por exemplo, cafés blemas. Como retratar o tempo do
e praças eram lugares que se enchiam Alentejo, com as suas características,
de amigos, amantes e inimigos a horas relacionadas com o clima, o espaço,
marcadas. Era possível contar com a a distância, o horizonte? Ou, em
presença dos outros em dias especí- “1974”, “como falar de um país intei-
ficos do ano, do mês ou da semana. ro, quando nós próprios nem sempre
Mais de metade da época tratada por conseguimos determinar quem so-
este espectáculo passa-se nesse tem- mos?”. A resposta será dada pelo es-
po tão longínquo que parece que foi pectáculo, agregado final de um con-
num país estrangeiro. E foi. Este junto de processos que determina a
“1974” é um ano paralelo ao nosso, jogo dos actores em palco, e vai aca-
noutra dimensão. A do palco meri- bar por constitui algum tipo de ficção.
dional, talvez. O trabalho da compa- A ambição é dar essa resposta de for-
nhia foi o de dar espessura a esse uni- ma singular, trabalhando com os ac-
verso paralelo. Os sons e a música, a tores para encontrar as soluções em
luz e as imagens evocam retratos de conjunto – condição sem a qual o es-
Portugal no imaginário do espectador. pectáculo não se dá. Os actores reco-
Mas o trabalho de despojamento cé- lhem imagens, sons, ideias e sensa-
nico característico do Meridional ser- ções que podem ser usados no ensaio,
ve sobretudo para dar volume e forma e que darão origem a fragmentos ou
à área do palco, moldando a altura, cenas.
largura e profundidade da cena de As figuras cénicas do Meridional
modo a recriar um ponto de vista, evoluem num espaço que dispensa
radicalmente subjectivo, sobre o an- referências directas ao mundo exte-
tes e depois de 1974. É um ponto de rior, apresentando-se como potente,
vista colectivo, e como tal laboriosa- por si só, para propiciar o jogo entre
mente inventado durante os ensaios actores. É desta interacção própria
e sedimentado a partir de improvisa- que se originará o mundo, não como
ções dos actores, negociado com a narrativa de casos particulares, mas
memória cultural do encenador, cla- como fábula de casos gerais, povoada
ro está, mas também com o que cada de arquétipos e mitos em carne e osso.
membro da equipa trouxe ora como Marta Carreiras, cenógrafa habitual,
mote, ora como glosa, para estúdio. parece concretizar essa visão. Na cena
Como na praça de Peter Handke, de “Waiting for Godot”, a árvore de
da peça “A hora em que nada sabía- Beckett irrompia pelo tablado como
mos uns dos outros” (um texto sem se tivesse germinado no sub-palco. Em
palavras, feito apenas de indicações “Contos em viagem: Cabo Verde”, o
para os actores), as figuras recriadas chão de Carla Galvão era “a metáfora
em “1974” deambulam por um espa- para um cais – um local de permanen-
ço e tempo comuns apresentando tes partidas e chegadas”, notou o crí-
fragmentos da história pessoal que tico Rui Pina Coelho. “1974” parece
coincidem com a história do país. levar mais longe esta possibilidade,
Mas, ao contrário do texto austríaco, ao sintetizar o antes e depois na forma
este espectáculo devolve ao especta- de uma carga ora suspensa ora derru-
dor, reapropriadas pelos corpos e bada, ora provisória ora definitiva,
rostos dos actores, as memórias de que estabelece as regras do jogo.
um breve momento de comunhão
absoluta, que mal rompeu com a vida A selecção meridional
salazarenta de antes do 25 de Abril O Meridional não tem actores residen-
logo se esfumou diante dos olhos dos tes. Como constrói os espectáculos a
portugueses. O facto de essa experi- partir das improvisações do elenco,
ência de paralisia, ruptura e dispersão a escolha dos intérpretes é determi-
só poder ser reconstituída da melhor nante. Miguel Seabra e Natália Luiza
maneira em palco, sem palavras, mas são dos poucos criadores que se dis-
com recurso a estímulos sensoriais põem a procurar jovens talentos e
dispostos com mestria, parece ser o construir os espectáculos a partir de-
segredo do adesão a este espectáculo. les. A escolha recaiu em onze actores
O autor de um dos mais fiéis e fulgu- nascidos em sete cidades diferentes
rantes testemunhos artísticos desta – uma amostra da população que nas-
transição, José Mário Branco, é o res- ceu à volta de 1974. À excepção de
ponsável pela sonoplastia e música Carla Galvão, colaboradora regular,
deste espectáculo, ele que já era co- todos trabalham com o grupo pela
inventor da banda sonora real dos primeira vez. De onde vieram eles?
portugueses. O fruto deste trabalho Alguns das escolas e dos grupos inde-
é uma poética da presença, que con- pendentes do Porto: Susana Madeira,
segue tocar onde poucos chegam. É Rui M. Silva, João Melo, Inês Mariana
o espectáculo que o teatro português Moitas e Inês Lua. Filipe Costa veio
pedia já há que tempos. de Coimbra, Cláudia Andrade estu-
Miguel Seabra conta que, no tempo dou em Barcelona. David Pereira Bas-
da ditadura, quando ia de viagem a tos, Emanuel Arada e Miguel Damião
Badajoz com os pais, cerca de um qui- trabalham em Lisboa desde os anos
lómetro antes da fronteira tinham de 2000. Todos vinham fazendo traba-
ficar em silêncio total. Que tipo de lho de mérito, e algumas actuações
emoções ficarão gravadas nesses mi- de destaque, nas respectivas cidades.
nutos sem palavras? Este espectáculo, João Melo é um dos actores mais ver-
como outros do Meridional, parece sáteis do Porto, Inês Mariana Moitas
programado para abrir essas caixi- uma força da natureza, Susana Ma-
nhas de lembranças que fazem a sín- deira um talento a roubar a cena dis-
tese entre a forma colectiva do regime cretamente. Filipe Costa, também
em vigor e a experiência pessoal des- músico, é um intérprete fascinante,
sa vigência. As formas teatrais do Me- que fez um Peer Gynt memorável no
ridional estão a sul: no coração, mais seu exercício de finalista, em Coimbra
do que na mente, no tronco e nos (numa encenação de Antonio Merca-
membros, mais do que na cabeça. Um do). Agora, são co-autores deste es-
outro tempo, outra respiração, criado pectáculo. Há sete anos, “Para além
em palco para fruição dos demais. do Tejo” mostrou que Adriano Carva-
lho, Carla Galvão, Gonçalo Wadding-
Lógicas de criação ton, Mónica Garnel, Nuno Lopes e
O documentário de Patrícia Poças so- Romeu Costa eram dos mais brilhan-
bre o espectáculo “Para além do Tejo” tes da sua geração. E depois de
dá a ver os métodos do grupo. Os cria- “1974”?

espectáculo do Teatro Meridional.


Figueira

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