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VII RAM - UFRGS, Porto Alegre, Brasil, 2007 - GT 45 Estéticas indígenas americanas. Coordenação:
Sergio Baptista da Silva (UFRGS, Brasil) e Guillermo Wilde (UBA, Argentina)
Nhemboapyka, expressão que consta nas versões dos mitos coligidos por
Cadogan em seu Ayvu Rapyta (1959:39) é traduzida por “tomar assento, ser concebido
ou engendrado”. Com essa expressão, o novo ser, aquele que trará alegria (avya) fica
provido de um assento (apyka) semelhante àquele em que “Ñande Ru aparece em meio
às trevas”1. Conforme as explicações que obtive, entre as palavras proferidas no
momento do nascimento às divindades (nhanderu) - pelo tamói (avô, “sábio”) ou pela
jaryi (avó, “sábia”) ou parteira (kyrïi va’e rexaa) -, quando se agradece a vinda de uma
alma (nhee) que terá assento (apyka), é a expressão nhemboapyka que “marcará” a sua
presença / inserção entre os demais.
- jau é a tradução de nascer e de banhar. O primeiro banho coincide com o
próprio nascimento, (-mbojau traduz-se por fazer nascer, dar banho), momento em que
o corpo da criança passa a receber os primeiros cuidados, agora separado do corpo da
mãe.
O nascimento de uma criança marca o lugar onde acontece a sua inserção na
vida social. Assim como as águas do primeiro banho despejadas na terra, sobre a
placenta que se enterra, são marcas de uma tradição que acontece num presente
marcador do futuro. O depoimento de jovens lideranças de uma aldeia em São Paulo2,
jovens pais, projetam a importância dos lugares de nascimento - lugares que embora não
submetem nem circunscrevem a vida da pessoa (como seria o enterro do corpo) - como
marcadores espaço-temporais, que impedem o esquecimento: pessoas gostam de visitar
os locais onde elas mesmas nasceram e seus pais e filhos e netos... (Ao contrário dos
ocidentais que contabilizam cemitérios e a presença de restos mortais para
reconhecerem a tradicionalidade/importância de uma “terra indígena”, os Guarani-Mbya
mencionam os nascimentos). A sepultura que confere um lugar de permanência do
1
Cadogan, 1959:13 – Las primitivas costumbres del colibri.
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Aldeia do Jaraguá.
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morto é motivo de afastamento dos vivos. Parentes próximos se desligam daquele que
fica na terra, viajando temporariamente ou definitivamente para outras aldeias indo ao
encontro dos parentes vivos.3
Parece-me que a tradição de um lugar, para os Guarani Mbya, é auferida pelo
início da passagem de um novo ser à vida na terra.
As crianças já nasceram aqui, cresceram aqui, por isso a gente luta por essa terra: quando a
criança nasce e cresce naquela terra, ela faz parte daquela terra, está ligada àquela terra.
(Precisamos calcular nesses 10 anos, quantas crianças nasceram aqui.)
Muitas crianças nasceram aqui, e as placentas das crianças são enterradas aqui na aldeia. Essas
crianças já têm ligação com a terra. Apesar do branco falar que essa área não é tradicional, em
todo esse tempo, já vai sendo uma área indígena tradicional, uma área sagrada.
No nosso conhecimento, toda a terra que a gente pisa é uma terra tradicional.
Não pretendo neste breve texto tratar do tema do nascimento de uma criança e
tudo o que o acontecimento envolve em termos de cuidados e resguardos, durante a sua
gestação e após o nascimento. Este vasto tema é abordado com freqüência, com maior
ou menor profundidade na literatura sobre os povos indígenas 4.
Pretendo apenas tecer alguns apontamentos que estão inseridos num interesse
maior de pesquisa (a partir de observações e informações ao longo dos anos em que sigo
me relacionando com pessoas Guarani-Mbya em suas aldeias), sobre as substâncias que
constituem/formam a pessoa; como se misturam no seu corpo e na sua alma (espírito) as
seivas, as carnes, os ossos, os óleos, as peles, os pelos, as cascas, sementes, fibras,
dentes, folhas, ossos, gorduras, cabelos, resinas, umbigo, fumaça... Como se a
“condição” para que a pessoa possa se relacionar, e assim se formar, implicasse a
incorporação de pedaços/partes/essências/espíritos de outros corpos em suas diversas
formas, seja “natural” (bruta) ou manipulada (confeccionada). Seja por ingestão seja por
contato, pressão, fricção, sopro, pintura... Até o momento tenho somente indagações a
respeito de como esses elementos circulam, se interagem no interior do corpo e como
emergem em afeições, em qualidades e submetem-se às condições da existência (aos
ciclos, aos períodos). A alimentação e ingestão, em si, é um tema amplo que merece
3
Atualmente os índios são levados a referir-se aos locais de sepultamento para justificarem seus direitos
tradicionais sobre as terras que ocupam, durante processos litigiosos ou de demarcação.
4
Pesquisa minuciosa entre, com detalhes sobre as regras de alimentação e outros cuidados sob a
perspectiva do povo Yudjá (e ainda sobre a influência do cauim), foi elaborada por Tânia S. Lima, 2005.
3
pesquisa acurada sobre aspectos que vão desde a busca (coleta, caça, compra), modos de
preparo, ciclos e circuitos, que não estão contempladas nestas breves notas.
Dentre tantas práticas relacionadas aos cuidados e ao processo de formação da
pessoa, que se inicia no período de gestação, se prolonga até após a morte e envolve
todas as pessoas de seu convívio, penso iniciar esta pesquisa a partir do que é visível,
“concreto” (aos olhos alheios), do que é manufaturado, do que é usado, acrescentado e
exposto no próprio corpo – tendo como alvo as crianças, desde o nascimento até o
momento prévio da chegada da adolescência.
Estas notas se restringem, então, em abordar alguns aspectos relativos à
produção e ao uso de adornos / insígnias corporais infantis entre os Guarani-Mbya.
Apesar de observar e conversar com vários interlocutores, não me dediquei à pesquisa
mais profunda, portanto ainda não tenho dados suficientes para conferir os significados
que envolvem a confecção desses objetos apropriados para este período da vida.
Objetos que expressam uma cosmologia própria e que referenciam as diversas práticas
sociais cotidianas, em especial àquelas voltadas ao bem estar, saúde, desenvolvimento
corporal e espiritual da pessoa, bem como uma concepção estética peculiar.
A reflexão que se propõe está contextualizada ao momento atual, em que as
políticas públicas de educação e saúde estão sendo implantadas em praticamente todas
as aldeias Guarani, as crianças constituem seu alvo privilegiado e condutas médicas e
educacionais institucionalizadas podem interferir nas práticas de produção e no uso dos
ornatos infantis. Neste contexto, impulsionar aptidões, padrões estéticos e
conhecimentos é um meio de dar continuidade a esta prática social com as inovações
referenciadas pela própria sociedade. Em outro momento, a pesquisa pretende observar
transformações derivadas das adequações/adaptações que aparecem na confecção dos
adornos pessoais, enquanto prática oriunda de saberes coletivos, bem como do eventual
não uso dos mesmos fato que se observa, nas novas gerações, em aldeias Guarani-Mbya
situadas em diversas regiões.
que, quando secar e cair, seja suficiente para se fazer com um pedacinho o mboy
pyaguaxu (colar de fortalecimento, “coração grande”) e guardar o restante para
“remédio” para a mesma ou para dar às outras crianças e pessoas, como “remédio”.
A criança está pronta para nascer, com seu primeiro banho. A água deve ser fria5
para que a criança adquira resistência ao frio, para que sua pele tenha força. Na água de
seu primeiro banho, dado pela parteira (ou um familiar próximo) já são colocadas as
pequenas folhas verdes (e mesmo a flor etérea) de ndávyai rogue, folha da alegria
(planta rasteira, que não sei o nome em português). Essas folhas deverão ser usadas no
banho durante toda a vida da pessoa, garantindo assim um sentimento perene de alegria
a ser compartilhado.
A água desse primeiro banho “não pode ser despejada no chão, à toa”. O pai da
criança deve cavar um buraco num canto da casa, enterrar a placenta e então cobri-la
com a água do banho.
Depois que o umbigo secar e cair, com apenas um pedacinho, algum familiar
(“avós, mãe, irmãs, às vezes o pai”) fará o mboy pyaguaxu. Envolvido com um pequeno
pano de tecido de algodão (antes de algodão tecido) o pequeno embrulho é amarrado
num cordão feito contas de yaü, sementes pretas redondas, ligadas por um fio de fibra
de pindó (preferencialmente). Esse colar é colocado em volta do pescoço dos pequenos
(disseram-me alguns que quando já estão com um ou dois meses mais ou menos, outros
que não há restrição, podendo ser usado tão logo seja confeccionado, após a queda do
umbigo). Com ele a criança pequena (mitaï) estará fortalecida e protegida contra o
“esquecimento”, o que significa que lembrará de tudo o que viver e aprender. (Nas
sociedades em que a sua história, memória e futuro dependem de ter uma boa memória,
“cabeça boa”, o esquecimento é fraqueza e lembrar é força (estes conceitos não serão
desenvolvidos aqui). “Isto a ajudará lembrar-se de quem é, dos lugares, de seus pais
(quando se ausentam em viagens à cidade e idas ao mato) e ela não se perderá.....
Também o uso desse colar ajudará a criança a ser mais “concentrada”, menos dispersa,
menos “atrapalhada”.
São colocados na cintura das crianças um fio de fibra de pindó para que o corpo
da criança fique “alinhado”, para que os membros e o corpo se alinhem (fiquem eretos,
“duros”, resistentes) nheemoataa, para que tenham um corpo “unido” e articulado.
5
Afirmação de todos a quem perguntei, com exceção de uma mulher que se tornou agente de saúde da
Funasa.
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Não foi possível precisar se há uma espécie desta ave que tenham preferência. Aparentemente não há.
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kapia (conta branca). Da mesma forma que o tetymakuaa, este adorno serve para
fortalecer os ossos da criança. Nos braços, também para terem boa coordenação e força.
Todos esses adereços colocados nos braços e nas pernas são para fortalecer o
corpo (mbaraetea), para sua duração.
Conforme explicação de uma liderança religiosa, o emprego do yaü na
confecção dos adornos infantis, por ser conta pequena e preta, pelo contraste, ensina a
criança a “ver bem a claridade do dia”.
Outra liderança religiosa afirmou que, quando nasce uma criança, “ao pajé é
revelado se aquela criança tem o dom de ser também um pajé”. Em caso positivo, são
colocados adereços/insígnias nos pulsos e nos tornozelos. Assim essa distinção,
reconhecida socialmente, confere-lhe a consciência de seu potencial e a possibilidade
(não obrigatória) de desenvolvê-lo.
São os avós que fazem os ornatos, que conhecem as funções dos “remédios”,
ervas que aplicam nos adereços. E é por sua vontade e interesse que a prática continua
nos grupos familiares. Um jovem pai queixou-se da falta de interesse, por parte dos
mais velhos de sua aldeia, em fabricar os objetos e exercer os cuidados nas crianças
pequenas.
As crianças usam esses adereços até que, em razão do uso cintínuo, estes se
desfazem sozinhos, completando o ciclo de seus efeitos e influências. E isso acontece
antes de atingirem a puberdade (seu desgaste pode ser também o indício de que estão
entrando em outro ciclo e que necessitam outras formas de proteção).
Franz Muller (Etnografia de los Guarani del Alto Paraná, 1989) descreve
intensivamente uma série de objetos e utensílos pertencentes às coleções reunidas em
1924, entre os quais adornos em geral e chocalhos feitos de pequenas cabaças, para
serem pregados nos pulsos das criancinhas. Desde 1908 entre os Guarani do Alto Paraná
desenvolveu uma extensa pesquisa etnográfica entre os Guarani “Pan, Mbya e Chiripá”.
Em relação à vestimenta (tambeo), descrita pelo autor, pude observar semelhanças com
as lembranças mencionadas a mim pelos Guarani-Mbya que ainda se vestiam
exclusivamente com tambeo na aldeia (e em algumas ocasiões mesmo fora dela quando
crianças e adolescentes) entre as décadas 1960 / 1970. Essas pessoas viveram nesse
período na aldeia Rio Branco (município de Itanhaém - SP), e em aldeias no interior do
Paraná (Palmeirinha e Rio das Cobras) e Xapecó (SC). Da mesma forma a vestimenta
feminina, tal qual ilustrado em Franz Muller (1989), era utilizada. As pessoas com quem
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converesi, disseram me entretanto que essas veste eram tecidas de embira ou da palha
de urtiga (pino).
Referências bibliográficas
CADOGAN, Leon. Ayvu Rapyta; Textos míticos de los Mbyá-Guaraní del Guairá.
In: Boletin no. 227 Antropologia n° 5. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1959.
LADEIRA, M. Inês. O caminhar sob a luz; o território Mbya à beira do oceano. São
Paulo: Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica, 1992.
LADEIRA, M. Inês. Espaço geográfico Guarani-mbyá: significado, constituição e
uso. São Paulo: Tese de Doutorado em Geografia Humana, FFLCH/USP, 2001.
MELIÀ, Bartomeu. Elogio de la lengua guarani: contextos para una educación
bilingüe en el Paraguay. Asunción – Paraguay: Centro de Estudios Paraguayos
Antonio Guasch, 1995.
MÜLLER Franz. Etnografia de los Guarani del Alto Paraná. Argentina: Verbo
Divino (SVD), 1989.
LIMA, Tânia S. Um peixe olhou para mim – o povo Yudja e a perspectiva. São
Paulo – Rio de Janeiro: Editora Unesp, NUTI e ISA, 2005.