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Ninguém esquece nada

Antonio Herci

Ninguém Esquece Nada [Nadie olvida nada] é uma série de pinturas em acrílico sobre madeira
de Guillermo Kuitca (1961), lançada em 1982 em uma exposição em Buenos Aires.

O elemento central e recorrente das imagens é uma cama vazia e desfeita, reaparecendo em
lugares inusitados, como expressão minimalista da perseguição e desaparecimento de pessoas
durante a ditadura militar argentina: era no encontro das camas vazias que as famílias
constatavam mais um desaparecimento ou rapto que ocorrera nas sombras de um temor
noturno (fig. 1 a 3).

Nos quadros as silhuetas de pessoas (fig. 4 e 5), geralmente de costas, flutuam sobre um fundo
desolado, mas o próprio quadro participa de uma memória tão radicalmente coletiva que cada
anônimo nos parece familiar e o reconhecemos como próximos, mesmo sem ver suas faces,
geralmente voltadas para a parede, como se estivessem sob revista.

As telas não apresentam figurações do mundo, tampouco são abstrações. O artista define
suas próprias pinturas como diagramas: figurações incompletas e distorcidas o suficiente para
abstrair-se si como imagem pronta do mundo e provocar uma busca de completude que traz
para primeiro plano um fundo de memória coletiva onde a própria pintura se insere.

Sem ser o arauto de utopias ou anunciador de distopias, não deixa de lembrar, dolorosamente,
que “quando morre um sonho, corre muito sangue” (Fig. 6), mensagem estampada no fundo
de uma de suas telas, mesclando pintura com literatura. Apresenta um insólito cenário onde se
encontram restos de uma apresentação artística, microfones abandonados com uma vala ao
centro e onde reaparece a cama desfeita sendo tragada: novamente a expressão de algum
desaparecimento, mas sob a certeza de que “ninguém esquece nada”.

Kuitca parece mostrar que a função que o artista deve cumprir nas grandes crises é conectar
uma desesperança a uma ilusão, ou uma desilusão a uma esperança e fazer a conexão de uma
continuidade da vida rumo ao futuro, mantendo a defesa intransigente do direito à memória.

A década de 1980 foi marcada por grandes mudanças em nosso continente: pareciam
esgotados os “Anos de Chumbo” das Ditaduras Militares e diversos países ensaiavam as
redemocratizações e a volta a uma esperada normalidade. Movimentos que mobilizavam a
questão da anistia, o direito à memória, à verdade e a uma justiça de transição. Quem pode
ser perdoado e por que tipo de crime? O que poderia ser esquecido em nome de uma nova
ordem?

Na Argentina, com o fim da Ditadura Militar (1983) houve a instalação imediata da Comissão
Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas (Conadep) responsável por apurar o destino dos
desaparecidos, onde eles estavam, o que tinha acontecido com eles e, principalmente, quem
eram os agentes responsáveis por tanto sofrimento. A comissão levantou informações e,
depois de décadas, conseguiu-se material para condenar os primeiros Generais por crimes
contra a humanidade... mas não importava que fossem décadas, não onde ninguém esquecia
nada.
No Brasil desse mesmo período estávamos, ao que parece, prontos para esquecer e perdoar.
Nossa anistia pareceu ampla o suficiente para apontar perigosamente para uma espécie de
abafamento do direito à memória, em nome de algumas trocas políticas que pareciam indicar
que o saldo disso seria bom: os exilados voltariam para casa, seriam perdoados
indistintamente junto com seus algozes e a vida seguiria.

Diante de um pacto que apontava para uma solução que não gerasse tanto conflito com os
militares, apenas em 2011 conseguimos instalar no Brasil a Comissão Nacional da Verdade.

Entretanto, sob a sombra de uma ditadura, mesmo depois de décadas, o processo ainda
continuava diante de um mesmo tabu e pressão para que fossem abafadas suas conclusões,
arquivados seus inquéritos e, por fim, perseguidos os integrantes da própria Comissão sob a
ascensão de um renovado anseio de totalitarismo.

O retrato da contemporaneidade parece apontar, melancolicamente, para a inversão de uma


dolorida memória histórica, recontando e comemorando explicitamente suas atrocidades
como normalidade.

Talvez possamos concluir que, diante do fato de que ninguém esquece nada, quem se esquece
de lembrar corre o risco de esquecer sua própria humanidade.

As obras

KUITCA, Guillermo. Sueño y miseria de una generación que no es la mía (Idea de una
pasión), 2004. Disponível em: http://modulaciones.coppelcollection.com/en/suen%CC
%83o-y-miseria/ (figura 1)

KUITCA, Guillermo. Siete últimas canciones, 1986, 141x 226cm. Disponível em:
http://www.artnet.com/artists/guillermo-kuitca/siete-%C3%BAltimas-canciones-
FHjPjOIIwclTnyHoGfYDGA2 (figura 2)

KUITCA, Guillermo. Nadie olvida nada, 1982. 20x30 cm. Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Nadie_olvida_nada_7.jpg . (figura 3)

KUITCA, Guillermo. Nadie olvida nada, 1982. 122x154 cm. Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Na (figura 4)

KUITCA, Guillermo. Nadie olvida nada, 1982. 122x154cm. Disponível em:


https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Nadie_olvida_nada_1.jpg (figura 5)

KUITCA, Guillermo. Cuando muere un sueño corre mucha sangre, 1987. 130x180cm.
Disponível em: http://www.artnet.com/artists/guillermo-kuitca/cuando-muere-un-sue
%C3%B1o-corre-mucha-sangre-Acuw2VLskXIxZTTFdjKpBg2 (figura 6)

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