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O uso da rubrica na obra de Jorge Andrade

O uso da rubrica na obra de Jorge Andrade

E lisabeth Azevedo

A
lém da óbvia oportunidade de se perceber seu povo, Jorge Andrade acabou por escrever
como as indicações didascálicas servem para um conjunto de textos, organizados num úni-
ajudar a criar o perfil dos personagens e con- co corpo, composto por dez peças, conhecido
duzir o desenrolar do enredo da peça, a aná- como o ciclo Marta, a Árvore e o Relógio (An-
lise das rubricas pode revelar uma outra di- drade, 1970).
mensão do trabalho de um dramaturgo. Na forma em que foi publicado, o ciclo
Neste artigo, vai-se considerar a rubrica Marta não obedece à cronologia da criação das
dentro da projeção que ela assumiu no teatro obras que o compõem. No caso deste artigo, mais
do século XX, como reflexo da maior preocu- conseqüente é considerar a ordem temporal das
pação de autores dramáticos com os elementos peças, para que se possa fazer uma análise das
da encenação que poderiam contribuir para a eventuais transformações sofridas por elas. Nes-
narrativa, ampliando o universo ficcional a ser se caso, também devem ser incluídos os textos que
explorado, e também conduzindo à opção pela não fazem parte do ciclo Marta, mas que foram
forma épica de teatro, mais adequada à aborda- escritos na mesma época, ou posteriormente.
gem de determinados assuntos. Dentro desse Em termos de análise das rubricas usadas
contexto, é possível estudar a produção dramá- pelo autor, a primeira constatação é de que, em
tica do teatrólogo brasileiro Jorge Andrade função da publicação do ciclo, Jorge Andrade
como um exemplo do modo pelo qual o “espe- alterou vários trechos de suas peças. Dentre as
tacular” foi tomando lugar cada vez mais im- mudanças efetuadas, encontram-se algumas que
portante em sua obra, em comparação com o dizem respeito às rubricas.
estritamente literário. Em primeiro lugar, no momento em que
A obra de Jorge Andrade é única dentro do as dez peças foram agrupadas, perderam, de cer-
panorama teatral brasileiro. Nenhum outro dra- ta forma, parte de sua autonomia e sob um tí-
maturgo criou um trabalho tão orgânico e arti- tulo comum (Marta, a Árvore e o Relógio) pas-
culado como esse autor paulista. A partir de sua saram a ser “capítulos” de uma obra maior,
proposta inicial de criar um teatro que refletisse como subtítulos, ao invés de títulos isolados1.
a realidade brasileira, através de sua história e Tal mudança acentuou o caráter épico que já

Elisabeth Azevedo é doutora em dramaturgia e pesquisadora.


1 Jorge Andrade desejava que o ciclo fosse montado como um espetáculo único, durante dez dias segui-
dos, no que seria, sem dúvida, uma empreitada titânica, inédita até hoje. Cada peça tem também como
epígrafe trechos de um mesmo poema de Carlos Drummond de Andrade, O Fazendeiro do Ar, publi-
cado em Poesia Até Agora.

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impregnava fortemente a maior parte dos tex- trouxe ao palco brasileiro um procedimento ain-
tos. O mesmo efeito foi conseguido com a in- da incomum para a época. Claro, antes se assis-
clusão de referências (intratextualidade) de fa- tira a Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues
tos e personagens de uma história na outra. (com seus três planos distintos). Sabe-se que
Mais uma modificação com respeito às Jorge Andrade reestruturou seu texto com base
rubricas é a escolha e/ou mudança de alguns em sua leitura. Evidentemente, o trabalho de
nomes de personagens. O uso do nome Marta, Jorge não é meramente uma cópia do que foi
por exemplo, encarnada como protagonista ape- feito por Nelson Rodrigues. Enquanto Vestido
nas em As confrarias, mas que aparece em diver- de Noiva usa a compartimentação cênica para
sas peças, cria um fio condutor da obra e repre- como que suspender o tempo, instalando no
senta a força vital que move os personagens mais palco um drama intemporal (pode ser visto
fortes, e a própria História. O mesmo processo como um último espasmo de consciência da
se repete com outros nomes, cada qual carre- protagonista, Alaíde, onde os passados, remoto
gando em si uma forte carga simbólica: Vicente e próximo, se misturam), o recorte que Jorge
(uma projeção do próprio autor), Martiniano dá à sua peça acentua justamente o aspecto do
(ancestral e descendente), Lavínia/Lúcia/Lucí- tempo no conflito. Através do recurso de divi-
lia (mulheres da família), Jupira (a eterna pros- dir o palco ao meio e apresentar lado a lado ce-
tituta), Joaquim (o colono e o dono de terras). nas diversas, mas correspondentes (como ecos),
Essas rubricas nominativas2, portanto, passam ele reforça o efeito que o tempo, a história e a
a apresentar uma carga metafórica maior na vida trazem sobre os personagens e os conflitos.
obra do autor do que se fossem simples nomes, Para conseguir esse jogo de falas e cenas
escolhidos um pouco ao acaso. entrecortadas e ecoadas, o autor lança mão das
Neste artigo se focalizará o uso feito pelo rubricas atributivas que devem ser entendidas
autor de outros tipos de rubricas, além das no- como uma marcação de compasso numa parti-
minativas, no intuito de se perceber como, e se, tura musical – estabelecendo um canto–contra-
elas se modificam com passar do tempo, e se canto. A peça não é dividida em atos ou cenas,
são capazes de indicar uma linha evolutiva na mas em primeiro e segundo planos – de acordo
obra de Jorge Andrade, bem como mudanças com o lado da cena em que se desenrola o con-
na concepção cênica em seus dramas. Como se- flito principal.
ria muito extenso examinar todas as peças, fo- Não é menos elaborado o aspecto visual
ram eleitas quatro, representativas dentre as 14 da peça. Apesar de ainda não haver um jogo
que o autor compôs. São elas: A moratória importante com as luzes e com sons (como mais
(1954), Vereda da salvação (1957/64), As con- tarde ocorrerá)4, os cenários estão impregnados
frarias (1970) e Milagre na cela (1977). de elementos simbólicos que remetem o públi-
A moratória3, dos quatro dramas escolhi- co a uma dimensão não explícita nos diálogos,
dos, foi o primeiro sucesso de Jorge Andrade ou que reforçam esses mesmos diálogos. Tal
como dramaturgo. Antes havia publicado ape- procedimento pode, por exemplo, ser “lido” ex-
nas O telescópio – uma peça ainda bastante tradi- plicitamente no galho de jabuticabeira que é
cional em termos de encenação. Já A moratória colocado suspenso sobre a linha divisória do

2 São quatro os tipos de rubricas (internas): nominativa/atributiva – quem fala; destinativa – para quem
se fala; locativa – onde se fala e melódica – em que tom. Ver Issacharoff.
3 A segunda peça a ser composta, ocupa o terceiro lugar dentro da coletânea.
4 Ver o que acontece em Rasto Atrás.

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O uso da rubrica na obra de Jorge Andrade

cenário e que simboliza um mundo, um passa- A segunda peça escolhida é Vereda da sal-
do que murchou, secou, mas que ainda assom- vação5 . Nesse texto, o dramaturgo paulista a-
bra a todos com sua nostalgia. bandonou o caráter épico que tinha marcado A
Outros diferentes elementos também car- moratória e trabalhou dentro de padrões mais
regam forte carga simbólica: a máquina de cos- tradicionais da dramaturgia, tanto que o texto
tura, o relógio de parede, o retrato dos santos. respeita as três unidades clássicas consagradas:
Outro aspecto é que o plano do cenário que re- ação, espaço e tempo. No interior de uma comu-
presenta a fazenda fica mais alto – socialmente nidade rural, no espaço de um dia, há o confli-
superior, esmagando o plano do presente. to e o desenlace do drama dos miseráveis traba-
Por vezes, diálogo e rubrica se misturam lhadores em sua busca de uma vida mais digna,
dando um aspecto narrativo ao texto dramáti- através de uma desesperada e alucinada fé.
co, como no caso da cena: Aí surge um importante exemplo daque-
la intratextualidade, referida anteriormente, da
“Joaquim (Pausa): Onde está sua mãe?
obra jorgeandradiana. Tanto nesta peça, quan-
Lucília: O senhor sabe que ela foi à igreja!
to em A moratória, os protagonistas têm o nome
(Na palavra ‘igreja’ o Segundo Plano se ilu-
de Joaquim. Queria o autor que eles fossem as
mina)
duas faces de uma mesma moeda – a moeda da
Joaquim: É verdade.
história, das forças sociais poderosas, dos inte-
(Pausa. Joaquim olha para os quadros, no
resses que esmagam a quem for preciso, que en-
Primeiro Plano, Helena aparece no Segundo
louquecem os joaquins que não têm como
Plano; encaminha-se para os quadros, ajoe-
combatê-las. Eles sucumbem diante da inexora-
lha-se e começa a rezar.)
bilidade da força do poder econômico e políti-
Joaquim: Era diante desses quadros que sua
co; a uns ela alucina (o Joaquim de Vereda), a
mãe costumava rezar lá na fazenda. (Pausa)
outros ela imbeciliza (o Joaquim de A morató-
Foram sua igreja durante trinta e cinco anos!”
ria). Portanto, a importância da escolha do nome
(Andrade, 1970, p.124-5).
dos personagens tem neste exemplo a sua medi-
A peça trabalha com esse esquema de auto-re- da e dá um sabor épico a esse texto tão próximo
flexos, ecos e repetições para reforçar o senti- da tragédia, por integrá-lo num corpo maior.
mento de mudança, tanto na situação, quanto Como em A moratória, Jorge Andrade
no caráter dos personagens; seja para o bem, seja trabalhou a encenação de maneira a que as refe-
para o mal. rências visuais (e sonoras) fossem uma abertura
Além das rubricas locativas (entradas e esse mundo opressivo a que estão presos os co-
saídas são muito importantes na peça), as de- lonos do sertão brasileiro. O cenário é único nos
mais se inscrevem nas tradicionais indicações de dois atos que formam a peça. No primeiro, é
estados psicológicos e comportamentais. Por- final de tarde, no segundo, noite fechada. O
tanto, o que a peça de Jorge Andrade apresen- drama se dá na escuridão, no confinamento de
tou como inovação fixa-se através do jogo de- uma comunidade fechada sobre si mesma, sem
terminado nas suas rubricas. Já encontramos horizontes ou perspectivas. É também a escuri-
aqui um autor preocupado não só com o con- dão da ignorância e do fanatismo que aniqui-
teúdo da mensagem que queria expor, mas, lam o pouco de discernimento de que essa gen-
igualmente, com a forma de fazê-lo. te rude é capaz.

5 Quinta peça do ciclo, teve oito versões, sendo que a primeira publicação é de 1965. Foi o quarto texto
a ser publicado pelo autor.

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A descrição do cenário é detalhada logo Parece-me que a maior parte de dramaturgia


de início e impõe sua concepção ficcional aos nelsonrodrigueana evidencia fortes caracte-
elementos visuais que aparecerão no palco. Tra- rísticas expressionistas. Não que fosse um ex-
ta-se de uma clareira com pequenos casebres, pressionista na acepção estrita do termo, mas
envoltos por uma opressiva muralha de árvores. sua visão do mundo fundamenta-se nessa
É preciso chamar a atenção para alguns concepção existencial” (Fraga, 1998, p. 198-
aspectos da concepção cênica de Vereda da sal- 9).
vação que indicam a proximidade da peça, e do
“Nelson Rodrigues também se preocupa com
restante da obra de Jorge Andrade, com o Ex-
detalhes de encenação, visando desnaturalizar
pressionismo. Esse movimento artístico alemão,
o mais possível o palco (...) para configurar a
efervescente no pré e no pós-Primeira Guerra
ação e criar a atmosfera de irrealidade exigida
Mundial, foi um fenômeno quase tão diversifi-
pelos textos” (id., ibid., p. 201).
cado e seminal quanto o Renascimento. Inovan-
do em diversos aspectos as artes em geral mar- “Vereda da salvação” é a primeira peça onde se
ca, sem dúvida, a emergência do teatro contem- pode notar em Jorge Andrade o uso de proce-
porâneo. Tudo o que se fez em termos de teatro dimentos que apontam para esse mesmo tipo
no século XX deve muito aos dramaturgos ale- de concepção. Veja-se, por exemplo, a descri-
mães do início deste século (e seus precursores: ção da clareira cercada pela muralha de árvores:
Strindberg, Büchner, Wedekind).
“Tem-se a impressão de que os casebres estão
No que tange a obra jorgeandradiana,
sufocados pela mata exuberante; é como se es-
pode-se dizer que ecos dos procedimentos con-
tivessem no fundo de um poço, tendo como
sagrados pelos expressionistas germânicos emer-
única saída a clareira das copas das árvores”
gem nela. Do mesmo modo que Nelson Rodri-
(Andrade, 1970, p. 233).
gues apresenta certas características expressionis-
tas, Jorge Andrade apresenta outras, diferentes, A imagem do homem ameaçado, diminuído e
mas igualmente emblemáticas, como a marcada solitário, é claramente expressionista.
preocupação social, por exemplo.
“Além dos casebres e da mata, vemos no círculo
Como bem analisa Eudinyr Fraga, não
aberto pela mata, um céu avermelhado, no prin-
existe no Brasil um movimento expressionista
cípio; depois coberto de estrelas. (...) Os case-
organizado ou um autor exclusivamente expres-
bres são mal construídos, dando a impressão
sionista. O que se dá com Nelson Rodrigues,
de que poderão cair de uma hora para outra”.
por exemplo, é a utilização de alguns dos prin-
cípios dessa estética. Também na rubrica referente ao trabalho dos
atores tem-se a indicação de um estilo não natu-
“No Brasil não houve nenhum dramaturgo,
ralista de representação, carregado de simbologia6:
anterior a Nelson Rodrigues, que tenha sido
influenciado pelo movimento. Muito menos “Onofre, como quase todos os outros homens,
ainda no que se refere à encenação. Claro, é bastante magro, corpo ligeiramente curva-
podem-se detectar traços evidentes na obra do, braços fortes, porém um pouco deforma-
de Oswald de Andrade, por exemplo, mas não dos (...) [Dolôr] como as outras mulheres, tem
há o emprego sistemático de procedimentos os seios muito caídos e é seca de corpo. Qual-
expressionistas (...) quer coisas nelas indica que não são tão ve-

6 Não é à toa que a primeira montagem dessa peça, dirigida por Antunes Filho para o TBC, deu margem a que
o diretor desenvolvesse um novo método de trabalho de atores, e criou enorme polêmica.

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lhas como aparentam ser. São mais estragadas da Inconfidência Mineira, durante não mais do
pelo meio que pelo tempo” (id., ibid., p. 235). que um dia. Contudo, a cada parada, Marta re-
A cena final da peça, depois de vários momen- pete um mesmo “jogo” e, como mestre de ceri-
tos de êxtase e agitação: mônias, encena todo seu passado, e de seu fi-
lho, cobrindo um período de trinta anos.
“Subitamente, ouvem-se de todos os lados, ti- Essa memória, que a protagonista mate-
ros e gritos. Enquanto as vozes gritam de fora rializa em cena, é invocada e projetada no palco
e aumenta a fuzilaria, os agregados continu- através das indicações didascálicas. Assim como
am rodopiando, cantando e arrancando as acontecera com A moratória, dois planos tem-
roupas, que voam no ar, confundindo com seus porais se entrecruzam, só que, desta vez, sem a
braços erguidos para o alto, numa súplica divisão rígida de um palco fixo e mobiliado. Luz
alucinada” (id., ibid., p. 279). e som assumem um papel muito mais substan-
Além das rubricas que vão contribuindo para a cial, marcando as cenas vivenciadas por Marta,
criação de um clima de exasperação, culminan- seu marido e seu filho. Deve-se, contudo, ter-se
do nessa cena final, deve-se destacar que Jorge sempre em mente que aquilo que se vê é a ver-
Andrade conseguiu criar também, através dos são que Marta apresenta dos fatos. Em várias
diálogos, um mundo à parte, distanciando-se do ocasiões ela propositadamente foge a responder
registro naturalista e mimetizado do falar inte- diretamente às questões feitas pelos confrades,
riorano. Assim como seus personagens, a fala é preferindo a via da alegoria e dos subterfúgios.
rude e áspera, mas poética, evidenciando a se- Desse modo, o que se assiste como flash-backs
paração entre esse mundo arcaico e o mundo pode bem ser também uma projeção da versão
cotidiano. de Marta a respeito dos acontecimentos que le-
Com muito talento e através desses recur- varam seu filho à morte.
sos, o autor conseguiu criar uma obra intrinse- De qualquer maneira, esta peça, junta-
camente brasileira, mas também profundamen- mente com Rasto atrás (1965), O sumidouro
te universal. (1969) e Milagre na cela, é a que apresenta esse
A terceira peça eleita é As confrarias7. Nela lado cênico mais desenvolvido e dá a medida
se alia a poetização da linguagem à fragmenta- da importância que o autor atribuía ao aspecto
ção da estrutura dramática, o que aproxima no- espetacular em seu teatro:
vamente o drama de Jorge Andrade da estética
expressionista e épica. A via-crúcis de Marta re- “José, entre dezesseis e dezessete anos, vai sendo
mete claramente ao “drama de estações”, tão iluminado tentando imitar o crescimento e a
caro ao teatro expressionista. morte de uma planta. À medida que é ilumi-
Em As confrarias, Jorge Andrade usou e nado, os irmãos desaparecem” (id., ibid., p. 30).
abusou dos recursos cênicos para ampliar o uni- Mais adiante:
verso da trama, que, a rigor, é concentrada no
tempo e no espaço. A história de Marta, que “Marta volta-se e desaparece, rápida. Enquan-
carrega seu filho morto de confraria em confra- to o andor sai, eleva-se o canto, desaparecendo o
ria (quatro no total) em busca de um lugar para oratório. O cenário vai se transformando, à es-
enterrá-lo, passa-se em Minas Gerais, à época querda, numa rua tortuosa, e à direita, ilumi-

7 É a peça que abre o ciclo, mas foi das últimas a serem compostas, depois de muitos anos de pesquisas, e
publicada em 1970.

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na-se outro consistório, onde está reunida, em do espetáculo. Até mesmo a participação dos
grande preparação, a irmandade do Rosário”. personagens na cena é vaga. Pede-se meia-dúzia
de freiras, sem muita precisão. Depois, nos diá-
E ainda: logos, não há indicação de quais freiras, dentre
“Enquanto Marta fala, Sebastião vai sendo essa meia-dúzia, deve falar. Aqui também essas
iluminado e os irmãos vão desaparecendo. As marcações são deixadas ao responsável pela
paredes ficam transparentes, revelando o es- montagem. Este fato justifica-se do ponto de
plendor da irmandade reunida na nave da vista dramático já que, a não ser a madre, nenhu-
igreja. Todo o palco fica dourado” (id., ibid., ma das religiosas tem um destaque maior, atu-
p. 40). ando como um coro.
No que diz respeito ao cenário relativo à
“Slides de milharais e arrozais batidos pelo
vento são projetados sobre o palco, colorindo-
casa do delegado, a imprecisão das rubricas não
é tão grande. Da mesma forma, é muito maior
o de verde” (id., ibid.).
a preocupação com a apresentação do persona-
Lembrando-se, aqui, um recurso já usado em gem (o delegado) e seu conflito psicológico.
Rasto atrás e em O sumidouro e que remete ao Portanto, há uma equivalência na relação entre
estilo de Piscator. descrição do espaço e importância da trama na
A peça é bastante fragmentada, reflexo da economia da peça. Assim, para criar o espaço
fragmentação e hierarquização da própria soci- da vida cotidiana do delegado torturador, o au-
edade brasileira colonial. Vê-se, portanto, que a tor apresenta o seu universo doméstico (sempre
estrutura dramática e cênica harmoniza-se com fazendo a transferência de um ambiente a ou-
seu tema e com a perspectiva crítica imprimida tro pelo jogo de luzes).
pelo autor, não podendo ser facilmente disso-
“Jupira se volta no catre. Joana se aproxima
ciados forma e conteúdo.
da parede e começa a ler o que está escrito
O mesmo poderia ser dito de O sumidou-
nela. Desaparece a cena quando se ilumina a
ro, onde ainda acrescenta-se o elemento confes-
sala da casa de Daniel. A sala é bem arru-
sional (e metalingüístico), já que quase toda a
mada, revelando em tudo um ambiente es-
peça é a projeção da mente do protagonista, o
sencialmente familiar. Daniel está sentado à
dramaturgo Vicente.
mesa, escrevendo. Marina entra com um vaso
O último texto escolhido é Milagre na
de flores e vai colocar em cima de um móvel.
cela (Andrade, 1977), peça que não integra o
Enquanto faz isto, observa Daniel, revelan-
ciclo Marta, e que é a mais trabalhada, em ter-
do ter alguma coisa a dizer. Daniel parece ser
mos cênicos, dentre as peças “avulsas”. O texto
outro homem, completamente diferente do que
tem uma forma convencional, de dois atos, sem
aparece na prisão. A atmosfera na sala é de
marcação do número de cenas.
paz e amor” (id., ibid., p. 29).
São três os ambientes no drama: a prisão,
a casa do delegado e o convento. O último é o O contraste que o autor procurou criar entre o
mais simples, não apresentando nem mesmo ambiente “familiar”, de “paz e amor”, só faz cres-
uma breve descrição. É invocado rapidamente cer a tensão com a condição de torturador do
pela rubrica: personagem. Foi, aliás, a apresentação desse lado
humano de Daniel um dos pontos que causou
“Joana deita-se no catre. Desaparece a cena.
maior polêmica quando da publicação da peça.
Ilumina-se a sala do convento, onde meia-dú-
A maior atenção dada, em termos de des-
zia de freiras estão reunidas” (id., ibid., p. 23).
crição do ambiente e indicação de possíveis sig-
Como se vê, todo e qualquer detalhamento que nificados simbólicos que dele se poderiam ex-
seja necessário é deixado por conta do diretor trair, fica reservada para a prisão. Esta sim é o

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centro de todo o conflito. Há um detalhamento Talvez seja neste texto que Jorge Andrade
à parte para o ambiente da cadeia, logo antes tenha trabalhado mais intensamente os recur-
do início das cenas: sos sonoros. Ele já o fizera antes, em outras pe-
ças. Ruídos de trem, relógio, flauta, etc. sempre
“Salas, corredores e celas de uma prisão que
tiveram uma carga simbólica importante em
lembra uma construção medieval. Quando in-
suas peças. Em Milagre na cela, ele utiliza ou-
teiramente iluminado, assemelha-se a uma ca-
tros tipos de ruídos, agregando-os, simultanea-
tedral. Ao longo da peça ouvem-se sons de si-
mente, a um gestual e um comportamento cê-
nos, buzinas, barulho de pessoas praticando o
nico que contribuem para criar um clima de
karatê, latidos de cães policiais e gritos indistin-
irrealidade em determinadas cenas, como por
tos. Em todos os lugares, menos nas celas, há
exemplo:
sempre um crucifixo. As paredes da cela de
Joana são inteiramente rabiscadas, mas não “De repente, Daniel faz um sinal. Instanta-
se distinguem as palavras, a não ser chegando neamente, os homens começam a simular uma
muito perto. Aparecem ainda a sala da casa luta de Karatê em volta de Joana. Eles sal-
de Daniel e a do convento” (id., ibid., p. 14). tam no ar, jogando os pés e punhos na dire-
ção do rosto de Joana, ao mesmo tempo em
É um cenário camaleônico, mutável de acordo que gritam. Os pés e os punhos fechados pas-
com a metáfora que o autor deseja imprimir em sam a um palmo do rosto e do corpo de Joana.
determinado momento do texto. Além da des- Esta, embora temerosa, mantém-se firme na
crição, concentrada nessa rubrica inicial, há ou-
cadeira. A luta simulada se transforma num
tras que vão completando o universo simbólico bailado sinistro. O rosto dos homens são más-
do drama, como por exemplo: caras odientas. Seus gritos, sons primitivos.
“CENA – Quando se abre o pano, apenas a Daniel olha para eles como se fossem feras
sala do carcereiro está iluminada. Ele assiste te- domesticadas. De repente, os homens param
levisão, enquanto lê uma revistinha de quadri- e voltam aos seus lugares, estáticos. Olham
nhos. A televisão deve ficar ligada durante todo Joana com um desejo assassino, como se fos-
o desenrolar de peça. Logo depois entra Daniel” sem cabeças da mesma hidra, do mesmo dra-
(id., ibid., p. 15). gão. Daniel sorri” (id., ibid., p. 37).
“Com relutância Miguel segue Cícero. Antes
Veja-se também a questão das palavras inscritas
de sair, Miguel se volta e olha na direção de
na parede da cela de Joana. Elas devem ser ilegí-
Joana, ansioso. Ilumina-se a sala do interro-
veis para o público, mesmo para a protagonista
gatório. Os homens continuam em volta da
só é possível lê-las quando se aproxima da pare-
sala, parados, imóveis. Daniel é o único que
de. Mas o fato de Jorge Andrade ter usado de
se movimenta. Porém, os movimentos de ca-
um recurso visual para fazer uma citação, mes-
beça e de braços de Daniel são reproduzidos
mo que de um “autor desconhecido”, dá uma
exatamente iguais pelos seis homens que o ro-
ressonância maior ao fato – que se faz presente
deiam. É como se fosse apenas um corpo co-
a cada vez que a cela se ilumina – do que se se
mandando sete cabeças e quatorze braços. Os
tratasse de um texto lido, ou dito, pontualmen-
movimentos de braços são lentos lembrando
te, durante a peça. A escrita torna-se um ícone
tentáculos que se agitam” (id., ibid., p. 51).
poderoso. Dá, inclusive, uma dimensão meta-
lingüística à peça. Outro elemento constan- “Cícero sorri e sai. Ilumina-se a cela de Joana.
temente presente, sem que se faça uma referên- Ela está fazendo ginástica com energia do-
cia verbal a ele, é o crucifixo, encontrado em brada. Logo em seguida, ilumina-se a sala do
quase todos os ambientes do cenário. interrogatório. Daniel está sozinho no meio

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da sala e responde às VOZES que vêm de todos anjo, como em Pedreira das almas). É certo que
os lados. Vozes de homens, mulheres e crianças. o dramaturgo conservou-se dentro dos limites
Daniel parece acuado. Durante a cena ou- da dramaturgia de caráter épico, com ecos
vem-se, indistintamente, passos e conversas de expressionistas, que já haviam sido trilhados por
muitas pessoas. Esses ruídos devem fazer fun- outros dramaturgos, alguns deles, aliás, declara-
do à cena e vão num crescendo até abafar a damente admirados por Jorge: Arthur Miller,
voz de Daniel. Os sons dos lutadores de karatê O’Neill e Brecht. Como esses mesmos autores,
e os latidos dos cães policiais dominam tudo na obra do brasileiro, a relação entre texto dia-
no final. Joana acompanha a cena fazendo logado e rubrica guarda uma hierarquia que
ginástica e sorrindo com determinação” (id., valoriza, sobretudo, o aspecto textual. Jorge
ibid., p. 79). Andrade é um falador. Não há, no entanto,
como negar que muito da estrutura das peças
que escreveu está contida nas rubricas. Não se-
Segue-se toda uma cena em que Daniel dialoga
gui-las seria inviabilizar sua obra. Portanto, jus-
com “Vozes”. Na cena final:
tifica-se que se chegue a determinadas conclu-
“Joana se volta com resolução e sai. Ela pára sões a respeito de seu trabalho a partir da análise
no meio das celas e abre os braços numa en- didascálica.
trega total. À medida que começa a cantar, Partindo do que foi dito até aqui, pode-
uma luz estranha ilumina o cenário. O am- se constatar, sempre através das rubricas, que
biente parece milagroso, cheio de mistérios. houve uma crescente sofisticação nos textos do
Pouco a pouco, vozes que vêm de outras celas, autor e que essa alteração se deu, sobretudo, na
acompanham Joana. A música se transforma maior elaboração dos aspectos cênicos das pe-
num samba com ritmo intenso. Jupira entra ças. Com o passar dos anos, Jorge Andrade foi
numa dança frenética, acompanhada por abandonando as rubricas puramente melódicas
Joana. As duas são perfeitas passistas. Som- e expandindo aquelas que se referiam ao aspec-
bras dançando surgem em todos os cantos. O to espetacular do drama. Cada vez mais, foi
coro se eleva cada vez mais, até que se fecha a pensando como um encenador, além de autor.
cortina” (id., ibid., p. 93). Contudo, não se transformou num ciumento
de sua obra. Em diferentes ocasiões, deixou cla-
Estas cenas mesclam-se a cenas mais na- ro (explicitamente ou por omissão) que seria
turalistas que compõem a maior parte do dra- necessária a interferência de uma segunda pes-
ma. Em comparação com as peças anteriores de soa para completar seu trabalho. Generoso,
Jorge Andrade, surge a diferença de que os sons sabe-se também que aprendeu a aceitar as in-
ou o comportamento não naturalista dos per- tervenções dos diversos diretores que encenaram
sonagens extrapola a representação de uma pro- seus textos, tendo mesmo modificado alguns
jeção mental (O sumidouro) ou da memória trechos a partir das montagens.
(Rasto atrás e As confrarias). O épico impregna Através da breve análise dos tipos de ru-
o “real” da trama dramática, quebrando os li- bricas que foram usadas por Jorge Andrade fei-
mites entre o universo pessoal de um persona- ta aqui, podemos compreender que muitos dos
gem para transformar-se em realidade ficcional. procedimentos da moderna dramaturgia estão
Por outro lado, Milagre na cela também contidas nessa escrita, tão própria ao texto dra-
conserva outras ligações com as obras anterio- mático. Prova-se também que o próprio texto
res de Jorge Andrade. Veja-se, como exemplo, a teatral, através do estudo das rubricas, pode for-
escolha dos nomes para os personagens (tão re- necer elementos para a análise dos aspectos cê-
levante no mundo jorgeandradiano). Tem-se nicos de determinado autor, sem que se faça
Jupira, a eterna prostituta, e Gabriel (nome de necessário assistir a uma montagem. Se tal fos-

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O uso da rubrica na obra de Jorge Andrade

se estritamente necessário, Jorge Andrade se- montagem de seus mais complexos e melhores
ria prejudicado, visto que, infelizmente, até ago- textos.
ra, o teatro nacional ainda deve a esse autor a

Referências bibliográficas

ANDRADE, J. Marta, a Árvore e o Relógio. São Paulo, Perspectiva, 1970.


_______. Milagre na cela. São Paulo, Paz e Terra, 1977.
FRAGA, E. Nelson Rodrigues expressionista. São Paulo, Ateliê Editorial, 1998.

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