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UMESP – UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

ESCOLA DE EDUCAÇÃO, HUMANIDADES E DIREITO

A ORIGEM DE YHWH E DO MONOTEÍSMO ISRAELITA EM MARK


S. SMITH E THOMAS RÖMER

Por: Omar João da Silva1

RESUMO

O presente trabalho propõe uma análise de dois livros, cujo viés investigatório
tem uma mesma direção. Portanto, disporemos aqui os resultados das pesquisas de
Mark S. Smith contidas em seu livro “O Memorial de Deus” e de Thomas Römer, em
seu livro “A Origem de Javé”.

PALAVRAS CHAVE: Yhwh, Monoteísmo, Bíblia, Smith, Römer

ABSTRACT

The present work proposes an analysis of two books, whose research bias has
the same direction. Therefore, we will have here the research results of Mark S. Smith's
in his book "The Memorial of God" and Thomas Römer in his book "The Origin of
Yahweh".

KEY WORDS: Yhwh, Monotheism, Bible, Smith, Römer

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos muito se tem discutido sobre a ideia de um e único Deus
universal, bem como de uma única religião que represente a maneira correta de se
venerar esse Deus e, que ressalvadas as devidas proporções culturais possam servir para
todos os povos.

Nessa perspectiva, de imediato surge-nos a memória a mais antiga religião


monoteísta do mundo que professa um único e mesmo Deus específico, o Judaísmo, que
1
Mestrando em Ciências da Religião (UMESP), bolsista CAPES. E-mail: omar.adbelem@gmail.com
posteriormente influenciará profundamente outras duas grandes religiões, o
Cristianismo e o Islamismo.

É justamente esse tema, que Smith e Römer vão abordar em seus livros. Seus
esforços são para à luz das mais recentes pesquisas, inclusive as arqueológicas mostrar a
origem de Yhwh e como passou a ser primeiramente o Deus tutelar e nacional de Israel,
para depois tornar-se o Deus universal. Assim, o propósito de Smith e Römer é buscar
compreender tanto a origem de Yhwh como do monoteísmo israelita.

Nas considerações finais dispomos algumas semelhanças entre as pesquisas de


Smith e Römer.

1. A ORIGEM DE YHWH E DO MONOTEÍSMO EM SMITH

A pesquisa de Smith disposta em seu livro “O Memorial de Deus” contém


quatro capítulos, cujos esforços são para compreender o Deus da Bíblia. Para tal, sua
pesquisa eiva-se em duas direções, a saber: a) Compreender o contexto histórico de
Israel e como a Bíblia apresenta o seu passado e; b) A questão do Deus monoteísta da
Bíblia.

Para conseguir expor o seu propósito nesta pesquisa, Smith começa do fim, ou
seja, do que já está convencionado, e o faz em razão das novas descobertas
arqueológicas. Até 1970 toda pesquisa parecia confirmar a estrutura fornecida pela
Bíblia, mas a partir deste ano, a desconfiança e duras críticas colocam-na em dúvida.

Segundo Smith, a crítica começa com a suspeita da falta de informação histórica


em Gênesis-Deuteronômio2. Os estudiosos situavam os eventos no período do Bronze
Médio (c. 2000-1550 a.C.) e Recente (1550-1200), hoje são datados no período da
monarquia e do exílio. Observando a gramática linguística hebraica, estes textos
parecem produções do período monárquico. A mesma discussão é proposta para a
composição da Torá. Alguns colocam-na no final da monarquia, outros no período persa
e, ainda outros, no helenismo.

Em síntese, Smith trabalha no primeiro capítulo de seu livro a historicidade dos


eventos da narrativa bíblica, o que pode ou não ser considerado histórico. Histórico, na

2
SMITH, 2006, p. 28.
concepção de Smith é a apresentação do passado que mostre o esforço em determinar a
natureza da evidência no que é narrado ou em julgar o que é autêntico ou verificável3.

Assim, a Torá e a História Deuteronomista são consideradas história bíblica


construída, que representa a história nacional fundadora de Israel, numa mistura do
passado com as memórias coletivas desse passado. Os livros de Josué e Juízes são
tradições antigas com acréscimos ao material pré-monárquico, monárquico e pó-
monárquico apresentando as circunstâncias gerais da sociedade israelita4.

1.1. AS ORIGENS DE YWHW ISRAELITA PARA SMITH

Smith entende, baseado em textos da Bíblia e da relação da memória cultural de


Israel com Edom, que Yhwh, o Deus de Israel tem sua origem no extremo Sul (Madiã,
Temã, Parã, Seir). Desta forma, os edomitas partilharam Yhwh com os Israelitas das
terras montanhosas no período do Ferro Antigo (1150 a.C.)5. Dando um salto mais
adiante, Smith compreende que a construção do Templo em Jerusalém e o exílio
babilônico vão ser outras forças propulsoras para a fundamentação de Yhwh como o
Deus de Israel e para o estabelecimento do monoteísmo israelita.

No segundo capítulo do seu livro, Smith trabalha as alterações da identidade de


Israel, ao longo dos séculos em diferentes cenários – políticos, sociais e religiosos do
próprio Israel6. A luta pela sobrevivência era o desafio básico. A falta de chuvas
ameaçava anualmente o povo através da fome e escassez. A tolerância a imagens de
deuses, as falhas no cumprimento de leis religiosas e de unidade, também mostrou-se
outro grande desafio. O politeísmo foi duramente condenado por críticos pré-
monárquicos e monárquicos.

Analisando o texto bíblico e as descobertas arqueológicas sabe-se que, antes da


monarquia, Israel vivia em um sistema clânico, ou seja, em unidades familiares e, no
período da monarquia, a expressão “Israel” era aplicável só às tribos do Norte7. É com
Davi que a expressão “Israel” é alterada e passa a pertencer ou a incluir o Reino do Sul.

3
Ibidem, p. 34.
4
Ibidem, p. 48-49.
5
Ibidem, p. 53-54.
6
Ibidem, p. 79.
7
Ibidem, p. 85.
Smith acredita ser possível uma tolerância cultual conjunta para Yhwh e Baal no
Reino no Norte. No período da conquista assíria sobre o Reino do Norte, Smith sugere
que o Norte apoiava um número de divindades sob a autoridade de um deus nacional, e
o mesmo pode ser dito para Judá, afirma8.

Essa teologia global encontrava seu paralelo na família real, pois em termos
gerais a imagem de Yhwh como um Deus guerreiro e patriarca divino, pressupunha uma
devoção a outros deuses em sua casa divina, mesmo que lhes fossem subordinadas.

No capítulo três, Smith analisa o monoteísmo bíblico e as estruturas da


divindade. Para Smith, uma das estratégias de sobrevivência de Israel ante as quedas
dos dois Reinos, Norte e Sul, incluíam mudanças conceituais na compreensão da
divindade, em especial sua ação na arena humana. O Ponto inicial é a linguagem
metafórica sobre Deus. Ela baseia-se na relação humana com a natureza ou sociedade,
por exemplo: “senhor”, “redentor”, “salvador”, “auxiliador”, “pastor”, “pai”, etc.; ou
em imagens daquilo que os humanos fazem “Deus criador” e, ainda em imagem do que
os homens produzem “uma fortaleza poderosa é o nosso Deus”; ou ainda em imagens
da própria natureza: “Deus é Rocha”, “Deus é como o fogo”...9.

Em resumo, é dizer que, o Deus da Bíblia nunca está longe demais da linguagem
da sociedade ou da natureza. Assim, e segundo Smith, para compreender o monoteísmo
de Israel é necessário conhecer seu politeísmo e os de seus antecedentes culturais. Smith
vai se valer especialmente dos textos ugaríticos do período do Bronze Recente e de
outras fontes10.

1.2. DIVINDADES versus MONSTROS DIVINOS

As estruturas dispostas por Smith correspondem a várias categorias de


divindades e à forma pela qual o mundo era visto. O autor vai se valer nessa
comparação dos textos ugaríticos e das estruturas encontradas nestes textos. Ele acredita
que, como Israel e Ugarit pertenciam ao mesmo mundo cultural, é razoável entender a
divindade no antigo Israel, a partir dos textos ugaríticos11. Primeiro, as variedade de
deidades correspondia aos reinos espaciais do universo percebido pelo povo do antigo

8
SMITH, 2006, p. 89.
9
Ibidem, p. 131.
10
Ibidem, p. 133.
11
Ibidem, p. 135.
Israel e povos ao redor. A estrutura do cosmos é a principal divisão: Divindades
antropomórficas benéficas e criaturas monstruosas maléficas12. O espaço divino é
dividido em duas categorias: a) Nível horizontal ou terreno (as montanhas, onde as
divindades eram veneradas e distribuíam bênçãos); b) Nível vertical os reinos (marcar
a competição cósmica – Baal, governante do céu; Yamm, governante do mar; Mot,
governante do submundo).

Nessas representações, as deidades benéficas têm forma antropomórfica13 e


zoomórfica14 domesticável (humanos, boi, bezerro, pássaro...) e as destrutivas, em
forma de monstros ou zoomórfica indomesticável (teriomórfica15, serpentes, cobras,
dragões...). Nesta comparação cósmica, Smith apresenta características entre as
tradições ugaríticas e o material bíblico, a saber: a) Israel herda os nomes dos inimigos
cósmicos - Mar (hb. ‫" יָם‬Yam"; ugarítico “Ym”); Leviatã (crocodilo) (hb. ‫ִל ְויָתָ ן‬
“Liweyatan”; ugarítico “Itn”); Tunnanu (serpente) (hb. ‫“ תַּ נִין‬Tannim”; ugarítico
“Tnn”); Morte (hb. ‫“ ָמוֶת‬Mawet”; ugarítico “Mot”). Esses, em Ugarit são inimigos de
Baal ou de Anat, e em Israel, inimigos de Yhwh (Sl 74.12-17)16. Assim, para o autor, os
textos ugaríticos são o “Antigo Testamento” do “Antigo Testamento”, embora muito do
material diferencie do bíblico17.

A segunda divisão ocorre entre as deidades benéficas, ao conjunto delas dava-se


o nome de “concílio” ou “assembleia”, assim classificadas: a) Assembléia dos deuses;
b) Assembléia dos filhos divinos e; c) Assembléia do concílio18. Esta forma de divisão
tinha seu paralelo na conjuntura familiar e social antigo: 1) O deus ancião e sua esposa;
2) Os filhos divinos; 3) O deus artesão; 4) Os trabalhadores divinos19.

Resguardadas as devidas proporções, Smith apresenta os níveis de divindades


em Israel e o seu panteão no período monárquico (início e fim). No panteão mais antigo
de Israel “El” e não Yhwh era o cabeça; os filhos incluíam Baal e Astarte, e os
mensageiros divinos são figuras em formas angélicas. Yhwh é concebido como um deus
guerreiro oriundo das montanhas ao sul de Edom, Madiã, Farã, Seir, Temã, Sinai (Dt
33.2; Jz 5.4-5; Hc 3.3; Sl 68.8, 17) perfazendo seu caminho rumo ao cume do panteão.

12
Ibidem, p. 134.
13
Imagens descrita ou concebida sob forma humana ou de atributos e características humanas.
14
Imagens descrita ou concebida sob forma animal ou com características animal.
15
Que tem forma de animal.
16
SMITH, 2016, p. 140.
17
Ibidem, p. 141.
18
Ibidem, p. 150-151.
19
Ibidem, p. 151.
Baseado na descoberta de dois manuscritos da 4ª Caverna de Qumran de Dt 32.8-9,
Smith afirma que numa tradução mais literal, após a divisão da humanidade feita por El,
coube a Yhwh à sua porção, Jacó para que fosse seu deus patrono/tutelar20.

No início da monarquia há apenas uma mudança, a do deus-principal. Yhwh é o


Deus principal assumindo a posição de El (1Rs 22.19 e Is 6). De Josias até o final da
monarquia, Smith diz haver dois panteões em conflito. No período de Josias Yhwh é a
única deidade, Asherá é destituída e rejeitada (2Rs 21.3, 7); as divindades do segundo
nível são fortemente criticadas no culto a Yhwh; no terceiro nível aparece Satã, que na
verdade é um título significando “adversário” em sentido político e/ou sentido militar e
"acusador”, em sentido legal21.

Quanto a nova visão religiosa monoteísta, Smith diz que representa para Israel
uma resposta à ameaça externa dos impérios mesopotâmicos e desafio interno da
deterioração social. Segundo os padrões do Oriente Próximo, enquanto os reis
permanecessem no poder, isso era sinal de poder e proteção do deus patrono. Mas,
quando eram subjugados significava a impotência desse deus ou uma punição ao seu
reino22. É justamente essa crise ideológica e teológica que se abate nos judeus, quando
Judá é arrasada pela Babilônia. Embora, segundo Smith, Israel se aproprie dessa
ideologia, que entende ser assíria, uma mudança merece destaque. O poder de Yhwh
não equivale ao poder do rei.

Outro fator que pavimentou o solo para o estabelecimento do monoteísmo


israelita, sem dúvida foi as mudanças internas que ocorreram, quando da queda do
Reino do Norte. Até o século VIII a.C., a teologia de Israel fundamentava-se no
conceito familiar divino, com a invasão assíria e a queda de Jerusalém, essa concepção
de identidade social muda. É, portanto, a partir do século VIII a VI a.C., que um Deus
individual faz mais sentido para Israel, pois facilita uma melhor interpretação da
realidade que esses séculos desenvolveram, e assim, o politeísmo é posto às sombras
(Gn 49.25), à negação (Dt 32.8-9) e à reinterpretação (Sl 82).

No quarto e último capítulo do livro, Smith trabalha a formação dos conceitos de


Israel sobre Deus, que abrange o conceito de memória coletiva e amnésia e a memória
coletiva na Bíblia como importante ajuda intelectual para o entendimento das

20
SMITH, 2006, p. 160-161.
21
Ibidem, p. 172.
22
Ibidem, p. 174.
representações bíblicas sobre o passado de Israel23. Quando se propõe a falar sobre o
papel da memória em várias culturas do Antigo Oriente Próximo, Smith cita
especialistas como Assman (1990, 1997); sobre o Egito, Jonker (1995); sobre a
Mesopotâmia, Schottroff (1967), Brettler (2001), Fleming (1998), Hendel (2001a,
2002a); sobre o Antigo Israel, Brandfon (1987), Bloch Smith (2003); sobre o estudo da
Bíblia e a arqueologia, Yerushalmi (1988), Funkenstein (1993); sobre a memória e
tradição judaica, Gerhardsson (1961), Riesner (1988)24.

Sobre uma discussão geral da literatura da memória coletiva de Israel, Smith


afirma que para o antigo Israel recordar o passado era um ato destinado a influenciar o
presente. A partir da reconstrução da memória de Israel e sua divindade, Smith investiga
a história do Monte Sinai. Ele é o elemento fundante do encontro de Yhwh com Israel.
Desta forma, Smith observa quatro reinterpretações fundantes da identidade religiosa de
Israel, a saber: a) Do culto individual à Yhwh, ao monoteísmo no Sinai – Em Êx 20.3,
reconhece-se outros deuses e, em Dt 4.27, 35, 43-44, há uma lembrança em sentido
diferente. Essa última memória ou mais recente projeta em seu passado uma visão
monoteísta de sua divindade, como sendo a mais antiga memória de Israel; b) Deus no
Sinai – do corpo divino à voz da santidade – A variedade de ensinos contidas em Êx,
Lv, Nm e Dt sobre o Sinai apresenta uma discussão contínua em Israel de como esse
evento deveria ser recordado. Tais discussões não era sobre a história, mais sobre qual
memória coletiva e normas religiosas deviam ser defendidas e a quem elas pertenciam.
Assim vemos em Dt 4, só Moisés subindo ao monte; não há refeição alguma, não se vê
parte nenhuma do corpo de Yhwh, ouve-se apenas sua voz (Dt 4.12, 36). Em Êx 20.18-
21 (hb 15-18), a experiência se limita a trovão, relâmpago e fumaça. Em síntese, ambos
relatos funcionam como uma memória coletiva reformada para inculcar uma visão
religiosa para Israel seguir: “Devem ser santo, como Yhwh é santo”25; c) A natureza
mutável da revelação no Sinai – As várias tradições lembram o próprio Sinai de forma
muito diferente; d) Sinai, uma montanha acima de todas as outras – Na tradição
sacerdotal, a revelação do Sinai deixa de ser um dos maiores para ser o maior e mais
importante evento. O resultado disso, é que os outros lugares religiosos de Israel são
obscurecidos26.

23
SMITH, 2006, p. 183.
24
Ibidem, p. 184.
25
Ibidem, p. 208.
26
Ibidem, p. 203-213.
Para Smith, o monoteísmo em Israel seguiu o que chama de “métodos de
monoteísmo”. Primeiro Yhwh adquire as características das outras divindades, enquanto
estas são negadas. Segundo, a negação dos outros deuses pela afirmação de que
tradições mais antigas associadas a Yhwh, não pertenciam a ele. Terceiro, amnésia da
memória coletiva de Israel em tratar os outros deuses, como os deuses de outros povos,
ou seja, condenavam aquilo que algum dia pertenceram a eles27.

Ainda sobre memória e amnésia cultural de Israel envolvendo a divindade,


Smith detecta quatro grandes mudanças, a saber: a) Yhwh e El – alguns textos bíblicos
mantem distinção entre ambos, enquanto outros ler a distinção como continuidade. Ex.:
O Deus do êxodo – Segundo Êx 6.2-3, El Shadday é identificado como Yhwh. Talvez
inicialmente El fosse o Deus do êxodo, e só depois Yhwh passou a ser identificado
como tal; b) A casa de Yhwh em Edom – Smith como já mostrado anteriormente diz que
Yhwh era um deus edomita, e só depois veio a ser implantado na sociedade montanhosa
de Israel; c) Yhwh e a família divina – O conceito de família se deteriorou com a
estratificação econômica do século VIII a.C., e com a conquista do Reino do Norte em
722 a.C., permanece, portanto, apenas a perspectiva de concílio; d) Anjos e Deus dos
pais – Para Smith, essa concepção é uma mudança adicional. El perde sua proeminência
de “Deus dos pais” para ser um acompanhante angelical (1Rs 19.5-9; Sl 91.11-12; Êx
23.20-22; Gn 48.15-16)28.

Desta forma, o autor apresenta a importância da pesquisa histórica, visto


apresentar-se como uma ajuda para as tradições bíblicas em mostrar como a revelação
bíblica era entendida, recebida e transmitida.

2. A ORIGEM DE YHWH E DO MONOTEÍSMO EM RÖMER

Passaremos agora a pesquisa de Thomas Römer. Seu livro foi lançado neste ano
(2016) no Brasil pela Editora Paulus com o título “A Origem de Javé. O Deus de Israel
e seu nome”. O título original é “L’invention de Dieu”, que traduzido literalmente, quer
dizer: “A invenção de Deus”. A apresentação desta obra na versão brasileira feita pelo
Dr. José Ademar Kaefer explica o significado de “invenção” para Römer: “... é uma

27
SMITH, p. 216-218.
28
Ibidem, p. 219-223.
construção progressiva de tradições sedimentadas cuja história desordenou os estratos
até fazer emergir uma forma inédita” 29.

Assim, como Smith, a pesquisa de Römer se interessa pelo Deus da Bíblia e sua
origem. Também busca compreender o estabelecimento do monoteísmo em Israel, que
culminou na expressão religiosa mundial mais antiga dessa ideia, o Judaísmo, seguido
posteriormente pelo Cristianismo e Islamismo.

Römer inicia seu livro apresentando uma visão geral da divisão da Bíblia
Hebraica. Ele dispõe os temas estruturais de Gênesis e nos quatro livros subsequentes
(Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) o tema especial é o “nascimento e a morte
de Moisés”. Aqui Römer já pincela mudanças na identidade tanto de “ser judeu” como
da “divindade”. Inicialmente é judeu quem descende de Abraão, mas com Moisés, é
judeu quem adere a aliança entre Yhwh e Israel. Sobre Yhwh, Ele é o Deus universal,
criador de todas as coisas; em José é o Deus dos hebreus e egípcios; com os patriarcas,
o Deus clãnico (Abraão, Isac e Jacó) e, com Moisés o Deus guerreiro e da tempestade30.

Em seguida Römer suscintamente aborda os livros de Josué (história das


conquistas militares) até os livros dos Reis (estabelecimento da realeza e destruição de
Jerusalém em 586 a.C) e, depois os livros dos profetas. Essa é a segunda divisão da
Bíblia Hebraica. Por fim, a terceira parte da divisão também é abordada. Trata-se dos
Escritos, livros de diferentes gêneros literários (Salmos, Lamentações, Jó, Rute,
Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Daniel, Crônicas, Esdras e Neemias)31.

Para Römer os textos bíblicos guardam traços e acontecimentos históricos e


tradições antigas. Contudo as origens de Israel, a campanha militar de um povo vindo
de outro lugar, a oposição entre israelitas e cananeus, a composição israelita de doze
tribos, as figuras de Saul, Davi e Salomão são processos difusos de desordens globais,
ideologia segregacionista, invenções dos escritores bíblicos e lendas que guardam certas
lembranças históricas.

No primeiro capítulo Römer aborda a questão do Deus de Israel e seu nome. Ele
adota, portanto, a designação Yhwh como o Deus de Israel. Römer a partir de Gn 1 e 2
se vê em um dilema. Será que o título “Elohim” para o Deus único, não quer significar
em si uma reunião de divindades? Esse mesmo dilema persegue os massoretas (II-X

29
RÖMER, 2016, p. 15. Por José Ademar Kaefer.
30
Ibidem, p. 16.
31
Ibidem, p. 17.
d.C) que procuravam, quando do sistema de vocalização, dar sentido para o nome
próprio do Deus de Israel. Por isso, a partir do século III d.C., o Judaísmo não mais o
pronuncia, e as razões são: a) Numa visão monoteísta, não convém o único Deus ter um
nome próprio e; b) combater usos mágicos do nome divino.

Para Römer, de alguma forma os textos bíblicos guardam traços de pronunciação


do nome divino. Isso pode ser percebido nos nomes teofóricos32. Ex.: Yirmeyahu ‫י ְִר ְמיָהו‬
(Jeremias); Yesha’yhu ‫( יֵשַׁ עיהוּ‬Isaías), entre outros. Römer acredita que esses nomes
sugerem a pronuncia curta do nome divino que seria Yahu ou Yahou33. Analisando Êx
3.14, onde Deus diz a Moisés sobre sua identidade ‫( אהיה אשׁר אהיה‬Ehyeh Asher Ehyeh)
– “Eu sou o que sou” ou “Serei o que serei”. Römer diz que o primeiro “Ehyeh” refere-
se à promessa de assistência no v.12, mas o segundo “Ehyeh” remete a pronúncia do
nome divino Yhwh34. Sobre os testemunhos de uma pronunciação do tetragrama, Römer
afirma que é proveniente da época cristã, mas está certo que a pronúncia antiga do nome
do Deus de Israel era “Yaho”, portanto, um trigrama35.

No segundo capítulo Römer aborda a origem geográfica de Yhwh. Para Römer


esta relação de Yhwh e Israel não existiu desde sempre, antes é fruto de um encontro.
Mas, esse encontro não se dá em Israel, porém, em algum lugar entre a Judéia e o Egito.
As novas descobertas arqueológicas, em especial as do século XX, têm apresentado
diferentes hipóteses para a origem do nome Yhwh. As pistas levam para Ebla, Ugarit,
Mari, Egito, a região do Sinai e o sul do Neguev36.

Após destacar as hipóteses, Römer acredita que Yhwh surgiu ao sul da Palestina,
no território de Edom e da Arábia. Para ele, os testemunhos arqueológicos, epigráficos e
iconográficos mostram um povo ou grupo por nome “Shasu” em território de Edom,
Seir e da Arábia no momento de transição entre o Bronze Recente e a Idade do Ferro. E
entre eles havia um grupo cujo deus se chamava Yhw37. Römer também se arroga em
quatro textos bíblicos para comprovar a origem sulista de Yhwh – Dt 33.2; Jz 5.4-5; Sl
68.7-9; Hc 3. Assim, antigamente Yhwh estava ligado a uma divindade da montanha no
deserto, e possuía aspectos de um deus da guerra e da tempestade.

32
Theo" vem do grego e significa Deus e "fórico" também, e quer dizer carregar/portar. Logo, "teofórico"
é todo nome que faz referencia a Deus através de elementos presentes no próprio nome. Consulta:
http://www.dicionarioinformal.com.br/teof%C3%B3rico/acesso em 20/12/2016 ás 1h40.
33
RÖMER, 2016, p. 36.
34
Ibidem, p. 36.
35
Ibidem, p. 39.
36
Ibidem, p. 43.
37
Ibidem, p.46-47.
Römer também argumenta sobre uma possível ligação entre Yhwh e o deus
egípcio Set, que no segundo milênio antes de nossa era foi transportado para o sul do
Levante, e assim, como Yhwh era o deus do estrangeiro e tutelar dos egípcios
migrantes38.

No capítulo três, Römer trabalha o personagem bíblico Moisés e os madianitas.


É em Madiã ou Midiã que Moisés se refugia contra o Faraó. É também lá que casa-se
com Séfora, uma das filhas do sacerdote madianita Jetro. Segundo Römer, Moisés deve
ser compreendido como uma construção de diferentes traços de memória. A luz da
arqueologia, pouco se sabe sobre Madiã e/ou madianitas. De acordo com 1Rs 11.17-18,
Madiã está localizada ao sul de Edom, no caminho que leva ao Egito passando pelo
Wadi Ferrã39. Desta forma, esta análise serve para Römer continuar em sua crença sobre
a origem sulista de Yhwh. Curioso é que, tempos depois os madianitas são lembrados
como inimigos ou que vivem em conflitos com Israel (Nm 22; 31.13-14, 16; Js 13.21;
Jz 6-8; Is 9.3).

Segundo a análise de Römer, por estranho que pareça a montanha onde Yhwh se
revela a Moisés estar em território madianita (Êx 3). Desta forma, Römer conjectura a
possibilidade destas referências fazerem alusão a uma contribuição madianita ao culto
de Yhwh40.

No capítulo quatro, Römer trabalha a questão de como Yhwh tornou-se o Deus


de Israel? Segundo Êx 19-24, é por meio da revelação no monte Sinai, que Ywhw torna-
se o Deus de Israel, mediante uma aliança, e onde se faz conhecido à todo o povo,
declarando-se como o seu Deus (Êx 20.2). Como já dito em linhas acima, isso mostra
que Yhwh não foi o Deus de Israel desde sempre. Aliás, o nome Israel, também parece
corroborar com isso, visto que o elemento teofórico “El” pode ser tanto o nome próprio
de um deus como um nome genérico para deus41, e entre outros tantos significados pode
significar “que El combate” (Gn 32.29; Os 12.4).

A Estela de Merneptá (1210-1205 a.C.), onde se faz menção ao nome de Israel,


segundo pesquisadores, o nome não faz referência a um lugar ou região, mas a um
grupo. Daí pode-se imaginar uma coalizão de clãs ou tribos venerando El como um deus

38
RÖMER, 2016, p. 55-56.
39
Ibidem, p. 60.
40
Ibidem, p. 69.
41
Ibidem, p. 76.
tutelar42. Römer quer aqui pontuar que, antes de Yhwh ser venerado como o deus
nacional e tutelar de Israel, esse lugar era de El. As narrativas patriarcais e as séries de
epítetos para El, principalmente entre os capítulos 12-50 de Gênesis confirmam essa
ideia (El Elion, El Roi, El Olam, El Shadday, e outros).

Para Römer Yhwh é introduzido em Israel pelo grupo dos Shasu ou Hapiru, após
uma vitória sobre os egípcios. Yhwh é introduzido primeiro em Benjamim e Efraim,
onde Israel se encontra. É só com Saul e Davi que Yhwh é introduzido como o Deus
tutelar de Jerusalém43. Esse aspecto é objeto de análise do capítulo cinco.

Antes de Yhwh ser introduzido em Jerusalém (c. 1000 a.C.), muitas divindades
eram veneradas, geralmente ligadas à fertilidade, ceifas e colheitas. Ex.: Anat (Anatoth
Jr 1.1-2), Baal (Baal-Perasim 2Sm 5), Dagom (Bet-Dagom Js 15.41), El (Bet-El),
Shamash (Bet-Sames 1Sm 6) e muitos outros, assegura Römer. Exceto a famosa Estela
de Tel Dan, os fatos históricos concretos das narrativas bíblicas sobre a monarquia e a
existência dos três primeiros reis de Israel (Saul, Davi e Salomão) são bastante
questionáveis44.

Segundo Römer, antes de Yhwh estar ligado à Jerusalém, estava ligado a arca
que foi construída no Sinai, e que mostrou-se um perigo tanto para os Filisteu, inimigos
de Israel, como para o próprio Israel (1Sm 6.2-3, 19-20). Esta relação pode ser
comparada com os santuários portáteis dos nômades e pelos cofres sagrados atestados
pela iconografia egípcia e de outros45. O que tinha na arca, de acordo com Êx, Dt 10.1-5
e 1Rs 8.9 eram as duas tábuas da lei. Talvez uma substituição às duas pedras sagradas
ou estátuas simbolizando Yhwh e Asherá.

No sexto capítulo e sétimo, Römer se atém ao culto de Yhwh em Israel, e


declara que o culto no Reino do Norte era diferente do Sul. Römer também acredita que
as diversas menções a Yhwh nos textos bíblicos não se trata de universalidade, mas de
diferentes formas de culto (2Sm 15.7; Sl 99.2; Gn 28.10-22, etc)46. O culto na
religiosidade antiga estava dividido em níveis, a saber: a) Individual e familiar – deuses
protetores mediados pelos chefes das clãs e sem santuários; b) Agrupamentos de clãs –
práticas religiosas de nível local e; c) Nacional – o rei como o mediador do culto.

42
RÖMER, 2016, p. 81.
43
Ibidem, p. 87-88.
44
Ibidem, p. 91.
45
Ibidem, p. 94.
46
Ibidem, 2016, p. 107.
No Reino do Norte Yhwh tem a forma de um touro/bezerro e, é identificado
como o Deus do êxodo (1Rs 12.28-30). A novidade é que são dois bezerros. Para
Römer, isso significa um par divino, Yhwh e sua esposa Asherá. Ao analisar o ôstraco
nº 41 de Samaria e o nome “glyw”, Römer afirma que pode ser traduzido por “bezerro
de Yhwh” ou “Yhwh é um bezerro”47. Desta forma, acredita que em forma de touro,
Yhwh foi venerado em Israel, Betel, Samaria, Siquém, Dã e até na Transjordânia.
Segundo a Estela de Mesa (850-810 a.C.) havia um santuário de Yhwh na cidade de
Nebo, a qual ele destruiu48.

No Reino do Norte, Yhwh também foi venerado como um Baal, ou seja, um


deus da tempestade (Sl 29.3-9; 104.3). Segundo, Römer, só com a dizimação da casa de
Omri por Jeú é que Yhwh passa a ser o Deus tutelar e nacional de Israel, sendo-lhe
atribuídas as características de Baal49. Yhwh também era venerado por meio de
representações antropomórficas, segundo atesta o “Prisma de Nemrod”, e para Römer
havia representações em forma de estátua também, conforme sugere uma tradução mais
literal de 1Sm 2.11.

No Reino do Sul, Yhwh é venerado como uma figura real, sentado no trono, e
assim, lembra El. Segundo Römer, assim como no Norte, no Sul Yhwh foi venerado em
diversos lugares. Os ‫“ בָּמוֹת‬bamôts” – “lugares altos”, registrados nos livros de Samuel,
Reis e Crônicas, são santuários locais e ao ar livre, não controlados pelo rei, construídos
em colinas e lugares altos. Nestes santuários, segundo Römer encontrava-se estelas
(massebôtes) e uma Asherah (árvore ou poste sagrado)50. Só e a partir de Ezequias e
Josias estes santuários dão lugar ao Templo de Jerusalém.
Seguindo os exemplos de Amon e Moabe, Römer acredita que em Jerusalém,
Yhwh foi venerado primeiro junto a uma divindade solar e estava subjugado a ela. Aos
poucos foi assumindo superioridade até tornar-se o Deus tutelar de Jerusalém. Segundo
o Sl 82, Yhwh é visto como um dos filhos de El Elion e, está subordinado a ele. Mas,
conforme Dt 32.8, Israel é dado em herança a Yhwh. Estes textos são indícios de
memória de uma ascensão de Yhwh na assembleia dos filhos de El51. Desta forma, a
ascensão de Yhwh se dar pela apropriação de funções e características das outras
divindades.

47
RÖMER, 2016, p. 109.
48
Ibidem, p. 114.
49
Ibidem, p. 118-119.
50
Ibidem, p. 123.
51
RÖMER, 2016, p. 127.
Visto que Yhwh na teologia sionita é representado pela imagem real, e o rei a
sua encarnação na terra, o termo “Molek”, que tem ligação com sacrifícios humanos,
inclusive de crianças, Römer argumenta que talvez antes significasse “Melek” – “rei”,
título atribuído a Yhwh. Assim, ele imagina que antigamente sacrifícios de crianças
foram feitos para Yhwh-Melek52.
Destaca-se, portanto, que foi durante os séculos IX e VIII a.C., que Yhwh
tornou-se o Deus principal, Deus da dinastia davídica e o Deus nacional de Judá,
quando absorve as funções do deus solar e combina as de El e Baal e, assim exalta a sua
superioridade.
De acordo com a Bíblia Hebraica é terminantemente proibido a veneração a
Yhwh por meio de representação iconográfica. É sobre esse tema que Römer apresenta
o oitavo capítulo. Para ele, “as massebôt” (pedras erigidas) são vestígios de culto com
imagens. Römer ver nos textos bíblicos ao menos quatro utilizações: a) Função
funerária ligada a um culto aos mortos (Gn 35.19-30; 2Sm 18.18); b) Comemorar um
acontecimento (Êx 24.2; Js 4); c) Ratificação de contrato (Gn 31.43-45); d)
Endereçada a culto divino (Gn 28.18-22)53. Baseado nos bétilos54 de Mari, Arad e
Neguev, Römer afirma que a “massebah” era uma maneira de representar Yhwh. Em
Judá, segundo o autor, o que comprova tais representações é o interdito “não farás
imagens esculpidas” (Êx 20.3-5). Outras inúmeras citações bíblicas como a expressão
nos Salmos “face de Yhwh” pode-se referir a representação imagética de Yhwh (Sl
10.11; 13.2; 22.25; 30.8).

No capítulo nove, Römer argumenta sobre a possibilidade existencial de uma


veneração a deusa Asherá junto com Yhwh tanto no Norte como no Sul. Isso pode ser
explicado em razão da aceitação de que Yhwh se apropriou das funções de El e Baal,
portanto, é razoável que também tenha se tornado o marido de Asherá. De acordo com
Jr 44.17-18, havia em Judá um culto “a rainha do Céu”, que pode muito bem ser
Asherá.

No capítulo dez, Römer vai nos informar que a queda do Reino do Norte em 722
a.C., para a Assíria, deu a Judá e sua capital Jerusalém desenvolvimento e progresso55.
Com Ezequias e sua política contra a Assíria, Judá perde muitas cidades e ver ser

52
Ibidem, p. 134.
53
Ibidem, p. 140.
54
Römer diz se tratar de pedras utilizadas em um contexto cultual.
55
RÖMER, 2016, p. 176.
levados cativos 200.150 pessoas. No entanto, Jerusalém resiste e permanece, e isso,
fortalece a ideia de que eles eram “o verdadeiro Israel”, “o verdadeiro povo de Yhwh”.
Está posta assim, o fundamento do Templo como único lugar de adoração, Jerusalém a
cidade de Yhwh, e a centralização do culto a Yhwh.

No penúltimo capítulo, Römer fala das reformas de Josias, cujo reinado coincide
com o declínio do Império assírio, e ver o Egito retomar as rédeas do Levante. A
reforma de Josias começa com a descoberta de um rolo (Dt?) (2Rs 22.16-20; 23.1-3, 15,
21-23). Segundo Römer a ideia de achar um livro é muito comum na literatura antiga, e
serve para legitimar mudanças de ordem religiosa, econômica e política56. A partir do
século VI a.C., os temas astrais e antropomórficos saem de moda em meio a elite
jerusalemita. Josias abole a “prostituição cultual” e bane o culto a Asherá no Templo de
Jerusalém57. Desta forma e segundo Römer, baseando-se em lugares do Oriente Antigo,
quando uma divindade é elevada a Deus principal, é sempre a partir do rei.

Com as reformas de Josias, Yhwh torna-se “um”, embora e ainda não o “único”,
e Jerusalém o único lugar de culto legítimo para sacrifício. Desta maneira, a intenção é
mostrar a superioridade de Yhwh sobre todas as outras divindades e considerá-lo como
o verdadeiro Deus de Israel. É justamente essa característica agregadora de “Deus um”
para também ser o “Deus único”, que o último capítulo do livro trata.

A queda de Jerusalém em 586 a.C., pelos babilônicos gerou uma grande crise
identitária na coletividade judaica. É justamente nesse período que um número
considerável de textos bíblicos surgem na tentativa de explicar a destruição de
Jerusalém e o papel de Yhwh na catástrofe entre os intelectuais da Golah58 babilônica.
Os membros da Escola Deuteronomista procuraram explicar o exílio construindo uma
história de Yhwh e seu povo, a fim de chegar a uma consequência lógica dos infortúnios
de Israel, em razão de sua desobediência a Yhwh. Desta forma o caminho para as
afirmações monoteístas está posto. Yhwh é tanto o Deus nacional como do universo.

Essa reflexão monoteísta para Römer é avançada com o conteúdo dos oráculos
do Deutero-Isaías, que segundo Römer são inspirados no Cilindro de Ciro59. O chamado
monoteísmo sacerdotal diferentemente dos anteriores têm um caráter inclusivista, ou

56
Ibidem, p. 189.
57
Ibidem, p. 196.
58
O termo Golah é usado para se referir aos judeus exilados na Babilônia que entendiam ser o
remanescente fiel, a quem Yhwh preservara.
59
RÖMER, 2016, p. 213.
seja, procura definir qual é o papel de Yhwh e de Israel entre os demais povos e deuses.
Assim, quando os povos veneram um deus criador, na verdade estão venerando a Yhwh.

Römer acredita que o monoteísmo dualista persa imposto por Dario I (521-486)
também influenciou o pleno estabelecimento do monoteísmo israelita, embora
compreenda ser difícil precisar as influências que os persas exerceram.

DISPOSIÇÕES FINAIS

Reservamos para as disposições finais um breve comparativo entre os livros de


Smith e Römer. Uma simples leitura já nos convence de que ambos autores dispensam
seus esforços em uma mesma direção, “compreender a origem de Yhwh e o monoteísmo
israelita”, que posteriormente influenciaria profundamente o Cristianismo e o
Islamismo. Percebemos também algumas distinções entre eles. A obra de Römer é mais
atual e conta com mais recursos, embora, justiça seja feita, a obra de Smith foi
publicada 10 anos antes da de Römer, e de lá para cá muitas descobertas vieram à tona.
Outra diferença marcante é o caráter crítico de ambos. Smith é um crítico mais
comedido e cauteloso, enquanto Römer não hesita em expor seu cientificismo como
padrão de verdade.

Os autores começam suas obras apresentando uma visão geral da Bíblia


Hebraica e suas divisões. Tanto para Smith como para Römer, Yhwh é oriundo do Sul,
entre o Egito e a região do Neguev, com forte inclinação para os territórios de Edom (Dt
23.7; 33.2; Jz 5.4-5, etc). Concordam que o nome Israel parece apontar inicialmente
para El e não para Yhwh como Deus original (Gn 1-2). Segundo Dt 32.4, Yhwh era um
dos filhos de El. Quanto a unicidade de Yhwh e o monoteísmo israelita, acreditam que
se desenvolveu a partir do século VIII-VI a.C. Ambos usam os texto de Ugarit, embora
Römer não se baseie fundamentalmente neles como o faz Smith. Acreditam também,
que o monoteísmo é a reconstrução mais notável de Israel. Suas pesquisas assemelham-
se ainda, quando afirmam que o monoteísmo de Israel traz traços do politeísmo do
antigo Israel. Também aceitam a hipótese que Yhwh e Baal foram venerados juntos; que
havia representações iconográficas para veneração de Yhwh (estátua, sinetes, etc) tanto
no norte como no sul.

Ambos mencionam que foi com Davi que o termo “Israel” passa a referir-se
também a Judá, e que o progresso de Judá e Jerusalém só acontece com a queda do
Norte em 722 a.C., para a Assíria. Ambos concordam ainda em muitas outras coisas,
mas as pesquisas deixam uma pergunta, que acreditamos não ser tão fácil responder.
Como explicar a proposição de que Yhwh é oriundo do sul, mas é primeiro venerado no
Norte? Embora, algumas respostas possam ser dadas, parece-nos mais razoável acreditar
que ou Yhwh é oriundo de regiões do Norte, ou foi cultuado primeiramente no Sul e,
depois migrou para o Norte onde obteve maior aceitação e divulgação.

Em face das constantes mudanças das pesquisas de cunho científico e das novas
descobertas, principalmente da arqueologia, Römer mais do que Smith é muito cético,
quando se apropria dos textos bíblicos para analisá-los e observá-los à luz das recentes
pesquisas. Talvez, Römer nas entrelinhas esteja sinalizando para o que muitos já
defendem, e assim, quer fazer uma distinção óbvia: Não dar para unir fé e ciência e
vice-versa, embora, possa haver diálogo.

REFERÊNCIA

RÖMER, Thomas. A Origem de Javé. O Deus de Israel e seu nome. Ed. Paulus.
São Paulo – SP, 2016.

SMITH, Mark S. O memorial de Deus. Ed. Paulus. São Paulo – SP, 2006.

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