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Além do arco e flecha: a construção étnico-identitária a partir

da educação bilíngue indígena Potiguara-PB


PEDRO LÔBO DOS SANTOS*
EDUARDO DIAS DA SILVA**

Resumo: Este artigo, elaborado a partir de uma pesquisa qualitativa, consiste em apresentar algumas
reflexões suscitadas a partir da relação entre teoria e prática como contribuintes para a formação da identidade
étnico-racial de jovens estudantes indígenas em uma escola municipal de ensino fundamental da Paraíba –
Brasil, traduzidas na experiência do fazer pedagógico. Professores deparam-se com a falta de instrumentos
pedagógicos e práticos no desenvolvimento de estratégias para melhor exercerem a inclusão social indígena.
Esta questão está presente no contexto das instituições de Educação Básica, explicitando a complexidade
embutida na categorização da escola bilíngue indígena, sobretudo considerando a construção histórica desse
conceito no contexto brasileiro. Por meio deste trabalho, é possível ponderar sobre alguns de muitos aspectos
que envolvem o desenvolvimento da aprendizagem de estudantes indígenas mediado por professores crítico-
reflexivos, e compreender que o desenvolvimento deste espaço no ambiente escolar não se limita às teorias
e às metodologias de inclusão, mas se perpetua como caminho para novas reflexões sobre a escola bilíngue
indígena de e para estudantes indígenas por práticas emancipatórias do indivíduo que se quer partícipe
socialmente.
Palavras-chave: Escola bilíngue indígena; Estudantes indígenas; Educação Básica; Inclusão Social.
Beyond the arch and arrow: the ethnic-identity construction from Potiguara indigenous bilingual
education from Paraíba
Abstract: This paper, based on a qualitative research, consists of presenting some reflections based on the
relationship between theory and practice as contributors to the formation of the ethnic-racial identity of young
indigenous students in a municipal elementary school of Paraíba – Brazil, translated into the experience of
pedagogical doing. Teachers are confronted with the lack of pedagogical and practical tools in the
development of strategies to better exert indigenous social inclusion. This issue is present in the context of
the institutions of Basic Education, explaining the complexity embedded in the categorization of the
indigenous bilingual school, especially considering the historical construction of this concept in the Brazilian
context. Through this work, it is possible to ponder some of the many aspects that involve the development
of indigenous student learning mediated by critical-reflexive teachers and to understand that the development
of this space in the school environment is not limited to inclusion theories and methodologies, Perpetuates
as a way for new reflections on the indigenous bilingual school of and for indigenous students by
emancipatory practices of the individual who wants to participate socially.
Key words: Indigenous bilingual school; Indigenous students; Basic Education; Social inclusion.

*
PEDRO LÔBO DOS SANTOS é professor Especialista de Educação Básica nos municípios de
Baia da Traição e de Mataraca/PB.

**
EDUARDO DIAS DA SILVA é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura
da Universidade de Brasília (PósLIT/UnB).
49
Introdução exóticos e extravagantes que fazem
parte do imaginário social (SILVA,
Dentre os diversos desafios enfrentados 2016a, p. 146).
pelos indígenas brasileiros, e após
séculos em processo de homogeneização Dado o vigor da ideologia civilizatória1
cultural, como resultado da exploração, que presidiu a nossa contraditória
da colonização, da escravidão e da formação histórica, temos dificuldades
dominação europeias, o Brasil, na em nos reconhecer como uma sociedade
atualidade, ensaia um novo multiétnica, multicultural e
(re)descobrimento e um novo processo na multilinguística (SILVA, 2016b). Os
educação indígena: incorporar sua povos indígenas e a questão educacional
diversidade étnico-racial, segundo Silva indígena brasileiras têm um lugar
(2016a; 2016b), nos vários ambientes fundamental nesse processo de
sociais e educacionais, mostrando o construção identitária2, uma vez que, de
protagonismo dos povos indígenas nos acordo com a Fundação Nacional do
campos das Artes, Ciências, da Economia Índio (FUNAI),
dentre outros. Espera-se que não seja os Povos Indígenas têm direito a uma
apenas uma tendência, mas, certamente, educação escolar específica,
uma vigorosa manifestação de vida e diferenciada, intercultural,
possibilidades, intimamente associada a bilíngue/multilíngue e comunitária,
resistências e lutas que, nas últimas conforme define a legislação
décadas, vêm alimentando a própria nacional que fundamenta a Educação
democratização educacional no Brasil, Escolar Indígena. Seguindo o regime
posto que, de colaboração, posto pela
Constituição Federal de 1988 e pela
[...] para tanto, deve-se garantir que Lei de Diretrizes e Bases da
os fatos que demonstram, por Educação Nacional (LDB), a
exemplo, que indígenas e negros não coordenação nacional das políticas
foram passivos, mas partícipes, de Educação Escolar Indígena é de
lutadores e, em diferentes situações, competência do Ministério da
heróis, sejam incorporados à nossa Educação (MEC), cabendo aos
história. Os conteúdos propostos Estados e Municípios a execução
pelos documentos legais devem, para a garantia deste direito dos
então, considerar estratégias de lutas povos indígenas (FUNAI, 2016, p.
e sobrevivência trabalhadas de modo 01).
contextualizado, não permitindo a
manutenção dos sentidos Embora o contexto seja de muitas
folclorizados, estereotipados, ameaças e também de considerados
1
Dentro dessa perspectiva, acreditava-se que o “homem branco” era proporcionar a inestimável
modelo de civilização europeu era o que oferecia oportunidade dessa massa “incivilizada” de se
as melhores condições de vida às pessoas. Logo, modernizar e superar alguns dos degraus dessa
quem estivesse em outro modelo de convívio escala evolutiva imaginada, conforme Silva
sociocultural, viveria em condição inferior e não (2016b) e Sousa (S/d).
2
tão privilegiada se colocada em contraponto à Importante ressaltar que processo de construção
funcionalidade de várias instituições e costumes identitária é um conceito complexo e que tem
de origem europeia. Com isso, a presença sido bastante discutido, no qual é percebido, neste
europeia na África, nas Américas e na Ásia artigo, como um fenômeno subjetivo e dinâmico
deixava de ser vista como um injusto processo de resultante de uma dupla constatação de
invasão. Assim, os europeus ocupavam o mais
elevado posto de uma hierarquia que
semelhanças e diferenças entre si mesmo, os
outros e alguns grupos, de acordo com Ciampa
50
transformava os indígenas das Américas em (2004), Dechamps e Moliner (2009).
povos atrasados e selvagens. A missão do
avanços nas políticas educacionais fornecidas são compostas, em sua
indígenas, a destruição não acabou. A maioria, por relatos de experiências,
violência contra esses povos, a invasão de conversas (in)formais e vivências de
suas terras e a usurpação de suas riquezas profissionais que trabalham com a
continuam, mas tem-se um marco educação bilíngue indígena e o ensino da
fundamental de garantias inscrito na história e da cultura indígenas, que
Constituição Federal (1988), artigo 231, ocorreram no ano de 2015 em escola
segundo “são reconhecidos aos índios sua pública do município de Baia da Traição,
organização social, costumes, línguas, no estado da Paraíba, com alunos
crenças e tradições, e os direitos indígenas da etnia Potiguara dos sextos
originários sobre as terras que aos nonos anos do ensino fundamental.
tradicionalmente ocupam, competindo à Essa abordagem de pesquisa se justifica,
União demarcá-las, proteger e fazer pois, segundo Moura Filho (2000, p. 6),
respeitar todos os seus bens”.
[...] a vertente qualitativa dá a ênfase
Dessa forma, promoveu-se uma mudança à natureza da realidade socialmente
em curso nas próprias comunidades construída, à íntima relação entre
indígenas, garantindo a elas direitos o(a) pesquisador(a) e o que é
fundamentais, dentre os quais se estudado e às restrições
circunstanciais que moldam a
destacam a educação, a saúde e a
pesquisa. O enfoque qualitativo é
religiosidade, que, durante muitos anos, fenomenológico, indutivo, holístico
permaneceram adormecidos/esquecidos, e assume uma realidade dinâmica.
conforme Paladino e Almeida (2012) e
Oliveira e Souza (2016). Desse modo, de Assim, de acordo com Marconi e Lakatos
acordo com essas autoras (2012, p. 42), (2003), a pesquisa qualitativa é baseada
“legitimou-se a concepção de que os em dados que qualificam e caracterizam
povos indígenas deveriam ter direito a determinadas propriedades, indicando,
uma educação escolar indígena bilíngue, desse modo, elementos que o pesquisador
específica, diferenciada e intercultural” julga relevantes para a pesquisa. A
(Grifos das autoras). abordagem qualitativa é “indicada
quando se pretende focar representações
A relevância deste artigo se dá porque de mundo, relações sociais, identidades,
pode contribuir para a produção de opiniões, atitudes, crenças ligadas a um
conhecimentos acerca da temática meio social” (RESENDE, 2009, p. 57).
indígena, fornecendo reflexões que visem Essa abordagem tem o ambiente natural
à desconstrução dos estereótipos sobre o como fonte direta de dados e o
indígena e a educação bilíngue indígena, pesquisador como seu principal
os quais ainda se mantêm sustentados instrumento, isto é, supõe o contato direto
pela mídia e meios sociais; além de e prolongado desse com o ambiente e a
possibilitar a reflexão para a elaboração situação que está sendo investigada.
de políticas públicas educacionais com
vistas a atender às reivindicações dos Escola bilíngue indígena:
povos indígenas para uma escola (im)possibilidades
diferenciada e bilíngue vislumbrada por
A ideia de sociedade plural, heterogênea
autores como Alvares (2004), Cohen
e múltipla fundamenta-se em uma
(2005), Grupioni (2008) e Tassirani
filosofia que reconhece e valoriza a
(2008) dentre outros.
diversidade, como característica inerente
Esta pesquisa possui abordagem à sua própria constituição. Partindo desse
qualitativa, pois as informações princípio e tendo como horizontes os

51
estudos étnico-raciais, o profissional Esse novo conjunto de ideias e
crítico reflexivo na Educação (SILVA, práticas, ainda que propagado em sua
2014a; 2014b: 2016b) e o ensino bilíngue generalidade, passa a estar no cerne
na educação indígena, percebe-se a de um discurso que se contrapõe a
necessidade de se garantir o acesso e a processos que vinham de longa data
e que se expressavam no modelo da
participação de todos a iguais
escola missionária e da escola
oportunidades social, econômica, política civilizadora (GRUPIONI, 2008, p.
e cultural, independentemente das 37).
peculiaridades de cada um.
Dessa forma, faz-se necessária a
A aquisição da Língua Portuguesa pelos elaboração de métodos e de técnicas
indígenas brasileiros, que ainda profícuos para aquisição-aprendizagem
conservam/usam suas línguas nativas, de Língua Portuguesa no ambiente
ocorre, geralmente, como segunda língua escolar bilíngue indígena, com o intuito
(L2), pelo fato de esses indivíduos terem, da valorização das diversas línguas e
na maioria das vezes, como primeira culturas no processo de integração à
língua, suas línguas nativas, no caso sociedade brasileira que é visto nesse
dessa pesquisa, o Tupi 3 . É importante trabalho como integrador, e não como
salientar que, embora as línguas processo de homogeneização, pois, “cada
indígenas sejam ensinadas nas comunidade indígena tem garantida a
comunidades e nas escolas indígenas, liberdade de definir seus projetos
elas não são suficientes para que o sujeito pedagógicos e curriculares que, no
indígena exerça sua cidadania entanto, têm que ser reconhecidos pelo
plenamente no Brasil. Cabendo, não Ministério da Educação de modo a
somente, a escola bilíngue indígena esse garantir aos alunos egressos a
papel de inclusão social, pois, ela precisa continuidade de seus estudos, conforme
estar elucidado por Tassinari (2008, p. 232-
caracterizada como uma escola 233).
comunitária (na qual a comunidade
indígena deveria ter papel A escola bilíngue indígena está
preponderante), diferenciada (das relacionada aos ventos da mudança, de
demais escolas brasileiras), afirmação do direito às próprias culturas.
específica (própria a cada grupo É a partir da garantia de seus direitos que
indígena onde fosse instalada), os indígenas organizam-se e começam a
intercultural (no estabelecimento de notar a sua importância sociocultural,
um diálogo entre conhecimentos bem como a sua importância econômica,
ditos universais e indígenas) e dando início a um processo de luta pela
bilíngüe (com a conseqüente garantia de seus direitos assegurados por
valorização das línguas maternas e
lei, tendo em vista que
não só de acesso à língua nacional).
3
Segundo o Curso de Tupi antigo e Língua Geral Anchieta, que publicou sua Arte de Gramática da
(NHEEGANTU) da Universidade de São Paulo Língua mais Usada na Costa do Brasil, em 1595.
(USP), Tupi foi a língua que os marinheiros da Chegou a ser, por séculos, a língua da maioria dos
armada de Cabral ouviram quando aqui chegaram membros do sistema colonial brasileiro, de índios,
em 1500 e que ajudou na construção identitárias negros africanos e europeus, contribuindo para a
do Brasil. Naquela época, essa língua era falada unidade política do Brasil. Forneceu milhares de
em toda a costa do Brasil por muitos grupos termos para a língua portuguesa do Brasil,
indígenas: os Potiguaras, os Caetés, os nomeou milhares de lugares no nosso país (sendo,
Tupinambás, os Temiminós, os Tabajaras, etc.
Seu primeiro gramático foi o Padre José de
depois do português, a língua que mais produziu
nomes geográficos em nosso território).
52
O direito a uma Educação Escolar indígenas é fundamental desenvolver
Indígena - caracterizada pela práticas de formação docente
afirmação das identidades étnicas, considerando cenários de
pela recuperação das memórias diversidade sociocultural (MEC,
históricas, pela valorização das 2007, p. 42).
línguas e conhecimentos dos povos
indígenas e pela revitalizada Outro ponto de relevância no
associação entre desenvolvimento e na manutenção da
escola/sociedade/identidade, em identidade étnico-racial dos indígenas é a
conformidade aos projetos elaboração de produções artísticas, no
societários definidos ambiente escolar bilíngue, que se
autonomamente por cada povo constroem a partir de valores, regras,
indígena - foi uma conquista das estilos, conhecimentos técnicos,
lutas empreendidas pelos povos
materiais e concepções estéticas de cada
indígenas e seus aliados, e um
importante passo em direção da
povo. Assim como ocorre entre outras
democratização das relações sociais etnias e culturas que existem no mundo, a
no país (MEC, 2007, p. 9). Arte nas sociedades indígenas é um dos
elementos importantes na formação de
O papel da valorização da diversidade identidades específicas e o ambiente
linguística dos povos indígenas com a escolar, através de uma proposta
proposição da utilização das línguas diferenciada, leva “os grupos indígenas
nativas no processo de alfabetização e se apoderaram de ferramentas por meio
letramento para grupos que fazem uso da das quais levaram manifestações de sua
língua portuguesa visa facilitar o cultura para outros contextos e situações,
processo de integração à sociedade estimulados a falarem, eles próprios, de si
brasileira, tendo em vista que “o processo mesmos, de suas línguas, de suas
de aprendizagem começa antes mesmo da tradições”, segundo Grupioni (2008, p.
iniciação formal e prolonga-se por toda a 14).
vida da pessoa [indígena]. Intensifica-se
na adolescência, com o início da vida Ademais, as expressões artísticas
pública que marca o final do período da representam um suporte de memórias
infância”, como elucidado por Alvares enquanto produção individual e coletiva
(2004, p. 58). Assim, o ensino bilíngue é em referência à história do indivíduo, de
estabelecido como prioridade e busca-se sua família e da sociedade em que ele
implantá-lo nas escolas indígenas por vive. Entretanto, a Arte não se constitui
meio de materiais e técnicas produzidos em algo imutável que se transmite através
para a alfabetização e letramento, assim de gerações de modo inalterado, já que
como da capacitação de indígenas para ela é constantemente (re)elaborada, ao
assumirem função de educadores em seus longo do tempo e através do espaço, e seu
respectivos grupos étnicos. Para tal, dinamismo acompanha a própria vida da
sociedade produtora.
A proposta de uma Educação Escolar
Indígena de qualidade – intercultural, Além de outras funções, as produções
específica, diferenciada, artísticas dos povos indígenas são um
bilíngüe/multilíngue – pressupõe que
meio de comunicação, ensinamento e
os próprios índios e suas respectivas
comunidades estejam à frente como aprendizado de aspectos da cultura, da
professores e gestores da prática vida social e da visão de mundo por
escolar. Para que a escola indígena intermédio dos objetos, das danças, da
seja autônoma e fortaleça os projetos língua, da pintura corporal e dos cantos
societários e identitários dos povos que são transmitidos e/ou registrados nas

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lembranças, nos livros, nas fotos, nos de acesso à cultura universal e jamais
vídeos e (re)passados de forma sistêmica somente de caráter, obrigatoriamente,
e organizada pelo ambiente escolar legal. Pois, coadunando com Paladino e
bilíngue indígena. Almeida (2012, p. 18), acredita-se que

Um dos objetivos desse trabalho é a educação intercultural não deve


contribuir na formação dos educandos apenas ter por alvo as populações
indígenas que vivem na área urbana, uma indígenas, os afrodescendentes e
vez que, grande parte deles já não reside outras minorias presentes no país,
nas aldeias, seria uma maneira de mas deve atingir toda a população
garantir-lhes a participação de forma nacional. Nesta abordagem,
efetiva na revitalizavação da cultura conhecimentos tradicionais desses
indígena, a partir da educação escolar povos também devem, de alguma
forma, ser oferecidos a todos.
bilíngue indígena de forma intercultural4,
no caso dessa pesquisa, do povo indígena
Potiguara da Paraíba, no município de Assim sendo,
Baía da Traição. Ademais,
A proposta de que a escola [bilíngue]
essa formação deve levar em conta o pode contribuir para que os grupos
fato de que o professor índio se indígenas valorizem suas práticas
constitui num novo ator nas culturais e mantenham suas
comunidades indígenas e terá de identidades diferenciadas, de que ela
lidar com vários desafios e tensões pode colaborar para o
que surgem com a introdução do estabelecimento de relações mais
ensino escolar. Assim, sua formação equilibradas com os demais
deverá propiciar-lhe instrumentos segmentos da sociedade brasileira,
para tornar-se um agente ativo na de que ela tem um desempenho
transformação da escola num espaço melhor se à sua frente estiverem
verdadeiro para o exercício da professores indígenas da própria
interculturalidade (MEC, 2007, p. etnia, de que a comunidade indígena
103). tem um papel fundamental na
definição dos objetivos e na gestão
Assim, os princípios de uma educação da escola, de que ela produza e
bilíngue indígena e intercultural, na trabalhe com materiais didáticos
prática pedagógica diária, pressupõem específicos, de que a alfabetização
uma organização curricular que articule ocorra na língua materna, de que o
calendário escolar deva interagir com
conhecimentos, habilidades e valores
as práticas cotidianas e rituais do
socioculturais distintos, sem a perda de grupo, de que o professor indígena se
processos reflexivos e criativos, incluídos qualifique para o magistério, ao
os hábitos, costumes e princípios mesmo tempo em que se escolariza,
religiosos, constituindo-se como tarefas de que a educação escolar possa
para os conhecimentos escolares e direito cumprir uma função importante no
4
Oportunamente, o conceito intercultural vem diferentes e supõe a coexistência da diversidade
sendo desenvolvido a partir da perspectiva da como riqueza. Este conceito começou a ocupar
aproximação entre língua e cultura no processo de um lugar importante nos debates sobre educação
ensino-aprendizagem de línguas. Trata-se de uma a partir da década de 1970, quando a diversidade
espécie de mediação cultural na qual o aprendiz étnica e cultural tornou-se fonte de preocupação
participa e, ao mesmo tempo, reflete sobre sua por parte dos chamados países desenvolvidos,
cultura e sobre a cultura-alvo (BYRAM, 1997; principalmente os europeus (PALADINO;
2008). O termo interculturalidade traz a ideia de ALMEIDA, 2012).
inter-relação, diálogo e troca entre culturas 54
diálogo intercultural (GRUPIONI, aldeias circunvizinhas para serem
2008, p. 52). parceiros nessa empreitada,
transformando, assim, a escola em uma
Para alcançar os objetivos propostos
grande aldeia, repleta de saberes, cores e
nesse artigo, teve a participação do
gostos do Povo Potiguara.
professor especialista Pedro Lôbo, Arte-
Educador, indígena da etnia Potiguara da As oficinas, organizadas no contra turno
Paraíba, na elaboração de atividades pelos professores Pedro e Adelson
pedagógicas, previstas no Projeto juntamente com os pesquisadores e
Político Pedagógico (PPP) e discutidas e demais professores (Educação física,
planejadas em coordenações coletivas e Biologia, Português, Matemática, dentre
de áreas, na promoção do jovem alunado outros), comunidade escolar (pais, avós,
indígena urbano, durante o ano de 2015, responsáveis, etc.) e equipe gestora da
visto que ele leciona na Escola Municipal escola pública municipal, foram
de Ensino Fundamental Antônio divididas por temáticas e cada turma dos
Azevedo, a qual fica situada na área sextos aos nonos anos do ensino
urbana do munícipio de Baía da Traição fundamental ficaram responsável em
– Paraíba (PB), com turmas do sexto ao desenvolver tal temática, houve oitos
nono anos do ensino fundamental. turmas, no total, envolvidas nas oficinas.
As que participaram de culinária,
Essa escola recebe alunos indígenas
memória e patrimônio saíram em
advindos de algumas aldeias dos
pesquisa de campo pelas aldeias, com o
municípios de Marcação e da própria
intuito de realizarem coletas de dados,
Baía da Traição, embora não seja
orientadas por um grupo de professores.
propriamente uma escola indígena.
Mesmo estando localizada dentro da área Os alunos, na maioria indígenas da etnia
indígena, há, em seu PPP, disciplinas que Potiguara entre onze e dezesseis anos de
abordam a cultura indígena, por exemplo, ambos os gêneros, participantes da
Etno-história, Tupi e Arte e Cultura. oficina de culinária realizaram visitas aos
Contudo, dá-se início às atividades manguezais na tentativa de pegar
pedagógicas que são divididas por caranguejos, mariscos e peixes para
bimestres com uma contextualização serem preparados e degustados durante a
sobre a temática Cultura e Povos exposição na escola, como
Indígenas, desde o início do período reconhecimento da preservação
colonial até os dias atuais, antes da ambiental e da história alimentar do Povo
introdução dessas disciplinas Potiguara. Todas as atividades das
supracitadas. oficinas foram realizadas em uma
perspectiva bilíngue português/tupi –
Após a contextualização, juntou-se aos tupi/português, tendo em vista o resgate
pesquisadores o professor indígena
do uso do Tupi entre os jovens indígenas
Adelsom Francisco, que leciona a
e, principalmente pelos jovens indígenas
disciplina Tupi, e também atua na
que vivem nas áreas urbanas do estado da
elaboração de oficinas de artesanato,
Paraíba.
memória e patrimônio, culinária e artes
(teatro, música, dança e artes visuais, Já os da oficina de memória e patrimônio
etc.), que engajaram toda a escola e seus fizeram incursões nas aldeias próximas
atores sociais, durante ao ano letivo de em busca dos anciãos, detentores da
2015. Para tanto, convidaram artesãos, sabedoria indígena, com os quais fizeram
anciãos indígenas, professores de outras entrevistas, vídeos, fotos e obtiveram
disciplinas, doceiras, merendeiras das relatos referentes aos fatos e momentos

55
que marcaram a trajetória do Povo preparadas nas oficinas de culinária.
Potiguara, bem como fotografaram Nesse momento, a presença dos
patrimônios materiais do universo pais/avós/responsáveis foi importante
indígena dessa etnia. tanto no reconhecimento das
atividades/oficina desenvolvidas por seus
Os integrantes da oficina de artesanatos entes, quanto na valorização dos saberes
trouxeram, para o ambiente escolar, e tradições indígenas do coletivo
artesãos da etnia Potiguara para que esses Potiguara. E para nós, como
ensinassem suas técnicas aos inscritos pesquisadores, fica a certeza do
nessa oficina, tendo como língua de uso o fortalecimento da educação escolar
português-tupi. Quanto às oficinas bilíngue indígena potiguara.
ligadas às Artes, em teatro, os estudantes
indígenas elaboraram uma peça, em tupi, Considerações finais
na qual enfatizaram a importância dos Grande parcela da dívida sociocultural e
quatro elementos: água, terra, fogo e ar. ambiental contraída pelo predatório
Nas artes plásticas – pinturas – os processo colonizador, ao longo de cinco
integrantes dessa oficina realizaram séculos de dominação sobre os povos
pinturas corporais indígenas potiguaras, indígenas, já não pode ser resgatada. O
utilizando o jenipapo e o açafrão. Na que nos compete fazer, no atual contexto,
dança e na música, os participantes com respaldo legal e pela via da
apresentaram o ritual do Toré 5 , uma Educação Escolar bilíngue Indígena, é
espécie de dança circular da etnia buscar reverter o ritmo do processo de
Potiguara, no intuito de festejar a união negação das diferenças étnicas, da
dos Povos e valorização da paz entre eles. descaracterização sociocultural, da
destituição territorial, da degradação
Após pesquisas realizadas para as ambiental e da despopulação dos povos
oficinas juntamente com os alunos, o indígenas que ainda vivem no território
professor de língua Tupi trabalhou, com brasileiro, como elucidado pelo
cada turma, traduções de palavras mais Ministério da Educação (2007).
utilizadas no universo Potiguara,
enquanto o professor de português pediu Há ciência de que a reversão do processo
uma produção escrita acerca das predatório não é suficiente, é preciso
pesquisas realizadas e pequenos garantir que as diversas sociedades
relatórios descritivos semanalmente, em indígenas tenham autonomia para traçar
duplas. seus próprios destinos e o poder para
defender seus direitos perante a
Como encerramento das sociedade nacional na condição de
atividades/oficinas desenvolvidas ao cidadãos brasileiros, pois
longo do bimestre/semestre/ano, foi É necessário que ações concretas
organizado o Dia Cultural na Escola, para o fortalecimento da Educação
para que se pudesse expor todo o material Escolar Indígena sejam realizadas
coletado e desenvolvido; bem como nos diferentes sistemas de ensino do
degustação das comidas que foram país de maneira articulada,
5
De acordo com Vieira (2006), na maioria dos do Dia do Índio, sendo pensado como um ritual
grupos indígenas localizados no Nordeste, o Toré sagrado que celebra a amizade entre as distintas
é uma importante prática ritual, capaz de balizar aldeias, realçando o sentimento de grupo e de
as diferenças internas, projetando os grupos nas nação. É uma dança que está na própria percepção
situações de contato. No caso dos Potiguara, o e representação da tradição coletiva.
Toré é geralmente realizado nas comemorações
56
coordenada e com continuidade, de atentar-se para que o contexto de ensino-
forma que possam contribuir para a aprendizagem apresentado por este
inversão do processo de degradação, trabalho se relacione, sobretudo, ao
que põe em risco a sobrevivência das caráter humano do processo de ensinar e
culturas indígenas, e, assim, aprender, complexo por excelência. Ele
promover o desenvolvimento auto-
exige uma postura ativa para refletir
sustentável e de progresso
permanente, sem a perda da sobre a pertinência dos procedimentos
identidade étnica e da cidadania realizados, para conseguir ter mais
brasileira em sua plenitude (MEC, propriedade em relação aos processos
2007, p. 113). almejados no repensar a educação
bilíngue indígena.
Compreende-se que esta pesquisa é o
começo de muitas possibilidades que a
educação bilíngue indígena, línguas e Referências
culturas em contato, estudantes e alunos
ALVARES M. M. Kitoko Maxakah a criança
dentro e fora do contexto de ensino- indígena e os processos de formação aprendizado
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57
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