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BIBLIOTECA DE FILOSOFIA E HISTÓRIA DAS CltNCIAS MICHEL FOUCAULT

Vol. n9 15

HISTORIA
( 'Ol'fI/I'IIUlJon'-,,: DA SEXUALIDADE
J. A. Guilhon de Albuquerque 2
c Robcrtll Ma..:hado

o USO DOS
PRAZERES

Tradução de
Maria Thereza da Costa Albuquerque
Revisão Técnica de
José Augusto Guilhoh Albuquerque
8.3 Edição
10 Éditions Gallimard, 1984
Capa: Fernanda Gomes
Revisão: Henrique Tamapolsk:y
Produção gráfica: Orlando Fernandes

-
SUMÁRIO

(CP1-Brasil Catalogação-na-follte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ) INTRODUÇÃO 7
I. Modificações 9
Foucault,Michel,1926-1984. 2. As formas de problematização /7
F86h História da sell:ualidade 2; o uso dos prazcreslMichel Foucault, 3. Moral e prática de si 26
tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque; revisão
I - A PROBLEMATlZAÇÃO MORAL DOS PRAZERES 31
técnica de José Augusto Gui1hon Albuquerque 1. Aphrodisia 38
Rio de Janeiro: Edições ('m, 1984. 2. Chrésis 51
(Biblioteca de Filosofm e História das Ciências; v. n. 15). 3. Enkrateia 60
Tradução de: llistoire de la sexuaJité 2: l'usage de plaisir 4. Liberdade e. verdade 73
Bibliografia
II - DIETÉTICA 87
1. Sexualidade - História 2. Sexualidade - I. Do regime em geral 91
Teoria. l. Titulo lI. OUso dos prazeres llI. serie 1. A dieta dos prazeres I()()
J. Riscos e perigos 107
CDD-301.4179 4. O alo. I) dispêndio. a morte fl4
84-0668 301.41701
111 - ECONÓMICA 127
I. A sabedoria do casamento 129
"
Direitos adquiridos pela 2. A casa de Isômaco 137
EDIÇÕES GRAAL Ltda. J. Três políticas da temperança' /49
Rua Hennenegildo de Barros, 31wA
IV - ERÓTICA 165
Glória, Rio de Janeiro, RJ I. Uma relação problemática 167
CEP: 20.241 2. A honra de um rapaz 181
Tel.: (021)252.8582 3. O objeto do prazer /90
que se reserva a propriedade desta tradução.
V - O VERDADEIRO AMOR /99
1998 CONCLUSÃO 2I 5
IN DlCE DOS TEXTOS CITAOOS 223
Impresso no Brasil! Printed in Brazi!
INTRODUÇÃO
MODIFICAÇOES

Esta sêrie de pesquisas surge mais tarde do que eu previra e de


uma forma inteiramente diferente.
Eis por quê. Elas não deveriam ser uma história dos comporta-
mentos nem uma história das representações. Mas uma história da
"sexualidade": as aspas têm sua importância. Meu propósito não era
o de reconstruir uma história das condutas e das práticas sexuais de
acordo com suas formas sucessivas, sua evolução e difusão. Também
não era minha intenção analisar as idéias (científicas. religiosas ou fi·
losóficas) através das quais foram representados esses comportamen-
tos. Gostaria, inicialmente, de me deter na noção tão cotidiana e tão
recente de "sexualidade": tomar distanciamento em relação a ela. con-
tornar sua evidência familiar, analisar () contexto teórico e prático ao
qual ela e associada. O próprio termo "sexualidade" surgiu tardia-
mente, no inicio do Século XIX. t um fato que não deve ser subesti·
mado nem superinterpretado. Ele assinala algo diferente de um rema-
nejamento de vocabulário; mas não marca, evidentemente, a brusca
emergência daquilo a que se refere. O uso da palavra foi estabelecido
em relação a outros fenômenos: o desenvolvimento de campos de co-
nhecimentos diversos (que cobriram tanto os mecanismos biológicos
da reprodução como as variantes individuais ou sociais do comporta-
mento): a instauração de um conjunto de regras e de normas, em parte
tradicionais e em parte novas, e que se apóiam em instituições religio-
sas, judiciárias. pedagógicas e médicas; como também as mudanças no
modo pelo qual os indivíduos são levados a dar sentido e valor a sua
conduta, seus deveres, prazeres, sentimentos, sensações e sonhos. Em

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suma. tratava~se de ver de que maneira. nas sociedades ocidentais mo~ riência da sexualidade a partir do Século XVllI. sem fazer, a propósito
dernas, constituj~se uma "experiência" tal. que os individuas são Ie-- do desejo e do sujeito desejante. um trabalho histórico e crítico. Sem
vados a reconhecer·se como sujeitos de uma "sexualidade" que abre empreender, portanto. uma "genealogia". Com isso. não me refiro a
para campos de conhecimentos bastante diversos. e que se articula fazer uma história das concepçõcs sucessivas do desejo, da concupis~
num sistema de regras e coerções. O projeto era. portanto, o de uma cência ou da libido, mas analisar as práticas pelas quais· os indivíduos
hist.~ri~ da sexualid~de enquanto experiência·- se entendemos por ex~ foram levados a prestar atenção a eles próprios, a se decifrar, a se reco--
penenCla a corre laça0, numa cultura, entre campos de saber. tipos de nhecer e se confessar como sujeitos de desejo, estabelecendo de si para
normatividade e formas de subjetividade. consigo uma certa relação que lhes permite descobrir. no desejo, a ver·
Falar assim da sexualidade implicaria afastar~~e de um esquema dade de seu ser, seja ele natural ou decaído. Em suma, a idéia era a de
de pensamento que era então corrente: fazer da sexualidade um inva~ pesquisar. nessa genealogia, de que maneira os indivíduos foram leva·
riante e supor que, se da assume. nas suas manifestações, formas histo· dos a exercer. sobre eles mesmos e sobre os outros. uma hermenêutica
ricamente singulares, é porque sofre o efeito dos mecanismos diversos do desejo à. qual o comportamento sexual desses indivíduos sem dÚvi·
de repressão a que ela se encontra exposta em toda sociedade; <> que da deu ocasião. sem no entanto constituir seu dominio exclusivo. Em
equivale a colocar fora do campo histórico o desejo e o sujeito do dese· resumo. para compreender de que maneira o individuo moderno po~
jo, e a fazer com que a forma geral da interdição dê contas do que dia fazer a experiência dele mesmo enquanto sujeito de uma "sexuali·
pode haver de histórico na sexualidade. Mas a recusa dessa hipótese. dade", seria indispensâvel distinguir previamente a maneira pela qual.
por si só, não era suficiente. Falar da "sexualidade" como uma expe· durante séculos, o homem ocidental fora levado a se reconhecer como
riência historicamente singular suporia. também. que se pudesse dis· sujeito de desejo.
por de in~trumentos suscetíveis de analisar. em seu próprio caráter e Um deslocamento teórico me pareceu necessário para analisar o
em suas correlações. os três eixos que a constituem: a formação dos sa~ que freqüentemente era designado como progresso dos conhecimen~
beres que a ela se referem. os sistemas de poder que regulam sua prati· tos: ele me levara a interrogar~me sobre as formas de práticas discursi~
ca e as formas pelas quais os individuos podem e devem se reconhecer vaI:' que articulavam o saber. E foi preciso também um de~locamento
como sujeitos dessa sexualidade. Ora. sobre os dois primeiros pontos, tcôrico para analisar o que freqüentemente se descreve como manifes·
o trabalho que empreendi anteriormente - seja a propósito da Medici· tações do "poder": ele me levara a interrogar~me sobretudo sobre as
na e da psiquiatria, seja a propósito do poder punitivo e das práticas relações múltiplas, as estratégias abertas e as técnicas racionais que ar~
disciplinares - deu· me os instrumentos dos quais necessitava; a análise ticulam o exercício dos poderes. Parecia agora que seria preciso em~
das práticas discursivas permitia seguir a fonnação dos saberes. esca~ preender um terceiro deslocamento a fim de analisar o que ê designado
panda ao dilema entre ciência e ideologia; a análise das relal,íões de po· como "o sujeito"; convinha pesquisar quais são as formas e as modali·
der c dto SU,IS tecnologias permitia focalizâ~las como estrategias aber~ dades da relação consigo através das quais o individuo se constitui e se
tas, e.'\Capando li. alternativa entre um poder concebido como domina~ reconhece como sujeito. Após o estudo dos jogos de verdade conside~
\;110 ou denunciado como simulacro. rados entre si - a partir do exemplo de um certo número de ciências
Em compensação. o estudo dos modos pelos quais os individuas empíricas nos Séculos XVII e XVIII - e posteriormente ao estudo dos
são levados a se reconhecerem como sujeitos sexuais me colocava difi· jogos de verdade em referência às relações de poder, a partir do exem~
culdades bem maiores. A noção de desejo ou a de sujeito desejante pio das práticas punitivas. outro trabalho parecia se impor: estudar os
constituia, então. senão uma teoria, pelo menos um tema teórico ge· jogos de verdade na relação de si para si e a constituição de si mesmo
ralmente aceito. A própria aceitaçiio parecia estranha: com efeito. era como sujeito, tomando como espaço de referência e campo de investi·
esse tema que se encontrava. segundo certas variantes. no centro da gar.:iio aquilo que poderia chamar~se "história do homem de desejo"
teoria dassica da sexualidade. como tambem nas concepções que bus· Entretanto. ficou claro que empreender essa genealogia me afas~
cavam dela apartar·se; era ele também que parecia ter sido herdado. tava muito de meu projeto primitivo. Devia escolher. ou manter o pla~
no Século XIX e no Seculo XX. de uma longa tradição cristã. A expe· no estabelecido, fazendo·o acompanhar de um rapido exame histórico
riência da sexualidade pode muito bem se distinguir, como figura his~. desse tema do desejo. ou reorganizar todo o estudo em torno da lenta
tórica singular. da experiência cristã da "carne": mas elas parecem formação. dUrante a Antigüidade. de uma hermenêutica de si. E foi
ambas dominadas pelo princípio do "homem de desejo". Em todo ca~ por c~!c uh imo p<lrtido que optei ao pensar que, afina! de conl;IS.
so, parecia dificil analisar a formação e o desenvolvimento da expe~ aquilo a que me atcnho - a que me: ative desde tantos anos - e a tarefa

10 II
de evidenciar alguns elementos que possam servir para uma história da questões que queria colocar; H. Dreyfus e P. Rabin<}w em Berkeley,
verdade. Uma história que não seria aquela do que poderia haver de permitiram~me, por meio de suas rellexões, suas questões, e graças á
verdadeiro nos c.onhecimentos; mas uma analise dm '"jogos de verda- sua exigência, um trabalho de reformulação teórica e metodológica. F.
°
de'·. dos jogos entre verdadeiro e o falso, através dos quais o ser se Wahl deu-me conselhos preciosos.
con.~titui historicamente como experiência, isto é, como podendo e de- P. Veyne ajudou-me constantemente no decorrer desses anos. Ele
"'endo ser pensado. Através de quais jogos de verdade o homem se di! sabe o que e pesquisar o verdadeiro, como historiador de verdade; mas
),cu ~a próprio a pensar quando se percebe como louco. quando se também conhece o labirinto em que se entra quando se quer fazer a
olha como doente, quando rellete sobre si como ser vivo, ser falante história dos jogos entre o verdadeiro e o falso; ele é daqueles, raros
c ser trabalhador, quando ele sejulga e se pune enquanto criminoso? hOJe em dia, que aceitam enfrentar o perigo, para todo e qualquer pen-
Atr;.Jves de quais jogos de verdade o ser humano se reconheceu como samento, que a questão da historia da verdade tral. consigo. Seria difí·
homem de desejo? Pareceu~me que, colocando assim essa questão e cil circunscrever sua inlluência sobre estas páginas.
tentando e!aborá*la a propósito de um período tão afastado dos meus Quanto ao motivo que me impulsionou foi muito simples. Para
!wri/ontes. outrora familiares, abandonava, sem dúvida, o plano pre~ alguns, espero, esse motivo poderá ser suficiente por ele mesmo. t. a
tcndido mas estaria mais próximo da interrogação que desde há muito curiosidade - em todo caso, a única espécie de curiosidade que v<l.le a
tcmpü me esforço em colocar. Ainda que essa abordagem exigisse de pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aqubla que pro~
mim ;dguns anos suplementarell de trabalho. Certamente que havia cura assimilar o que convém conhecer, mas a que permite separar~se
ri..,Clb nesse longo desvio; mas tinha um motivo e pareceu~me ter en- de si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse
cüntrado nes~a pesquisa um certo proveito teórico. apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto
Os riscos? Eram os de retardar e desorganizar o programa de quanto possível, o descaminho daquele que conhece'? Existem momen*
publicação previsto. Agradeço áqueles que seguiram o~ trajetos e os tos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente
desvios de meu trabalho - penso nos ouvintes do College de France - e do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispen~â~
aqueles que·tiveram a paciência de esperar o termo desse trabalho: em vel para continuar a olhar ou a relletir. Talvez me digam que essesJo-
primeiro lugar, Pierre Nora. Quanto aqueles para quem ellforçar-se, go), consigo mesmo têm que permanecer nos bastidores; e que no má~
começar e recomeçar, experimentar, enganar-se, retomar tudo de cima ximo des falem parte desses trabalhos de preparação que desap.are~
a b:nxll e ainda encontrar meio!> de hesitar a cada passo, aqueles para ,em por si sós a partir do momento em que produzem seus efeitos.
qu~m, em ~uma, trabalhar mantendo-se em reserva e inquietaçãoequi- Mas o que ê filosofar hoje em dia - quero dizer, a atividade filosófica-
v;lle a dcmissão, pois bem, é evidente que não somos do mesmo plane- senão o trabalho critico do pensamento sobre o próprio pensamento'?
Se não consistir em tentar saber de que maneira e até'onde seria possl~
O perigo era também o de abordar documentos por mim mal co· vel pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe? Existe
nhecidos.' Corria o risco de submetê*los, sem me dar conta, a formas ~mpre algo de irrisório no discurso filosófico quando ele quer, do ex-
de análise ou a modos de questionamento que, vindos de outros luga- tcrior, fazer a lei para os outros, dizer~lhes onde está a sua verdade e de
res, não lhes convinham; os livros de P. Brown, os de P. Hadot e, em que maneira en,ontra*la, ou quando pretende demonstrar~se por posi-
varias ocasiões, seus pareceres e as conversações que mantivemos, me tividade ingênua: mas é seu direito explorar o que pode ser mudado,
foram de grande valia. Também, corria o risco, inversamente, de per~ no seu proprio pensamento, através do exercicio de um saber que lhe é
der, no esfon;o para me familiarizar com os textos antigos, o fio das estranho. O "ensaio" - que é necessário entender como experiência
modificadora de si no jogo da verdade, e uão como apropriação sim-
plificadora de outrem para fim de comunicação - é o corpo vivo da fi-
losofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja,
!. Não sou helenista nem latinista. Mas me pareceu que, com bastante cuidado, pa· uma "ascese", um exerclcio de si. no pensamento,
ciência, modêstia e atenção, era possivel adquirir familiaridade suficiente com os textos ·Os estudos que se seguem, assim como outros que anteriormente
da Antigüidade grega e romana: quero diur essa familiaridade que permita, de acordo empreendi, são estudos de "história" pelos campos que tratam e pelas
com uma prática sem duvida cortstitutiva da filosofia ocidental, interrogar, ao mesmo referências que a:ssumem; mas não são trabalhos de "historiador". O
tempo, a diferença que nos mantem â distância de um pensamento em que re~nhece.
mos a origem do nosso, e a proximidade que permanece a despeito desse distanCIamento que não quer dizer que eles resumam ou sintetizem o trabalho feito
que n6s aprofundamos sem cessar. por outros: eles são - se quisermos encará~los do ponto de vista de sua

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"pragmática" - o protocolo de um exercício que foi longo, hesitante, e portância considerável em nossas sociedades: é o que se poderia cha-
que freqüentemente precisou se retomar e se corrigir. Um exercício fi- mar "artes da existência". Deve-se entender, com isso, prâticas reneti-
losófico: sua ar.ticulação foi a de saber em que medida o trabalho de dtls t: voluntarias através das quais os homens não somente se fixam
pensar sua própria história pode liberar o pensamento daquilo que ele regrtls dt: conduta, como também procuram se transformar, modifi-
pensa silenciosamente, e permitir-lhe pensar diferentemente. .:.ar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja porta-
Teria eu razão em correr esses riscos? Não cabe a mim dizê-lo. Sei dora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo.
apenas que, deslocando assim o tema e os balizamentos cronológicos Essa!'t "artes de existência", essas "técnicas de si", perderam, sem dúvi-
de meu estudo, encontrei algum proveito teórico; foi-me possível pro- da, uma certa parte de sua importância e de sua autonomia quando,
ceder a duas generalizações que me permitiram, ao mesmo tempo, si- com o cristianismo, foram integradas no exercicio de um poder pasto-
tua-lo num hodzonte mais amplo e precisar melhor seu método e seu ral c, mais tarde, em práticas de tipo educativo, médico ou psicológico.
objeto. Dc 4UalljUCr modo. dever-se-ia, sem dúvida, fazer e refazer a longa
Ao retornar assim, da época moderna, através do cristianismo, história dessas estéticas da existência e dessas tecnologias de si. Já há
até a Antigüidade, pareceu-me que não se poderia evitar colocar uma algum tempo que Burckhardt sublinhou sua importância na época do
questão ao mesmo tempo muito simples e geral: por que o comporta- Renascimento: mas sua sobrevivência, sua história e desenvolvimento
mento sexual, as atividades e os prazeres a ele relacionadm" são objeto não param ai.-' Em todo caso, pareceu-me que o estudo da problemati-
de uma preocupação moral? Por que esse cuidado ético que, pelo me- I.ação do comportamento sexual na Antigüidade podia ser considera-
nos em certos momentos, em certas sociedades ou em certos grupos, do como um capitulo - um dos primeiros capitulos - dessa história ge-
parece mais importante do que a atenção moral que se presta a outros rai das "técnicas de si".
campos, não obstante essenciais na vida individual ou coletiva:como Tal é a ironia desses esforços feitos a fim de mudar-se a maneira
as condutas alimentares ou a realização dos deveres cívicos? Sei que de ver, para modificar o horizonte daquilo que se conhece e para ten-
uma resposta ocorre de imediato: é que eles são objeto de interdições tar distanciar-se um pouco. Levam eles, efetivamente, a pensar dife-
fundamentais cuja transgressão é considerada falta grave. Mas isso se- rentemente? Talvez tenham, no máximo, permitido pensar diferente-
ria dar como solução a própria questão; e, sobretudo, implicaria des- mente o que já se pensava e perceber o que se fez segundo um ângulo
conhecer que o cuidado· ético a respeito da conduta sexual não está diferente e sob uma luz mais nitida. Acreditava-se tomar distância e no
sempre, em sua intensidade ou em suas formas, em relação direta com entanto fica-se na vertical de si mesmo, A viagem rejuvenesce as coisas
o sistema de interdições; ocorre freqüentemente que a preocupação e envelhece a relação consigo. Parece-me que seria melhor perceber
moral seja forte, lâ onde p'recisamente não há obrigação nem proibi- agora de que maneira, um tanto cegamente, e por meio de fragmentos
ção. Em suma, a interdição é uma coisa, a problematização moral é sucessivos e diferentes, eu me conduzi nessa empreitada de uma histó-
outra. Portanto, pareceu-me que a questão que deveria servir de fio ria da verdade: analisar, não os comportamentos, nem as idéias, não
condutor era a seguinte: de que maneira, por que e sob que forma a as sociedades, nem suas "ideologias", mas as problemarizações através
atividade sexual foi constituída como campo moral? Por que esse cui- das quais o ser se dá como podelfdo e devendo ser pensado, e as práti-
dado ético tão insistente, apesar de variável em suas formas e em sua ('as a partir das quais essas problematizações se formam. A dimensão
intensidade? Por que essa "problematização"'? E, afinal, é esta a tarefa arqueológica da análise permite analisar as próprias formas da proble-
de uma história do pensamento por oposição á história dos comporta- matização; a dimensão genealógica, sua formação a partir das prâti~
mentos ou das representações: definir as condições nas quais o ser hu- cas e de suas modificações. Problematização da loucura e da doença a
mano "problematiza" o que ele é, e o mundo no qual ele vive. partir de práticas sociais e médicas, definindo um certo perfil de "nor-
Mas, ao colocar essa questão muito geral, e ao colocá-Ia á cultura malização"; problematização da vida, da linguagem e do trabalho em
grega e greco-latina, pareceu-me que ~a problematização estava rela-
cionada a um conjunto de práticas que, certamente, tiveram uma im-

2. Não seria e)(alO acreditar-se que, desde Burekhardl, oe!ltudo dessas artes e de!lSa es-
t1:tica da «istência foi wmpletamente negligenciado. Podemos pensar no e!ltudo de
• A palavra SQUci sera sempre tradulida "cuidado", para diferenciar de !iOÜJ, sempre Benjamin $Obre Baudel.aire. Pode-se enwntrar, também, uma análise interessante no re·
lfaduxida "cuidados", e de préQccupot/Q1I, sempre traduxida "preocupação". (N. do T.)
cente livro de S. GREENBLA1T, Re1tflissonct' Self-fashionjng, 1980.

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práticas discursivas obedecendo a certas regras "epistêmicas"; proble-
matização do crime e do comportamento criminoso a partir de certas
praticas punitivas obedecendo a um modelo "disciplinar". Gostaria de
mostrar, agora, de que maneira, na AntigUidade, a atividade e os pra-
zeres sexuais foram problematizados atraves de praticas de si, pondo
em jogo os criterios de uma "estética da existência".
Eis as razões pelas quais recentrei todo o estudo sobre a genealo-
gia do homem de desejo, desde a AntigUidade clássica até os primeiros
seculos do cristianismo. Segui uma distribuição cronológica simples: 2
um primeiro volume, O uso dos prazeres, é dedicado à maneira pela
qual a atividade sexual foi problematizada pelos filósofos e pelos mé-
dicos, na cultura grega clássica, no Século IV a. c.; O cuidado de si é
dedicado a essa problematização nos textos gregos e latinos nos dois AS FORMAS DE PROBLEMATIZAÇÃO
primeiros séculos de nossa era; finalmente, As confissões da carne tra-
tam da formação da doutrina e da pastoral da carne. Em relação aos
documentos que utilizarei, eles serão na maior parte textos "prescriti-
vos"; com isso, quero me referir a textos que, qualquer que seja sua
forma (discurso, dialogo, tratado, coletânea de preceitos, cartas, etc.),
têm como objetivo principal propor regras de conduta. Só recorrerei Suponhamos que aceitemos por um momento categorias tão ge-
aos textos teoricos sobre a doutrína do prazer ou das paixões para en- rais como as de "paganismo", de "cristianismo", de "moral" e de
contrar esclarecimentos, O campo que analisarei é constituído por tex- "moral sexual". Suponhamos que perguntemos em que pontos a "mo-
tos que pretendem estabelecer regras, dar opiniões, conselhos, para se nll sexual do cristianismo" opôs-se, o mais nitidamente, a "moral se-
comportar como convém: textos "práticos" que são, eles próprios, ob- xual do paganismo antigo": proibição do incesto, dominação masculi-
jeto de "prática" na medida em que eram feitos para serem lidos, na, sujeição da mulher? Sem duvida não serão essas as respostas da-
aprendidos, meditados, utilizados, postos á prova, e visavam, no final das: conhece-se a extensão e a constância desses fenômenos sob suas
das contas, constituir a armadura da conduta cotidiana. O papel des- variadas formas. Mais provavelmente, propor-se-iam outros pontos
ses textos era o de serem operadores que permitiam aos indivíduos in- de diferenciação. O valor do próprio ato sexual: o cristianismo o teria
terrogar-se sobre sua própria conduta, velar por ela, formá-Ia e con- associado ao mal, ao pecado, â queda, â morte, ao passo que a Anti-
formar-se, eles próprios, como sujeito ético; em suma, eles participam güidade o teria dotado de significações positivas. A delimitação do.
de uma função "etopoetica", para transpor uma expressão que se en- parceiro legitimo: o cristianismo, diferentemente do que se passava
contra em Plutarco. nas sociedades gregas ou romanas, so o teria aceito no casamento mo-
Mas, como essa análise do homem de desejo se encontra no ponto nogâmico e, no interior dessa conjugalidade, lhe teria imposto o princí-
de intersecção entre uma arqueologia das problematizações e uma ge- pio de uma finalidade exclusivamente procriadora. A desqualificação
nealogia das práticas de si, gostaria de deter-me, antes de começar, das relações entre indivíduos do mesmo sexo: o cristianismo as teria
nessas duas noções: justificar as formas de "problematização" que excluido rigorosamente, ao passo que a Grécia as teria exaltado - e
considerei, indicar o que se pode entender por "pratica de si", e expli- Roma, aceito - pelo menos entre homens. A esses três pontos de opo-
car através de que paradoxos e dificuldades fui levado a substituir uma sição maior, poder-se-ia acrescentar o aho valor moral e espiritual que
história dos sistemas de moral, feita a partir das interdições, por uma o cristianismo, diferentemente da moral pagã, teria atribuído li absti-
história das problematizações éticas, feita a partir das praticas de si. nência rigorosa, á castidade permanente e li virgindade. Em suma.
sobre todos esses pontos que foram considerados, durante tanto tem-
po, como tão importantes - natureza do ato sexual, fidelidade mono-
gâmica, relações homossexuais, castidade -, parece que os Antigos te-
riam sido um tanto indiferentes, e que nada disso teria atraído muito
sua atenção, nem constituído para eles problemas muito agudos.

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Ora, isso não é exato; e poder~se~ia mostrá~lo facilmente. Poder~ Reconhece~se facilmente, nesse texto, as obsessões que a medicina
se·ia comprovâ-Io ressaltando as reproduções diretas e as continuida~ I: a pedagogIa alimentaram, a partir dos Séculos XVII e XVIII, em tor~
des muito estreitas que se pode constatar entre as primeiras doutrinas no do puro dispêndio sexual- aquele onde não existe fecundidade nem
cristãs e a filosofia moral da Antigüidade: o primeiro grande texto parceiro; o esgotamento progressivo do organismo, a morte do indivi~
c.ristão dedicado â prática sexual na vida de casado - o capítulo X çlo dtlO. ;1 destrui~âo de SU;l raç;l e. finalmente, () dano causado a toda a
hvro 11 do Pedagogo de Clemente de Alexandria - apóia~se num certo hU]l1:111id;lde. for,]]H. regularmente. ao longo de uma literatura loqua/.
numero de referências ás Escrituras mas também num conjunto de prtlllle! idos para aquek~ que abusas~em de seu sexo. bse~ medos in~
princípios e de preceitos diretamente tomados á filosofia pagã. Já en· dU/idlls p;lrecem ter con~tituido a herança "naturalista·· e "eientiri~
0,;;\ ••• no penSi!ll1l.':nto ll1t!dico do Séçulo XIX, de uma tradii;ão \.:ri.~t;i
contramos ali uma certa associação entre·a atividade sexual e o mal, a
regra de uma monogamia procriadora, a condenação das relações de que colocava o pr;.w;r no campo da morte e do mal.
mesmo· sexo, a exaltação da continência. Não é r.ó: numa escala histó- Ora, cssa descrição e, de fato, uma tradução - uma tradução livre,
rica bem mais longa, poder~se·ià acompanhar a permanência de te- no es~ilo ?a época - de um texto escrito por um medico grego, Areteu,
mas, inquietações e exigência!>, que sem dúvida man.:aram a ética cristã no pnme!ro século de nossa era. Desse temor do ato sexual, suscetive\,
e a moral das sociedades européias modernas, mas que jâ estavam cla· se for desregrado, de produl.ir na vida do indivíduo os mais nocivos
ramente presentes no cerne do pensamento grego ou greco~romano. efeitos, encontrar~se*ão muitos testemunhos na mesma epoca: Sora~
Eis aqui diversos testemunhos: a expressão de um medo, um modelo nus, p<!r .exemplo, considerava que a atividade sexual seria, em qual~
de tomportanlento, a imagem de uma atitude desqualificada, um quer hlpotese, menos favorâve\ â saude do que a pura e simples abs~
exemplo de abstinência. ten~ão e a virgindade. Mais cedo, ainda, a medicina tinha dado insis~
tentes (onselhos de prudência e de economia no uso dos pral.eres se*
xuais: evitar seu uso intempestivo, levar em conta as condições nas
quais eles são pra!icados, temer a sua própria violência e os erros de
I. Um mi'do regime. Alguns chegam a dizer que não se deve praticá~los "a não ser
que ~e queira prejudicar~se a si próprio". Medo muito antigo por con~
seguJnte.
Os jovens com uma perda de sêmen "carregam em todo~ os hábi~
toS do corpo a marca da caducidade e da velhice; eles ~ tornam rela~
xados. sem força, entorpecid06, estupidos, prostrados, curvados, inca~
~ai'es de qualquer coisa, com a tez pálida, branca, efeminada, sem ape· 2. Um 1!.~qUl!ma de ('oll/porlamento
tlte, :'.em calor, os membros pesados, as pernas dormentes, uma extre-
~a fraqueza, enfim, numa palavra, quase que totalmente perdidos.
Essa doença chega 11 ser, para muitos, uma via para a paralisia; de fa- ConhC1.--e-se ;1 maneira pela qual São Franci1«:o de Sales exortav,l iJ
to, como a potência nervosa não seria atingida se a natureza está en· virtude conjugal: para as pessoas casadas ele oferecia um espelho natu~
fraquecida no princípio regenerador e na própria fonte da vida?" ral propondo-lhes o modelo do elefante e dos belos costumes que de-
ESS;l doença "em si mesma vergonhosa" e "perigosa no que leva ao monstrava com sua esposa. O elefante "não passa de um grande ani-
marasmo, nociva a sociedade na medida em que Se opõe á propagação ma\' entretanto, e o mais digno que vive sobre a terra e que possui
d:l espi:cie: porque ela é, em todos os aspectos, a fonte de uma infinida- mais senso ... Ele nunca troca de fêmea, e ama ternamente aquela que
de de males, exige socorros .urgentes".' escolheu e com a qual, no entanto, só acasala a cada três anos, e so·
,. mente por cinco dias, e tão secretamente que jamais alguem o viu nesse
ato: entretanto, ele é visto no sexto dia quando, antes de qualquer ou·

1 ARETtE, Dn signes et de la cure des ma/adies chronique.l. 11, 5. Na tradução france~


5a. L. Rcnaud (1834) comenta es.~a passagem da seguinte maneira (p. 163): "A gon(lrrêia
da qual se fala aqui difere em:ncia!mente da doença que tem es.~e nome hoje em dia. que espermâlico e misturado com humor prostàtico. Essa doença vergonhosa e freqiienle~
e chamada, com mais razão, blenorragia. A gonorreia simples ou verdadeira, da qual menlt ,'!xCltada pela masturbação e ê sua (:on~eqUencia". A tradução modiflça um pouco
Areteu faJa aqui e carac!erilada por um flUlO, involuntário e fora do c(lito, do humor o sentido d(l texto grego que se pode encontrar no Corpus Mtf'dicorum G,ut'corum.

18 19
Ira coisa, vai diretamente ao rio no qual lava todo o corpo, não que~ 3. Uma imagem
rendo de modo algum retornar ao seu bando sem antes purificar~se.
Não temos ai belas e honestas disposições'!".' Ora, esse mesmo texto e
uma variação de um tema que foi transmitido por uma longa tradição Nos textos do Sêculo XIX existe um perfil~tipo do homossexual
(atraves de Aldrovandi, Gessner, Vincent de Beauvais e o famoso Ph.I'- ou do invertido: seus gestos, sua postura. a maneira pela qual ele se en~
siologus); sua formulação jâ se encontra em Plinio que ·a Introdução á feita. seu coquetismo, como também a forma e as expressões de seu
Vida Devota segue bem de perto: "É por pudor que os elefantes só se rosto, sua anatomia, a morfologia feminina de todo o seu corpo fa-
acasalam em segredo.. A femea s6 se deixa cobrir a cada dois anos e, zem, regularmente, parte dessa descrição desquaJificadora; a qual se
como se diz, durante cinco dias de cada ano, não mais; no sexto dia refere, ao mesmo tempo, ao tema de uma inversão dos papeis sexuais e
eles se banham no rio, e só se reunem ao bando após o banho. Eles não ao principio de um estigma natural dessa ofensa á natureza; seria de
conhecem o adulterio ... ".) Plinio não pretendia, certamente, propor acreditar~,.:e, diziam, que "a própria natureza se fez cúmplice da menti~
um esquema tão explicitamente didático como o de São Francisco de ra sexual": Dever~se-ia, sem dúvida, estabelecer a longa história dessa
Sales; entretanto, referia-se a um modelo de conduta visivelmente va~ imagem (á qual puderam corresponder comportamentos efetivos,
lorizado. Isso não significa que a fidelidade reciproca dos cônjuges te~ atraves de um complexo jogo de indução e desafio). Ler~se--ia, na inten~
nha sido um imperativo geralmente recebido e aceito pelos gregos e ro- sidade tão vivamente negativa desse estereótipo, a dificuldade secular,
manos. Mas ela constituia um ensinamento dado com insistência em em nossas sociedades, para integrar os dois fenômenos, aliás, diferen·~
certas correntes filosóficas, como no estoicismo tardio; constituia tam~ tes, que são a inversão dos papeis sexuais e a relação entre individuos
bem um comportamento apreciado como manifestação de virtude, de do mesmo sexo. Ora, essa imagem, com a aura repulsiva que a envol~
firmeza da alma e de domínio de si. Louvava-se Catão, o Jovem, que, vc, percorreu ,.:eculos; ela jâ estava muito nitidamente delineada na li-
na idade em que decidiu se casar, não havia tido ainda relação com teratura greco~romana da epoca imperial. Encontra~se no perfil do Ef~
mulher alguma, e, melhor ainda, Lelius, que "em toda a sua longa vida fell1inolus traçado pelo autor de uma Physiognomonis anônima do Sé~
só se aproximou de uma mulher, a primeira e unica com quem se ca- cu lo JV; na descrição dos padres de Atargatis, dos quais zomba Apu-
sou'· ..· Poder~se~ia voltar ainda mais longe na definição desse modelo leu nas Metamorfoses;'" na simbolização que Dion de Prusa propõe do
de conjugalidade reciproca e fiel. NicocJes, no discurso que lhe atribui daimiin da intemperança, numa de suas conferências sobre a monar-
Isócrates, mostra toda a importância moral e política que ele dâ ao quia;" na evocação fugaz dos pequenos retórico,.: todos perfumados e
1";110 de "não ter tido, a partir de·seu casamento, relação sexual com encaracolados que Epiteto interpela no fundo de sua saJa e aos quais
outra pessoa a não ser sua mulher".' E na sua cidade ideal, Aristóteles pergunta se são homens ou mulheres. i: Poder~se-ia ver essa imagem
quer que seja considerada como "ação desonrosa" {e isso de "maneira tambem no retrato da juventude decadente tal como a vê Sêneca, o
absolula e sem exceção"} a relaçãO' do marido com uma outra mulher Retórico, com grande repugnãncia, ao seu redor: "A paixão doentia
ou da esposa com um outro homem.' A "fidelidade" sexual do marido de ,antar e dançar enche a alma de nossos efeminados; ondular os ca-
>':001 relação â sua esposa legitima não era exigida pelas leis nem pelos belos, tornar a voz suficientemente tênue para igualar a carícia das vo~
>.:üstumes; não deixava de ser, contudo, uma questão que se colocava e le.~ femininas, rivalizar com as mulheres através da las~idão de atitu-
uma forma de austeridade a que certos moralistas conferiam grande des. estud;lr~s, ,m pefquiri~ões muito obscenas, ei,.: \) ideal de nos,.:os
valor. ;HJoksccntcs. Enfraquecidos c enervados desde o nascimento, eles
;ls",i111 pCf111;1I1ece111. sempre prontos a atacar o pudor do,.: outros sem
",c ocupar C\l1l1 o seu próprio··." Porem, esse perfil. com seus traços
/
essenciais, e ainda mais antigo. O primeiro discurso de Sócrates no

..j. )·R/\N(OIS DI:' SAl.ES. 11lIrudurtj"" ti la vi"di""(f, 111. 39. 9. H. DAUVERüNf.. l.", Foreal'. IR41. p. 2)(9 .
.~. f>I.lN!:. m'lmn' »ulurd/", \I!1I. 5. D. 10. AI>ULf'.I:". Melal>torph"'e'. V!\!. 16 sq.
(, J>lUTARQUE. Vit" de ("aulI!. VI!. !I DION Dl: I'RUSf:.. D'''·''l'''. lV. 101·115.
7. lSO<:RATE. !Vk",.fh. 36. 11. EI'ICTÍ'.TE. f:·",mit"1!.\. 111. I
s. AR1STOTE. PoUlique, VII. 16, 13.15 b. LI S(:N~.QUI:" l.l RHf:TEUR. C""mm·r.,~'. I. I'ref;ld(). x.

20 21
Fedm a ele f<JL alusão quandQ repreende o amor que se tem aos rapa- sem ser testemunhas de sua temperança"." Porem, para outros essa
ICS flácidos, educados na delicadeza da sombra, or.nados de maquila· abstenção estava ligada diretamente a uma forma de ~ll.bedo.ria que o~
gens e adereços," t também com esses traços que Agaton aparece nas colocava imediatamente em contato com algum elemento ~uperior à
Te.l'mo{orias - tez pàlida, faces escanhoadas, voz de mulher, roupas de natureza humana, e que lhes dava acesso ao próprio ser da verdade: tal
açufrão, redes - ao ponto do seu interlocutor se perguntar se na ~erda· era o caso do Sócrates do Banquete do qual todos queriam se aproxi-
de ele està na presença de um homem ou de uma mulher." Seria inexa~ mar, do qual todos se enamoravam, de cuja sabedoria todos buscavam
to ver ui uma condenação do amor pelos rapazes ou daquilo que, em se apropriar - sabedoria essa que se manifestava e se experimentava,
geral, chamumos de relações homossexuais; entretan.to, é nece~~à~io Justamente, pelo fato de que ele próprio era capaz de não tocar na be-
reconhecer ai o efeito de apreciações fortemente negativas a proposlto lel.a provocadora de A1cebiades." A temàtica de uma relação entre a
de certos <lSpectos possiveis da relação entre homens, assim como um'J abstinência sexual e o ace~~o '.1 verdade jà estava fortemente marca-
viV,J repugnância a respeito de tudo o que pudesse ':'l~rcar um~ ~cnun­ da,
cia voluntàrla aos prestigias e às marcas do papel VJTlI. O domlnlO dos Entretanto, é preciso não esperar demasiado dessas referências.
amores masculinos pôde muito bem ser "livre" na AnligüidJde !;!rega, Não se poderia delas inferir que a moral sexual do cristianismo e a do
em todo caso bem mais do que o foi nas sociedades européias moder- paganismo formem continuidade. Diversos tema~, princípios e noçõe~
nas; mio resta duvida, entretanto, que bem cedo se vê mmcar intensas podem perfeitamente se encontrar num e noutro; não possuem, no en~
reações negativ,ls e formas de desqualificação que se prolongarilo por tanto, o mesmo lugar e o mesmo valor em ambos, Sócrates não é um
muito tempo, padre do deserto lutando contra a tentação, e Nicoc1es não é nenhum
marido cristão; o riso de Aristófanes diante de Àgaton travestido tem
muito pouco a ver com a desqualificação do invertido que mais tarde
se cncontrarà no discurso médico. Alem disso, é preciso ter em mente
4, Um modelo de abstenção que a Igreja e a pastoral cristã fizeram valer o princípio de uma moral
çujo~ preceitos eram constritivos e cujo alcance era universal (o que
ntio excluia as diferenças de prescrição relativas ao status dos indiví-
O herói virtuoso que é capaz de se desviar do prazer, como uma duos, nem a existencia de movimentos ascéticos com suas próprias as-
tentação na qual ele sabe não cair, é uma figura familiar ao cristianis- pirações), Em compensação, no pensamento antigo, as exigências de
mo como foi corrente a idéia de que essa renúncia é capaz de dar aces- austeridade não er<J.m organizadas numa moral unificada, coerente,
so ~ uma experiência espiritual da verdade e do amor, ~ qual seri~ ~,~­ autoritária e imposta a todos da mesma maneira: elas eram, antes de
cluida pela atividade sexual. Mas é igualmente conhecld~ da An.llgU!o mais nada, um suplemento, como que um "luxo" em relação à moral
dade pagã a figura desses atletas da temperança que sao .suficlente~ aceita correntemente: alem disso, elas se apresentavam em "focos dis~
mente senhores de si e de suas concupi~ências para renuncIar ao pra~ persas": e estes tinham origem em diferentes movimentos filosóficos
zer sexual. Bem antes disso, a Grecia conheceu e honrou modelos ou religiosos: e encontravam seu meio de desenvolvimento em múlti-
como o de Apolônio de Tiana, um taumaturgo, que uma vez fez voto rios grupos: e propunham, mais do quc impunham, estilos de modera-
de castidade e que, por toda a vida, nunca mais teve relações sexuais. '" ç~o ou de rigor çada qual com sua fisionomia particular: a austeridade
Para alguns, essa extrema virtude era a marca visivel do dom~!Vv que pit<J!!óTlca não cru a dos estóicos que, por sua vel., era bem diferente
exerciam sobre eles próprios e, portanto, do poder que eram dIgnos de daquela recomcndadu por Epicuro. t. preciso não concluir dessas pou-
assumir sobre os outros: assim, Agésilas de Xenofonte não somente /
cas aproximações que puderam ser esboçadas que a moral cristã do
"não tocava naqueles que não lhe inspiravam desejo" como também sexo esta V,!, de certa forma, "pré~formada" no pensamento antigo;
até renunciava a beijar o rapaz a quem amava; e tomava cuidado para deve-se antes considerar que, bem cedo, na reflextlo moral da Antigüi-
.~o alojar-se nos templos ou nos lugares visiveis "para que todos pudes- t!ddt:. formou-se uma temàticu ,- uma "quadritemàtica" - da austeri-

!4, !'LA rON. PhUre, 2.19 ç·d,


1.'. AR!STOPHANE. The''III''phorie.', v, 130 sq, )7, xtNOPliON, Agi,da,', 6.
111. I'HlI.OSTRATE. Vit' d',4polhmiuJ de TI"<1fI/', l. U. I~. PI.ATON, Banquer, 217 a-2!9 c,

22 23
dade sexual em torno e a propósito da vida do corpo, da instituição do costumes ou prescrições religiosas. Ela $C dirige a eles a respeito das
casamento, das relações entre homens e da existência de sabedoria. E condutas em que, justamente, eles devem fazer uso de seu direito, de
essa temática, através de instituições, de conjuntos de preceitos, de re- seu poder, d: su~ autoridade e de sua liberdade: nas praticas dos pra~
ferências teóricas extremamente diversas e a despeito de muitos rema~ leres que nao sao condenados, numa vida de casamento onde no
nejamentos, guardou, através do tempo, uma certa constãncia: como exercício de um poder marital, nenhuma regra nem costume impede o
se houvesse, desde a Antigilidade, quatro pontos de problematízação a homem de ter relações sexuais extraconjugais, em relações com os ra-
partir dos quais se reformulava, incessantemente - e segundo esque~ pazes que, pelo menos dentro de certos limites, são admitidas, corren~
mas freqüentemente diferentes -, o cuidado com a austeridade sexual. tes e até mesmo valorizadas. É preciso entender esses temas da austeri~
Ora, é preciso notar que esses temas de austeridade não coinci~ dade sexual não co.m.o uma tradução ou um comentário de proibições
diam com as delimitações que as grandes interdições sociais, civis ou p~ofundas e essen~lals, mas como elaboração e estilização de uma ati~
religiosas, podiam traçar. PodeNe~ia pensar, com efeito, que lá onde vldl.1de no extrciclO de seu poder e na prática de sua liberdade.
as proibições são mais fundamentais, lá onde as obrigações são mais O que não quer dizer que essa temática da austeridade sexual não
coercitivas ê que, de uma forma geral, as morais desenvolvem as mais represente algo mais do que um refinamento sem conseqüência e uma
insistentes exigências de austeridade: o caso pode se produzir; e a his-- esp~cu!~ç~o. sem vínculo com qualquer preocupação precisa. Ao con~
tória do cristianismo ou da Europa moderna, sem dúvida, dariam trano, e facll ver que cada uma dessas grandes figuras da austeridade
exemplos disso. ,. Entretanto. parece que tal não foi o caso na Antigüi~ sexual se relaciona com um eixo da experiência e com um feixe de rela~
dade. Em primeiro lugar, isso aparece muito claramente na dissimetria ções concretas: relações com o corpo, com a questão da saúde e, por
bem particular a toda essa reflexão moral sobre o comportamento se~ trás dessa questão, todo o jogo da vida e da morte; relação com o outro
xual: as mulheres são adstritas, em geral (salvo a liberdade que um sta~ sexo, c(~m ~ 9uestão da esposa como parceira privilegiada, no jogo
lu~, como o de cortesã, pode lhes dar), a obrigações extremamente es~ entre a inStitUIçãO familiar e o vinculo que ela cria; relação com o seu
tritas; contudo, não é ás mulheres que essa moral é endereçada; não próprio sexo, com a questão dos parceiros que nele se pode escolher, e
y,ão seus deveres, nem suas obrigações que aí são lembrados, justifica~ O problema ~o ajustamento entre papêis );ociais e papéis sexuais; final~
dos ou desenvolvidos. Trata~se de uma moral de homens: uma moral me':lt.e, r~laçao com a verdade, onde se coloca a questão das condições
pensada, escrita, ensinada por homens e endereçada a honiens, eviden~ esplfltuals que permitem ter acesso á sabedoria.
Pareceu~me, assim, que haveria que operar todo um recentramen-
temente livres. Conseqi1entemente, moral viril onde as mulheres só
aparecem a título de objetos ou no mb.imo COmo parceiras às quais to. Em vez de buscar as interdições de base que se escondem ou se ma~
convêm formar, educar e vigiar, quando as tem sob seu poder, e das nife~tam nas exigências da austeridade sexual, era preciso pesqui;ar a
quais, ao contrário, é preciso abster~se quando estão sob o poder de partir de quais regiões da experiência, e sob que formas, o comporta-
um outro (pai, marido, tutor). Aí está, sem dúvida, um dos pontos mento sexual foi problematizado, tornando~se objeto de cuidado, e\e-
mais notáveis dessa reflexão moral: ela não tenta defmir um campo de men~o para reflexão, matéria para estilização. Mais precisamente, era
conduta e um domínio de regras válidas - segundo as modulações ne.- precIso perguntar-se por que justamente os quatro grandes domínios
cessárias - para os dois sexos; ela é uma elaboração da conduta mascu~ de .relaçõ~s onde parecia que o homem livre, nas sociedades antigas,
lina feita do ponto de vista dos homens e para dar forma à sua condu~ t:na podido desenvolver sua atividade sem encontrar maiores proibi~
ta. çoes foram objeto de uma problematização intensa da prâtica sexual.
Melhor ainda: essa reflexão moral não se dirige aos homens com', Por que foi ai, a propósito do corpo, da esposa, dos rapazes e da ver~
referência a condutas que poderiam dizer respeito a algumas interdi~ d~de, que. ~ prática dos prazeres foi questionada? Por que a interferên~
çõcs reconhecidas por todos e solenemente lembradas nos códigos, cla da atIVidade sexual nessas relações tornou~se objeto de inquieta*
ç~o, de debate e de reflexão? Por que esses eixos da experiência coti-
diana deram lugar a um pensamento que buscava a rarefação do com~
portamento sexual, jiua moderação, sua conformação e a definição de
19. Pode-se pensar que o desenvolvimenlo de uma moral das relaçôcs do casamento e. um estilo austero na prática dos prazeres? De que maneira o compor-
mai, prttisamente. das reflexões ~(lbre o comportamento sexual dos esp<lsos na relação tame?to se~ual.' na medida em que implicava esses diferentes tipos de
conjugal (que assumiram tão grande importâm;ia na pastorall;l"istã), é uma consequên-
cia da instauração. aliás lenta, lardia e dificil, do modelo crisliio do casamento no dec(lr~
relaçao, fOI objeto de reflexão como domlnio de experiência moral?
rer da Alta Idade Média (cf. G. DUBY, Le chevalier. lo femme eJ te pri/fl.', 1981).

24 25
Mas não esó isso. Com efeito. uma coisa e uma regra de conduta;
outra, a conduta que se pode medir a essa regra. Mas, outra coisa ain-
da e a maneira pela qual e necessário "conduzir-se" - isto é. a maneira
pela qual se deve constituir a si mesmo como sujeito moral, agindo em
referenda aos elementos prescritivos que constituem o código. Dado
um código de ação. e para um determinado tipo de a~ões (que se pode
definir por seu grau de conformidade ou de divergência em relação a
c%c t.:ódigo), existem diferentes maneiras de "se conduzir" moralmen·
3 te, diferentes maneiras. para () individuo que age. de operar não sim-
plesmente como agente, mas sim como sujeito moral dessa ação. Seja
um código de prescrições sexuais que determina para os dois cônjuges
uma fidelidade conjugal estrita e simétrica, assim como a permanência
MORAL E PRÁTICA DE SI de uma vontade procriadora; mesmo nesse quadro tão rigoroso. have-
ra varias maneiras de praticar essa austeridade, várias maneiras de
".~er !íel". Essas diferenças podem dizer respeito a varios pontos.
Elas çoncernem ao que se poderia chamar determinação da .l"ubs-
li/lida ética. isto é. a maneira pela qual o individuo deve constituir tal
pute dele mt..'smo como matéria principal de sua conduta moral. As·
A fim de responder a essa questão é necessário introduzir algumas sim. pode-se ter como essencial da prática de fidelidade o estrito re~·
considerações de método; ou, mais precisamente, convém se interro- jXitn das interdições e das obrigações nos próprios atos que se reali/.:I.
gar sobre o objeto proposto quando se empreende o estudo das formas Mils pode-se tambem ter como essencial da fidelidade o domínio dos
e transformações de uma "moral". desejos, n combale obstinado que se tem contra eles. a força com .1
Conhece-se a ambigüidade dessa palavra. Por "moral" entende*se °
qUOlI:->e sabe resistir as tentações: o que constitui, então, conteúdo d~
um conjunto de valores e regras de acão propostas aos individuos e liddidade e essa vigiliincia e essa luta; os movimentos contraditórios
aos grupos por intermedio de aparelhos prescritivos diversos, como dOi ;lIm.1. muito mais que os próprios atos em sua efetivaçLio. é que se·
podem ser a familia, a~ instituições educativas, as 19rejas, etc. Aconte- rão, nessas condições, a materia da pratica moral. Pode-'se, ainda, ter
ce dessas Tegras e valores serem bem explicitamente formulados numa WIl10 e.~.~eneial dOi pratica de fidelidade a intensidade, a continuidOlde.
doutrina coerente e num ensinamehto explicito. Mas acontece tambem ;I Tt:.t.:ipr()cid:lde dos sentimentos que se experimenta pelo cônjuge e OI

delas serem transmitidas de maneira difusa e, longe de formarem um qu:did;ldc da rdação que liga. em permaném;ia. os dois esposos.
conjunto sistematico, constituirem um jogo complexo de elementos I\s dikren.;as podem. assim. dizer respeito ao modo de xujl'il.'do.
que se compensam, se corrigem, se anulam em certos pontos, permi- i~hl C. iI maneir;j pela qual o individuo estabelece sua relação t(lm eSS;1
tindo, assim, compromissos ou escapatórias. Com essas reservas pode- reg:rOl e s.: re'llnhece como ligado il obrigação de pô· la em priniG\.
se chamar "código moral" esse conjunto prescritivo. Porem, por "mo- PoL'·-~e. por exemplo. praticar a fidelidade conjugal e se submeter ao
rai" entende-se igualmente o comportamento real dos individuos em pn.>t.:citq que a impôe por reconhecer-se como parte do grupo social
relação a~ regras e valores que lhes são propostos: designa-se, assim, a que OI ;lcel[,1. c que;l proclama abertamente. e que dela ~'onserva h;i· °
maneira pela qual eles se submetem mais ou menos completamente a bito ~iknóoso: porem. pode-se t:lmbem pratica-Ia por considerar-se
um principio de conduta; pela qual eles obedecem ou resistem a uma herdcinl de um" trOldiç,io espiritual. a qual se tem a responsabilidad-=
interdição ou a uma prescrição; pela qual eles respeitam ou negligen- dc pre'ierv:!T llU de r.ver reviver: ,omo lambem se pode exercer eS~:l fi·
ciam um conjunto de valores; o estudo desse aspecto da moral deve de- delidade re~polldendo ;1 um ilpelO. propondo-se eOm(l exemplo ou
terminar de que maneira, e com que margens de variação ou de trans- hu"t::ltldll d;lr ú vidil pessoal umOl form,l que correspondOl iI criterio,", de
gressão. os individuos ou os grupos se conduzem em referência a um e,",pklldllr. helC/;!. nübrC/:iI ou perfeit,;uo,
sistema prescritivo que e exph'cita ou implicitamente dado em sua cul- Existem tambem diferenças possiveis nas formas da elaboraçã/J
tura. e do qual eles têm uma consciência mais ou menosc\ara. Chame- do ,rabalho hico que se efetua sobre si mesmo, não somente para
l1lO.~ ;j e,,~e nivcl de fenômenos a "moralidade dos comportamentos" lOrnar seu próprio comportamento conforme a uma regra dada. mas

26 27
lambem para tenlar se transformar a si mesmo em sujeito moral de sua "praticas de si" que as apóiem. A ação moral é indissociável dessas
própria conduta. Dessa forma. a ausleridade sexual pode ser praticada formas de atividades sobre si. formas essas que não são menos diferen~
por meio de um longo trabalho de aprendizagem. de memorização, de tes de uma moral a outra do que os sistemas de valores, de regras e de
assimilação de um conjunto sistemático de preceitos e através de um interdições.
controle regular da conduta. destinado a medir a exatidão com que se Essas distinções não devem ter somente efeitos teóricos. Elas têm
aplicam essas regras; pode--se praticá~la sob a forma de uma renuncia também suas conseqilências para a análise histórica. Quem quiser fa~
brusca. global e definitiva aos prazeres; como tambem sob a forma de zer a história de uma "moral" deve levar em conta diferentes realida~
um combate permanente. cujas peripécias - até os fracassos passagei~ des que essa palavra engloba. História das "moralidades": aquela que
rol'. - podem ter sentido e valor: ela pode também ser exercida através estuda em que medida as ações de tais individuos ou tais grupos são
de uma decifração tão cuidada. permanente e detalhada quanto pOS6i~ conformes ou não ás regras e aos valores que são propostos por dife-
vel. dos movimentos do desejo. sob todas as formas. mesmo aquelas rentes instâncias. História dos "códigos". a que analisa os diferentes
muis obscuras sob as quais ele se oculta. sistemas de regras e valores que vigoram numa determinada sociedade
Finalmente. outras diferenças dizem respeito ao que se poderia ou num grupo dado. as instâncias ou aparelhos de coerção que lhes
chamar teleologia do sujeito moral: pois uma ação não é moral somen~ dão vigência. e as formas tomadas por sua multiplicidade. suas diver-
te em si mesma e na sua singularidade; ela o é também por sua inser~
gências ou suas contradições. E finalmente, história da maneira pela
ção e pelo lugar que ocupa no conjunto de uma conduta; ela é um ele- qual os indivíduos são chamados a se constituir como sujeitos de con~
mento e um aspecto dessa conduta. e marca uma etapa em sua dura~ duta moral: essa história será aquela dos modelos propostos para a
ção e um progresso eventual em sua continuidade. tJma ação moral
instauração e o desenvolvimento das relações para consigo. para a re~
tende à sua própria realização; além disso, ela visa. através dessa reali~
flexão sobre si. para o conhecimento. o exame, a decifração de si por si
zação. a constituição de uma conduta moral que leva o individuo. não mesmo, as transformações que se procura efetuar sobre si. Eis ai o que
simplesmente a ações sempre conformes aos valores e ás regras. mas
se poderia chamar uma história da "ética" e da "ascética", entendida
também a um certo modo de ser caracterlstico do sujeito moral. E
como história das formas da subjetivaçao moral e das práticas de si
existem muitas diferenças possiveis nesse ponto: a fidelidade conjugal destinadas a assegurá-la.
pode dizer respeito a uma conduta moral que leva a um domínio de si
cada vez mais completo; ela pode ser uma conduta moral que manifes~ Se de fálo for verdade que toda "moral". no sentido amplo. com~
ta um distanciamento repentino e radical a respeito do mundo; ela porta os dois aspectos que acabo de indicar. ou seja. o dos códigos de
pode tender a uma tranqüilidade perfeita da alma, a uma total insensi- comportamento e os das formas de subjetivação; se for verdade que
bilidade ás agitações das paixões, ou a uma purificação que assegura a eles jamais podem estar inteiramente dissociados. mas que acbntece
salvação após a morte e a imortalidade bem~aventurada. deles se desenvolverem. tanto um quanto o outro. numa relativa auto~
Em suma. para ser dita "moral" uma ação não deve se reduzir a nomia, ê necessârio também admitir que em certas morais a importân~
um ato ou a uma série de atos conformes a uma regra. lei ou valor. t cia e dada sobretudo ao c6digo. á sua sistematicidade e riqueza, â sua
verdade que toda ação moral comporta uma relação ao real em que se capacidade de ajustar-se a todos os casos possíveis, e a cobrir todos os
efetua. e uma relação ao código a que se refere; mas ela im plica tam~ campos de comportamento; em tais morais a importância deve ser
bém uma certa relação a si; essa relação não é simplesmente "cons-- procurada do lado das instâncias de autoridade que fazem valer esse
ciência de si". mas constituição de si enquanto "sujeito moral", na código, que o impõem â aprendizagem e a observação. que sancionam
qual o individuo circunscreve a parte dele mesmo que constitui o obje~ as ,infrações: nessas condições. a subjetivação se efetua, no essencial.
to dessa prática moral. define sua posição em relação ao preceito que de uma forma quase jurídica. em que o sujeito moral se refere a uma
respeita. estabelece para si um certo modo de ser que valerá como rea~ lei ou a um conjunto de leis ás quais ele deve se submeter sob pena de
lização moral dele mesmo; e. para tal, age sobre si mesmo. procura co~ incorrer em faltas que o expõem a um castigo. Seria totalmente inexa~
nhecer~se. controla~se, põe~se à prova. aperfeiçoa~se. transfonna~se. lO reduzir a moral cristã - dever~se--ia. sem duvida, dizer "as morais
Não existe ação moral particular que não se refira á unidade de uma cristãs" - a um tal modelo; talvez não seja falso pensar que a organi~
conduta moral; nem conduta moral que não implique a constituição lação do sistema penitenciai no início do século XIII. e seu desenvol-
de si mesmo como sujeito moral; nem tampouco constituição do sujei~ vimento ate as vesperas da Reforma. provocaram uma fortissima "ju~
to moral sem "modos de subjetivação", sem uma "ascética" ou sem ridificação" - no sentido estrito. uma fortissima "codificação" - da

28 29
cxperiéncia moml: foi conna ela que reagiram muito~ movimentos es· tal modo que teriamos que transformar, assim, a questão tão freqüen.
pirituais e ascéticos que se desenvolveram ames da Ref~)rma. temente.~oh:~cada a propósito da continuidade (ou da ruptura) entre as
Em c()mpensação. pode-se muito bem çonceber morais tUIO ele- moraIs .hlo~oficas da Antigüidade e a moral cristã; em vez de pergun-
mento forte e dinâmito deve ser procurado do lado das formas de suh- tar quaiS sao os elementos de código que o cristianismo pôde tomar
jelivaçào e das pratiçus de si. Nesse caso. o sistema dos çódigoli c das empre~ta~o ao pensamento antigo, e quais são os que acrescentou por
regras de compúrt;.I1llento rode ser bem rudimentar. Sua obsen;lçàt) sua propna Conta, a fim de definir o que é permitido e o que é proibido
exata pode ser relativull1enle pouco relevante, pelo menos compawda na ordem de uma sexualidade supostamente constante, coeviria per-
ao que se exige do individuo para que, na relação que tem consigo. em gunta.r ~e que maneira, na continuidade, transferéncia ou modificaçào
suas diferentes ações, pensamentos ou sentimentos, ele se constilU,1 dos COdlgOS, as formas da relação para consigo (e as praticas de si que
c
como sujeito moral; a ênfase dada, então, as formas das relaçõe~ lhes são associadas) foram definidas, modificadas, reelaboradas e di-
versificadas.
çonsigo, aos procedimentos e as téçniças pela~ quais sào elaborad<'l.<;'.
°
aos exerçkios pelos quais própno sujeilO se dã como objeto a conhe· N~o se supõe que os codigos não tenham importância nem que
permaneçam co~stantes. Entretanto, pode-se observar que, no fmal
ÇCf, e as pratlcas ljue permitam tr:..lOsform<lf seu próprio modo de ser.
tssas mor'lis "orientadas para a ética" (e que não coincidem, forçosa- das contas, eles gIram em torno de alguns princípio~ bastante simples e
mente, çom as morais daquilo que se chama renuncia ascética) foram pouco numerosos: talvez os homens não inventem muito mais na or-
muito importantes no cristianismo ao lado das morais "orientadas dem das proibições do que na dos prazeres. Sua permanéncia também
pma o código·': entre elas houve justaposições, por veles rivalidade.~ e é grande: a proliferação sensível das codificações (que dizem respeito
conOitos, e por vezes composição. aos luga.res, pan,:eiros, e gestos permitidos ou proibidos) se produzirá
Or<.l, parecI:, pelo menos numa primeira abordagem, que as reOe- bem ~a!s. tarde no cristianismo. Em compensação, parece _ em todo
xões morais na Antigüidade grega ou greco-romana foram muito mais caso.e a ~l~ótese que gostaria de explorar aqui - haver todo um campo
orient<.ldas para as práticas de' si, e para a questão da askesi5, dü que de hlstoflcldade complexa e rica na maneira pela qual o indivíduo é
para as ..:odificações de condutas e para a definição estrita do permiti- chamado a se reconhecer como sujeito moral da conduta sexual. Tra-
do e do proibido. Se excetuarmos a República e as Leis, er)contíarem()S ta~-se-ia d~ v~r de que maneira, a partir do pensamento grego c1assico
muito poucas referéncias ao princípio de um código que definiria no a.te a _constitUIção da doutrina e da pastoral cristã da carne, essa subje-
varejo a COnduta conveniente, a necessidade de uma in~tância enc<lfre- tlvaçao se definiu e se transformou.
gada de vigiar sua aplicação, a possibilidade de ca~tigos que sanciona- Nesse p.rimeiro volu.me gostaria de marcar alguns traços gerais
riam as infrações cometidas. Mesmo se a necessidade de respeitar a lei que caractenzam a maneIra pela qual o comportamento sexual foi re-
e os costumes - os nomoi - e freqüentemente ~ublinhada. o imponante Oetido, pelo pensamento grego clássico, como campo ôe apreciação e
está menos no conteúdo da lei e na~ suas condições de aplicação do de escolhas morais. Partirei da noção, então corrente, de "uso dos pra-
que na atitude que faz com que elas sejam respeitadas. A ênfase é colo- zeres" -.chresis aphrodisiõn - para distinguir os modos de subjetivação
cada na relação consigo que permite não se dei ",ar levar pelos apetites aos qual~ ela se refere: substância ética, tipos de sujeição, formas de
e pelos prazeres, que permite ter, em relação a eles, domínio e superio- elaboraçao de si e de teleologia moral. Em seguida, partindo cada vez
ridade, manter seus sentidos num estado de tranqüilidade, permanecer de uma prática que, na cultura grega, tinha sua existência, seu slatu.s e
livre de qualquer elicravidão interna das paixões, e atingir a um modo suas regras (a prática do regime de saúde, a da gestão da casa, e da cor-
de ser que pode ser definido Pelo pleno gozo de si ou pela soberania de te ~"!orosa), estudarei a maneira pela qual o pensamento médico e fi-
<;1 sobre ~i mesmo. Iosoh~o elaborou esse "us? dos prazeres" e formulou alguns temas de
Dai a opção de método que fiz ao longo desse estudo sobre as mo- austend~?e ~ue ·se tornanam recorrentes sobre quatro grandes eixos
rai); sexuais da Antigüidade pagã e cristã: manter em mente a distinção d~ expenenCla: a relação com o corpo, a relação com a esposa, a rela-
entre os elementos·de código de uma moral e os elementos de ascese: çao com os rapazes e a relação com a verdade.
não esquecer sua coexistência, suas relações, sua relativa autonomia,
nem sua!> diferenças possiveis de ênfase; levar em conta tudo o que pa-
rece indicar, nessas morais, o privilégio das práticas de si, o interesse
que elas podiam ter, o esforço que era feito para desenvolvê-Ias, aper-
feiçoá~las, e ensiná-Ias, o debate que tinha lugar a seu respeito. De

30 31
-

CAPITULO I

A PROBLEMATlZAÇÁO MORAL
DOS PRAZERES

33
Teríamos muita dificuldade em encontrar nos gregos (como aliás.
nos latinos) uma noção semelhante á de "sexualidade" e á de "carne....
Quero dizer: uma noção que se refira a uma entidade única e que per~
mita agrupar, como sendo da mesma natureza, derivando de uma mes·
ma origem ou fazendo intervir o mesmo tipo de causalidade, fenóme w

nos diversos e aparentemente-afastados uns dos outros: eomportamen~


tos como támbém sensações, imagens, desejos, instintos e paixões. I
I: evidente que os gregos dispõem de uma série de palavras para
designar diferentes gestos ou atos que. nós chamamos "sexuais". Eles
dispõem de um vocabulario para designar práticas predsas; possuem
termos mais vagos que se referem, de forma geral, ao que chamamos
"relação", "conjunção" ou "relações sexuais": como sunQusia. homi·
fia. plt'sia.wllos. mixis. o(·heia. Porém a categoria geral sob a qual todos
esses gestos. atos e práticas são subsumidos é muito mais difidl de
aprcl'llder. Os gregos utilizam facilmente um adjetivo substantivado:
({/ aphriuli.ria.' quc os latinos traduzem aproximadamente por I'f'lIl'reQ.
"Choses" ou "plaisirs de I'amour". "rapports sexuels". "aetes de la
chair". "voluptês". * tcnhH;e tanto quanto possivel dar a essc lermo

I. E. LESK I... Die Zeugungslehre der Anlike··. Abhandfllngt'n du Akad;:n/;;: dn Wi.l-


'<'II.I(·hilflf!ll 1111/1 Lilualllr. XIX. Moglincia. 1950. p. 1248.
2. C f. K. J. DOVER. "Classiçal greek atliludes 10 sexual behaviour··. Ar('fh~la. 6. nl' 1.
197 J. p. 59: Id" Grt';:k popular moralit,\'. 1914. p. 205. e HOi/!o.<e.nulliti g"f'i/lt'. pp. 1<3·
'"
• "( "i,.I'" ,HI "pr.l/~f~' .1" ,un"r". "rc!i!<;ik, sculai,". ";Ih', d;l ~"rn~". "~<lhlrl;1," (N
.1,\ 1_)

35
um equivalente em francês. Mas a diferença entre os conjuntos nocio· do moral. Focalizarei quatro noções que freqüentemente se encontram
n;lh I<lrll;1 uifkil;1 trauuç,io e\;lt;1 do termo. Nl)~s<I idcia dc "~e\u;lIi­ na reflexão sobre a moral sexual: a noção de aphrodisia, através da
d,HIc·· nilll ;lpCIl;l~ cohre UII1 Call1Th) muilO lHalS amplo. ,o1110 vi~<I tall1~ qual pode·se apreender o que, no comportamento sexual. era reçonhe~
h~11l 1.111);1 rl';!liJ;lue ue OUlr,) \ipl\: e p()~~ui. el11l1o~~<lmor;d c CIl1I1l\S~O cido como "substância ética"; a de "uso" de chrésis, que permite
>,1 hl.: r. 1'1I11<,:ill'~ IIHci ral11":lI te ui \·er~;h. 1.111 t ro..:a. n;io dl~pOIllO~. de 110~­ aprender o tipo ~e sujeição ao qual a ~râtica des~s prazeres de.veria
>,1 r.lnc. ,k \1111;1 Il,)ç,i,) quc operc Ulll rccorte e que reúna um t:olllunto submeter-se para ser moralmente valonzada; a noÇao de enkrate/O, de
anúlogo ao dos a(!hrodisia. Perdoem-me se. mais de uma vez, déixo o domínio que define a atitude que se deve ter a respeito de si mesmo
lermo grego em sua forma original. para constituir~se como sujeito moral; e finalmente a de "temperan-
Não pretendo nesle capitulo faler uma exposição exaustiva, nem ça", de "sabedoria" de .fõphrosune que caracteriza o sujeito moral· em
11J1.:"lIll~ 11111 rC,>UlIlll ~1~lclld\i":l) d;l~ difcrcnlcs doutrinas jjJosú1ic:l~ sua realização. Assim se podera circunscrever o que estrutura a e;q~e­
ou mêdic:ls que, do Século V ao inicio do Seculo 111, se referiram ao riência moral dos prazeres sexuais - sua ontologia, sua deontologia,
pra/cr em geral e aos praleres sexllais ern particular. Como preliminar sua ascética e sua teleologia.
;lll e,>tud\) dos qu,ltro tipos principais de estililação da condllta sexual
de"..:nvolvidos na Dietêti'a, a propósito do corpo, na Econômica, a
propósito do ..:asamento. na Erótica, a propósito dos rapazes, e na Fi-
losofi;l. ;I proposito da verdade, minha intenção e somente distinguir
.lIguns tr<lços ger<liy., que lhes serviram de quadro de referência porque
eram COlllllll~ .i~ ddCr":llte~ mlkxôcs sohre ll~ l/(!hmâisia. Pode-se mui~
10 hCIll admi ti r a tese ,orrente de que os gregos dessa época acei lavam,
muito mais facilmente que os cristãos da Idade Média ou que os euro-
peus do periodo moderno, certos comportamentos sexuais: pode~se
muitl) nClll "dlllitlr Ij!Uillll1l:l1te t4uc ;lS f,dt<lS c <I~ l1l(Í.s t;~)Ildutils n<;:~se
campo suscitavam, então, menos escândalo, e expunham li menos re-
torsão, t:lnto mais que nenhuma instituição - pastoral ou médica -
pretendiu dctcrminur o que, nessa ordem de coisas, é permitido ou
proihido. normal ou anorl11ul: pode-se também admitir que eles atri-
huiam, a todas essas questões, muito menos importância que nós. En-
tretanto, mesmo que tudo isso seja admitido ou suposto, um ponto
permanet.:e irredutivel: eles se preocuparam, não obstante, com essas
questões. Existiram pensadores, moralistas, filósofos e médit.:üs par"
estimar que o que as leis da cidade prescreviam ou interditavam, o que
o costume geral tolerava ou refutava, não podia ser suficiente para re-
gular devidamente a conduta sexual de um homem cuidadoso de si:
eles reconheciam, na maneira de ter essa espécie de prazer, um proble~
ma moral.
O que g.ostaria de determinar nessas poucas paginas, são, justa-
mente, os aspectos gerais com que se preocuparam, a forma geral da
Illtcrrogal,:;i,) l11<)f<l1 quc colocaT<lm a propósitQ dos uphrodisia. P<lr<l
isso, recorrerei a textos bem di ferentes uns dos outros - essencialmente
os de Xenofonte, Platão e Aristóteles; e não tentarei restituir o "con~
texto doutrinário" que pode dar a cada um seu seiltido particular e seu
valor diferencial, mas sim o "campo de problematização" que lhes foi
l;Omum e que os tornou possiveis. Trataremos de fazer surgir, em seus
":M<ldacs gcr;lIS, a constituição dt)s aphrodi.\'ia como campo de cuid:l-

36 37
~<lS,!.:orno ~ef<io nOl espiritualidade cristã, as precauções necessoirias li
fim de impedir que o desejo se introduza sub-repticiamente na alma,
\)u a rim de desalojar seus vestígios secretos, E o que e talvez mais es-
tranho: os medicQ$ que propõem, um tanto detalhadamente, os ele-
mentos do regime dos aphrodisia, são praticamente mudos quanto à~
formas que os próprios atos possam tomar; eles dizem muito pouco -
fora algumas referências quanto á posição "natural" - sobre o que é
conforme ou contrário à vontade da nl;ltureza,
Pudor? Talvez: pois embora se possa muito bem atribuir aos gre-
gos uma grande liberdade de costumes, contudo a representa~ão dos
atos sexuais que eles mostram em obras escritas - e mesmo na IIteratu-
APHRODISIA r<l erúti\:a - parece ser marcada por uma grande reserva:' e isto contra-
riamente aos espetáculos que eles se davam ou ás representações ico-
nográficas que puderam ser encontradas.) De qualquer forma, senteNse
claramente que Xenofonte, Aristóteles e, posteriormente, Plutarco,
não teriam achado decente dar, a propósito das relações sexuais com a
o Sud" pmpôc ,\ ~guintc definição que Hesíquio repelirá: os esposa legítima, os conselhos suspeitosos e aplic~dos. que os ~utores
aphmdi.\itl :.-Jo ··OIS oorOls", "os atos de Afrodite" - erga Aphrodilê.~. cristãos prodigaram a propósito dos prazeres conJugais; eles nao esta-
Sem duvida, é necessário não esperar nesse gênero de obra um esforço vam prontos, como mais tarde os diretores de consciência, a re~ular °
de conceituação muito rigorosa. Entretanto, é um fato que os gregos jogo das demandas e recusas, das primeir~s carícias, das moda~dades
não deram testemunho no seu pensamento histórico, nem na sua refle N da conjunção, dos prazeres que se experimenta e da conclusao que
xão prática, de um cuidado insistente em delimitar o que eles enten N convem darNlhesl
di;II11. CX;I!;II11Cl1tC. pelos aphmdisia - quer se tratasse de fixar a nature- Mas existe uma razão positiva para aquilo que poderíamos perce-
za da coisa designada, de delimitar a extensão de seu campo, ou de es N ber retrospectivamente como "reticência" ou "reserva". É que a ma N
tabelecer o catálogo de seus elementos. Em todo caso nada que se asse- neira pela qual s·e considerava os aphrodisia, o tipo de interrogação
melhasse às longas listas de atos possiveis que serão encontrados nos que se Ines endereçava, era orientada de modo totalmente diverso de
penitenciais, nos manuais de confissão ou nos livros de psicopatologia; uma busca de sua natureza profunda, de suas formas canônicas ou de
nenhum quadro que sirva para definir o legítimo, o permitido ou o sua potência secreta.
normal, e a descrever a vasta fami'lia dos gestos proibidos. Nada, tam N
bém, que se assemelhe ao cuidado - tão característico da questão da
carne ou da sexualidade - em revelar sob o inofensivo ou o inocente a 1. Os aphrddisiu são atos, gestos, contatos, que proporcionam
presença insidiosa de uma potência de limite~ incertos e multi pIas más-- uma certa forma de prazer. Quando Santo Agostinho, em suas ConftsN
caras. Nem classificação nem decifração. Serão fixadas com esmero sôes, for lembrar de suas amizades de juventude, da intensidade de
qual a melhor idade para se casar e ter filhos e em que estações as rela N suas afeições, do prazer dos dias vividos juntos, das conversas, dos fer-
çõcs sexuais devem ser praticadas; nunca se dirá, como um diretor vores e dos ritos, ele se perguntarà se tudo isso não fazia parte, apesar
cristão, que gesto fazer ou evitar, que carieias preliminares são permi- da aparente inocência, da carne e dessa "glute" que a ela nos liga. 6 En N
!jda.~. que posu.;.io tO!l1ar, ou cm quais condições pode-SI! interromper tretanto, quando Aristóteles, na Élica a Nicômaco', se interroga para
() iltO. !)ara aqueles que não eram suficientemente armados, Sócrates
recomendava fugir da vista de um belo rapaz, mesmo se para is~o fos.~e
nl!Cessàrio exilar-se por um ano;' e o Fedro evocava a lonl!a luta do 4. K. J. DOVER observa uma acentuação dessa reserva no decorrer da Idade C!àssica:
<lmunte contra seu próprio desejo: mas, em nenhum lugar sao expres N Grt:ek popular morali/y, pp. 206-207.
5. Cf. K. J. DOVER, Homouxualite Krecque, pp. 11 e sq.
6. SAINT-AUGUSTIN, Conjes$iQ1I$, IV, tapo S.9 e 10.
7. ARISTOTE. tthiqueà Nicomaque, 111, 10, II!Sa-b(trad. R. - A. GauthiereJ. - Y.
Jo!v).

38 39

,
saber exatamente quais são aqueles que merecem ser chamados "in* "lembrança da coisa desejada".'" E quando se rir dos filósofos que
temperantes", sua definição é cuidadosamente restritiva: fazem parte pretendem amar nos rapazes somente as belas almas, n~o se susp:.itará
da intemperança, da akolasia, somente os prazeres do corpo; e, dentre que eles alimentem sentimentos perturbadores dos 9uals talvez nao te-
estes, é necessário excluir os da visão, os do ouvido ou os do olfato. nham consciência, mas simplesmente que eles desejam um face a face
Não é ser intemperante "ter prazer" (chairein) com as cores, com os a fim de introduzir a mão sob a túnica do bem amado. H
gestos, desenhos, como também com o teatro ou com a música; pode.. Desses atolO, quais a forma e a variedade'! A história nat~ral.ror~
se, sem intemperança, encantar-se com o perfume dos frutos, das rosas nece algumas descrições, pelo menos quando se trata dos amma~s: ~
e do incenso; e como diz a {tica a Eudemo,! não se poderia reprovar acasalamento, obse~va Aristóteles, não é o mesmo em todos e nao e
por intemperança alguém que se concentrasse tão intensamente na feito da mesma maneira. 11 E na parte do livro jV da História dos Ani~
contemplação de uma estátua ou na audição de um canto a ponto de mai.1 consagrada especificamente aos vivíparos, ele descreve as diferen-
perder o apetite ou o gosto para praticar o amor, nem alguém que se tt.!~ formas de copulação que ~e pode observar: elas· variam segu.ndo a
deixasse seduzir pelas Sereias. Pois só existe prazer suscetível de akola~ forma e a localização dos órgãos, a posição que tomam oS parceiros, a
sia lá onde existe o toque e o contato: com a boca, a língua e a gargan- duração do ato; mas ele evoca, igualmente, os tipos de comportamen-
ta (para os prazeres da alimentação e da bebida), com outras partes do tos que marcam as est<lí;õcs do amor; os javalis se preparando paru a
corpo (para o prazer do sexo). E Aristóteles ainda observa que seria batalha," oS elefantes, cujo furor chega até a destruir a casa de seu
injusto suspeitar de intemperança certos prazeres que se experimentam mestre, ou os garanhões que reu.nem suas fêmeas traça~do. e;? torno
através da superflcie do corpo - como os prazeres nobres que, no gíná- delas um grande círculo antes de nem se lanç.ar~ sobre o~ f1V~als. Quan~
sio, são proporcionados pelas massagens e pelo calor: "pois para o in~ to ao gênero humano, mesmo que as descnçoes dos argaos ~ de seu
temperante o tocar não é dífundído em todo o corpo; s6 concerne a funcionamento sejam detalhadas, os comportamentos sexuaiS, com
certas partes",' suas possiveis variantes, são apenas evocados. O que não quer dizer,
Um dos traços característicos da experiência cristã da "carne", e contudo, que haja em torno da atividade sexual dos h.u:na~os~ na me~
posteriormente a da "sexualidade", será a de que o sujeito é levado dicina, na filosofia ou na moral gregas, uma zona de SilenciO ngoroso,
nelOsas experiências a desconfiar freqüentemente, e a reconhecer de O fato não é que se evite falar desses atos de pr~ze,r: mas, quando se re·
longe, as manifestações de um poder surdo, ágil e temível que é tanto nete a respeito deles, o que coloca problem~ ~ao. e a for.ma qu~ tomam
mais necessário decifrar quanto é capaz de se emboscar sob outras mas sim a atividade que manifestam. Sua dmamlC'd mUitO mais do que
formas que não a dos atos sexuais. Uma tal suspeita não habita a expe.. sua morfologia. . . . .
riência dos aphrodisia. E verdade que na educação e no exercício da Essa dinâmica é definida pelo movimento que hga entre SI os
temperança recomenda-se desconfiar dos sons,' imagens e perfumes. aphrodisia, pelo prazer que lhes é associado e pelo ?esejo que susci~
Mas não porque a Importância que se lhes dá seja a forma mascarada tam. A atração exercida pelo prazer e a força do desejO que tende para
de um desejo, cuja essência consistiria em ser sexual; e sim porqueexis~ ele constituem uma unidade sólida com o próprio ato dos aphrodisia.
tem músicas que por seus ritmos são capazes de enfraquecer a alma, Sera, em seguida, um dos traços fundamentais da ética da 7arne e da
porque existem espetáculos que são capazes de tocar a alma como um concepção da sexualidade, a dissociação - pelo menos parclal- d,~S:C
veneno e porque tal perfume, tal imagem, são de molde a evocar a conjunto. Essa dissociação se marcará, de um lado, por uma certa eh~

x. Id. É/hique ti Eudl'me, 111. 2. 8·9. 1230 b. 10. Quanto ao~ perigos da musica, Cf. PLATON, Répub~i~, !I!, 398 e{as harmonias
9. Éthique ti Nicomaque. Im:. dI. Cf. tambem PSEUDO-ARISTOTE, ProbNml'.~. lidias são perniciosas ate mesmo para as mulh~res, a [oT:/On para os homens~. No .que
XXVIII, 2. Não obstante, e preciso notar a importância atribuida, por muitos textos diz respeito ao papel mnemônico do odor eda 1magem v1sual, Cf. ARISTOTE, tthlqul.'
gregos. ao olhar e aos olhos na genese do desejo ou do amor: não e, entretanto. porque o Q Nicomaque, 111, 10, 1118 a. .
pnller do olhar seja nele mesmo intemperante: mas sim porque ele constitui uma abertu- 11. Encontrar-se.á bem mais tarde uma censura desse tipo nos AmouTS atnbukios a
ra ror onde a 31m3 e atingida. Cf. a esse respeito XENOPHON. MimQTables, 1, 3, 12. LUCIEN,53.
t3. Quanto ao beijo. apesar do pedgo que ele comporta (Cf. XENOPHON, ibid.) foi al- 12. ARISTOTI.ô, Histoires des al1imaux, V, 2, 539 b.
tamente valorllado como prazer flsico e comunicação da alma. Na verdade, teria que fa- 13. Ibid., VI, 18, 571 b.
Icr~~~ tudo um estudo histórico sobre o "corpo de prazer" e suas transformaçõe~. 14. Ibid .. VI, 18, 571 b e 572 b.

40 41
são" do prazer (desvalorização moral através da injunção dada na Essa dinâmica é anali.sada segundo duas grandes variáveis. U ma é
pasto.ral cristã ,a .não buscar a volúpia como fim da prálíca sexual; des~ quantitativa; ela diz respeito ao grau de atividade traduzida no núme·
valonzação teonca que se traduz pela extrema díficuldade em dar lu~ ro e na freqüência dos atos. O que distingue os homens entre si, para a
gar ao prazer na concerção da sexualidade); ela se marcará, igl,talmen~ medicina como para a moral, não é tanto o tipo de objeto para o qual
te, po~ uma probl~~a~l~ação cada vez mais intensa do desejo (no qual eles são orientados, nem o modo de prática sexual que preferem; é, an~
se vera a marca ongmana da natureza decaída ou da estrutura própria tes de mais nada, a intensidade dessa prática. A divisão está entre o
ao .s~r humano). Na experiência ?os aphrodisia .. em compensação, ato, menos e o mais: moderação ou incontinência. Quando se traça o perfil
desejO e p.ra~er f?rmam um conjunto cujos elementos, é verdade, po- de uma personagem é raro que se faça valer sua preferência por tal ou
dem ser dlstmguldos mas que são fortemente associados uns aos ou~ tal forma de prazer sexual;l! em compensação é sempre importante
tros. E é precisamente seu vínculo estreito que constitui um dos carao-- para a sua caracterização moral marcar se, em sua prática com as mu·
teres es~enc.iais-dess.a fo~ma de atividade. Quis a natureza (por razões lheres ou com os rapazes, ele soube dar provas de comedimento, como
que serao vistas mais adiante) que a realização do ato seja associada a Agésilas, que levava a temperança ao ponto de recusar o beijo do jo·
um p~a~er; e é esse prazer que suscita a epithumia, o desejo, movimen~ vem que amava, I~ ou se ele se entregava, como Alcebíades e Arcésilas,
to dmgldo por natureza para o que "dá prazer", em função do princí~ ao apetite dos prazeres que se pode ter com ambos os sexos. 10 Podemos
piQ lembrado por Aristóteles: o desejo é sempre "desejo da coisa agra. notar a esse respeito a célebre passagem do I' livro das Leis: é verdade
dável" (hé gar epilhumia tou hedeos es/in). U É verdade - e Platão insiste que ali Platão opõe muito claramente a relação "conforme á nature·
freqüentemente sobre isso - que não poderia haver desejo sem priva. za", que liga o homem e a mulher para os fins da geração, e a relação
cão,. sem falta da coisa desejada e sem mescla, portanto, de um certo "anti natural" do macho com o macho, da fêmea com a fêmea. I> En·
sofnmento; mas o apetite, explica ele no Filebo, só pode ser provocado tretanto, essa oposição, por mais que seja marcada em termos de natu·
pela repr~en~ação, a imagem ou a iembrarrça da coisa que dá prazer; reza, é referida por Platão á distinção mais fundamental entre a conti~
ele conclUi dai que não poderia haver desejo a não ser na alma pois se nência e a incontinência: as práticas que contravêm á natureza e ao
o corpo é atingido pela privação, é. a alma e somente ela que, 'através principio da procriação não são explicadas como efeito de uma natu·
da lembrança, pode tornar presente a coisa a ser desejada e, portanto, reza anormal ou de uma forma particular de desejo; elas nada mais são
s~scitar a .epi.thumia.'~ O que na ordem da conduta sexual parC(..'e, as. do que a conseq üência do desmesurado~ "é a intemperança no prazer"
Sim, constifmr para os gregos objeto da reflexão moral não é, portan. (akrateia hédones) que estâ na sua origem. l l E quando Platão no Timeu
to, exa(amente o próprio ato (visto sob as suas diferentes modalida~ expõe que a luxuria deve ser tomada como efeito, não de uma má von·
des), nem o desejo (co~siderado segundo.sua origem ou direção), nem
mesmo o prazer (avahado segundo os diferentes objetos ou práticas
que podem provocá·lo); é sobretudo a dinâmica que une os três de ma~ conjunto dinãmico constituldo pelo desejo e pelo prazer ligados ao ato. A dupla epithu-
neira circular (o desejo que leva ao ato, o ato que é ligado ao prazer, e miai-hedonal encontra--se correntemente em PLATÃO: Gorgias, 484 d, 491 d; Banquei
o pr.ll.er que suscita o desejo). A questão etica colocada não é: quais 1% c; Phidre, 237 ti; Republique, IV, 430 e, 43! c e d; IX, 571 b; Lois, I, 647 e; IV, 714 a;
VI. 782 e: VI \, 802 e; 864 b, X, 8 886 b, etc. Cf. igualmente ARISTOTE, Eth/que à Nico--
desejos? quais atos? quais prazeres? Mas: com que força se é levado maque, VI!, 4, I 148 a. São também freqUentes as eJtpressôes que evocam o prazefcomo
"pelos prazeres e pelos desejos?" A ontologia a que se refere essa êtica força que persuade, provoca, triunfa; assim em XtNOPHON, Mimorables, 1, 2, 23, 1,4,
·do comportamento sexual não é, pelo menos em sua forma geral, uma 14; I, 8; IV, 5, 3, etc.
ontologia da falta e do desejo; não é a de uma natureza fixando a nor~ 18. Acontece de se mencionar, por necessidade da narrativa, o gosto particular de um
ma ~os atos; mas sim a de uma força que liga entre si atos, prazeres e homem pelos rapazes. Assim raz XtNOPHON no Analmse a propósito de um certo
Episthenes {VI!, 4). Mas quando ele traça o perfil negativo de Menon (11, 6), não o cen-
deseJOS. t essa relação dinâmica que constitui o que se poderia chamar SUfa por esse tipo de gosto, mas sim por fazer mau uso de tais prazeres: obter, demasia-
o grào da experiência ética dos aph"rodisia." do jovem, um comando; ou amar, ainda imberbe, um rapaz velho demais.
19. XtNOPHON, Agisifas, V.
20. Solm: ARCÊlILAS, Cf, DIOGENES LAERCE, Vie des phllosophes, IV, 6. Plu·
tarco notará assim que Hiperides era arrebatado pelos aphrodisia. Vie de dix orf.lleurs,
15. ARISTOTE, Partil.'s des alfimaux, 660 b. 849 d.
16. PLATON, PhlUbe, 44 esq. 21. PLATON, Lois, 1,636 c.
17: t preciso observar a freqilência das cxpress&s que ligam fortemente prazeres e de. 22. Encontrar-se-á igualmente em DION DE PRUSA uma eJtpUcação sobre o surgi-
seJos. e que mostram que o que está em jogo na moral dos aphrodisia é o controle do mento do amor pelos rapazes por um eJtcesso de intemperança (Dlscours, VII, 150).

42 43
tade da alma, mas de uma doença do corpo, esse mal é descrito segun~ Xenofonte a vontade que ele tem, ás vezes, de aphrodisiazein. lÓ Mas o
do uma grande patologia do excesso: ao invés de permanecer encerra- verbo pode, igualmente, ser empregado com seu valor ativo; nesse ca-
do na medula e em sua armadura óssea, o esperma transbordaria e co- so, ele se refere particularmente ao papel dito "masculino" na relação
meçaria a escorrer em todo o corpo; este passaria a ser igual a uma ár~ sexual, e á função "ativa" definida pela penetração. E, inversamente,
vore cuja potência de vegetação ultrapassasse qualquer medida: assim pode-se empregá-lo em sua forma passiva; nesse caso, ele designa o
tambêm o indivíduo, durante uma grande parte de sua existência, en~ outro papel na conjunção sexual: o papel "passivo" do parceiro-
louqueceria pelo "excesso de prazeres e de dores".ll Que a ímoralidade objeto. Esse papel é o que a natureza reservou às mulheres - Aristóte-
nos prazeres do sexo seja sempre da ordem do exagero, do a~mais e do ks flllH da idade em que as jovens tornam-se suscetíveis de aphrodj-
excesso, é uma idéia que se encontra no 3'1 livro da Ética a Nicômaco; I'jas/hel/ui; ,. ê lambem aquele que pode ser imposto pela violência a al-
para os desejos naturais que são comuns a todos, as únicas faltas que guêm qUI: se enconlra redulido a objeto do prazer do outro;1" e igual-
se possa cometer, explica Aristóteles, são da ordem da quantidade: mente o papd aceito pelo rapaz ou pelo homem que se deixa penetrar
elas concernem ao "mais" (to p/eion); ao passo que o desejo natural por seu parceiro - o autor de Problemas se interroga, dessa maneira,
consiste somente em satisfazer a necessidade, "beber e comer não im- sobre a môo pela qual certos homens obtêm prazer no aphrQdisia~
porta o quê até ficar supersaturado é ultrapassar em quantidade (tõi ::1:.>(111//. "
plithel) o que a natureza demanda", b verdade que Aristóteles tam- Temos, sem dúvida, razão em dizer que não existe no vocabulário
bém admite os prazeres específicos aos indivíduos; acontece de se c0- grego substantivo que agrupe numa noção comum o que pode haver
meter diferentes tipos de faltas, seja que não se tenha prazer "lá onde de específico na sexualidade masculina e na sexualidade feminina.JI>
se deveria", seja o fato de se comportar "como a multidão", ou ainda Mas é preciso sublinhar que, na prática dos prazeres sexuais, distin~
que não se tenha prazer "como convém". Entretanto, acrescenta Aris- gue-se claramente dois papéis e dois pólos, como também podem ser
tóteles, "os intemperantes excedem (huperbalimm) de todas essas for~ distinguidos na função generativa; são dois valores de posição - a do
mas, quer tenham prazer com satisfações que devam ser evitadas, sujeito e a do objeto, a do agente e a do paciente: como diz Aristóteles,
quer, se esses atos são permitidos, tenham mais prazer do que a maior "a fêmea enquanto fêmea é de fato um elemento passivo, e o macho,
parte das pessoas". O que constitui a intemperança é o excesso nesse enquanto macho, um elemento ativo".)1 Enquanto que a experiência
campo, "e isso é algo reprovàvel".'· Parece, assim, que a primeira Ií- da "carne" será considerada como uma experiência comum aos ho-
nha de divisão que terá sido marcada, no campo do comportamento mens e ás mulheres, mesmo se não toma a mesma forma em ambos, .e
sexual, pela apreciação moral, não foi traçada a partir da natureza do enquanto que a "sexualidade" será marcada pela cesura entre sexual~­
ato, com suas variantes possiveis,' mas a partir da atividade e de suas dade masculina e feminina, os aphrodisia são pensados como uma ati-
gradações quantitativas. vidade implicando dois atores, cada qual com seu papel e funç1io--
A prática dos prazeres diz respeito, igualmente, a uma outra va- aquele que exerce a atividade e aquele sobre o qual ela se exerce.
riável que se poderia chamar de "papel" ou de "polaridade". Ao ter- Desse ponto de vista e nessa ética (a qual é sempre necessário
~o aphrodisia corresponde o verbo aphrodisiazein; ele se refere á ativi- lembrar que é uma moral de homem, feita pelos e para os homens),
dade sexual em geral: assim, fala-se do momento em que os animais pode-se dizer que a linha de demarcação passa, principalmente, entre
chegam á idade em que são capazes de aphrodisiazein;l\ também desig- os homens e as mulheres - por causa mesmo da forte diferenciação en·
na a realização de um ato sexual qualquer: assim, Antistenes evoca em tre o mundo dos homens e o das mulheres em muitas sociedades anti-
gas. Mas, de maneira ainda mais geral, ela passa sobretudo entre o que

23. Platon, Timie, 86 c-e.


24. ARISTOTE, ~thique a Nicr>maque, !li, I I, I 118 b. Entretanto, é preciso observar
que Aristóteles se preocupa, em muitas passagens, com a questão dos "prazeres vergo- 26. xtN6PHON, BanqueI, IV, 38. PSEUDO-ARISTOTE, Su, lo slérililé, V, 636 b.
nhosos" que alguns podem procurar (~thiqut' d Nicom(l([lU.', VII, $, I 148 b; X, 3. I 173 21. ARISTOTE. Histo/u dl's onimau:c, IX, 5, 637 ~ VII, I, 58! b.
b). Sobre a questão do desejo, de seu objeto natural e de suas variações cf. PLATON. 28. XtNOPHON, Hiéron, 111, 4.
Ripubliqul', IV, 437 doc. 29. PSEUOO-ARISTOTE, ProbUmes, IV, 26.
25. ARISTOTE. HIstoin des onlmou:c, VIII, 1,581 a. PLATON, Ripublique, IV, 426. 30. P. MANOLl, "Fisiologia e patologia dei feminile negü scrilti hippocratici", Hi,.
~-b, fala dos doentes que em vez de seguirem um regime continuam a comer. beber e pocrolico, 1980, p. 393 sq.
ophl'odisiauin. 31. ARISTOTE, De lo générqtlQn des animaux, I, 21, 729 b.

44 4S
se poderia chamar os "atores ativos" no cenário dos prazeres e os "a· interessam ao corpo e a vida do corpo em gera!.J; Em suma, a ativida·
tores passivos": de um lado aqueles que são sujeitos da atividade se- de sexual, tão profundamente ancorada na natureza e de maneira tão
xual (e que devem cuidar de exercê·la de maneira comedida e oportu· natural, não poderia ser - e Rufus de f:feso o lembrará - considerada
na); e de outro aqueles que são os parceiros·objetos, os figurantes, mâ." E nisso, evidentemente, a experiência moral dos aphrodisia é ra-
sobre os quais e com os quais ela se exerce. Os primeiros, evidentemen- dicalmente diferente daquela que vira a ser a da carne.
te, são os homens, mais precisamente; os homens adultos e livres; os Entretanto, por mais natural e mesmo necessària que pos~a ~er,
segundos, bem entendido, compreendem as mulheres, mas elas ai figu· ela não e menos objeto de um cuidado moral; ela pede uma delimita·
ram apenas como um dos elementos de um conjunto mais amplo, cuja ção que permita fixar até que ponto, e em que medida, é conveniente
referência se faz ás vezes para designar os objetos de prazer possível: praticá.la. E:ntretanto, se ela pode ter alg? a ver com o bem e com.o
"as mulheres, os rapazes, os escravos". No texto conhecido como o ju· mal não é em detrimento de sua naturalidade, ou porque esta tena
ramento de Hipócrates, o médico se compromete a se abster, em qual· sid~ alterada; é em razão mesmo da maneira pela qual a natureza a
quer casa em que entre, de erga aphrodisia, com qualquer pessoa, mu· dispôs. Com efeito, dois traços marcam o prazer ao qual e!a está asso-
Iher, homem livre ou escravo.)l Manter·se em seu papel ou abandoná- ciada. Primeiro, seu caráter inferior: sem esquecer, entretanto, que
10, ser sujeito da atividade ou dela ser objeto, passar para o lado da· p:lfa Aristipo e os cirenaicos "os prazeres não diferem entre si",'! ca·
queles que a sofrem quando se é um homem, ou permanecer no lado racteriza.se em geral o prazer sexual como sendo, não portador de ma·
daqueles que a exercem, eis a segunda grande variável que,juntamente les, mas ontologicamente ou qualitativamente inferior: porque comum
com a da "quantidade de atividade", alimenta a apreciação moral. O aos animais e aos homens (não constituindo uma marca especifica des.-
excesso e a passividade são, para um homem, as duas formas princi· tes últimos); porque misturados â privação e ao sofrimento (e nisso
pais de imoralidade na prática dos aphrodisia. eles se opõe aos prazeres daóos pela visão e a audição); porque depen-
dente do corpo e de suas necessidades, e porque destinado a restabele-
cer o organismo em seu estado anterior á necessidade. lO Mas por outro
2. Se a atividade sexual deve ser assim objeto de diferenciação e de lado esse prazer condicionadó, subordinado e inferior ê um prazer de
apreciação moral, a razão disso não é que o ato sexual seja um mal em extrema vivacidade; como explica Platão no inicio das Leis, se a natu-
si mesmo; tambem não e porque traga consigo a marca de uma deca- reza fez de sorte que os homens e as mulheres fossem atraídos uns pe·
dencia primeira. Mesmo quando a forma atua! da relação sexual e do los outros, foi pard que a procriaç'do fosse possível e, a sobrevivência
amor e referida, como e o caso., por Aristófanes no Banquete, a algum da espécie, assegurada.'" Ora, :sse objetivo é tão !m~ortante, e é tão es-
drama originário - orgulho dos humanos e castigo dos deuses -, nem o sencial que os humanos se deem uma descendenc!a, que.a natureza
ato nem o prazer são por isso considerados maus; ao contrário, eles vinculou ao ato de procriação um prazer extremamente Intenso; do
tendem a restauração daquilo que era para os humanos o modo de ser mesmo modo que a necessidade de se alimentar e de assegurar, assim,
mais completo." De forma geral, a atividade sexual é percebida como sua sobrevivência individual, é lembrada aos animais pelo prazer natu·
natural (natural e indispensâvel) posto que é por meio dela que os se· ral ligado ao alimento e a bebida, assim tambem a necessidade de en-
res vivos podem se reproduzir, que a espécie em seu conjunto escapa á gendrar e de deixar atrâs de si uma progenitura lhes e incessantemente
morte" e que as cidades, as famílias, os nomes e 05. cultos podem se lembrada relo prazer e pelo desejo que são associados á conjunção ~os
prolongar muito além dos indivíduos destinados a desaparecer. f: en· sexos. As Leis evocam, assim, a existência desses três grandes apetItes
tre os desejos mais naturais e necessários que Platão cla!>sifica aqueles fundamentais que dizem respeito ao alimento, à bebida e à geração:
que nos levam aos aphrodisia;" e os prazeres que estes nos proporcio·
nam têm como causa, no dizer de Aristóteles, coisas necessárias que
~

36. ARISTOTE, tthique á Nicomaque, Vlt, 4, 2, 1 147 b.


37. RUFUS D'!:PHESE, OtllVm, ed. Duemberg, p. 318.
38. DtOG~NE LAERCE, Vil' des phiJosop!les, 11, 8.
32. HIPPOCRATE, Le serment, in Oeuvres, ed. Loeb, I, p. 300. 39. Sobre a comunidade desse tipo de prazer com os animais, cf. X!:NOPHON, Hii-
33. PlATON, Bunqutl, 189 d-193 d. Sobre um tempo milico sem geração se1luaL cf. nm VII· sobre o cani.ler mesclado do prazer fisico, cf. PLA TON, Rêpubli/{lU', tX, 583 b
L", P"litiqUt', 271 a-272 b. e~: ni/ébt. 44 e sq; sobre o prazer que acompanha a restauração do estado anterior do
34. ARtSTOTE. Dela généra/ion dtsaflimaux, 11, I, 7J! b; cf. DeI·áme, It, 4, 415 a-b. corpo. PlATON, Tintt't', 64 d, 65 a; ARISTOTE, tlhi/{lU'á Niromaque, VII, 4, I 147 b.
35. PlATON, Rêpublique, VIU, 559 c. 40. PlATON, Lois, J, 636 c.

46 47
todos três são fortes, imperiosos, ardentes, mas sobretudo o terceiro ças estabelecidas pela nalureza, mas suscetível de abuso, isto a aproxi-
apesar de ser o "último a despontar", é "o mais vivo de nossos amo: ma do alimento e dos problemas morais que ele pode colocar. Essa as-
res".-" Ao seu interlocutor da República, Sócrates perguntava se ele co. sociação entre a moral do sexo e a da mesa é um fato constante na cul·
nhecia "prazer maior e mais vivo do que o prazer do amor"." tura antiga. Dela encontrar·se~ão mil exemplo~. Quando no primeiro
É justamente essa vivacidade natural do prazer, com a atração livro dos Memoráveis Xenofonte quer mostrar o quanto Sócrates, por
que ele exerce sobre o desejo, que leva a atividade sexual a transbordar seu exemplo e seus propósitos, era util a seus disclpulos, ele expõe os
d?~ limites fixa~os p:cla natureza quando ela fez do prazer dos aphro~ preceitos e a conduta de seu mestre "sobre o beber, o comer e os praze-
dwa um prazer IOferlor, subordinado e condicionado. Por causa dessa res do amor":' Os interlocutores da República, quando tratam da edu~
vivacid.ade ~e e levad.o a .inverter a hierarquia, a colocar esses apetite~ e cação dos guardiães, concordam que a temperança, a sõphrosuni, exi-
sua satlsfa?ao em primeiro lugar, a lhes dar poder absoluto sobre a a!~ ge o triplo domínio dos prazeres do vinho, do amor e da mesa (potai,
ma. Tambem por causa dela se e levado a continuar alem da satisfação aphrodisia. edõdai)." Do mesmo modo Aristóteles: 'na tti,·,j a Nicôma-
das necessld~de.s, ~ a buscar, o prazer mesmo após a restauração do co, os três exemplos que ele dã de "prazeres comuns" são os da comi~
corpo. Tendencla a revolta e a sublevação, eis a virtualidade "estasiás~ da. da bebida e, para osjo'/ens e os homens na força da idade, as volú-
tica" do apetite sexual; tendência à superação, ao excesso eis a virtude pias da cama;" nessas três formas de prazer ele reconhece o mesmo
'~hiperbó~ica":" A natureza colocou no ser humano essa f~rça necessá- tipo de perigo, o do excesso que vai além da necessidade: ele chega ate
na e temlvel sempre pronta a ir além do objetivo que lhe foi fixado. a encontrar um principio fisiológico comum, jã que encara uns e ou-
V~mo~ por que, nessas ~on~ições, a atividade sexual exige uma discri- tros como prazeres de contdto e de toque (alimento e bebida só provo-
mmaça? ~orat, ~ qua.l Já vimos que era muito mais dinâmica do que cam, segundo ele, o prazer que lhes e próprio, quando entram em con~
morfo.loglca. Se e precls.o, como diz Platão, impor-lhe os três mais for- tato com a lingua e, sobretudo, a garganta).;" Quando o médico Erixí-
tes frel.os.- o temor, a lei e o discurso verdadeiro'; _ se e preciso, segun- maca toma a palavra no Banquete, reivindica para sua arte a capacida~
d~ Anstoteles, que a faculdade de desejar obedeça à razão como a de de dar conselhos sobre a maneira pela qual é necessár.io fazer uso
Cflança aos ~andamentos de seu mestre;') se o próprio Aristipo queria dos praleres da rr,,,sa e da cama; segundo ele, são os médico;, que de-
que, sem deixar de "serviNe" dos prazeres, se velasse a nào se deixar vem di/ef como ter prazer com a boa mesa sem ficar doente; são eles
le.var p~or ~Ies," a razão nào e que a atividade sexual seja um mal; tam- também que devem prescrever para aqueles que praticam o amor físi-
bem nao e porque ela arriscaria desviar~se em relação li um modelo ca~ co - "o Pandêmico" - como obter o gozo sem qUe isso resulte num
nôni~o; ma.s sim porque ela depende de uma força, de uma energeia desregramento."
que e por SI mesma levada ao excesso. Na doutrina cristã da carne a Sem duvida, seria interessante seguir a longa história das relações
força excessiva do prazer encontra seu princípio na queda e na faita entre moral alimentar e moral sexual através das doutrinas, como t~m­
q~e ~arca desde então a natureza humana. Para o pensamento grego bem dos ritos religiosos ou das regras dietéticas; seria necessário ver de
c1asslco ess.a força é por natureza virtualmente excessiva e a questão que maneira pôde-se operar, no decorrer do tempo, o descolamento
mora~ conslstl.rá em saber de que maneira enfrentar essa força. de que entre o jogo das prescrições alimentares e o da moral sexual: a evolu-
maneira domlOá~la e garantir a economia conveniente dessa mesma ção de sua importância respectiva (com o momento, sem duvida bem
força. tardio, em que o problema da conduta sexual tornou-se mais preocu-
Como li" atividade sexual aparece sob a forma de um jogo de for- pante que () dos comportamentos alimentares) e a piferenciação pro-
gressiva de sua estrutura própria (momento em que o desejo sexual foi
interrogado em outros termos que não os do apetite alimentar). De
4! IbM .. VI, 783 a-h. todo modo, na reflexão dos gregos na época clássica, parece claro que
42. PlATON. Répub/ique, lU, 403 a.
43. Sobre a hiperbole (hupt"rbok hupt"rballelll) dos prazeres, ver, por exemplo, PLA~
TON. République, 402 e; Timie, 86b; ARISTOTE, tthiquea Nicomaquf', 111, 11. I 118 b;
VII,4, I 148 a; VII, 7, I 15Oa; VII, 7, I 150 b. Sobre a revolta (f'pana$fasis. slasiauin, 47. Xf.NOPHON, Mimorables. 1,3,15.
PlATON, Republique, IV, 442 d; IV, 444 h; IX, 586 e; Phêdre, 237 d. 48. PlATON. Ripublique. lH, 389 d-e; cf. lambem IX. 580 e.
44. PLATON. Lois, 783 a.
49. ARISTOTE, l:thique ri Nicomaquf'. 111, 11, I 118 b.
45. ARISTOTE, l/hique d N1comaquf', 111, 12, I 119 h.
50. Ibid., 111, !O. 9, I 118 a.
46. DIOGENE lAF.RCE, Vie- de-s phi/osophes, VI, 8. SI. PlATON, Banquei, 187 e.

48
49
a probl~mati~ação moral do alimemo, da bebida e da atividade sexual,
tenha~ sIdo feita de maneira bem semelhante. As iguarias, os vinhos, ali
r~!ur.:oe~ com as ~ulheres e com os rapazes constituem uma maléria é-
tIca ana!o~a; eles mstauram forças naturais, mas que tendem sempre a
ser eXCessivas: e tanto uns como os outros colocam a mesma questão:
como se pode e como convém "se servir" (chreSlhai) dessa dinâmica
dos prazeres, dos desejos e dos atos? Queslão do bom uso. Como diz
Aristótel~s: "Todo mundo, em certa medida, usufrui do prazer da me-
sa, do vmho e do amor; mas, nem todos o fazem como convém 2
(ouch'hõs dei)".')

CHRESIS

De que maneira obter o prazer "como convém"? A que principio


referir-se a fim de moderar, limitar e regular essa atividade? Que tipo
de validade reconhecer nesses princípios que possa jU$tificar que se
lhes tenha que submeter~se? Ou, em outros termos, qual é o modo de
sujeição implicado nessa problematização moral da conduta sexual?
A reflexão moral sobre os aphrodisia tende muito menos a estabe-
lecer um código sistemático que fixaria a forma canônica dos atos se-
xuais, traçaria a fronteira das interdições, e distribuiria as práticas de
um lado e de outro de uma línha de demarcação, do que a elaborar. as
condições e as moralídades de um "uso": o estilo daquilo que os gre~
gos chamavam chresis aphrodision, o uso dos prazeres, A expressão
corrente chresis aphrodisioti se refere, de modo geral, á atividade sexual
(assim se falará dos momentos do ano ou da idade da vida que são
bons para chresthai aphrodisiois),51 Mas o termo se refere também à
maneira pela qual um indivíduo dirige sua atividade sexual, sua ma-
neira de se conduzir nessa ordem de coisas, o regime que ele se permite
ou se impõe, as condições em que ele realiza os atos sexuais, a impor-
tância que ele lhes atribui na sua vida. l ' Questão, não do que é permití-

53. ARISTOTE, Jlis/oi" dtsanimDux, VII, I, 581 b; De la générotjOll dts ani_ux, 11,
7,7478.
54. PLATON (République, V, 451 c) fala do que deve ser a correta "poS5e e prática"·
(klt.r;.~ 11' klll dI"ia) das mulheres e das crianças; trata-se, portanto, do conjunto das li-
gações e das formas de relação que se pode ter com eles. POLYPE evoca a chniu lIphro·
di.<ion que, com o luxo das vestimentas e do alimento caracteriza os costumes dos robe-
52. ARISTOTE, Ethiql« li NictJnIQ(jUt, VII, 14,7, I 154 8. rallas hereditirios, e provoca o descontentamento e a revolução (HisIOiff.'5, VI, 7).

50 SI
do ou proibido dentre os desejos que se experimenta ou os atos que se mento que pudesse satisfazer o mais simplesmente o seu estômago <:le
comete, mas questão de prudência, de reflexão, de calculo na maneira teria tentado comer carne crua), também encontrav~ na m.asturbaç~o
pela qual se distribui e se controla seus atos. No uso dos prazeres, .em- o meio mais direto de acalmar seu apetite; e até sentia mUito q~e nao
bora seja preciso respeitar as leis e costumes do paiS, não ofender aos houvesse a possibilidade de dar satisfação tão simples á fome e a sede:
deuses e se referir ao que quer a natureza, as regras morais as quais os "Praza ao céu que bastasse esfregar a barriga para acalmar a fome".
individuos se submetem são muitos distantes daquilo que pode consti- Com isso Diógenes nada mais fazia do que levar ~o extre,m.o um
tuir uma sujeição a um código bem definido.'l Trata-se muito mais de dos grandes preceitos da chrêsis aphrodisiõn, Ele redUZia ao mmlmo a
um ajustamento variado e no qual deve-se levar em consideração dife- conduta que Antistenes já expunha no Banqu.ete de Xenofonte:
rentes elementos: um que é o da necessidade e daquilo que a natureza "Quantia sou solicitado, dizia ele. por algum desejO amoroso, con.t~~­
tornou necessário;"' o outro, temporal e ciscunstancial, que é o da to-me com a primeira que encontro, e as mulheres a quem me ~IfIJo
oportunidade, e o terceiro que é o do status do pr6prio indivíduo. A me cobrem de carteias, pois ninguém mais consente em se aprolomar
chresis deve se decidir levando em conta essas diferentes considera- delas. E todos esses gozos me parecem tão vi~os 9ue me aba~don~ndo
°
ções. Pode-se reconhecer, na reflexão sobre uso dos prazeres, o cui- a cada um deles não desejo obter gozos mais VIVOS; gostana ate que
dado com uma tripla estratégia: a da necessidade, a do momento e a fossem menos vivos, já que alguns deles ultrapas.sam os limite~ d<,> ~­
do status. til".\! Esse regime de Antístenes não se afasta mUlt?, em seu pnfl(;I~IO
(mesmo que as conseqUências práticas sejam bem diferentes), de vanos
preceitos ou exemplos que Sóqate~, segundo Xenofonte, .dava ~ seus
1. A estratégia da necessidade. J: conhecido o gesto escandaloso discípulos. Porque se ele recomendava, àqueles que eram msuficlente-
de Diógenes: quando tinha necessidade de satisfazer seu apetite sexual, mente armados contra os prazeres do amor, fugu dos belos rapazes e
ele se satisfazia a si pr6prio em praça pública.l~ Como muítas das pro- até mesmo, se fosse o caso, exilar-se, não prescrevia, apesar de tudo,
vocações cínicas, esta permite duplo entendimento. De· fato, a provo- uma abstenção total, definitiva e incondicional; lia alma - é assim pelo
cação está no caráter publico da coisa - o que na Grécia era contra to- menos que Xenofonte apresenta a lição socrática - s6 a~rov.a esses
dos os hábitos; dava-se, facilmente, como razão de não se praticar o prazeres se a necessidade física for urgente e puder ser satisfeita sem
amor a não ser durante a noite, a necessidade de ocultar-se aos olha- dano".l' . . .
res; e na precaução a não se deíxar observar nesse gênero de relações, Mas nesse uso dos aphrodisia regulado pela neceSSidade, o obJeti-
via-se o sinal de que a prática dos aphrodisia não era algo que honrasse vo não é o de anular o prazer; trata-se, ao contrário, de sustentá-lo e
o que havia de mais nobre no homem. ~ contra essa regra de não de sustentá-lo pela necessidade que o desejo susc~ta; s_ab~-s~ m~ito
publicidade que Di6genes dirige sua crítica "gestua'''; Diógenes Laér- bem que o prazer se embota quando não oferece satlsfaçao a vlvacld~­
cio relata, efetivamente, que ele tinha costume "de tudo fazer em de de um desejo: "Meus amigos", diz a Virtude no discurso de Pródl-
público, as refeições e o amor", e que raciocinava assim: "se não há cos relatado por S6crates, "gozam do come~ e do beber com prazer
mal em comer, também não há em comer em público".l' Mas, com (hideia ... apolausis) e sem esforço (apragmon): porque eles esperam
essa aproximação com o alimento, o gesto de Di6genes adquire tam- sentir o desejo".6O E numa .discussão com Eutí.d~!l0' ~ócra~es lem?r~
bém outra significação: a pratica dos aphrodisia, que não pode ser ver- que "a fome, a sede, o desejO amoroso (aphrodwon epahumw), as Vlgl-
gonhosa já que é natural, não é nada de mais nem de menos do que a lias são as únicas caUSilS do prazer que se tem em comer, em beber, em
satisfação de uma necessidade; e assim como o cinico buscava o ali- fazer amor, em repousar e em dormir, quando se esperou e se supor-
tou essas ·necessidades ate que sua satisfação fosse tão agradável qua!l-
to possivel (hõs eni hedista)".'" Mas, se e preciso suste~ta.r a sensaçao
de prazer pelo desejo, não se deve, inversamente, multiplicar os dese-
55. ARISTOTE (Rhétorlque, I, 9) define a temperança como o que nos leva a condu-
zir-nos, no que concerne aO$ prazeres do corpo, "como quer o nomos". Sobre a noção de
nO/llOS, cf. J. DE ROMILL Y, L·ldée de loi lklm la pmsée grecqlle.
•. No origina!: "necessidade" (besoin) ... "necessário" (nkessaire). (N. do T.) 58. XÉNOPHON, Ba",/uf/, IV, 38 .
56. DIOG~NE LAERCE. Vi, des pltjfosophu, VI, 2, 46. Ver também DION DE 59. XÉNOPHON, Mêmorables, J, 3, 14.
PRUSE, DuCOW"s, VI, 17-20, e GAUEN, Do fina alftcth, VI, 5. 60. IbM., 11, L 33.
57. 'DIOGENE LAERCE. Vi, des philo$ophes, VI, 2, 69. 61. Ibid., IV, 5. 9.

52 53
jos pelo recurso a prazeres que não estão na natureza; é o cansaço, sição ta! que o apetite lhe servia de tempero. Toda bebida lhe er3 ag.ra·
como ainda é dito no discurso de Pródicos, e não a ociosidade cultiva~ dável já. que ele nunca bebia sem ter sede'·:·
da que deve dar vontade de dormir; e se é possível satisfazer os desejos
sexuais quando eles se manifestam, não se deve criar desejos que vão
além das n~ssidades. A n~ssidade deve servir de principio diretor 2. Uma outra estratégia consiste em determinar o momento opor-
nessa estratégia, a qual, como se vê, nunca pode tomar a forma de uma tuno, o kairm·. Trata-se de um dos mais importantes objetivos e dos
codificação precisa ou de uma lei aplicável a todos da mesma maneira mais delicados na arte de fazer uso dos prazeres. Platão o lembra nus
e em todas as circunstâncias. Ela permite um eq"uilibrio na dinâmica Leis: feliz daquele que, nessa ordem de coisas (quer se trate de um par-
do prazer e do .desejo: ela o impede de "encher-se de Impeto" e de cair ticular ou de um Estado), sabe o que convém fazer, "quando e o tanto
no excesso fixando-lhe, como limite interno, a satisfação de uma ne- que convém": aquele, ao contrario, que age "sem saber como (anepú-
cessidade: e ela evita que essa força natural entre em sedição e usurpe lemonõs)"' e "fora dos momentos oportunos" (eklOs lOn kairon), este,
um lugar que não é o seu: porque ela s6 aceita o que, necessário ao tem "uma vida completamente diferente".ó'
corpo, e querido pela natureza, sem nada a mais, Deve-se ter em mente que esse lema do "quando convem" sempre
Essa estratégia permite conjurar a intemperança que é, em suma, OtUpou, para os gregos, um lugar importante, não somente como
uma conduta que nüo tem sua referência na necessidade. É por isso problema moral, mas tambem como questão de ciência e de técnica.
que ela pode tomar duas formas contra as quais o regime moral dos Esses sabere~ praticos que são - segundo uma aproximação bem tradi·
prazeres deve lutar. Existe uma intemperança qUe se poderia dizer de cional. - a medicina, o governo e a pilotagem, implicam, com efeito,
"pletora", de "preenchimento"·l: ela concede ao corpo todos os praze- que não se fique restrito a conhecer os princípios gerais mas que se te-
res possiveb antes mesmo que ele tenha experimentado a necessidade, nha capacidade para determinar o momento em que é preciso intervir
n~o lhe dando tempo de experimentar "nem fome, nem sede, nem de. e a maneira precisa de fazê-lo em função das circunstâncias na ~ua
sejo~ llmorosos, nem vigilias" abafando, com isso mesmo, qualquer atualidade. E e justamente um dos aspectos essenciais da virtude de
sens;]ção de prazer. Existe, igualmente, uma intemperança que se po.- prudência dar aptidão para conduzir como convêm a "politica do mo-
deria dizer de "artificio" e que é a conseqüência da primeira: ela con- mento", nos diferentes domínios - quer se trate da cidade ou do indivi-
siste em ir buscar as volupias na satisfação de desejos extranatureza: é duo, do corpo ou da alma - onde importa aproveitar o kairos. No uso
da que, "par;! comer com prazer procura cozinheiros, que para beber dos prazeres, também a moral é uma arte do "momento'·.
,om prazer obtem vinho~ caros, e que no verão vai atras da neve"; é Esse momento pode ser determinado segundo varias escalas. Ha a
da que, paru encontrar novos prazeres nos aphrodisia, se serve de "ho- e':çala da vida como um todo; os medicos pensam que não i: bom ini-
mens como se fossem mulheres".'·' Concebida assim, a temperança ciar a pratica desses prazeres quando se é muito jovem; eles também
não pode tomar a forma de uma obediência a um sistema de leis ou u estimam que ela pode ser nociva se for prolongada até uma idade mui-
uma codificação da~ condutas: ela também não pode valer como um to avançada: ela posr.ui a sua estação na ~xistência: ela é fixada em ge·
prindpi.o de unulação dos prazeres: ela é uma arte, uma prática dos ra! num período que e caracterizado não somente como aquele em que
prazeres que e capaz, ao "u~ar" daqueles que são baseados na necessi- a procriação e possível, mas aquele em que a descendência é sadia,
d;]de, de se limitur ela própria: "A temperança", diz Sócrutes, "é a uni- bem formada, saudável."1 Ha também a escala do ano com as estações:
,u que nos fUI suportar a~ necessidades de que falei e e a única, igual- os regimes dietéticos, como veremos adiante, atribuem uma grande
mente. que nos faz experimentar um prazer digno de memória"." E
cr;] ;]ssim que o próprio Sócrates usava a temperança na vida cotidia-
n;!. se aacdit;lrmos em Xenofonte: "Ele só se alimentava na medida
..:m que tinha prazer em comer, e chegava as refeições com uma disoo- 65. Ihid., I, 3. 5.
66. PLATON, Loi.~. J, 636 d--e. Sobre a noção de kairO$ e sua importância na moral
grega, cf. P. AUBENQUE, [.o I'rudenC<' cite: AnslOle. Paris, 1963, p. 95 e sq.
67. Fixava-se uma idade avançada: para Ari~tóteles, o esperma permanece infecundo
ate os vinte e um anos. Porem, a idade que um homem deve atingir para poder esperar
1>' Cf. j'I..ATON. G(Jfgia.l, 492 a-b, 494 c. 507 e: RêpuMique. VIII, 561 b. uma bela descendencia e ainda mais tardia: "Apó~ vinte e um anos as mulheres estão em
t\~. X~.NOPHON. Mel>l"'ahfeJ. ti. t. 30. boas condições para fazer filhos, ao passo que os homens têm ainda que se de~envotver··
M. !flM .. tV. 5. 9. (His/Oire de.! animaux, VlI, L 582 a).

54 55
imp.o,rtâ.ncia á ~orrelação entre a atividade sexual e a mudança de não são "virtuosas ou desonestas de forma absoluta", mas que "elas
equlhbno no chma, entre o quente e o frio, o ilmido e o seco.~a Con- diferem completamente segundo os interessados"; portanto, "nã() se-
vem, também, escolher o momento durante o dia: uma das Questões de ria razoável seguir a mesma máxima em todos os casos". 11
convivas de Plutarco tratará desse problema propondo-lhe uma solu- É sem duvida um traço comum a muitas sociedades que as regras
ção que pare<:e ter sido tradicional; razões dietéticas como também ar- de conduta sexual variem segundo a idade, o sexo, a condição dos in-
gumentos ~ decência e moti.vos re1i~iosos recomendam preferir a noi. dividuos, e que obrigações e interdições não sejam impostas a todos da
te: porque e o momento. mais favoravel para o corpo, o momento em mesma maneira. Mas, para se ater ao caso da moral cristã, essa especi-
9ue a sombra oculta as Imag~ns pouco con~e~ientes, e o que permite ficação se faz no quadro de um sistema global que define, de acordo
mtercalar o tempo de uma noite antes das pratIcas religiosas da manhã com principias gerais, o valor do ato sexual. e indica sob que condições
seguinte."9 A escolh~ ?O momento - do kairos - deve depender igual- ele poderá ou não ser legítimo, sendo a pessoa casada ou não, ligada
mente das ~ut!as attvldades. Se .Xenofonte ci~a Ciro como exemplo de ou não por votos, etc.; trata-se ai de uma universalidade modulada.
temperança. na? é 'porque este tIVesse .renunclado aos prazeres; é por- Parece que na moral antiga, salvo alguns preceitos que valem para
q~e ele s~bla dlstnbul-los como convmha no Curso de sua existência, todo mundo, ~ moral sexual sempre faz parte do modo de vida, ele
n~o. se delx~ndo por eles desviar de suas atividades e somente os per- próprio determinado pelo status que se recebeu e as finalidades que se
mlttndo apos um trabalho preliminar que condulia a entretenimentos escolheu. É ainda o pseudo-Demóstenes do Erotico5 que se dirige a
honrosos.'o Epícrato para lhe "dar conselhos que sirvam para colocar sua conduta
A importância do "bom momento" na ética sexual aparece clara- em alta estima"; de fato, ele não queria que o jovem tomasse resolu-
mente numa passagem dos Memoráveis consagrada ao incesto. Sótra- ções sobre si .mesmo "que não fossem conformes as melhores opi-
tes coloca sem equívoco que "a interdição das relações entre um pai e niões"; e esses bons conselhos não têm como função lembrar princi-
suas filhas, entre um filho e sua mãe" constitui uma lei universal e es- pios gerais de conduta mas fazer valer a legítima diferença entre os cri-
tabelecida ,el.os deuses: ele vê uma ~rova disso no fato de que aqueles térios morais: "alguem que seja de condição obscura e humilde, nós
que a transgndem re<:ebem um castIgo. Ora, esse castigo consiste em não o criticamos, mesmo em caso de falta pouco honrosa"; em troca,
que, apesar das ~u~li~ades i~trínsecas que os pais incestuosos podem se ele for como o próprio Epícrato, que "atingiu a notoriedade, a me-
ter, sua descendencla e mal Vinda. E por quê? Porque eles desconhece- nor negligência sobre um ponto que interessa a honra cobre-o de ver·
ram esse pr!ncípio do ."m~ment~" e misturaram fora do tempo o sê- gonha".ll Um princípio geralmente admitido é o de que quanto mais
men de gemtores dos quais um e forçosamente muito mais velho do se for visado, mais se tiver ou se quiser ter autoridade sobre os outros,
que o outro: engendrar quando não se esta mais "na flor da idade" é mais se buscar fazer de sua vida uma obra resplandecente, cuja repu-
sempre "procriar em mas condições"." Xenofonte ou Sócrates não di- tação se estenderá longe e por muito tempo, mais será preciso se imo
zem que o incesto seja condenável somente sob a forma de um "con- por, por escolha e vontade, princípios rigorosos de conduta sexual. Tal
tratempo"; mas e de notar-se que o mal do inCesto se manifesta da era o conselho dado por Simônides a Hieron a propósito "do beber,
mesma maneira e pelos mesmos efeitos que o desconhecimento do do comer, do sono, do amor": esses "gozos são comuns a todos os ani-
tempo. mais indistintamente", ao passo que o amor pela honra e o louvor é
próprio aos humanos; e é esse amor que permite suportar os perigos
como as privações.'~ E tal era também a maneira pela qual Agésilas se
3. A arte de usar do prazer deve também se modular em conside. . conduzia, sempre segundo Xenofonte, no que concerne aos prazeres
ra~ão ,àquele qu~ a usa e segundo o seu 5tatus. O autor do Eroticos, "pelos quais muitos homens se deixavam dominar"; ele estimava, de
a.tnbUldo a Demoste~es, lembra-o segundo o Banquete: qualquer espí- fato, que "um chefe deve se distinguir dos particulares, não pela lassi-
rito sensato sabe mUIto bem que as relações amorosas de um rapaz dão mas sim pela resistência"."

6H. Tudo isto sela desenvolvido no capitulo seguinte. 72. PLATON, Bonqu~l, 180ç - IS! a; 183 d. PSEUOO-DEMOSTHtNE Erolicos 4.
69. PLUTARQUE, Prllpo.\ d~ tablt. 111, 6. n. lbid. ' ,
70, Xf'.NOPHON. CyropMk, VIII, I, 32. 74. XtNOPHON, Hieron, VII.
71 Xt.NOPHON. Mhno,ob/~.•. IV. 4. 21-23, 75, Id., Agê.fi/OS, v.

56 57
A temperança ê representada com grande regularidade entre as natureza - permanecem presentes. mas como se elas desenhassem ao
qualidades que pertencem - ou que pelo menos deveriam pertencer - longe um circulo bem largo no interior do qual o pensamento prático
não a todos e a qualquer um. mas, de forma privilegiada. àqueles que deve definir o que convém fazer. E para isso ela não tem necessidade
têm posição. status e responsabilidade na cidade. Quando o Sócrates de algo como um texto que faça a lei, mas de uma techni.ou. d.e uma
dos Memoráveis traça para Critóbulo o perfi! do homem de bem cuja "prâtica", de um savoir-faire que. levando em conta os prlnClplOs ge-
amizade é útil buscar. ele situa a temperança no quadro das qualidades rais. guie a ação no seu proprio momento. de acordo com o contexto e
que caracterizam um homem socialmente estimável: estar pronto a em função de seus próprios fins. Portanto, não é universalizando a re-
prestar serviço a um amigo, estar disposto a retribuir os beneficios re- gra de sua ação que. nessa forma de moral. o indivíduo se constitui
cebidos, ser acomodatício nos negocios.'~ Sócrates, sempre segundo como sujeito ético; é. ao contrário. por meio de uma atitude e de uma
Xenofonte. mostra a seu discipulo Aristipo - aquele que "levava o des- procura que individualizam sua ação. q~e modulam. e que até podem
regramento ao excesso" - as vantagens da temperança. colocando-lhe dar um brilho singular pela estrutura racIOnal e refletida que lhe confe-
a seguinte questão: se tivesse que formar dois alunos, um que levasse re.
uma vida qualquer e o outro que fosse destinado a comandar. para
qual dos dois ele ensinaria a ser "mestre.de seus desejos amorosos", a
fim de que esses desejos não o impedissem de fazer o que teria a fa-
lerT Nós preferimos. dizem em outra parte os Memoráveú. ter esçra-
vos que não são intemperantes; e com mais razão ainda, se quisésse-
mos escolher um chefe, "iríamos escolher aquele que saberíamos es-
cravo de seu ventre, do vinho, dos prazeres do amor, da lassidão e do
sono'!"" t verdade que Platão quer dar ao Estado inteiro a virtude da
temperança; mas ele não entende com isso que todos serão igualmente
temperantes; a sõphrosune caracterizará o Estado onde aqueles que de-
vem ser dirigidos obedecerão e onde aqueles que devem comandar co-
mandarão efetivamente: encontrar-se-á, portanto, uma multidão "de
desejos. de prazeres e de dores" do lado das crianças, das mulheres,
dos escravos. assim como do lado da massa de gente sem valor. "Mas
os desejos simples e moderados que. sensíveis ao raciocinio. se deixam
levar pela inteligência e pela opinião justa", só serão encontrados
"num pequeno número. naqueles que acrescentam. ao natural mais
belo. a mais bela educação". No Estado temperante. as paixões da
multidão viciosa são dominadas pelas "paixões e pela inteligência de
uma minoria virtuosa","
Estamos bem longe de uma forma de austeridade que tenda a su-
jeitar todos os indivíduos da mesma forma, os mais orgulhosos como
os mais humildes. sob uma lei universal. da qual apenas a aplicação
poderia ser modulada pela instauração de uma casuística. Ao contrá-
rio. tudo aqui é questão de ajustamento, de circunstância. de posição
pessoal. As poucas grandes leis comuns:. da cidade, da religião ou da

76. Xf:NOPHON. Mhnorablt'.'i, li, 6, l-S.


n I,.,id .. 11. !. 1-4.
7)1;. 'bid., I. 5, I.
79. PlATON. Rêpuhfiqul.'. IV. 4Jl. c-d.

58 59
re ti essa proximidade das duas palavras quando Sócrates, interrogado
por C.Hicles sobre o que ê "se comandar a si mesmo (auron heauton ar~
châ/l)", respondt.: consiste em "ser sabia e se dominar (sõphrona anta
Áai t'1I/.:.ratt' autol/ heaU1ou), em comandar os prazeres e os desejos em si
próprio (an'hál/ /ÕII hedonõn k.ai epifhumiiin)"." E quando na Repúb!i~
('(/ de trata de cada uma das quatro virtudc:-. fundamentais - sabedo-
ria. coragem, justiça e temperança (sôphrosun'é) - define esta ultima
pela cl/Arareia: "A temperança (sõphrosune) e uma espécie de ordem e
dI: imperia (/.:o.mms !.:.ai enk,rareia) sobre certos prazeres e desejos"."
3 Pode~i>e notar. entretanto, que apesar das significações dessas
duas palavras serem bastante próximas, ainda faltaria muito para se~
rem exatamente sinônimas. Cada uma delas se refere a um modo um
tanto diferente de relação consigo. A virtude de sõphr"\une é sobretu~
ENKRATEIA do descrita como um estado bastante geral \.jue garante uma conduta
"como convem para com os deuses e para com os homens", isto e, ser
niio somente tem perante mas devoto e justo, como também corajoso."
Em troca, a enkrateia se caracteriza liobretudo por uma forma ativa de
dominio de si que permite resistir ou lutar e garantir sua dominação
Opõe-se, freqüentemente, a interioridade da moral cristii â exte- no t,rreno dos desejos e dos prazeres. Aristót<!!es teria sido o primeiro,
rioridad~ de uma moral pagã que consideraria os atos apenas em sua segundo H. Nofth, a distinguir sistematicamente entre süphrosune e
efetlvaçao reaL em sua forma visive! e manifesta, em Slla adequação a ellJ...rafl!ia." A primeira e caracterizada, na Ética a Nit"ômaco, pe!o fato
regras e segundo o aspecto que eles podem tomar na opinião ou na de que () sujeito esco!he deliberadamente principios de ação conformes
lembrança. que deixa":l em seu rastro. Mas essa oposição tradicional- a Talão, que ele e capazôc segui-los e aplid~los, e que ele sustenta as~
mente ac.elta corre '? r~sc,o de deixar escapar o essencial. O que se cha~ sim. em sua cor'juta, o "ju.He milieu"* entre a insensibilidade e os ex-
ma mteTloTldade CTlsta e um modo partIcular de relação consigo que cessos (jU.Hf' milieu que não é uma eqüidistância, já que de fato a tem~
comporta formas precisas de atenção, de suspeita, de decifração, de perança esta mais longe dos excessos do que da insensibilidade), e que
verbalização, de confissão, de auto-acusação, de luta contra as tenta~ ele tem prazer na moderação que demonstra: á sõphrasunê se opõe a
ções, de renuncia, de combate espiritual. etc. E o que é designado intemperança (akolasia) na qual se segue, voluntariamente e por esco-
como "exterioridade"' da mora! antiga implica tambem o principio de lha deliberada, maus princípios, abandonando~se até aos mais fracos
um trabalho sobre si. mas sob uma forma bem diferente. A evolução desejos e obtendo prazer com essa má.conduta: o intemperante não
que se produlirã. aliás com muita lentidão, entre paganismo e cristia- tem pesar nem cura possível. A enkraleia, com seu oposto akrasia se
nismo. não consistira numa interiorização progressiva da regra. do ato situa sobre o eixo da luta, da resistência e do combate: ela é comedi-
e da falta: ela operara, antes de mais nada, uma reestruturação das for- mento, tensão, "continência". A enkrateia domina os prazeres e os de-
mas da relação consigo e uma transformação das praticas e das técni~ sejos mas tem necessidade de lutar para vencê-los. Diferentemente do
cas sobre as quais essa relação se apoiava.
Un: termo.é utilizado ~a lingua Clássica para designar essa forma
XO. Xí:NOPHON. ("\"f{)".:Jit". VII!. I. .lI). Sobre a noção de .wphrosunt' e sua evolução.
de relaçao conslg?, essa" atItude" que é necessaria â moral dos praze- d H. NORTH . .~o"hro,'ullf: o autor sublinha a pro~imidade das duas pa!avra~ w"hro.
res, e que se mamfesta no bom uso que se faz deles: enkrateia. Na ver. \1111<" C ,,"~rlH<"i(1 em Xenofonte (pp. 123· 132).
d~de. ess,: palavra permaneceu por muito tempo bem próxima de XI PlATO!'-i. Co,,,iu', 491 d.
sophrosune: elas são. freqüentemente. encontradas juntas ou alternati- 'C PL\TON. Rr"lIl>!tqll<'. IV. 4.10b. Aristóteles (t/hiquea ,\!;nll>/aque. VII. 1. Ó. I 145
vamente, com acepções be'." próximas. Xenofonte, para designar a h) icmhm a opinião S«!J.undo ;.! qual aquele que 11 .wJ"hroll i: /'IIh(1/l's e "aflui",,",.
~.'. PL.A TON. (jorgirl\". 'iOl a·b. Cf igualmente l.o!.'·, 111. 697 b. Consider<lr "como os
temperança - que faz parte Juntamente com a devoção, a sabedoria a prlmelW, c ,)~ mais pre,i",()~ dos bens da alma quando 11 lemperani;a ai reSide"
coragem e justiça, das cinco virtudes que ele em geral reconhece _, e~~ X... CI. H. NORTH. So"ltro.'U'w. op. Clt .. pp. 202·2().~.
prega às vezes a palavrasõphrosunê, ás vezes enkrafeia. 'o Platão se refe~ • I.nlrc asp'l~ no origln;.!1. (N do T.)

60 61
homem "tem perante". o "continente" experimenta outros prazeres tir e dominá~las, Certamente, se é necessário enlrentá~las é porque se
que não aqueles conformes á razão; mas não se deixa mais levar por trata de apetites inferiores que nós compartilhamos - como a fome e a
eles. e seu mérito será tanto maior quanto mais forte forem seus dese~ sede - com os animaís;3~ mas essa inferioridade natural não seria em si
jos, Em contraposição. a akrasía não é. como a intemperança, uma e!.~ mesma uma razão para combatê~la se não fosse o perigo de que, pre~
colha deliberada de maus princípios; convém compará~la de preferên~ dominando sobre todo o resto, elas estendessem sua dominação sobre
da a essas cidades que possuem boas leis mas não são capazes de aplí~ todo o indivíduo, reduzindo~o, finalmente. á escravidão, Em outras
cá~las; o incontinente se deixa levar. contra sua vontade e a despeito de palavras. não é a sua natureza intrínseca. sua desqualificação de
seU); princípios razoáveis. seja porque não tem força para operá~los. principio que demanda a atitude "pol~mica" consigo mesmo, mas sim
seja porque não renetiu suficientemente sobre eles; e é isso mesmo que seu dominio eventual e seu império, A conduta moral. em matéría de
faz com que o incontinente possa curar~se e aceder ao domínio de sL" prazeres, está subjacente uma batalha pelo poder, Ewa percepção dos
Ne);se sentido a enkralt'Ía é a condição da sophrosune, a forma de tra~ hidonai e epíthumaí como rorça temível e inimiga, e a constituíção cor~
balho e de controle que o indivíduo deve exercer sobre si para tornar~ relativa de si como adversário vigilante que os enfrenta, que entra em
se lemperante (sõphrõn), justa contra eles e procura dominá~los, traduz-se numa série deexpres-
Em todo caso, o termo enkrateía no vocabulário clássico parece sões empregadas tradicionalmente para caracterizar a temperança e a
rererir~se em geral á dinâmica de uma dominação de si por si e ao es~ intemperança: opor~se aos prazeres e aos desejos. não ceder a eles. re-
forço que ela exige, si);tir ás suas investidas ou. ao contrário, deixar-se levar por eles,'· ven-
cê-los ou ser vencido por eles,'" estar armado o~ equipado contra
eles," Ela também se traduz por metáforas como a da batalha a ser
1, Esse exercício da dominação implica, em primeiro lugar, uma tmvada contra adversários armados,OI ou como a da alma~acrópole.
relação agonistica, O Ateniense, nas Leis, lembra a Cllnias: se é verda- atacada por uma tropa hostil, ç que deveria se defender graças a um
de que o homem mais bem dotado para a coragem seria apenas "a me- sólido destacamento;·" ou como a das vespas que atacam os desejos sá-
tade de si mesmo" sem a "prova e o exercício" dos combates, pode--se bios e moderados. matam-nos e os expulsam9 ' se não se conseguir !í~
pensar que n~o seria possível tornar-se temperante (sõphrõn) "sem ter vrar-se delas, Também se exprime através de temas como o das forças
sustentado a luta contra tantos prazeres e desejos (paI/ais hedonoís kaí selvagens do desejo que invadem a alma durante o sono se ela não sou-
l'pilhumiai,ç diamemachlmenoJ), nem alcançado a vitória graças à ra- be !>C proteger anteriormente com as precauções necessárias:' A rela-
zão. ao exercicio, á arte (lagos, ergon. techne) tanto nos jogos como na ção com O); desejos e com os prazeres é concebida como uma relação
al.;ão",," São quase as mesmas palavras que empregava por sua vez
Antífonte. o Sofista: "não é sábio (sõphrõn) aquele que não desejou (e~
pithumein) o feio e o mal nem deles se aproxímou: poís nesse caso não lIl1. Xf.NOPHON, Hfiron, Vil. ARISTOTE. tJhiqueá NfcQmaque, 111. 10, 8, I 117 b,
há nada sobre o qual tenha triunfado (kratein), e que lhe permita afir- X9, Encontra-$(: assim toda uma série de palavras como ageill, agei.'i/hai (conduzir. )ler
mar~se como virtuoso (koJmÍos)" ,~' Somente instaurando. em relação condu.lido); PLATON, Pro/agora~.355 a; R-épubliqut, IV,431-e; ARISTOTE, fithiqueá
Niwmoque, VIL 7, 3, I ISO a. Ko/azein (conter);Gorgia.l, 491 e, République, VIII. 559 b;
aos prazeres. uma atitude de combate, é que se pode cond\lzir~se mo- IX, 571 b, AlltiJe(lIeill (opor·$(:): Êtmque á Nicomaque, VII, 2, 4. I 146 a; VII, 7, 5 e 6, I
ralmente, Os aphrodiJía, como vimos, tor.JIam-se não somente possí: ISO b. Emphra$.leill (criar obslliculo): ANTIPHON, Fragm, 15. A1Ifecheill (resistir): tthi~
veis mas desejáveis através de umjogo de forças cuja orígem e finalida- que ó Nicomaque, VIL 7, 4 e 6, I ISO a e b,
de são naturais. mas cujas virtual idades. devido á sua energia própria, 'iO. Nrkall (vencer): PLATON, Phédrt'.238 c; Luis, I. 634 b; VIII, 634 b; ARISTOTE.
f.',hiqU(' li Nimmaqut, VII, 7, I 150 a; VIL 9, I ISI a; ANTIPHON, Fragm. 15. Kroldll
levam á revolta e ao excesso, Só se pode usar dessas forças com a mo- (dllminar): Pl.ATON, PrO/agoroo<, 353 c; Phédre, 237 e 238 a; République, IV, 431 a,c;
deral.;ão que convém quando se é capaz de opor-se a elas. de lhes resis- I."i', MO c; Xf.NOPHON, Méllwrof>l,.$, I, 2. 24: ANTlPHON. Fragm. I.~ e 16: ARIS·
TQT!', {rhiqw'ó ,"';"01"0'114", VIL 4 c, I 1411 a; VII, 5, I 149 a; JhUo.l"/hai (~er veneidll):
/'roWf!"'II.I, .l.n e; Phhlrt', 23.1 c; L"i.~, VIII. lI40 c; Ltttre, VII, 351 a; taque á Nicoma-
'I"". VILó, L I 149 b; VII, 7, 4, ] 150a; VIL 7, 6, I 150 b; ISOCRATE, li Nicoclh, W.
85. ARISTOTE.tlh/qwáNic~,III.II.eI2.1118b-1119aeVII.7.849.IISO 91 Xi,NOPHON, Ménmrable.<, I, K, 14.
a-I 152 a, '1~. Xi:NOPHON, femwmique, L 2.1.
86. PLATON. Leis. I. 647 c, 'l.l. !'I.ATON, Répllhhql/('. VIII, 560 b.
117. ANTIPHON. in STOOI!E. Floritege. V. 33, I! o fragmento nt 16 nas OnIvre$ ti'An~ 9--1. IhM .. IX, ~72 d-57.l b.
líphQII (e. U, F,), 95 IM/ .. IX. 57] d.

62 63
de batalha: e nec.essàrio se colocar, em relação a eles, na posição e no e por isso mesmo, mais fraco do que ele mesmo. Mas, segundo Platão,
papel do adversário, tanto no modelo do soldado que combate, como a expressão se sustenta porque supõe a distinção entre duas partes da
no modelo do lutador num concurso. Não esqueçamos que quando o alma, uma queé a melhor e a outra menos boa e que, partindo da vltó'
Ateniense das Leis se refere á necessidade de conter os três grandes ria ou da derrota de si sobre si, é do ponto de vista da primeira que se
apetites fundamentais, ele evoca "o apoio das M usas e dos deuses que pode situar·se: "Quando a parte que e naturalmente a melhor mantem
presidem os jogos Uh!;'oi agõnioi)" ."' A longa tradição do combate espi· a menos boa sob seu imperio, isso é marcado pela expressão 'ser mais
rituilL que deveri;.t assumir tantas formas diversas,jà estava claramen~ forte do que ele mesmo', e é um elogio, Quando, ao contrário, em
te articuhlda no pensamento grego clássico. conseqüência de uma educação ruim ou de certas convivências, a me~
Ihor parte, que se encontra enfraquecida, é vencida pelas forr.;a:o. da
parte má, então re diz do homem que está nesse estado, e nesse caso
2, Essa relação de combate com adversários é também uma rela~ trata~se de reprovação e censura, que ele é 'escravo de si mesmo e in~
ção agonistica consigo mesmo, A batalha a ser travada, a vitória a ser tem perante"'!' E que esse antagonismo de si para consigQ tenha que
conseguida e a derrota que se corre o risco de sofrer são processos e estruturar a atitude etlea do individuo, no que diz respeito aos desejos
acontecimentos que ocorrem de si para consigo. Os adversários que o e aos prazeres, e o que está claramente afirmado no inicio das Leis: a
mdividuo deve combater não estão simplesmente nele ou perto dele, razão dada para que haja.em cada Estado um comando e uma legisla~
Sào parte dele mesmo, Evidentemente, seria necessàrio levar em conta ção e que, mesmo na paz, todos os Estados estão em guerra uns com
as diversas elaborações teóricas que foram propostas sQbre essa dife~ os outros; do mesmo modo, é preciso entender que, se "na vida públi.
rcnciação entre a parte de si mesmo que deve combater e a ,que deve ca todo homem é para todo homem um inimigo", na vida privada "ca·
ser combatida: partes da alma que deveriam respeitar certa relação da um, fa(.'C a si próprio, é um inimigo de si mesmo"; e de todas as vi~
hierárquica entre si? Corpo e alma entendidos como duas realidades tórias possíveis de serem obtidas, "a primeira e a mais gloriosa" é a
de origem diferente, uma das quais deve procurar se liberar da outra? que se consegue "sobre si mesmo", ao passo que "o mais vergonhoso"
Forças que tendem para objetivos diferentes e que se opõem entre si dos fracassos, "o mais desprezível", "consiste em ser vencido por si
como os dois cavalos de uma equipagem? Mas, de qualquer modo, o mesmo".""
que se deve reter para definir o estilo geral dessa "ascética" é que o ad~
versá rio a ser combatido, por mais afastado que esteja, por sua nature~
za, daquilo que pode ser a alma, a razão ou a virtude, não representa 3, Uma tal atitude "polêmica" a respeito de si tende a um resu1ta~
uma outra potência, ontologicamente estranha, Um dos traços essen~ do que e naturalmente expresso em termos de .... tória - vitória muito
ciais da etica da carne serà o vinculo de princípio entre o movimento mais,bela, dizem as Leis, do que aquelas da palestra e dos concursos. I'"
da concupiscência, sob suas mais insidiosas e secretas formas, e a pre~ Acontece dessa vitoria ser caracterizada pela extirpação total ou pela
senÇa do Outro, com suas artimanhas e seu poder de ilusão. Na ética expulsão dos desejos. 101 Mas é muito mais freqüente que ela seja defini·
dos aphrodisia, a necessidade e a dificuldade do combate se deve, ao da pela instauração de um estado sólido e estável de dominação de si
contlário, a que ele se desenrola como uma justa consigo mesmo: lutar sobre si; a vivacidade dos desejos e dos prazeres não desaparece mas o
contra "os desejos e os prazeres" e se medir consigo. sujeito tem perante exerce sobre ela um domínio suficientemente com~
Na Repúhlica, Platão sublinha o quanto e simultaneamente estra~ pleto para nunca ser levado pela violência, A famosa provação de Só·
nha, um tanto rlsivel e desgastada uma expressão familiar, à qual ele crates, capaz de não se deixar seduzir por Alcebíades, não o apresenta
próprio recorre várias vezes:~l é a que consiste em dizer que alguem é "purificado" de todo e qualquer desejo para com os rapazes: ela torna
"mais forte" ou "mais fraco" do que ele mesmo (kreittõn, hettõn, visivel sua aptidão para resistir~lhe exatamente quando quer e da ma·
heautou). De fato, existe um paradoxo em dizer que alguem é mais for~
te do que ele mesmo,jà que isso implica que ele seja, ao mesmo tempo
9X. PI..ATON, IUpublique, IV, 431 a,
99. I'lATON, LOi", 1,626 d-e.
96. PLATON, l,oi;<, VI, 7:5.3 a-b. 100. Ihid.. VIII, MO c.
97. I'LATOt-<, PhUre, 232 a: Rfpublique, IV, 430 ç~ l.ois, I. 626 e, 633 e; VIII, 1:\40 c: 101. PtATON, Rfpuhlique, IX, 571 b. Na tthique à Nicomaqut' trata-se de "dar adeus
Lelll"l', VI, 337 ~, U<l pra.fer", comu os velhos de Tróia queriam fazer com Helena (11, 9, I 109 ti).

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neira que quer. Os e:rh.. lãos irão censurar uma tal provação pJrqll<: ela gundo os preceitos de seu pedagogo"). ,o. Mas ela é, sobretudo, relacio-
atesta a presença sustentada, para eles imoral. do desejo: I.nlretanto, nada a dois outros grandes esquemas. O da vida domestica: assim
muito tempo antes, Bion de Boristenes fazia pouco caso disso afirman- como a casa so pode estar em ordem se a hierarquia e a autoridade do
do que, se Sócrates sentia desejo por A!cebíades, era tolo em se lIbster, seu dono forem respeitadas, assim também o homem sera temperante
e que não tinha merito algum se não o sentisse.'''! Do mesmo modo, na na medida em que souber comandar seus desejos como comanda seus
analise de Aristóteles, a enkrareia, definida como domínio e vitória, serviçais. Inversamente, a intemperança pode ser lida como um inte-
supôc ;1 presen(a dos desejos, e tanto mais valor possui quanto mais rior mal gerido. Xenofonte, no início da Econômica - onde, justamen~
conseguir dominar aqueles que são violentos. "" Mas a própria úiphro- te, trata do papel de chefe da casa e da arte de governar a esposa, o pa~
SUl/C, que Arislóteles define, entretanto, como um estado de virtude. trimônio e os serviçais -, descreve a alma desordenada; e ao mesmo
n~() implica a supressão dos desejos mas sua dominação: ele a situa tempo um contra-exemplo do que deve ser uma casa bem dirigida e
numa posição intermediaria entre um desregramento (akolasia) no um perfil desses maus senhores que, incapazes de se governarem a si
qual ha um ;lhandono deliberado a esses prazeres, e uma insensibilida- próprios, levam seus patrimônios á ruína; na alma do homem intem-
de (allaislhe.~ia), alias ex.tremamente rara, fia qual não se experimenta- perante, senhores "maus", "intratáveis" - trata-se da voracidade, da
r;i pra.r.er algum; o tem perante não e aquele que não tem mais desejos, embriaguez, da lubricidade e da ambição - reduzem á escravidão
mas ;lquele: que deseja "com moderação, não mais do que convem, aquele que deveria comandar e, após tê-lo explorado na sua juventude,
nem quando não convém"."" preparam-lhe uma velhice miserável. 1m Recorre~se também ao modelo
A virtude na ordem dos prazeres não e concebida como um esta~ da vida civica para definir a atitude de temperança. A assimilação dos
do de integridade mas como uma relação de dominação, uma relação desejos a um povo inferior que se agita e que sempre está procurando
de domínio: é o que mostram os termos que são utilizados - seja por se revoltar se não se lhes mantem a rédea"ol é um tema conhecido em
Platão, Xenofonte, Diógenes, Antifonte ou Aristóteles - para definir a Platão; entretanto, a estrita correlação entre indivíduo e cidade, que
temperança: "dominar os desejos e os prazeres", "exercer poder sobre sustenta a reflexão da República, permite desenvolver inteiramente o
eles", "comanda-los" (kratein, archein). Re!ata~se de Aristipo, o qual, modelo "çjvico" da temperança e de seu contrario. Nele a ética dos
todavia, possuia uma teoria sobre o prazer, bem diferente da de Sócra~ prazeres e da mesma ordem que a estrutura política: "Se o indivíduo se
tes, o seguinte aforismo que revela uma concepção geral da temperan- assemelha a cidade, não é uma necessidade que se passem nele as mes-
ça: "O melhor é dominar os prazeres sem se deixar vencer por eles; e mas coisas?"; e o homem será intemperante quando fracassa a estrutu~
não o fato de não recorrer a eles" (to kratein kai me hettasrhai hedonõn ta de poder, a arche que lhe permite vencer, dominar (kratein) as po-
ariston, ou to me chresthai)".'Ol Em outras palavras, para se constituir tências inferiores; então, "uma servidão e uma baixeza extrema" to~
como sujeito virtuoso e temperante no uso de seUS prazeres, o indiví- marão sua alma; e as partes "mais honestas" dessa alma cairão na es~
duo deve instaurar uma relação de si para consigo que é do tipo "do~ cravidão e "uma minoria, formada pela parte pior e mais furiosa, nela
minação-obediência", "comando~submissão", "domínio-docilidade" comandara como senhora e mestra".I"" No final do penúltimo livro da
(e não, como será o caso na espiritualidade cristã, uma relação do ti~o República, após construir o modelo da cidade, Platão reconhece que o
"elucidação~renúncia", "decifração-purificação"). t o que se podena filósofo terá muito pouca oportunidade de encontrar nesse mundo Es.-
chamar de estrutura "heautocrática" do sujeito na prática moral dos tados tão perfeitos e de neles exercer a sua atividade; entretanto, acres-
prazeres. centa ele, o "paradigma" da cidade se encontra no céu para quem qui~
ser contemplá~lo; e o filósofo, olhando~o, poderá "dirigir seu governo
4. Essa forma heautocrática é desenvolvida seguindo varios mo- particular" (heaulon katoikizein): "Pouco importa que esse Estado es-
delos: assim em Platão, o da equipagem com seu cocheiro e, em Aris~
tóteles, o da criança com o adulto (nossa faculdade de desejar deve
conformar~se ás prescrições da razão "como a criança deve viver se-
a
106. ARISTOTE, lthique Nicomaque, VII, 2, I 119 b. Cf. lambtm PLATON, Ri.
publique, IX, 590 e.
107. Xl'::NOPHON, lcoffOmique, L 22-23.
102. DIOO~NE LAERCE, Vie Ihs philosophes, IV, 7, 49.
tO&. PLATON, Lois, 111, 689 a-b: "A parle que sofre e que goza i: na alma o que o
10J. ARISTOTE, lthique á Nicomaque, VII, 2. t 146 a.
104. Ibid., til, 11, I 119 a.
povo e a mutlidão são na cidade".
109. PlATON, Ripublilfue, tX, 577 d.
105. DIOGtNE LAERCE, V/e des philosophes, lI, 8, 75.

66 67
teJa realizado em alguma parte ou que esteja ainda por se realizar: é
desse Estado e de nenhum outro que ele seguirá as leis".I1° A virtude politica". '" E ele associará essa exigência do exercício á necessidade de
individual tem que se estruturar como uma cidade, se ocupar de si: a epimeleia heauEOu, a aplicação consigo que e uma
condição previa para poder se ocupar com os outros e dirigi~los, com-
porta não somente a necessidade de conhecer (de conhecer o que se ig~
5. Para uma luta dessa natureza, os exerclcios são necessârios. A nora, de conhecer que se é ignorante, de conhecer o que se e), como
metâfora da justa, do combate esportivo ou da batalha não serve sim- tambem a necessidade de se aplicar efetivamente a si e de se exercer e
plesmente para designar a natureza da relação com os desejos e com os se transformar. ," A doutrina e a prática dos cinicos atribuem, igual-
prazeres e a sua força sempre pronta à sedição e à revolta; ela se refere mente, uma grande importância á askisis, a tal ponto que a vida cínica
também á preparação que permite sustentar esse confronto. t Platão pode parecer inteiramente como uma espécie de exerclcio permanente.
quem o diz: não é possível opor-se a eles, nem vencê-los quando se é Diógenes achava que se devia exercitar ao mesmo tempo o corpo e a
agumna.flos. 111 O exercicio não é menos indispensável nessa ordem de alma; cada um dos dois exercícios "é impotente sem o outro, a boa
coisas do que quando se trata de adqu.irir qualquer outra técnica: a saude e a força não são menos úteis que o resto porque o que concerne
mathesis apenas não seria suficiente se não se apoiasse num exercício, ao corpo concerne tumbém â alma". Esse duplo exercicio visa ao mes-
numa askesis. Temos aí uma das grandes lições socráticas; ela não des~ mo tempo permitir enfrentar sem sofrer as privações quando elas se
mente o princípio de que não se poderia cometer o mal voluntariamen~ apresentam, e reduzir permanentemente os prazeres á exclusiva satis~
te e conhecendo~o; ela confere a esse saber uma fonna que não se re.- fação elementar das necessidades. O exercicio e ao mesmo tempo redu-
duz unicamente ao conhecimento de um princípio. Xenofonte, a pro~ ção á natureza, vitoria sobre si e economia natural de uma vida de ver~
pósito das acusaçõ!!s lançadas contra Sócrates, toma cuidado em dis- dadeiras satisfações: "Não se pode fazer nada na vida - dizia Diógenes
tinguir seu ensino daquele dos filósofos - ou dos "pretensos filósofos" - sem exercido e o exercício pe,mite aos homens tudo vencer (pan ek-
- para quem, uma vez que o homem tenha aprendido o que é ser justo nikêsai) . .. Deixando de lado os sofrimentos fúteis que nós nos damos
ou tem perante (,sõphrõn) não pode tornar-se injusto e devasso. Como e exercitando-nos em conformidade com a natureza, poderíamos e de-
Sócrates, Xenofonte também se opõe a essa teoria: se não se exerce o veríamos viver feli7..es ... O próprio desprezo do prazer nos daria, se
corpo não se pode cumprir as funções do corpo (ta tou somalOS erga); nos exercitássemos, muita satisfação. Se aqueles que adquiriram o há-
do mesmo modo, se não se exerce a alma não se pode cumprir as fun- bito de viver nos prazeres sofrem quando lhes e necessârio mudar de
ções da alma: fica-se, então, incapaz de "fazer o que convém e abster- vida, aqueles que se exercitaram em suportar as coisas penosas despre~
se do que e preciso evitar". ".' É por isso que Xenofonte não quer que se zam sem- sofrimento os prazeres (hêdio autõn tõn hidonõn kalaphronou~
tome Sócrates por responsável pela má conduta de Alcebíades: este si)".'I'
não foi vitima do ensinamento recebido mas, após todos os sucessos A importâncía do exercício não será mais esquecida na tradição
junto aos homens e mulheres, e ao povo inteiro que o levou aos pínca~ filosófica ulterior. E tera mesmo uma amplidão con ..iderável: multipli-
ros, ele procedeu como muitos atletas: uma vez obtida a vitória acredi~ car~se~ão os exercícios, definir-se~ão os procedimentos, os objetivos, as
tou que podia "negligenciar o exercicio (amelein les aske,seõs)",''' variantes possiveis; sua eficâcia será discutida; a askesis, sob diferentes
Platão retomará freqUentemente esse princípio socrático da aske~ formas (exercicios, meditação, provas de pensamento, exame de cons-
sis. Ele evocará Sócrates, mostrando a A1cebíades ou a Cálicles que ciência, controle das representações) tornar-se~á matéria de ensino e
eles não poderiam pretender ocupar~se da cidade e governar os outros constituirâ um dos instrumentos essenciais da direção de almas. Em
j;C não aprendessem primeiro o que é necessário, e se não se exercitas- compensação, encontra~se nos textos da época clássica poucos deta~
sem para isso: "Quando juntos tivermos praticado suficíentemente lhes sobre a forma concreta que a a.ske,sis moral pode tomar. Sem du-
esse exercicio (askisames), então poderemos, se quisermos. abordar a vida, a tradição pitagorica reconhecia numerosos exercícios: regime
alimentar, inventârios das faltas no fim do dia, ou ainda prâticas de

110. Ih,,! .. IX. 592 b.


IH PI..ATON. Loj,'. I. 647 d.
1I:. X~NOPl-lON. M,fnwfuhlt'.<, I, 2. 19. 114. PLAtON. (;orgiUJ, 527 d.
I I ,1, Ihid .. !. 2. 24. ! I S.
Sobre a ligação entre o ellerddo e o cuidado de si. cf. Alcibiade, 123 d.
116. DIOOtNE L(\ERCE, Vil' des phiJosophe~, VI, 2, 70.

68
69
Si

meditação que devem preceder o sono de maneira a conjurar os maus ser <lceitos e organizados como especles de provas de temperança.
sonhos e favoreccr as visões que podem vir dos deuses: Platão, alias, Aristóteles o disse numa frase que mostra a circularidade entre a
fal uma referência precisa a essas preparações espirituais da noite
numa passagem da República, onde evoca o perigo dos desejos sempre
aprendizagem moral e a virtude que se aprende: :'r:
se afastando do~
pral..eres que. se pode tornar~se tem perante; m<ls e quan~? '~le cheg'd a
prontos para invadir a alma, ," Entretanto, fora dessas práticas pitagó~ temperança que melhor se pode afa~tar~se dos prazeres .
ricas, não se encontra - tanto em Xenofonte, Platão, Diógenes, como Quanto a outra razão para explicar por que não existe uma ~r~e
em Aristóteles - especificação da ask'êsü como exercício de continên- específica do exercicio da alm<l, ela se deve ao fato de que o dommlO
cia, Existem, sem duvida, duas razões para isso, A primeira é que o de si e o dominio dos outros são considerados como tendo a mesm,a
exerdcio é concebido como a própria pratica daquilo para o que é pre- forma: ja que se deve governar a si me\>mo como se governa a própria
ciso se preparar; não há especificidade do exercício em relação ao ob- casa e d<l maneira como se de~empenha o próprio papel na cidade, se-
jetivo a atingir: através da preparação cria~se o hábito da conduta que gue~se que a formação das virtudes pessoais e part~cularmente ~<I
será preciso manter daí em diante,"! Assim Xenofonte louvava a edu- en"rateia não sera diferente, por natureza, d<l formaç<lo que permite
cação espartana que ensina as crianças a Importar a fome racionando sobressair-se sobre os outros cidadãos e dirigi-los. A mesma aprendi-
seus alimentos, a suportar o frio dando~lhes uma única roupa, a supor- zagem deve torn<lr capaz. de virtu~e e. de poder. A,s~egurar a direção de
tar o sofrimento expondo-as aos ca\>tigos fisicos, assim como lhes ensi- si mesmo, exercer a geslão da propna casa, partlc!par do governo da
na a praticar a cOfltinência impondo~lhes a mais estrita modé\>tia de cid;lde S;H) Ires prâticas do mesmo tipo. A EI'III/âmica de Xenofonte
postura (andar na\> ruas em silêncio, com os olhos baixos e as mãos mostra bem, entre essas três artes, a continuidade, o isomorfismo, as~
sob o manto), ". Assim também Platão pretende submeter os jovens a sim como a sucessão cronológica de sua instauração na existência de
provas de coragem que consistiriam em expô-los a perigos fictícios; se- um indivíduo. O jovem Critóbulo afirma que dai para diant~ ele é ca~
ria um meio de habituá-los, de aperfeiçoa~los, e ao mesmo tempo de paz de se dominar e de não mais se deixar ~evar por seus,de~eJo~ e pra-
aferir seu valor: do mesmo modo que se coloca "os potros no barulho zeres (e Sócrates lembra*lhe que estes sao como serviçaiS sobre os
e no alarido par<l ver se eles são medrosos", conviria "conduzir nossos quais convém manter a autoridade); portanto, e cheg~do~ o momento
guerreiros quando jovens em meio a objetos assustadores e depois de- para ele de se casar e de assegurar com sua esposa a dlreçao da casa; e
volve-los aos prazeres"; dessa forma ter-se-ia um meio de põ-los á pro- esse governo domestico - entendido como gestão de ~m interior e e~­
va "com mais cuidados do que quando se põe á prova o ouro pelo fo~ ploração de um dominio, manutenção ou desenvolvlme~to,do patn~
go, para saber se eles resistem ás seduções, se guardam a decência em mónio _ Xenofonte faz notar várias vele~ que ele COnstitUi, quando
qualquer circunstância, se são os fiéis guardiães de si mesmos e da mú- acontece de a ele dedicar-se como convém, uma notavel preparação
~ica cujas lições receberam",'1U Nas Leis ele chega até a sonhar com fiska e moral para quem quiser exercer seus deveres civicos, firmar sua
uma droga que ainda não foi inventada: ela faria qualquer coisa pare- autoridade pública, e assumir tarefas de comando. De modo g~ral,
cer ilssustadora aos olhos daquele que a tivesse absorvido; e seria tudo o que servir para a educação politica do homem enquanto Cida-
possive1 servir-se dela a fim de se exercitar na coragem: tanto só, se se dão lhe servirâ lambém para exercitar <I virtude e inversamente: os
pensar que "não se deve deixar-se ver antes de estar bem treinado", dois vão juntos, A askesis moral fal. parte da paideia do homem livre
quanto em grupo, e mesmo em publico, "com numerosos convivas" que tem um papel a desempenh<lr na cid~de e com rel.aç,ão, aos outros:
para mostrar que se é c<lpaz de dominar "a inevitável perturbação da ela não tem que utilizar procedimentos diferentes; ~ glnas~!~a e a.s pro-
bebida ";,," e sob esse modelo artificial e ideal que os banquetes podem V<lS de resistência, a musica e a aprendizagem dos ntmos VlrlS e vigoro-
sos, a pratica da caça e das armas, o cuidado em se apresentar. bem em
púolico, ;t ;!qUi\H;iío do (/idos que fUL tom que se respe~le a ,SI mesmll
atraves do respeito que se tem para com o outro - tudo ISSO e, ao mes-
117, PlATON, Rêpuhliqu/', IX, 571 ç - 572 b. mo tempo, formação do homem que será ütil para a cidade, e exercicio
! I~. Cf. Pl.A TON, Lois, I. 64., b: "Aquele que quiser se sobressair um dia no que quer moral daquele que quer se dominar a si mesmo. Ao evocar as provas
que sela deve se aplkar (mrletan) nesse objeto desde a Infância, ençonlrando, ao mesmo
tempo, seu divertimento c sua ocupação em ludo que se relaciona com ele"
119, XI':NOPHON, «épubliqur do Laddémonirn.<, 2 e 3.
120. PlATON, Rêpuhliqur, 111. 413 d esq.
121. PLATON, Loi,", 1. 647 c - 64H c. I?? ARI'\TOn·. {lhl<{II" Ú \1"illI<lqu~, 11. 2. 1 104~,

70 71
de medo artificial que ele recomenda, Platão vê nelas um meio para
desla.:ar, dentre os jovens, aqueles que ser.ão mais capazes de ser
"uteis a eles próprios e ao Estado"; são aqueles que serão recrutados
para governar: "Estabeleceremos como chefe e guardião da cidade
aquele que, tendo sofrido todas as provas sucessivas da infância, daju*
ventude e da idade madura, saia intacto (akeraros) de todas elas".li.' E
quando nas Leis o Ateniense dâ a definição daquilo que ele entende
por paideia, ele a caracteriza como aquilo que forma "desde a infância
para a virtude" e que inspira "o desejo apaixonado de tornar-se um d- 4
dadão realizado, sabendo comandar e obedecer segundo a justiça" .1~'
Pode-se dizer, numa palavra, que o tema de uma askesi.s, como
preparação prática indispensável para que o indivíduo se constitua
como sujeito mora!, e importante - e até mesmo insistente - no pensa- LIBERDADE E VERDADE
mento grego clássico e, em todo caso, na tradiçâo proveniente de Só-
crates. No entanto, essa "ascética" não e organizada nem refletida
como um corpus de práticas singulares que constituiriam uma espécie
de .arte especifica da alma, com suas técnicas, seus procedimentos, suas
receitas. Por um lado, ela nâo se distingue da própria prática da virtu-
de: ela é sua repetição antedpadora. Por outro lado, ela se serve do~
mesmos exercicios que os que formam o cidadão: o mestre de ~i e dos !. "Dize*me. Eutidemo. acreditas que a liberdade seja um bem
outros se forma ao mesmo tempo. Essa ascética logo começará a ad- nobre e magnífico, quer se trate de um particular ou de um Estado?-
quirir sua independência ou, pelo menos, um·a autonomia pardal e re· t: o ":Iais bel~ que é possível ter, responde Eutidemo. - Mas aquele que
lativu. E isso de duas maneiras; ocorrerá um descolamento entre os se deixa dominar pelos prazeres do corpo e que, em seguida, torna-se
exercicios que permitem governar-se e a aprendizagem do que é neces~ incapaz de praticar o bem. tu o consideras um homem livre? - De jeito
sârio para governar os outros; tambem haverâ descolamento entre os nenhul;'. diz ele."').;
exercidos em sua forma própria e a virtude, a moderação, a temperan- A xiiphrosune, o estado que se tende a alcançar pelo exercício do
ça, á qual eles servem de preparação: seus procedimentos (provas. exa- dominio e pelo comedimento na prática dos prazeres é caracterizada
mes. controle de si) tenderão a constituir uma técnica particular. mais como uma liberdade. Embora seja tão importante governar desejos e
complexa do que a simples repetição da conduta moral para a qual prazeres. e apesar do uso que se faz deles constituir um alvo moral de
eles tendem. Ver-se-a. então. a arte de si assumir sua própria figura em tal preço. não é para conservar ou reencontrar uma inocência de oriw
relação à paideia que forma seu contexto e em relação a conduta moral gem; não é. em geral - salvo. evidentemente. na tradição pitagórica _
que lhe serve de objetivo. Mas. para o pensamento grego da época para conservar uma pureza;'" é para ser livre e poder permanecê-lo.
classica, a "ascetica" que permite constituir-se como sujeito moral faz Poder-se-ia ver nisso, s6-ainda fosse necessJtrio. a prova de que a liber-
parte integralmente, até em sua própria forma. do exercicio de uma dade, no pem;amento grego. não ê simplesmente refletida como a in de·
vida virtuosa que ê também a vida do homem "livre" no sentido ple-
no, positivo e politico do termo.

125. XtNOPHON, MimorableJ. IV, 5, 2-3.


126. Não se lrata, evidentemente, de dizer que o tema da purua esteve ausente da mo-
rai grega dos prazeres na época dâssica: ele ocupou um lugar considerável nos pilagóri·
C05: e foi im.fJOnanle para PI~tão. Entretanto, parece que, de modo gera!, no que concer-
ne aos desejOS e prateres fiSIOOS, o que eslava em jogo na conduta moral foi pensado
sobretudo como ..\!..ma dominação. A ascensão e o desenvolvimento de uma êtica da pu-
1'1 1'1 ..-\"1"01". R<'puh(iqw'. 111. 41., t:.
reza. com as prâlica~ de $i que Ibe são correlativas, serâ um fenômeno histórico de longo
124 1'1 ATON. I.m'. I. (,4.'~. alcance.

72 7J
pendência de toda a cidade. ao passo que os cidadãos seriam por si vos ... - E qual e para ti a pior servidão? - Para mim, diz ele, é aquela
mesmos elementos sem individualidade nem interioridade. A liberda- em que se tem os piores senhores. - Então, a pior das servidões é aque~
de que convêm instaurar e preservar é evidentemente aquela dos cida- la dos intemperantes ... - Se te compreendo bem, Sócrates, pretendes
dàos no seu conjunto. mas é tambem. para cada um. uma certa forma que o homem subjugado aos prazeres dos sentidos nada tem em co~
de re\~H.:ih) do individuo para consigo. E claro que a constituição da ci- mum com qualquer virtude? - Sim, Eutidemo, diz Sócrates: pois, em
dade, o caráter das leis. as formas da educação. a maneira pela qual os que o homem intemperante supera o mais estúpido dos animais?"!.'"
chefes se ,ondULem são fatores importantes para o comportamento No entanto, essa liberdade é mais do que uma não--escravidão,
dos cidadãos; mas, em 'troca, a liberdade dos individuos, entendida mais do qlle uma liberação qlle tornaria o indivíduo independente de
como o domínio que eles são capazes de exercer sobre si mesmos é in- qualquer coerção exterior ou interior; na sua forma plena e positiva ela
dispensavel a todo o Estado. Escutemos Aristóteles na Politica: "Uma é poder que se exerce sobre si, no poder que se exerce sobre os outros.
cidade é virtuosa pelo fato de que os cidadãos que participam em seu Com efeito, aqllele qlle, por status, encontra~se situado sob a autorida-
governo são eles próprios virtuosos; ora, em nosso Estado todos os ci~ de dos outros não tem que esperar de si mesmo o principio de sua tem~
dad\ios participam do governo. O ponto a ser considerado e o seguin- perança; basta-lhe obedecer às ordens e às prescrições que se lhe dá. t
te: de que maneira um homem se torna virtuoso? Pois mesmo no ca:.o o que explica Platão a propósito do artesão: o que existe de degradante
de ~cr po!'.sivel a todo o corpo dos cidadàos ser virtuoso sem que ne~ nele é que a melhor parte de Slla alma "é tão fraca por natureza que ele
nhum dentre eles o seja individualmente, e a virtude individllal. no en~ não pode comandar as suas feras interiores, que ele as deleita, não po~
lanto. que e necessârio preferir, já que a virtude de todo o corpo social dendo aprender outra coisa a não ser bajulá~las"; ora, o que fazer se
segue logicamente a virtude de cada. cidadão". ". A atitude do indiv.i~ quisermos que esse homem seja regido por um princípio racional
duo &.:111 rdação a si mesmo, a maneira pela qual ele garante sua pro~ como aqllele "qlle governa o homem superior?" O único meio é colo-
pm liherdad&.: no que diz respeito ao:. seus desej.os,.a forma d~ ~obera. cá~lo sob a autoridade e o poder desse homem superior: "Que ele se
!lia qu&.: ele exerce sobre si, são elementos tonstltllUvOS da feliCidade e faça escravo daquele em qllem o elemento divino comanda"."; Em
da boa ordem da cidade. troca, quem deve comandar os outros é aquele que deve ser capaz de
Essa liberdade individllal. no entanto, não deve ser compreendi~ exercer uma autoridade perfeita sobre si mesmo: ao mesmo tempo
da Coomo a independência de um livre arbítrio. O sell vis--á~vis, a polari~ porque, em sua posição e com o poder que ele exer<.::e, lhe seria facil sa~
dade á qual ela se opõe nào e llm determinismo natural nem a vontade tisfazer todos os seus desejos e, portanto, entregar-se a eles, como tam~
de llnla onipoténcia: e llma escravidão - e a escI~vidào de si para con+ bem porque as desordens de sua conduta têm efeitos sobre todos e na
sigo. Ser livre em relação aos prazeres ~ n.ã? estar a seu se~viço, e n.ão vida coletiva da cidade. Para não ser excessivo e não fazer violência,
ser sell escravo. O perigo que os aphrodwa trazem consigo é mlllto para escapar a dupla constituída pela autoridade tirânica (sobre os ou-
mais a servidão do qlle a mácula. Diógenes dizia que os servos eram tros) e pela alma tiranizada (por seus próprios desejos), o exercido do
escravos de seus senhores e que a gente imoral,o era de seus desejos poder político exigirá como seu próprio princípio de regulação inter-
\./01/" dI' phaulouJ tais l!f'irhulI/iai.~ douleúein). ,:. Sócrates, no início da na o poder sobre si. A temperança entendida como um dos aspectos
Econômica, .:" advertia Critóbulo contra essa servidão, assim como de soberania sobre si é, não menos do que a justiça, a coragem ou a
também advertia Eutidemo num diálogo dos Memoráveis que é um prudência, uma virtude qualificadora daquele que tem a exercer domí-
hino á temperança considerada como lib~rdade: "Acreditas, sem dúvi~ nio sobre os outros. O mais real dos homens é rei de si mesmo (ba.fili~
da, que praticar l) bem é ser livre, e que ter senhores que impedem de kos, basileuõn heautou).1'1
fazê-lo é ser escrav,l? _ É este, verdadeiramente, o meu pensamento, Dai a imporlância atribuída, na moral dos prazeres, a duas altas
diz ele ... l'(lftanto, é verdade para ti que os intemperantes são escra- figuras da exemplificação moral. De um lado, o mau tirano: ele é inca~
paz de dominar suas próprias paixões; e, por causa disso, ele se encon-
F
127. ARISToTE. Politique. VI!. 14. 1 332;;.
US. DlOGt:NE LAERCE, Vie MS philosophe$, VI, 2, 66. A esçravidão em relação aos
pnw:res i: uma upressiio muito freqüente. XENOPHON. fc(momique. I. 22: Mi'm": DO. Id .. Memorub!eJ. IV. 5, 2-1!.
ruM", IV. 5. PLA TON. Rfpubliqut.', IX, S77 d. U! PLATON, Ri'puhlique, IX, 590 c.
129. XI':NOPIfOl'.. {umomique. I. 1,17 esq. 1.11. IbM .. IX. SW c.

74 75
Ira sempre inclinado a abusar de seu próprio poder e a fazer violência fende contra os avanços daquele que tem todo o poder sobre ela; a sal-
(huhri::ein) sobre seus suditos; ele introduz a perturbação em seu Esta- vaguarda da pureza e da virgindade, a fidelidade aos compromissos e
do e assi~te a revolta dos cidadãos contra ele; os abusos sexuais do dés- aos votos constituirão, então, a prova típica da virtude. Essa figura
pota, quando ele se põe a desonrar os filhos - meninos ou meninas - não é, certamente, desconhecida na Antigüidade; mas parece clara-
dos cidadãos, são freqüentemente invocados como motivo inicial dos mente que o homem, o chefe, o senhor capaz de controlar seu próprio
complõs para derrubar as tiranias e restabelecer a liberdade: assim foi apetite no momentO em que seu poder sobre outrem lhe fornece a pos-
com Pisistnitides em Atenas, Periandro em Ambracia e outros mai~ sibilidade de usa-lo li vontade, representa melhor, para o pensamento
que Aristóteles menciona no V livro da Política.'}) Face a figura do ti- grego, um modelo daquilo que é, na sua própria natureza, a virtude de
rano desenha-se a imagem positiva do chefe que é capaz de exercer um temperança.
estrito poder sobre si na autoridade que exerce sobre os outros; ~u
domínio de si modera o seu domínio sobre outrem. É testemunho o
Ciro de Xenofonte que poderia mais do que qualquer outro abusar do 2. O que é afirmado através dessa concepção do dominio como li-
seu poder e que, contudo, em meio á sua própria corte, manifestaya o berdade ativa é o caráter "viril" da temperança. Assim como na casa
dominio de seus sentimentos: "Assim, um tal comportamento cnava cabe ao homem comandar, assim como na cidade não é aos escravos,
na corte, entre o~ inferiores, um sentimento exato de sua posição, que ás criança~ nem ás mulheres que compete exercer o poder, mas aos ho-
os fazia ceder aos superiores e, deles entre si, um exato sentimento de mens e somente a eles, do mesmo modo cada um deve pôr em obra
respeito e cortesia".Il' Assim também, quando o próprio Nicocles de sobre si mesmo suas qualidades de homem. O dominio de si é uma ma-
hócrates elogia a sua temperança e a sua fidelidade conjugal, ele se re- neira de ser homem em relação a si próprio, isto é, comandar o que
fere as exigências de seu status politico: como pretender obter a obe- a
deve ser comandado, obrigar obediência o que não é capaz de se diri-
.diência dos outros se não pudesse assegurar a submissão de seus pró- gir l'or si só, impor os princípios da razão ao que desses princípios é
prios desejos?'" É em termos de prudência que Aristóteles recomen- desprovido; em suma, é uma maneira de ser ativo em relação ao que,
dará, ao soberano absoluto, não se entregar a qualquer desregramen- por natureza, é passivo e que deve permanecê-lo. Nessa moral de ho-
to; ele deve, efetivamente, ter em conta. o apreço dos homens de be~ mens feita para os homens, a elaboração de si como sujeito moral con-
por sua honra; por essa razão seria imprudente se os expusesse á humI- siste em instaurar de si para consigo uma estrutura de virilidade: é sen-
lhação dos castigos corporais; pela mesma razão lhe seria necessário do homem em relação a si que se poderá controlar e dominar a ativi-
abster-se "das ofensas ao pudor da juventude". "Que suas relações dade de homem que se exerce face aos outros na prática sexual. Na
íntima~ com ajuventude sejam ditadas por razões de ordem sentimen- justa agonística consigo mesmo e na luta para dominar os desejos, é
taL e não pe!a idéia de.que tudo lhe é permitido e que; de maneira ge- necessário encaminhar~se para o ponto em que a relação consigo tor-
raL ele resgate tudo o que pareça perda de consideração com honras na-se isomorfa á relação de dominação, de hierarquia e de autoridade
maiores. "I~ E podemos lembrar que era isso o que se encontrava em que, na condição de homem, e de homem livre, pretende-se estabelecer
jogo no debate entre Sócrates e Cálicles: deve-se considerar aqueles com os subordinados; sob essa condição de "virilidade ética" é que se
que governam os outros em relação a eles próprios como "governantes poderá, segundo um modelo de "virilidade social", estabelecer a medi-
ou governados (archontas i archomenous)" - sendo esse governo de si da que convém ao exercício da "virilidade sexual". No uso desses pra-
defmido pelo fato de ser sõphrõn e enkrales. isto é, de "comandar em si zeres de macho e necessário ser viril consigo como se é masculino no
próprio os prazeres e os desejos ''1))1 papel social. A temperança é, no sentido pleno, uma virtude de ho-
Chegará o dia em que o paradigma utilizado mais freqüentemente mem.
para ilustrar a virtude sexual será o da mulher ou da jovem que se de- O que não quer dizer, evidentemente, que as mulheres não te-
nham que ser temperantes, que elas nãÕ sejam capazes de enkrateia ou
que elas ignorem a virtude de sõphrQsune. Entretanto, essa virtude ne-
las é Sempre referida, de certa forma, á virilidade. Referência institu-
133. ARISTOTE, Poliliquf', V, lO. cional, visto que é seu status de dependência em relação á família e ao
134. xtNOPHON. Cyrl)pidif', VI!!. I, 30·34. marido, e sua função procriadora possibilitando a permanência do no-
135. ISOCRATE, Nicl)c!h, 37-39.
136. ARISTOTE, Poliliquf'. V, li, I 315 a. me, a transmissão dos bens e a sobrevivência da cidade, que lhes im-
137. PLATON, Gorg;aJ, 491 d. põem a temperança. Mas, também, referência estrutura!, já que uma

76 77
-
mulher, para poder ser temperante, deve estabelecer consigo uma rela· ç.ão a ele próprio, ainda mais essencialmente do que em relação aos
ção de superioridade e de dominação que é em si mesma uma relação outros. Numa experiência da sexualidade como a nossa, onde uma ce-
de tipo viril. t significativo que Sócrates, na Econômica de Xenofonte, sura fundamental opõe o masculino e o feminino, a feminidade do bo~
apos ter ouvido Isômaco vangloriar·se dos méritos da esposa que ele mem é percebida na transgressão efetiva ou virtual de seu papel sexual.
próprio formou, declara (não sem antes invocar a deusa da matrimo- Ninguém será tentado a dizer de um homem, cujo amor ás mulheres o
nialidade austera): "Por Hera! Eis que se revela em tua mulher uma leva ao excesso, que ele seja efeminado - a não ser operando sobre o
alma bem viril (andrike dianoia)", Ao que Isômaco, para introduzir a seu desejo todo um trabalho de decifração e desentocando "a homos~
lição de postura sem coquetismo que tinha dado á sua esposa, acres~ sexualidade latente" que habita c;:m segredo sua relação instável e mul~
centa a seguinte replica onde se lêem os dois elementos essenciais dessa tiplicada com as mulheres, Ao contrario, para os gregos, é a oposição
virilidade virtuosa da mulher - força de espírito própria e dependência entre atividade e passividade que é essencial e marca tanto o domínio
em relação a" marido: "Quero ainda te citar outros traços de sua força dos comportamentos sexuais como o das atitudes morais; vê·se, então,
de espírito (megaJophrõn) e mostrar~te com que prontidão ela me obe~ por que um homem pode preferir os amores masculinos sem que nin-
decia após ouvir meus conselhos",!l3 guém sonhe em suspeitá-lo de feminidade, desde que ele seja ativo na
Como se sabe, Aristóteles se opôs explicitamente á tese socrática relação sexual e ativo no domínio de si; em troca, um homem que não
de uma unidade essencial da virtude e, portanto, de uma identidade da ê suficientemente dono de seus prazeres - pouco importa a escolha de
virtude nos homens e nas mulheres, Contudo, ete não descreve virtu· objeto que faça - é considerado como "feminino", A linha de demar-
des I'eminin ..s que seriam estritamente femininas; as virtudes que ele cação entre um homem viril e um homem efeminado não coincide com
reconhece nas mulheres se definem em referência a uma virtude essen~ a nossa oposição entre hétero e homossexualidade; ela também não se
cial e que encontra sua forma plena e acabada no homem, E ele vê a reduz á oposição entre homossexualidade ativa e passiva, Ela marca a
ralão disso no fato da relação entre homem e mulher ser "política": é diferença de atitude em relação aos prazeres; e os signos tradicionais
a relação entre um governo e um governado, r:. necessário para a boa dessa feminidade - preguiça, indolência, recusa das atividades um tan~
ordem da relação que ambos participem das mesmas virtudes; porém, to rudes do esporte, gosto pelos perfumes e pelos adornos, lassidão. , ,
cada um participará á sua maneira, Aquele que comanda - o homem, (maJaMa) - não designarão forçosamente aquele que será chamado no
portanto - "possui a virtude ética em sua plenitude'" enquanto que Século XIX "o invertido", mas aquele que se deixa levar pelos praze.-
para os governados - e para a mulher - basta ter "o quanto de virtude res queo atraem: ele é submisso aos próprios apetites assim como aos
apropriado a cada um", Portanto, a temperança e a coragem são no dos outros, Face a um rapaz muito afetado Diógenes se zanga; mas ele
homem virtude plena e completa "de comando"; quanto á temperança considera que esse porte feminino pode trair tanto o seu gosto pelas
ou á coragem da mulher, são virtudes "de subordinação", o que signi~ mulheres como pelos homens. ,,,,, O que constitui, para os gregos, a ne-
fica que elas encontram no homem, ao mesmo tempo, seu modelo per· gatividade êtica por excelência, não é, evidentemente, amar os dois se·
feito e acabado e o seu principio de funcionamento,')9 xos; também não o é preferir seu próprio sexo ao outro; é ser passivo
Outra conseqüência, simêtrica e inversa da precedente, decorre do em relaç,io aos prazeres.
fato de ter a temperança uma estrutura essencialmente viril: é que a in~
temperança implica uma passividade que a aparenta á feminidade, Ser
intemperante, com efeito, é encontrar·se num estado de não~ 3. Essa liberdade· poder que caracteriza o modo de ser do homem
resistência e em posição de fraqueza e de submissão em relação á força tem perante não pode conceber~se sem uma relação com a verdade.
dos prazeres; é ser incapaz dessa atitude de virilidade consigo que per~ Dominar os seus próprios prazeres e submetê-los ao fogos f0rmam
mite ser mais forte do que si próprio, Nesse sentido, o homem de pra~ uma unica e mesma coisa: o temperante, diL Ar.i.stóteles, só deseja "o
zeres e de desejos, o homem do não-domínio (akrasia) ou da intempe- que a justa ritLào (orthos logos) prescreve", ,,, É conhecido o longo de~
rança (akoJasia) é um homem que se poderia dizer feminino e, em rela~ bate que se desenvolveu a partir da tradição socraticp. a propósito do

!3~, XfNOPHON, EcorlOmiqw, X, I. 140. DlOGENE LAERCE, VI~ MS phIlOJoph~s, VI, 2. 54,
139, ARISTOTE, Poliliqw, I, 13, I 260 a. 141 ARISTOTE, tthiqUt' li NifOl/laqut', 111, 12, ! 1!9 b.

78 79
papel do conhecimento na virtude em geral e na temperança em parti~ uma forma instrumental. Com efeito, a partir do momento em que a
cular. Xenofónte, nós Memoráveis, lembrou a tese de Sócrates segundo dominação dos prazeres garante um uso que sabe adaptar-se á~ neces-
a qual não se poderia separar ciência e temperança: aqueles que evo~ sidades, aos momentos e as circunstâncias, uma razão prática torna~se
'am a possibilidade de saber o que convém fazer e, contudo, de agir no necessaria, razão essa que possa determinar, segundo a expressão de
sentido contrario, Sócrates responde que os intemperahtes são sempre, Aristóteles, "o que se deve, como se deve e quando se deve" .. Platão
"j

ao mesmo tempo, ignorantes, visto que, de toda forma, Ol> homens sublinhava a importância, para o indivíduo como para a clda~e, d~
"escolhem dentre todas as ações aquelas que julgam ser as mais vanta- não usar os prazeres "fora das circunstâncias oportunas (ektos LOn ka/-
josas". q: Esses principios serão longamente discutidos por Aristóteles rôn) e sem saber (anepis(emonõs)".I'~ E num espírito bem próximo, Xe-
sem que sua critica venha encerrar um debate que ainda continuara no nofonte mostrava que o homem de temperança era também o hon:em
estoicismo e â sua volta. Mas que se admita ou não a possibilidade de da dialética - apto a comandar e a discutir, capaz de ser melhor - Visto
cometer o mal sabendo-o, e qualquer que seja o modo de saber supos~ que, explica Sócrates, nos Memoráveis, "só os homens temperantes
to naqueles que agem a despeito dos principios que conhecem, existe são capazes de considerar, dentre as coisas, aquelas que são as melho~
um ponto que não é contestado: é que não se pode praticar a tempe- res, de classificá-Ias prática e teoricamente por gênero, de escolher as
f<.lnça sem uma forma de saber que constitui pelo menos uma de suas boas e de abster-se das mas".'"
,ondições essenciais. Não se pode constituir-se como sujeito moral no Finalmente, em Platão, o exercício do logos na temperança apare-
uso dos prazeres sem constituir-se ao mesmo tempo como sujeito de ce sob uma terceira forma: a do reconhecimento ontológico de si por
conhecimento. si. A necessidade de se conhecer a si mesmo a fim de praticar a virtude
A relação ao fogos na prática dos prazeres foi descrita pela filoso- e dominar os desejos foi um tema socrático. Mas quanto á forma que
lia grega do Século IV sob três formas principais. Uma forma estrutu~ esse conhecimento de si deve tomar, um texto como o grande discurso do
ral: a temperança implica que o logos seja colocado em posição de so- Feefro, onde se conta a viagem das almas e o nascimento. do amor., for~
berania no ser humano, que ele possa submeter os desejos, e que seja nece algumas precisões. Tem-se ai, sem dúvida, na literatura ant!g~,.a
capaz de regular o comportamen~o. Enquanto que, no intemperante, a primeira descrição daquilo que será mais tarde "o combate espm-
poténcia que deseja usurpa o primeiro lugar e exerce a tirania, naquele tua I". Ai se encontra - bem longe da impassibilidade e das proezas de
que é sõphrõn é a razão que comanda e preJicreve de acordo com a es- resistência ou de abstinência das quais Sócrates, segundo o Alcebíades
trutura do ser humano: "Não cabe a razão, pergunta Sócrates, coman~ do Banquete, sabia dar provas - toda uma dramaturgia da alma lutan~
dar posto que é sabia e que é encarregada de velar sobre a totalidade do consigo mesma e contra a violência de seus desejos; esses diferentes
da alma'!"; e a partir dai ele define o sõphrõn como aquele em quem as elementos terão um longo destino na história da espiritualidade: a per-
diferenteJi partes da alma estão em amizade e harmonia. quando aque~ turbação que se apodera da alma e cujo próprio nome ela ignora, a in-
la que comanda e as que obedecem estão de acordo para reconhecer quietação que a mantém desperta, a efervescência misteriosa, o sofri-
que é a razão que deve comandar e que elas não disputam mais sua au- mento e o prazer que se alternam e se mesclam, o movimento q~e arre~
toridade. ," E a despeito de todas as diferenças que opõem a tripartição bata o ser, a luta entre as potências opostas, as quedas, as fendas, os
platônica da alma â concepção aristotélica da época da ética a Nicô- sofrimentos, a recompensa e o apaziguamento tinal. Ora, ao longo.
mw'o, é em termos de superioridade da razão sobre o desejo que aí se dessa narrativa que se dá como a manifestação daquilo que é, na sua
encontra caracterizada a .sõphrosune: "o desejo do prazer é insaciável e verdade a natureza da alma tanto humana como divina, a relação
tudo o excita no ser desprovido de razão"; o desejo, portanto, crescera com a v'erdade desempenha um papel fundamental. Com efeito, por
de maneira excessiva "se não se for dócil e submisso a autoridade"; e ter contemplado "as realidades que estão fora do céu" e percebido o
essa autoridade e a do logos á qual deve conformar-se a "faculdade de seu reflexo numa beleza deste mundo, a alma é tomada pelo delírio de
concupiscência (to epilhumetikon}". ", amor, é colocada fora de si e não se possui mais; mas é também põrque
Mas o exercício do logo.~ na temperança é também descrito sob

142. XÉNOPHON, Mh"orahle.<, li!. 9, 4. 145. ibid.


1.0. PLATON. Ripubliqu,', IV, 431 e· 432 b. 146. PLATON, Lois, I, 636 d."e.
144. ARISTOTE. Elhiqu('# .Nicomaque, 111, 12.! tl9 b. 147. XÉNOPHON, Mbrl(Jrablts, IV, 5, 11.

80 81
essas lembranças levam-na "para a realidade da beleza", é porque ela e!>trutura ontológica e perfil de uma beleza visível, foi freqüentemente
"a revê, acompanhada da sabedoria e elevada sobre o seu pedestal sa- esboçada por Xenofonte, Platão e Aristóteles. Eis por exemplo em
grado", que ela se contém, que toma a si de sofrear o desejo físico e (J,ir[.;ia.l' a maneira pela qual Sócrates a descreve dando ele mesmo iÍs
procura liberar-se de tudo o que poderia entorpecê·la e impedi-la de sua<; próprias questões as respostas de Cálicles silencioso: "A qualida-
reencontrar a verdade que ela viu."g A relação da alma com a verdade de própria a cada coisa. móvel. corpo. alma, qualquer animal, não lhe
é. ao mesmo tempo o que fundamenta o Eros em seu movimento. for- vem por acaso: ela resulta de uma certa ordem, de uma certa justeza,
ça e intensidade e o que. ajudando-o a desenredar·se de qualquer gozo de uma certa arte (taxü, orthOles, techne) adaptadas á natureza dessa
fisico. permite-lhe tornar-se o verdadeiro amor. coisa. Seria isso verdade? De minha parte, eu o afirmo. - Assim. por-
Como vemos, a relação com o verdadeiro constitui um elemento tanto, a virtude de cada coisa consiste num arranjo e numa disposição
e!>'Sencial da temperança, quer seja sob a forma de uma estrutura hie- feliz resultante da ordem? Eu o sustentaria. - Conseqüentemente. uma
rárquica do ser humano. sob a forma de uma prática de prudência ou certa beleza de arranjo (kosmos tis). própria á natureza de cada coisa é
de um reconhecimento pela alma de seu ser próprio. Essa relação é ne- o que. por sua presença, torna essa coisa boa? Eu o creio. - E por con-
cessária para o uso comedido dos prazeres, necessária para a domina· seguinte. também, uma alma na qual se encontra a ordem que convém
ção de sua_ violência. Mas é preciso ver que essa relação com o verda- 11 alma vale mais do que aquela onde essa ordem está ausente? Neces·
deiro jamais assume a forma de uma decifração de si por si e de uma sariamente. - Ora, uma alma que possui a ordem é uma alma bem ar·
hermenêutica do desejo. Ela é constitutiva do modo de ser do sujeito denada? Sem dúvida. - E uma alma bem ordenada é temperante e sá·
temperante; não equivale a uma obrigação para o sujeito de dizer a bia? Necessariamente. - Portanto uma alma temperante é boa ... eis o
verdade sobre si próprio; nunca abre a alma como um domínio de co- que. quanto a mim, afirmo e sustento como certo. Se isso é verdade.
nhecimento possível onde as marcas dificilmente perceptíveis do dese· parece·me pois que cada um de nós. para ser feliz. deve buscar a tem-
jo deveriam 'ser lidas e interpretadas. A rdação com a verdade é uma perança e nela exercitar (diõkteon kai askereon)".1'9
condição estrutural instrumental e ontológica da instauração do in· Fazendo eco a esse texto que liga a temperança e a beleza de uma
dividuo como sujeito temperante e levando uma vida' de temperança; alma cujo ordenamento corresponde à sua natureza própria. aRe·
ela não é uma condição epistemológica para que o indivíduo se reco- pública mostrará. inversamente, a que ponto são incompatíveis o es·
nheça na sua singularidade de sujeito desejante. e para. que possa puri- plendor de uma alma e de um corpo com o excesso e a violência dos
ficar.se do desejo assim elucidado. prazeres: "Se um homem reúne, ao mesmo tempo. um belo caráter
(kala itNe) na sua alma. e no seu exterior traços que se combinam e se'
4. Ora. embora essa relação com a verdade. constitutiva do sujei· ajustam ao seu caráter, porque eles participam do mesmo modelo, não
to temperante. não conduza a uma hermenêutica do desejo. como· será é esse o mais belo espetáculo para quem pode vê-lo? - De _longe o mais
o caso na espiritualidade cristã, ela abre. em compensação. para uma belo. - Ora, o mais belo é também o mais amável (erasmiõtaton)? -
estética da ~xistência. Deve-se entender com isso uma maneira de viver Sem objeção. - Mas diga·me, o abuso do prazer se ajusta com a tem·
cujo valor moral não está em sua conformidade a um código de com· perança? - Como isso poderia ocorrer visto que ele pertu'rba a alma
portamento nem em um trabalho de purificação. mas depende de cer· tanto quanto a dor? - E com a virtude em geral? - Não. - E com a via·
tas formas. ou melhor. certos princípios formais gerais no uso dos pra· lência e a incontinência (hubris, akolasia)? - Mais do que com qual·
zeres. na distribuição que deles se faz, nos limites que se observa, na quer outra coisa. Mas podes citar um prazer maiOr e mais vivo .do que
hierarquia que se respeita. Pelo Iogas. pela razão e pela relação 'tom o o prazer de amor? - Não, mais furioso não existe. - Ao contrário, o
verdadeiro que a governa. uma tal vida inscreve·se na manutenção ou amor que é segundo a razão (ho orthos eras) é um amor sábio e regra·
reprodução de uma ordem ontológica; e, por outro lado, recebe abri· do. da ordem e da beleza? - Certamente. - t preciso, portanto. não
lho de uma beleza manifesta aos olhos daqueles que podem contem- deixar aproximar do amor razoável a loucura nem nada que se asse·
phi·la ou guardá-la na memÓria. Essa existência tem perante. cuja me· melhe á incontinência".'j~ .
dida. fundamentada na verdade, é ao mesmo tempo respeito de uma

i: 149. PLATON, Gorgias, 506 d· 507 d.


14l\. PLATON. Ph"i!Jrf'. 254 b. 150. PLATON. Ripublique, 111.402 d· 403 b.
1I

82 83
I,''I'
I
1i.1
Tambem pode-se lembrar a descrição ideal que Xenofonte propu- que se escondem nos arcanos do coração e por um conjunto de atos
nha a respeito da corte de Ciro, que dava a si própria o espetáculo da cuidadosamente definidos em sua forma e em suas condíçõcs; a sujci~
belela, mediante o perfeito dominio que cada um exercia sobre si; o ção não tomará a forma de um savoi!l-faire mas de um reconhecimento
soberano manifestava ostensivamente um domínio e um comedimento da lei e de uma obediência à autoridade pastoral; portanto, não é tanto
em torno dos quais se distribuiam em todos, e de acordo com as posi- a domínação perfeita de si por si, no exerclcio de uma atividade de tipo
ções de cada·um, uma conduta medida, o respeito de si e dos outros, o viril, que caracterizará o sujeito moral, mas sim a renúncia de si e uma
controle cuidadoso da alma e do corpo, a economia dos gestos, de tal pureza, cUJo mooelo deve ser buscado do lado da virgindade. A partir
modo que nenhum movimento involuntàrio e violento viesse pertur- daí, pode-se compreender a importância, na moral cristã, dessas .duas
bar um ordenamento de beleza que parecia presente no espírito de to- práticas, ao mesmo tempo opostas e complementares: uma codIfica-
dos: "Nunca se poderia ouvir alguem vociferar em cólera e em alegria, ção dos atos sexuais, que se tornará cada vez mais precisa, e o desen-
rir a plenos pulmões, mas vendo-os dir-se-ia que eles tomavam a be\e- volvimento de uma hermenêutica do desejo e dos procedimentos de
la por modelo". '" O individuo se realiza como sujeito moral na plásti· decifração de 5>i.
ca de uma conduta medida com exatidüo, bem vislvel de todos e digna Esquematicamente, pode-se dizer que a reflexão moral da Anti·
de uma longa memória. gü.idade a propósito dos prazeres não se orienta para uma codificação
dos atos, nem para uma hermeneutica do sujeito, mas para uma estili-
Eis o 4ue é apenas um esboço de caráter preliminar; alguns traços l.ação da atitude e uma estetica da existência. Estilização, visto que a
gerais que caracterizam a maneira pela qual se refletiu, no pensamento rarefação da atividade sexual se apresenta como uma espécie de exi-
grego clússico. a pràtica sexual, e pela qual ela foi constituI da como gência abt:rta·. pode~se constatá·lo facilmente·. nem os médicos, ao da-
campo moral. Os elementos desse campo - a "substância ética" - eram rem conselhos de regime, nem os moralistas, ao pedirem aos maridos
form;ldo~ por aphrodüia, isto e, atos determinados pela natureza, asso- para respeitar suas esposas, nem aqueles que dão conselhos sobre a
ciados por ela a um prazer intenso, e aos quais ela condul. atraves de boa conduta no amor pelos rapazes, dirão exatamente o que é preciso
uma força sempre suscetive\ de excesso e de revolta. O princípio segun- ou nào fazer na ordem dos atos ou práticas sexuais. E a razão disso
do o qual devia-se regrar essa atividade, o "modo de sujeição", não não està, sem dúvida, no pudor ou na reserva dos autores, mas no fato
era definido por uma legislação universal, determinando os atos per- de que o problema não e esse: a temperança sexual é um exercicio da
mitidos e os proibidos; mas ao contrário, por um .wmir-faire, uma arte liberdade que toma forma no domínio de si; e esse domínio se manifes-
4UC prescrevia as modalidades de um uso em função de variáveis di- ta na maneira pela qual o sujeito se mantém e se contém no exercicio
versas (necessidade, momento, .natus). O trabalho que o individuo de- de sua atividade viril, na maneira pela qual ele se relaciona consigo
via exercer sobre si, a ascese necessária, tinha a forma de um combate mesmo na relação que tem com os outros. Essa atitude, muito mais do
a ser sustentado. de uma vitória a ser conquistada estabelecendo-se que os atos que se cometem ou os desejos que se escondem, dão base
uma dominação de si sobre si, segundo o modelo de um poder domes- aos julgamentos de valor. Valor moral que e tambem um valor estéti-
tico ou poBtico. Enfim, o modo de ser ao qual se acedia por meio des- co, e valor de verdade, visto que, ao manter-se na satisfação das verda-
se dominio de si caracterizava~se como uma liberdade ativa, indisso- deiras necessidades, ao respeitar a verdadeira hierarquia do ser huma-
ciável de uma relação estrutural, instrumental e ontológica com a ver~ no, e não esquecendo .iamais o que se é verdadeiramente, e que se po-
dade. derà dar á sua própria conduta a forma que assegura o renome e mere-
Como veremos agora, essa reflexão moral desenvolveu, a propó- ce a memóna.
sito do corpo, do casamento, do amor pelos rapazes, temas de austeri- E preciso ver agora de que maneira alguns dos grandes temas da
dade que se assemelham aos preceitos e interdições que poderão ser austeridade sexual, que iriam ter um destino histórico muito além da
encontrados posteriormente. Mas, e preciso ter em mente que o sujeito cultura grega, foram formados e desenvolvidos no pensamento do Se-
moral não serà constituído da mesma maneira sob essa continuidade cu lo IV. Não partirei de teorias gerais do prazer ou da virtude: apoiar-
aparente. Na moral cristã do comportamento sexuaL a substância eti~ me-ei em pràticas existentes e reconhecidas, pelas quais os homens
ca não seri.l definida pelos aphrodisia, mas por um campo dos desejos procuravam dar forma à sua conduta: prática do regime, pràtica do
governo domestico, prática da corte no comportamento amoroso; ten-
tarei mostrar de que maneira essas tres pràticas foram objeto de refle-
xão na medicina ou na filosofia, e de que maneira essas reflexões pro-

84 85
-
puseram diversos modos, não de codificar com precisão a conduta se~
xua!. mas antes de "estilizar"; estilizações na Dietetica, como arte da
relação cotidiana do individuo com o próprio corpo, na Econômica,
como arte da conduta do homem enquanto chefe de família, na ErÓti·
ca, como arte da conduta reciproca entre o homem e o rapaz na rela-
ção de amor."!

CAPiTULO II

DIETÉTICA

!52. O livro de Henri JOLY, Le renVf'Nemel'/t platonicien, da um exemplo da maneira


pela qualllC pode analisar, no pensamento grego, as relações entre o campo das práticas
e a reflexão mooófica.

86 87
-

\ rt'lk':I(1 111<lr;!I J(I~ greg\l\ ~()hrl' (I ctll11rnfLII11CIl\U '~'\ILlIIl;I"


1'1(\\111"11 lu,llllclr I11Il'njit.;i}l'~, 111i1" cstili/;Ir um.! IIhl'Hl.llk. ,léPIC!.1
qllc" il<\11ll'1ll '·11\ rc·· C\!.'fec elll "Ui) ;llividadc. l);li ,I qlll' j1(\Jl' ]1;1"";11".
,I IHIIIll'll"a \ 1'\;1. r,lf p;If;IJ,)'((1. ()Sgreg,)" pr<lll!.-'ilrillll. ;ll'l'l1;tralH l' \ ;1'
1\\I'IJ:II";1I11 :1\ rCLl\Jll'\ entre hOI11l'I1~ l' r:lp:I/C~~ l', cnl1\lld!l. 'l'II' !"lkl\tI·
j',h l',lllcd1l'r;1I1l l' ediric;lr;llll. ;ICSSl' n:~rl'IIO. 1I111;lllwr;d J;I ;!t),ll'llI';,ltI
11..;, .Idlililir.lI11 pcrlo..'llill11Cl11C que um homem (;I',IJ,) rlllk~'l' PI'()CU'
LI!" ..(Ih pr;lll'rl'~ \l'\U;IIS j',H:1 d() l',bill11cnlo c. IHl CI1LIIlI\I. 'l'lI' 111(1r:l-
listas conceberam o principio de uma vida matrimonial em que o muri·
d" "I ll'fI;1 fcLu,'::IO ('1111;1 prúpri:lespo~;I. EIc~pm;li\ C(11l<:I:Ocr;11ll 1I
11\,11 1:111 "I mesmo ou podcndo LI/cr P;lrtl' un,
pr;IIl'I' ",:\11,11 (OIl1() um
estigmas nlllurais de um pecado: e, contudo, seus médicos se inquietu-
r;11ll C,11ll ,I' rcbçl-Ic\ l'llIfC ;1 ;lli\'i&lde "l'\u<l1 c d ";Iúdc, e de'CI1\'nhl'·
r;111I l<\J;1 \1111.1 rdk\;·I,l ,oorc tI'" pcrigo ... Ik '11,1 prúllcil.
Clll11eCemOS por esse ultimo ponto. Ê preciso notar de imediato
ljlll' l"'.1 rdk\,lo I1Úil ClII1'I\ll;1. ljll<ll1ln ;10 l'\~l'l1ci;d, 11;1 ;In,ilisc do ... di·
krl'llll" dcillh p;lln!llglub di] ,1l1\'lIli1de 'C\I1<11: eI<I 1;II11ném 11,10 pr()-
(IIr,I\;1 'lr).!illl i/ il f l'''''C C()111 plHI ,1I11C11 I o Cllmo um l;ill11 pn nl1dc sc plldc~­
'l' di'III1;.'lllr l'11I1Jul,l' 110rl11,ll~ l' priÜIl',I" illhHmai, c pillnlllgil';I .... SCI11
ll'l\lItll"l" Il'lIl,h 11;-11\ C~lil\',1111 Illlall11el11l' iIU~l'nlc\. Mil' nihl l' I""
qlle (pl1'llllli;1 (l ljllddr'l gcnd <1;1 il1lerrng;l\;iln \IIOrC ;1' rc!;u,/lC' Cl1lrl'
," i1phtodl'liI, ,I \,lIl1.k,;1 \ iJ;lc il l11orte. O (uid,ldo prilll'ip<ll dC~';1 rc-
I1C\,I'\ l'ril definir o 11'11 do, pr,11Cfc", - "'U;h cOI1Ji\"I-ll" Ll\or;Í\CI'. 'Ui!
prilll('] lüd l' ,11.1 r.lrl'f.u,;;111 Ill'ü.', ...;iriil - CI11 flll1\;;'I'\ dc 11111;1 (l'r!;1 111;1"
I1Clr;1 de ,1(\1j1<1r",c JII ]1r,\prl'\ Cilrpll, \ prl'I\l'lIp;lI';iltl l'ra I1Hlihl l11ilb
"'dll'll'lll·,I· dl\ qlll' "ll'r'lp'::'1I11l'il· qUI:,lthl Ik regll11l'. \1'iIIlJO rqwLIl'
11111;1 ,HI\ IIjmk rec\ll1!lccidd (01110 il11p'lrLlIlll' p;lr;1 ,I 'ill·l\.!c ,\ prl1hk ..

89
l1latil<lç.lo médka do comportamento se:wa! fel-se menos a partir do~
t:llidad~)s t:um a eliminação de suas formas patológicas do que a partir
da vontade de íntegrà-lo o melhor possível à gestão da saúde e à vida
do corpo,

DO REGIME 10M GERAL

A fim de e~d<lrcL'1:r a impOrlúnôa que os !!regos atriouíam ao re-


gimt:, o ~cntid(} ger.1! qut: davam á »dietética". e a maneira pel<l 'lU.1I
dt:s ligJV;II11 sua prútit:a á medkina, podemos nos referir a duas n;lff;l-
tIV.J~ soore a origem: uma se encontra na co1eç.lo hipocr(ltÍt<l e a outra
em P!<ll,lo.
O <lulllf do trat<ldo soore a Medicina Amiga. longt.: de concener o
rq,:.iJ11c Cl)!11\} um<l pdtH.:<I adjacente á arte méãH.:a - um<l de ~U<lS apli-
!.:<IÇl)C~ ou um dc seus prolongamentos - fal. ao t:ontrÚrlO, a medit.:Jn<l
~urgir da prcll(upaç,10 primeir<l e es~enci.1I t:om o regime. A humani-
d;!dt:, ~q!Undl) ek. tt:r-sc-ia scp<lfado da vida <ll1Im,d por uma espét:ie
lk rllrtllr;! clt: dicta~ t:llm efeito. origínalmente o~ homens teriam usa-
do 11111;1 ,din1l:nt;lç;lo semelhante;1 dos animais: ,ame e vt:gewis crus c
sem preparação. Tal forma de se alimentar podia enrijecer os mais vj·
!!llfll'l)~, !l1;!\ t:r<l ~t:ver<l para os l11<1is fraco~: em suma. morría-se jo-
\':111 llll n:!!lll. Os hon1t,;ns teriam, portanto. procurado um regime
111;11' ;1tl:Jpt;ldo ";1 ~1I;1 n:lturel<I'" é esse regime que çaracteri/a. ainda,
;! ;JtU<I! 111;1I1I:1r<l de \ivcr. Mas graç;l~ a essa dieta mais br,lnda asdoen-
Ç;I~ h)flwr,lIll-'t: l11el1üS Illlcdial<!l11cnte mortais: pen:ebeu-se. então,
qu\.';! J!in1l:nwç,ll1 daqueles que estão bem de saúde não podia convír
<I()~ doent\.'s: llUtro~ alimentos lhes eram necessúrills. A medicina teria
\.'nt;ll) s\.' fornwdo t:llmo »dicw" própria aos doentes e a partir de uma
IOt\.'rrogaçJo sobre o regime especifico que lhes çonvém Nessa narra-

I!I!'I'O( R_\ I!, '-- III<"I"IIIH' 111<',11(111<'. 111

91
90
tiva sobre a origem é a dietética que aparece como inicial; ela dá lugm um modo de problematização do comportamento que se faz em fun-
á medicina enquanto uma de suas aplicações partículares. ção de uma natureza que é precíso preservar e à qual convém confor~
Platão - bastante desconfiado quanto á prátíca dietétíca. ou pelo mar-se. O regíme é toda uma arte de viver.
meno~ quanto aos seus excessos. que ele temia pelas razões púlítícas e
mO~<lIs que veremos - pensa. ao contrário. que a preocupação com o
regime surgiu de uma modificação nas prátícas médicas:: na origem o J. O domínio que um regime convenientemente reOetido deve
deus Asclépios teria ensinado aos homens de que maneíra curar doen- cobrir é definido por uma lista que, com o tempo. assumiu um valor
ças e feridas com remédios drásticos e operações eficazes. Homcro. se- qualíe canônico. E a que se encontra no IV livro das Epídemio.ç; ela
gundo Platão. na narrativa que faz das curas de Menelau e de Euripilo compreende: "os exercícios (ponoi). os alimentos (sítio). as bebidas
nos muros de Tróia. dará testemunho dessa prática das medical.;õc)' (pola); os sonos (hupnoi), as rdações sexuaís (aphrodi3ia)" - todas sen·
simples: chupava-se o sangue dos feridos. derramava-se alguns ema- do coisas que devem ser "medídas".' A reflexão dietética desenvolveu
líentes sobre as chagas e dava-se, para beber. vinho polvilhad0 de fari- essa .enumeração. Dentre os exercícíos distingue-se aqueles que são na-
nha e de queijo ralado." Foí mais tarde. quando os homens se afasta- t~rals (and~r. ·passear). e aqueles que são violentos (a corrida. a luta):
ram da vida rude e sã dos antigos tempos, que se procurou acompa· lixa-se quaIs' sao os que convém pratícar.'e com que intensidade. em
nhar "passo a passo" as doenças e manter. mediante um longo regime. função da hora do dia. do momento do ano. da idade do sujeito e da
aqueles que estavam mal de saúde. e que justamente se encontravam líua alimentação. Aos exercícios são relacionados os banhos. mais ou
assím porque. não vivendo mais como convinha. eram vítimas de ma- menos quentes. e que também dependem da estação. da idade. das ati-
I~s durávei~ ..A díetétíca aparece. segun~o essa gênese. como. uma espé- vidades e das reJeições que foram feítas ou que aínda se vaí fazer. O
cie de medicina para os tempos de iassldão; ela era destinada às exis- regime alimentar - comida e bebida - deve levar em conta a natureza e
tências mal conduzidas e que buscam prolongar-se. Vê-se. contudo. a ~~antidade do que se ab~orve. o estado geral do corpo. o clima. as
que. embora para Platão a dietétíca não seja uma arte originária. nfio é atiVIdades que se exerce. As evacuações - purgações e vômitos - vêm
porque o regime. adíaíte. não tenha importância; a razão pela qual. nu c~~rigír a prática alimentar e seus excessos. Também o sono comporta
época de Asclépios ou de seus primeiros sucessores. não existia uma dllerentes aspectos que o regime pode fazer variar; o tempo que lhe é
preocupação com a dietética, é que"o regime" realmente seguido pe- conlíagrado.. as horas escolhidas. a 'qualídade do leito. sua dureza. seu
los homens, a maneira pela qual eles se alímentavam e se exercítav,lm calor. O regime. portanto. deve levar em conta numerosos elementos
era conforme á natureza: Nessa perspectíva. a díetétíca foi. efetha- da vida Ihica de um homem. ou pelo menos de um homem livre; e isso
mente. uma inflexão da medicina; mas ela só se tornou esse prolonga- ao longo de todos os dias. do levantar ao deitar. O regime. quando é
mento da arte de curar a partir do momento em que o regime. ctimo detalhado. assun:te a forma de uma verdadeira agenda do dia: é dessa
maneira de víver. separou-se da natu'reza: e se ela t.:onstítui sempre o f.?rma ~ue o regime proposto por Díocl~ segue. a cada momento. o
acompanhamento necessário da medicina. é na medida em que não se 110 do dia comum. desde O acordar pela manhã até a refeição da noite
poderia cuidar de quem quer que seja sem retificar o m'odo de vida que e .0 ~dormecer. passando pelos primeiros exercícios. as abluções e as
o tornou efetivamente doente.~ f~IC~~s do corpo e da cabeça. os passeios. as atividades privadas e o
Em todo caso~ quer se faça da dietétíca uma arte primitiva ou se g~naslO. o ~Im_oço. a. sesta. depois de novo o passeio e o ginásio. as un-
veja nela uma derivação ulterior. é claro que li própria ··dieta". o regi- çoes e as fnc,çoes: o Jantar. Ao longo de todo o tempo. e a propósito de
me. é uma categoria fundamental através da qual pode-se pensar a cada uma dalí atividades do homem. o regime problematiza a relação
co!ldut!l hu"!ana; ela c:aracteriza a maneira pela qual se conduz a pró-- COI~l. o 70r~0 e desen.volve um .m~o de víver cujas formas. escolhas e
prla existênCia, e permite fixar um conjunto de regras para a conduta: vanavellí sao determmadas pelo CUidado com o corpo. Mas não é ape-
nalí o corpo que está em causa.

2. PLATON. RipuPliqw. 111. 40S e - 408 d.


3. De fato.ou indícações dadàs por Platio nio do exatamente aquelas cnconlradas na
IIÚ11itl (XI. 624 e 833).
4. PLATON. Rlpublíque. 111. 407 c. h. II.~I'I'O( 'R~ TI'. f;"id'"IIlk.l. VI. 6. I. Sobre diferentes ioterf>relaçÕo:s de,~ \C:l.I\) 11a
S. Sobre a nccessid'de do regíme para a cura das doenças. ver lambtm Timh. 89 d .\nu).lUldadc. <:1. 11II'1'O('Ri\Tc. 0<'11""'.,'. lrad. Linré. I. V. 1"1" •.'2 .•. .'24.

93
2. Nos diferent~ campos em que é solicitado, o regime tem que Mas é também porque o rigor de um regime fisico, com a resolu-
estabelecer uma medida: "Um porco se daria conta disso" como diz ção que ê exigida para segui~lo, demanda uma indispensável firmeza
um d:os interlocu,~o~~ ~,diálogo ~Iat~nico dos Rivais:' ..~o que diz moral, e ela permite exercê-Io. t: nisso que consiste, aos olhos de Pla-
respelt? ao corpo ,e utll o que esta na Justa medida" e não o que está tão, a verdadeira razão que se deve dar às práticas por meio das quais
e~ ma~or ou menor quantidade. Ora, essa medida deve ser compreen~ se tenta adquirir a força, a beleza e a saúde do corpo: não somente, diz
d.lda nao soment~ n.a ordem corporal, mas na ordem morat Os pitagó~ Sócrates no livro IX da República, o homem sensato "não se entregara
riCOS q~e, sem duvI?a: ~esempenharam um papel importante no de~ ao prazer bestial e irracional"; não somente ele não dirigirá "a esse
senv~lvlmento da dletetlca, marcaram com nitidez a correlação entre lado suas preocupações"; fara mais: "Não terá consideração com a
os cUidados a serem dados ao corpo e o cuidado em preservar na alma sua saúde e não dará importância a ser forte. s~o e belo, se com isso
sua "'pureza e harmo~ia,.~ é verdade que eles pediam á medicina a pur~ não se tornar temperante". O regime físico deve-se ordenar ao princí-
ga~ao do corpo e, a muslc~, a purgação da alma, eles também atri~ pio de uma estétk:a geral da existência, onde o equilibrio corporal será
bUI~t?, . ao canto ~ aos mstrumentos, efeitos benéficos sobre o uma das condições da justa hierarquia da _alma: "ele estabelecerá a
eqmltbflO do o:rgam.smo.~ ~s ~umerosas proibições alimentares que harmonia no seu corpo visando manter o acordo em sua alma" - o que
eles se pre~revtam tmham slgmficações culturais e religiosas; e a críti- lhe permitirâ conduzir-se como verdadeiro músico (mousikos)." O re-
ca qU 7.fazlam a qu~l'.luer abuso na ordem do alimento, da bebida, dos gime físico não deve portanto ser cultivado por si mesmo de modo de-
exe~clos e das atividades sexuais, tinha ao mesmo tempo valor de masiado intenso.
preceito moral e de conselho eficaz para a saúde,' Reconhece-se facilmente a possibilidade de um perigo na própria
Mesmo fora ~ contexto estritamente pitagórico, o regime se defi- prática da "dieta". Pois se o reg(me tem por objetivo evitar os exces~
ne nesse duplo registro: o da boa saúde e o do bom estado da alma E 50S, pode ocorrer um exagero na importância que se lhe atribui e na
iss~ porque el.es se ind~zem um ao outro, mas também porque a re~o­ autonomia que se lhe concede. Esse fisco em geral é percebido sob
luçao de segUir um r~glme medido e razO:ável, assim como a aplicação duas formas. Existe o perigo daquilo que se poderia chamar o excesso
com que a ele se dedica: dependem por SI mesmas de uma irrdispensá- "atlético"; ele é devido a exercícios repetidos que desenvolvem exage-
v:1 firmeza moral. O Socrates de Xenofonte marca bem essa correla- radamente o corpo, e que acabam por adormecer a alma enterrada
.,;ao qu~~do rec<.>~en.da aos jovens exercerem regularmente o corpo numa musculatura demasiado potente: em vârias passagens, Plat;;i.o re-
pela prallca ~a gmastlca. Ele vê nisso a garantia de melhor se defender prova esse desenvolvimento forçado dos atletas, e declara não querer
~a Su~rra, eVitar como soldado a reputação de covardia, melhor servir isso para os jovens de sua cidade.!! Mas existe·tambem o perigo daqui-
a patrla, obter altas recompensas (e, portanto, deixar fortuna e status lo que se poderia chamar o excesso "valetudinário": trata-se da vigi-
p~ra os seus descende~tes); ele espera, com isso, uma proteção contra lância de todos os instantes que se dedica ao corpo, á saúde e aos seus
as ~oenças e as enfermidades do corpo. Mas sublinha também os bons menores males. O melhor exemplo desse excesso é dado, segundo Pla-
efel~.?s dessa ginastica lá, d.iz el,e, onde menos se espera: no pensamen- tão, por aquele que era considerado um dos fundadores da dietética, o
to, Ja que u~ c.orpo em ma saude tem como conseqüências o esqueci- pedótribo Heródicos: totalmente ocupado em não infringir a menor
~ento, o desan.lt?0' o mau humor, a loucura, a ponto de que os conhe- regra do regime que se impôs, teria "arrastado" durante anos uma
cimentos adquiridos acabam sendo banidos da alma. W vida agonil.ante. Platão reprova essa atitude de duas maneiras. t: pró~
prio de homens ociosos que não são úteis para a cidade; pode-se com·
7. PSEUDQ.PLATON, Rivaux, 134 a-d.
parar-lhes com vantagem esses sérios artesãos que, mesmo com enxa-
lI. ~f. R: JOLY, "Notice" sobre HIPPOCRATE, Du rigime (C. U. F.), p. XI. queca, não vão enfaixar a cabeça porque não têm tempo a perder com
9. Ele linha. ,para as doenças corpóreas várias curalivlls por meio das quais o seu os pequenos cuidados com a-saúde. Mas é também o caso daqueles
canto Icvamava os doentes. Outras faziam esquecer a dor, acalmavam as cóleras, afaSla_ que, para não perderem a vida, tentam como podem retardar o termo
vam 0lI desejos desordenados. Agora, seu regime: mel no almoço, no jantar bolachas, le-
gumes. raramente carne.. Desse modo, seu corpo guardava o mesmo eslado como um
pru~o, sem ficar as ~ez~s s.ão, âs vezes doente, como lambém sem engordar e aumentar
as vezes. e ~s vezes diminUir e emagrecer e sua alma sempre moslrava, por seu olhar, o
mesm.o caraler (10 nomoion i'lho~)". PORPHYRE, Vil;' di' Pyfhagol"t', 34. Pitágoras leria 11. PLATON, Rfptlblique, IX, 591 c-d.
lambem dado conselhos de regime aOll alicias (ihid., 15). 12. lbid" 111. 404 a. ARISTÓTELES crilica também os excessos do regime atletico de
10. XI".NOPHON, Mbnorabli's, 111, 12. certo!; Ireinamenlos (PQ/iliq/lt', VIII, 16. t 335 b; e VItI, 4, I BS b - 1 339 a).

94 95
fixado pela natureza. A prática do regime traz consigo esse perigo - tética é uma arte estratégica no sentido de que ela deve permitir res-
moral como também politico - de dar ao corpo cuidados exagerados ponder. de uma forma que seja razoável. e portanto útil, as circunstân-
(perittê epimeleia tou sõmatos).lJ Asclépios, que só curava com poções e cias.
ressecr,;ões, era um sábio politico: ele sabia que num Estado bem go- Na vigilância que ela exerce sobre o corpo e suas atividades ela re·
vernado a ninguém é licito passar a vida como doente e faz.endo-se cui- quer da parte do individuo duas formas de atenção bem particulares.
dar.'·' Ela exige o que se poderia chamar uma atenção "serial". uma atençã~
as seqüências: as atividades não são simplesmente boas ou más em SI
mesmas; seu valor e em parte determinado por aquelas que as prece-
.1. A de~confiança a respeito dos regimes excessivos mostra que a dem e que a elas se seguem, e a mesma coisa (um certo alimento, um
dkt;J não tem por finalidade conduzir a vida o mais longe pos~ivel no tipo de exercicio, um banho quente ou frio) sera recomendada ou .d~­
tempo, nem o mais alto possivel no desempenho. mas tormi-Ia util e fe- saconselhada conforme se tenha tido ou se vá ter tal ou tal outra ativI-
lil nos limites que lhe foram fixados. Ela tambem não deve propor-se a dade (as praticas que se seguem devem ser compensadas em seus efei-
fixar de uma VCL por todas as condições de uma existência. Um regime tos, mas o contraste entre elas não deve ser demasiadamente forte).
que só permita viver num único lugar e com um único tipo de alimen- A pratica do regime também implica uma vigilância "circunstancial",
to, sem que se possa ficar exposto a algum tipo de mudança, não ~ uma atenção ao mesmo tempo aguda e ampla que é necessário dirigir
bom. A utilidade do regime esta, precisamente, na possibilidade que para o mundo exterior, seus elementos, suas sensações: o clima. evi~
dú aus individuos de poderem enfrentar situações diferentes. Ê <lssim dentemente, as estações, as horas do dia, o grau de umidade e de secu~
que Platão opõe o regime dos atletas. tão estrito a ponto de não per- ra, de calor e de frescor, os ventos. os caracteres próprios de uma re-
mitir que eles se afastem sem "graves e violentas doenças". aquele que gião. a implantação de uma cidade. E as indicações relativamente de-
ele gostaria de ver adotado por seus.guerreiros: estes devem ser como talhadas que são dadas pelo regime hipocrático deve"! servir .. aquele
cães, ~empre despertos: quando estão em campanha devem poder que se familiarizou com elas, para modular sua manelfa de vIver em
"mudar freqUentemente de águas e de alimentos". expor-se "alterna- função de todas essas variáveis. O regime não é para ser considerado
damente ao sol escaldante e ao frio do inverno". ao mesmo tempo que como um corpo de regras universais e uniformes; é, antes de mais na-
mantem uma "saúde inalterúve!"." Sem duvida. os guerreiros de Pla- da, uma espêcie de manual para reagir as situações diversas nas quais
tão possuem responsabilid:ldes particulares. Entretanto, regimes mais é possível encontrar-se; um tratado para ajustar o comportamento de
gerais obedecem t"mbem a esse mesmo principio. O autor do Re!{imc acordo com as circunstâncias.
da coleção hipocrútica atenta em sublinhar que ele não dirige seus con-
sdhos a uns poucos inativos privilegiados. mas ao maior numero de 4. Enfim, a dietética é uma técnica de existência no sentido de que
pessoas: :1 saber, "aqueles que trabalham. os que se deslocam, nave- ela não se contenta em transmitir os conselhos de um médico para um
gam e se expõem ao sol e ao frio"." Já ocorreu interpretar-se essa pas- indivíduo que iria aplicá-los passivamente. Sem entrar aqui na história
sagem como a marca de um interesse particular desse texto pelas for- do debate em que se opuseram medicina e ginastica a propósito de
mas da vida ativa e profissional. Mas é preciso sobretudo reconhecer suas respectivas competências para a determinação do regime. é neces-
nde a preocupação - aliús comum á moral e a medicina - de armar o súrio reter que a dieta não é concebida como uma obediência nua ao
individuo para a multiplicidade das circunstâncias possiveis. Não se saber do outro; ela deveria ser. por parte do indivíduo. uma prática re-
pode e não se deve pedir ao regime que contorne a fatalidade ou que fletida de si mesmo e de seu corpo. É certo que, para seguir o regime
dobrt:. a natureLa. O que se espera dele é que permita reagir. sem ser âs que convém. e necessário escutar aqueles que sabem; mas essa relação
cegas, aos acontecimentos imprevistos tais como se apresentam. A die- deve tomar a forma da persuasão. A dieta do corpo. para ser razoàvel,
para ajustar-se como convem às circunstâncias e ao momento, deve ser
também questão de pensamento. de reflexão e de prudência. Enquanto
13. PLATON, Republiquf', 111. 406 a· 407 b. os medicamentos ou as operações agem sobre o corpo. o regime se di-
14. IhM .. 407 c-t. No Timeu, Platão ressalta que para cada ser vivo a duraçào da vida e
fixada pela sorte (IN b-c). rige a alma e lhe inculca principios. Assim Platão distingue nas Leül'
15. PLATON, Republique, 111, 404 a-b.
16. HIPPO<:RATE, Dudgime, 111,69, I; cf. anota de R. JOL Y na edição da C. U. F.,
p. 71 I· 1'1 \10"".'"". I\". 7~{jh.<.:.

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duas espécies de médicos: aqueles que são bons para os escravos (e são uma estratégia circunstancial; e que, enfim, visa armar o próprio in~
eles próprios freqüentemente de condição servil), e que se limitam a dividuo com uma conduta racional. Que lugar se concordava em ou~
prescrever sem dar explicações; e aqueles livres de nascimento. que s.e torgar aos aphrodisia nessa gestã'o racional e natural da vida?
dirigem aos homens livres; eles não se contentam em dar receitas, eles
entram em conversação, informam~se junto aos doentes e aos seus
amigos; eles educam o doente, estimulam~no e o convencem através de
argumentos que, uma vez que ele fique persuadido, serão de natureza
a lhe fazer levar a vida que convém, O homem livre deve receber do
médico sábio, além dos meios que permitam a cura propriamente dita,
uma armação racional para o conjunto de sua existência." Uma breve
passagem dos MemoráveiS mostra bem o regime sob o aspecto de uma
prática concreta e ativa da relaÇão consigo. Nela se vê Sócrates dedi~
cando-se a tornar seus discípulos "capazes de se bastarem a si pró~
prios" na posição que é a sua, Para tal ele lhes ordena aprender (seja
com ele próprio, seja com um outro mestre) o que um homem de bem
deve. saber nos limites circunscritos daquilo que lhe é útil. e nada além:
aprender o necessário na ordem da geome~ria. da astronomia, da arit~
mética. Mas ele os engaja também "a cuidar da saúde". E esses "cui~
dados" que devem, efetivame,nte, apoiar~se num saber recebido, de~
vem também desenvolver~se em atenção vigilante sobre si: observação
de sI. além disso com trabalho de escrita e de notação, o que ,é impor~
tante: "Que cada um se observe a si próprio e anote que comida, que
bebida, que exercício lhe. convêm e de que maneira usá~los a fim de
conservar a mais perfeita saúde". Para que a boa gestão do corpo ve~
nha a ser uma arte da existência, ela deve passar por uma colocação na
escrita. efetuada pelo sujeito a propósito de si mesmo; através da escri~
ta ele poderá adquirir sua autonomia e escolher com conhecimento de
causa o que é bum e o que é mau para ele: "Se vos observardes desse
modo. diz Sócrates a seus discipulos, dificilmente encontrareis um mé-
dico que possa discernir melhor do que vós próprios o qUe é favorável
à vossa saúde".'~
Em suma, a prática do regime enquanto arte de viver é bem outra
coisa do que um conjunto de precauções destinadas a evitar as doenças
ou terminar de curá~las. t toda uma maneira de se constituir como um
sujeito que tem por seu corpo o cuidado justo, necessário e suficiente.
Cuidado que atravessa a vida cotidiana; que faz das atividades maio~
res ou rotineiras da existência uma questão ao mesmo tempo de saúde
e de moral; que define entre o corpo e os elementos que o envolvem

IR. Cf. PLATON, Timh, S9 d, que resume assim o que acaba de dizer a propósito do
regime: "Ji! eo bastante sobre o ser vivo como um todo, sobre sua parte corporal. sobre
a maneira de governá-la ou de se deiur governar por ela".
19. XtNOPHON, Mimoftlblt's, IV. 7.

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ção completa -:ia matéria que ele pretendia tratar; é que para "escrever
corretamente a propósito da dieta humana" é preciso ser capaz de
"conhecer e reconhecer" a natureza do homem em geral assim como
sua constituição de origem (hi ex archis ,fustasis) e o princípio que
deve comandar no corpo (10 epicrateon en rói sômatl).2) O aufor retém
como dois elementos fundamentais do regime a alimentação e os
exercícios; estes últimos ocasionam dispêndios que o alimento e a be·
bida têm por função compensar.
2 A segunda parte do texto desenvolve a prática da dietética. to~
mando como ponto de vista as propriedades e os efeitos dos elementos
que entram no regime. Após considerar as regiões - elevadas ou bai·
xas. secas ou úmidas, expostas a tal ou tal vento - são passados em re·
A DIETA DOS PRAZERES vi~ta os alimentos (a cevada ou o trigo, vistos segundo a tenuidade da
moedura, o momento em que a farinha foi amassada, a quantidade de
água com a qual foi misturada; as carnes, segundo suas diversas prove-
niências; os frutos e legumes considerados segundo as espécies), em se-
guida. os banhos (quentes. frios, tomados antes ou depois das refei-
ções), os vômitos, o sono, os exercícios (naturais como os da vista. do
Dois tralados de Dietética pertencentes á coleção hipocrática che- ouvido. da voz, do pensamento, ou ainda o passeio; violentos como as
garam ate nós, O mais antigo e ta,mbém, o mais bre~e:: e o Peri 1iailes corridas de velocidade ou de resistência, os movimentos dos braços. a
hu;:iail/{,.\', o Regime saluhre; ele fOi considerado multo tempo a ultima luta no solo, com bola, com a mão; executados na poeira ou com o
parte do tratado Sobre a Nalun,!za do f!om,:m;!U o s~undo. o,Peri diai- corpo oleoso.), Nessa enumeração dos elementos do regime. a ativida-
te,l, ê tambêm o mais desenvolvido, Alem disso. Onbase reUfllu em sua de sexual (lagneiê) li: apenas assinalada entre os banhos e as unções por
Co/eí'ào Médit'a'; um lexto de Diodes consagrado á higiene que dú. um lado e os vômitos por outro; e só é mencionada por seus três efei-
meticulosamente. uma regra de vida cotidiana; enfim. a esse mesmo tos, Dois dentre eles são qualitativos: aquecimento devido á violência
Diocles - que vivia no final do Século IV - foi atribuido um curto tex- do exercido (ponos) e à eliminação de um elemento úmido; umidifica-
to reunido às obras de Paulo de Egines:'" nesse texto o autor fornece ção. ao contrário, porque o exercido fez fundir as carnes, Um terceiro
indicações sobre a maneira de reconhecer em si mesmo os primeiros si- efeito ê quantitativo: a evacuação provoca o emagrecimento, "O coito
nais. de doença assim como algumas regras gerais de regime sazonal. emagrece, umedece e esquenta; ele esquenta por causa do exercício e
Enquanto que o Regime saluh!e não diz uma palavra sobre a da secreção de umidade; ele emagrece pela evacuação e ele umedece
questão dos aphrodisia, o Peri dia,i/{? compo~ta ~obre esse ponto uma pelo que resta no corpo da fusão (das carnes) produzida pelo exercí-
serie de recomendações e prescnçoes, A pnmelra parte da obra se cio,"l'
apresenta como uma renexã? sobre os p~incípios gerais que devem Em compensação na terceira parte desse Regime se encontra, a
presidir â organização do regime, Com efeito. o autor acentua que al- propósito dos aphrodisia, um certo número de prescrições, Essa tercei-
guns de seu~ numerosos predecessores deram bons conselhos sobre uf!! ra parte se apresenta em suas primeiras páginas como uma espécie de
ou outro ponto particular; mas que nenhum apresentou uma exposl- grande calendário de saúde, um almanaque permanente das estações e
dos regimes que lhes convêm, Mas o autor sublinha a impossibilidade
de fornecer uma' fórmula geral para fixar o justo equilíbrio entre
exercidos e alimentos: e marca a necessidade de levar em conta as dife-
20_ Cf. w. H S. JONES, "Introduction" ao tomo IV das O/'u)'rf'.<de Hip<'K:rates(Loeb
(las~ic)1I
Ubrary),
21 ORIBASe, Colf,:<'Ii{)n mMica/e, t. 111, pp. lóK·IK2.
21. PA U l.. D'f.GI N E, Chirurgie, Irad. R. Briau. Sobre a dietelica oa epoca d;4.s~ica, cf.
W D_ SM IH!. "The developmeot of dassical dietetic theory", Hippocratica (19l10), pp_ 23. HIPPOCRATE, Du lrgime, I, 2, I.
4W·44l1. 24, Ibid.• fi, 58, 2.

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