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A Felicidade na ética de

Aristóteles
Nadir Antônio Pichler
“A felicidade é um princípio; é para
alcançá-la que realizamos todos os
outros atos; ela é exatamente o gênio
de nossas motivações.“

Aristóteles
A ética aristotélica segue o ideal de vida
socrático-platônico, que procura
responder à seguinte interrogação
existencial: “como convém viver ou qual
o sentido da vida?” Aristóteles procura
responder a essa indagação apontando a
felicidade como o fim último do homem,
ao qual tendem todos as ações humanas.
A ética aristotélica, além de teleológica, é
uma ética da virtude. A virtude não é
inata, mas adquirida pela repetição
constante de ações equilibradas até se
tornar um hábito.

O fim último do homem, a felicidade,


para se realizar em plenitude na pólis,
requer um conjunto de bens, que podem
ser distinguidos em constitutivos e
coadjuvantes.
1. A divisão do conhecimento e as
funções da alma

“Todo conhecimento racional é ou prático, ou


produtivo, ou teorético”.

Aristóteles

As ciências “teoréticas” buscam o saber pelo


saber; as práticas, o saber em função do agir;
as produtivas, o saber em função do fazer.
As ciências teoréticas
As ciências teoréticas são as mais elevadas em
dignidade e valor, caracterizando-se pela
investigação da realidade imutável e
necessária.

O conhecimento teorético, por meio do qual se


procura alcançar o necessário e o universal, é
formado por três ciências: a matemática, a
física e a teologia (metafísica).
As ciências práticas
O saber prático tem por objetivo o mundo
contingente, particular, mutável, campo de
realização da ação humana.

As ciências práticas são divididas em: ética,


economia e política. Denominadas de “ciência
política” ou “filosofia pratica”.
As ciências produtivas
Nas ciências produtivas, formadas pela retórica
e pela poética, visa-se ao saber em função do
fazer, isto é, “com finalidade de produzir
determinados objetos”.

As ciências produtivas são uma forma de


racionalidade direcionada à capacidade de
produzir. Elas “fazem parte, juntamente com as
‘ciências teoréticas’ e as práticas, da famosa
tripartição aristotélica das ciências”.
O método da filosofia prática
Investiga
e analisa as ações boas e justas
dos homens.

Não se pode postular dela um saber


necessário e universal, mas só contingente
e particular.
Aristóteles distingue três tipos de
princípios da filosofia prática: por
indução, por sensação e pelo hábito.

Portanto, a determinação do caráter do


homem não se faz por normas e valores a
priori; mas pelos modos de viver
institucionalizados na sociedade, através
do hábito.
As funções da alma

Vegetativa
Sensitiva
Racional
Afunção irracional da alma comporta as
funções vegetativa e sensitiva.

A alma “dotada de razão” é a função


racional da alma.
A excelência das virtudes morais
(temperança, coragem, justiça etc.)
imprime um caráter moral, isto é, uma
disposição adquirida pelo hábito na
função sensitiva da alma (referente “às
paixões, desejos e sentimentos”),
intermediaria entre a função vegetativa e a
função racional, sempre orientada pela
prudência, uma das virtudes intelectuais.
Por isso é sumamente árdua a conquista
de si. A autoconquista começa com a
prática das virtudes e termina na
convivência na pólis.
2 . A felicidade pela prática das
virtudes morais

O bem supremo do homem

“Todas as coisas estão suspensas pela causa


final”. Aristóteles

As quatro causas: formal, material,


eficiente e final.
A causa formal

A causa formal da ação é o desejo, por


meio do qual o homem estabelece um
objetivo bom a alcançar, um fim.
A causa material

A causa material da ação é a escolha. O


homem seleciona os meios eficazes para
alcançar o objetivo proposto (é a função
da prudência).
A causa eficiente

A causa eficiente é aquilo de que provém


a mudança e o movimento dos entes,
como os pais são a causa eficiente dos
filhos, a vontade é a causa eficiente das
várias ações dos homens.
A causa final

É a última causa, o resultado. É a ação


que produz uma alteração no mundo
natural ou sociocultural, como ser um
indivíduo virtuoso e cidadão na pólis, ou
conquistar a felicidade.
A função racional da alma

 A função própria do homem é um certo


modo de vida, e este é constituído de uma
atividade ou de ações da alma que
pressupõem o uso da razão, e a função
própria do homem bom é o bom e
nobilitante exercício desta atividade.
Os bens constitutivos
São os bens da alma:

Virtudes morais
Virtudes intelectuais
Prazer
Os bens coadjuvantes
São os bens exteriores:

Riqueza
Bens materiais
Alguns amigos leais

E os bens do corpo: saúde e vigor físico.


A definição de felicidade

Aristóteles define a felicidade como uma


atividade conforme a virtude.

“ A felicidade é o melhor, mais belo e o


mais agradável dos bens”.
Quatro espécies fundamentais de
vida

O homem pode escolher entre quatro


espécies ou formas de vida que deseja
levar para atingir a felicidade:

A busca do prazer;
A riqueza;
A vida ativa na pólis
e a vida contemplativa.
O prazer
“Mesmo que todos os prazeres sejam bons,
o prazer não pode ser o bem supremo”.

“O prazer é um ingrediente da felicidade e


perpassa todas as atividades humanas.”

“O prazer intensifica as atividades, e aquilo


que intensifica uma coisa tem afinidades
com ela”.
A riqueza: meio e não fim em si
Economia: campo que aborda as formas
de obtenção das riquezas.

Existem três modos de adquirir as


riquezas: modo natural e imediato, modo
intermediário e o modo não-natural,
chamado de ‘crematística’.
As virtudes morais

Aristótelesdefine a felicidade como uma


atividade da alma segundo a virtude.

Funções distintas da alma:

Sensitiva (virtude moral)


Vegetativa
Racional (virtude intelectual)

Prudência: virtude que racionaliza o desejo.


A natureza da virtude moral

Aristóteles classifica a virtude como algo


“que é próprio de cada coisa e é a realização
perfeita desta coisa”.

Prudência: é uma função racional da alma,


desenvolvida pelo sujeito por meio da ação.

O domínio racional dos desejos não vem pela


natureza.
A natureza da excelência

“ Sendo a felicidade, então, uma certa


atividade da alma conforme a excelência
[virtude] perfeita, é necessário examinar a
natureza da excelência.”

Existem duas espécies de excelência


[virtude] : a intelectual e a moral.
As 3 manifestações da alma

Emoções: desejos, cólera, medo, temeridade,


inveja, alegria, amizade, ódio, saudade, ciúme,
piedade..
Faculdades: inclinações em virtude das quais o
homem diz ser capaz de sentir as emoções.
Disposições: estados da alma em virtude dos
quais o homem se sente bem ou mal em relação às
emoções.

“ As disposições são os hábitos das paixões e


ações equilibradas”.
O meio-termo

A virtude, o hábito, é o meio-termo em


relação ao homem, não às coisas.

“Por ‘meio-termo em relação a nós’ quero


significar aquilo que não é demais nem
muito pouco”.
A responsabilidade do homem

Ato voluntário
Ato involuntário
Escolha (relacionado a um meio/uso da
razão)
Deliberação (uso da razão)
Desejo (relacionado a um fim)
O homem é responsável pelas suas ações,
pela construção do seu caráter, de seu ser.

O caráter é resultado de uma ação virtuosa


em que o princípio do agir depende da
deliberação e da escolha do homem.
A coragem

A virtude da coragem e da moderação,


aparentemente, são formas de virtude
moral da função sensitiva da alma e, em
razão da sua natureza, necessitam ser
controladas pela função racional,
especificamente pela prudência.
A moderação

A moderação (temperança) é o meio-termo


referente a prazeres do corpo.

O objeto da moderação deve relacionar-se então,


com os prazeres do corpo, mas não com todos
eles.

Deve existir uma medida de equilíbrio, uma regra


para controlar essa tendência inata de satisfazer os
desejos para que não seja aniquilada a própria
capacidade de raciocinar.
A justiça
No plano coletivo, impõe-se a virtude da
justiça, “visando o equilíbrio e a eqüidade na
comunidade política, ou pólis”.
A justiça é o meio-termo entre a perda e o
ganho, é o sólido fundamento da moralidade
da vida política ou ativa.
A justiça é uma virtude total e perfeita,
porque as pessoas que possuem o hábito de
justiça “podem praticá-la não somente em
relação a si mesmas como também em
relação ao próximo.
A felicidade na vida ativa na
pólis
“Embora a finalidade do homem, sua causa
final, seja a mesma para o homem isolado e o
atuante na pólis, a ‘finalidade da cidade
parece de qualquer modo maior e mais
completa, mais nobilitante e mais divina, seja
para atingirmos, seja para perseguirmos”.

“ A felicidade que está sob o poder do homem


é a felicidade da pólis: a cidade é, para o
homem, a felicidade, porque só ela dá
realidade à sua natureza racional”.
3. A felicidade pela prática das
virtudes intelectuais

As virtudes intelectuais, em grande


parte, são desenvolvidas no homem tanto
pela vivencia de bons hábitos familiares
quanto pela educação formal.
Para Aristóteles, a função racional
da alma possui duas faculdades racionais:
uma que nos permite contemplar as
coisas cujos primeiros princípios são
invariáveis. Outra que nos permite
contemplar as coisas passíveis da
variação.

A primeira é a razão teorética ou


científica.
A segunda é a razão prática ou
calculativa.
Segundo Aristóteles, são três os
elementos da alma que se referem à ação
reflexiva e deliberativa e à percepção da
verdade: a sensação, o pensamento e o
desejo.
As virtudes da razão teorética

Ciência: sua função é ocupar-se de


objetos necessários e eternos, passíveis de
demonstrar.
Inteligência:é uma disposição da alma
definida como capacidade de aprender, de
conhecer os primeiros princípios da
ciência.
Sabedoria: é, para Aristóteles, a mais
perfeita forma de conhecimento, que
permite perceber o que há de mais na
natureza.
Para Ross e Berti a sabedoria
coincide com a filosofia primeira ou
metafísica.
As virtudes de razão prática

O objeto da razão prática é o mundo


contingente e mutável a realidade que se
apresenta de maneira diferente,
reconstruída, constituindo o reino do
éthos, da cultura, do mundo da verdade
prática.
As virtudes da razão prática são:

Arte:ocupa-se da dimensão do fazer da


produção de objetos.
Prudência: seu campo de atuação é a
ação, ela não produz nenhum objeto
diferente dela mesma porque atua no
sujeito, no agente moral, modificando o
mundo contingente.

Para Ross a função da prudência é


conter as tendências instintivas do
homem, dirigindo a totalidade de sua vida
em direção ao bem supremo.
Homem sábio e prudente é capaz de
ver o que é bom para si mesmo.

Na polis, há uma prudência pura,


relacionada ao indivíduo; uma prudência
econômica, ligada à casa e uma prudência
política, em forma legislativa,
administrativa e judiciária.
Aristóteles diz que: a função do
homem se realiza somente de acordo com
a prudência e com virtude.
A felicidade ideal realizável com a
atividade da vida contemplativa

A felicidade é uma atividade


desejável em si mesma, auto-suficiente,
nobilitante, finalidade última da natureza
humana.
Aristóteles esclarece que o
pensamento contemplativo e,
consequentemente, a conquista da
felicidade pela vida contemplativa, não é
nem prático, nem produtivo.
Aristóteles diz: “ Se esta parte
melhor é o intelecto, ou qualquer outra
parte considerada naturalmente dominante
em nós e que nos dirige e tem o
conhecimento das coisas nobilitantes e
divinas, se ela mesma é divina ou somente
a parte mais divina existente em nós,
então sua atividade [...] será a felicidade
perfeita. [...] Esta atividade é
contemplativa”.
A vida contemplativa é a atividade
mais contínua porque contempla os
objetos que são eternos e imutáveis, como
a ordem e a harmonia do universo, as
estrelas, os astros, os números.
A vida contemplativa, no sentido
estrito de contemplar a realidade imutável
e necessária, é algo demasiadamente
elevado para o homem, em razão de sua
contingência, de sua composição de
matéria e forma, de alma sensitiva e alma
racional.

A forma de vida contemplativa não


é a única forma de vida feliz.
A possibilidade da tangência com o
Inteligível

Aristóteles relaciona a felicidade


perfeita, por meio da atividade
contemplativa, com as atividades dos
deuses que representam o Inteligível, que
compreende o motor imóvel e os deuses.
O Inteligível é causa e princípio de
todas as coisas, sendo substância eterna.

Motor imóvel: deve ser imóvel


porque “só o imóvel de fato, é causa
absoluta do imóvel, afastando assim, a
possibilidade de existir outro motor além
deste”.
O Inteligível é ato puro.

Por meio da vida contemplativa, o


filósofo busca a verdade alcançada pelas
ciências teoréticas.

Com o conhecimento da teologia ou


filosofia primeira, é possível caracterizar
o Inteligível e contemplá-lo porque seu
viver é o mais excelente.
4. Alguns pontos de discussão
4.1 Algumas dificuldades
identificadas na ética aristotélica

Para Vaz o objetivo da ética de


Aristóteles é investigar o fim último do
homem, o bem supremo, e o modo mais
excelente de realizar este fim é por meio
da prática de virtudes e as formas de vida
que disso resultam.
No dizer de Reale, a ética
aristotélica tem como fundamento a ideia
socrático-platônica que põe os
verdadeiros valores do homem na alma,
sendo esse fundamento a virtude não a do
corpo, mas a da alma, já que a felicidade
só é felicidade da alma.
Maritain “O bem supremo se volta
para a vida humana. Torna-se imanente a
essa vida. É uma felicidade cá de baixo.
Uma felicidade terrestre. Isso não quer
dizer que Aristóteles desconheça a relação
necessária dessa felicidade para com
aquilo que é superior ao homem. Ele faz
da sabedoria, cujo objeto é divino, a parte
principal da felicidade”.
Ressaltando que para Reale a ética
Aristotélica “é mais platônica do que
comumente se reconhece”.

Segundo Ross, Aristóteles apresenta


a ciência política ou filosofia prática para
investigar os meios e o fim último do
homem.
Maritain julga a vida contemplativa,
a parte principal da vida boa e bela, “só
pode ser privilégio de um número restrito
de sábios entre esses cidadãos livres”.

Para Maritain, a ética aristotélica, é


uma ética puramente natural, filosófica
por excelência, excelente nos princípios,
mas ineficaz “no que diz respeito à
orientação real da conduta humana”.
Para Reale, Aristóteles compreendeu
muito bem que o homem é responsável
pelas suas ações, que ele é a causa dos
próprios hábitos morais, “mas não soube
dizer por que é assim e o que está na raiz
de tudo isso em nós”.
Quanto ao aspecto do meio-termo, a
medida de equilíbrio que caracteriza a
virtude moral, Aristóteles não pretende
apresentá-lo como um estado de
mediocridade.
Aristóteles não pretendeu oferecer
ao mundo grego uma ética perfeita,
acabada, dogmática, porque seu objeto, as
relações humanas, são sempre
contingentes.
Na interpretação de Guariglia , a
atividade da vida contemplativa
aristotélica é um modelo de conduta
mística, é uma das primeiras formas de
conduta ascética, constituindo-se um ideal
de vida teológico.
Para Reale, Aristóteles não
conseguiu explicar o homem em sua
totalidade porque não há relação com o
transcendente, com o Inteligível. Somente
o cristianismo explicará o homem na sua
totalidade.
4.2 Possibilidade ou impossibilidade
de conciliação entre a vida ativa e a
vida contemplativa

Pela atividade do ócio filosófico


contemplativo, é possível alcançar,
mesmo que só em raros momentos,
prazeres perenes e maravilhosos.
4.2.1 Ideais de vida mutuamente
excludentes

Guariglia sustenta que a atividade da


vida contemplativa é uma espécie de
corpo estranho na ética aristotélica, um
modelo de conduta mística.

Senne postula a existência de


dualidade, ou, ao menos, de ambigüidade
na ética aristotélica.
4.2. 2 Ideais de vida não excludentes

Düring indica, de maneira clara, que


na ética aristotélica há uma felicidade pela
prática das virtudes morais e uma
fundamentada na atividade teorética,
como a mais elevada, a vida
contemplativa.
Segundo Vaz, a ética aristotélica
possui um roteiro definido.

Para Maritain, tanto o sábio de


Aristóteles, quanto o sábio de Platão
“nunca vive separado da cidade”.
Portanto, no entendimento de
Maritain, a vida com a prática das
virtudes morais e das virtudes intelectuais
é uma vida heróica vivida na polis, sendo
“ao mesmo tempo ativa e contemplativa”.
Assim, na interpretação de Hadot, é
na polis que se efetua a felicidade,
podendo ser mais restringida à vida ativa,
ora mais à vida contemplativa.

Pegoraro afirma que os argumentos


desenvolvidos por Aristóteles na ética e
na política “visam o mesmo fim: a vida
virtuosa e feliz”.
Vimos comentadores de Aristóteles, como
Guariglia, Senne, apontaram a falta de
unidade na ética aristotélica e os dois
ideais de vida como mutuamente
excludentes, sem possibilidade de
conciliação.
Outros, como Ross, Reale, Düring, Vaz,
Maritain, Hadot e Pegoraro, sinalizam para
a possibilidade de conciliação, mesmo
considerando as duas formas de felicidade
distintas, cada uma com sua realização no
seu plano de ação.
4.3 Conclusão sobre a possibilidade
de conciliação das formas de felicidade

Mesmo havendo uma hierarquia na


perspectiva da perfeição, há possibilidade
de conciliação entre estas duas formas de
vida.
É na polis aristotélica que as duas
formas de felicidade se realizam em
plenitude; a pólis é a condição essencial
para alcançar a felicidade.

Por meio da vida ativa, o homem


realiza em plenitude sua determinação de
ser social, principalmente pela prática da
virtude da justiça, sempre acompanhada
pela prudência.
Portanto, o fim último do homem é
o bem supremo, a felicidade, a vida feliz.
UFSM/ CESNORS – RS
Jornalismo
Ética Jornalística
Aliete Prado, Lidia Trentin, Mariane de Oliveira e
Shana Rocha Nazário

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