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Arte e horizontes potenciais na escola contemporânea

Mirian Celeste Martins1


Se este módulo fecha um ciclo de formação, ele também está entre as inúmeras ações de
um processo que nunca termina. Como docentes, sabemos bem que o aprender é diário e até
mesmo as respostas inadequadas de nossos aprendizes nos levam a buscar outras soluções
pedagógicas e aprofundar nossos estudos e pesquisas.
Neste curso, foi possível pensar nas tecnologias digitais de informação e comunicação e
perceber que utilizá-las é possibilitar o aprender 'com' o conteúdo e não sobre o conteúdo.
Nesse sentido, vimos que a cultura visual impulsiona pensar para além do caminho linear da
História da Arte ou cercando apenas os códigos da linguagem, pois se conecta com a vida
contemporânea, assim como o 'compreender o patrimônio cultural' para além do sentido de
herança, problematizando-o. Essas ampliações se conectam à multiplicidade de linguagens,
criando diálogos e impulsionando outros modos de interação com o que se pode chamar de
arte híbrida. Na escola, todas essas perspectivas exigem uma ação que não focaliza a
'explicação sobre' o assunto, mas o 'estudo com' os e as aprendizes por meio de projetos.
É por tais caminhos que seguimos neste texto, considerando três focos:
 a valorização dos processos vividos em um projeto;
 as provocações produzidas a partir de curadorias educativas;
 os desafios inerentes à mediação cultural.
A proposta, como todos os demais trabalhos neste curso, é pensar juntos, pois como disse
Robert Filliou (1970, p. 12, tradução nossa): “O que quer que eu diga é irrelevante se não

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A arte tem sido minha trilha na Educação, somando, contaminando, provocando, promovendo
encontros com arte e cultura, especialmente na formação de educadores. Pesquisas e publicações,
assim como orientações e compartilhamentos em Grupos de Pesquisa caminham nessa trilha, desde
meu mestrado na Escola de Comunicações e Artes e no doutorado na Faculdade de Educação, ambos na
Universidade de São Paulo, nas passagens pelas ações educativas de importantes exposições, nas ações
junto ao Programa de Pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura/Universidade
Presbiteriana Mackenzie e na luta por mais arte na Pedagogia. Grupos de Pesquisa: GPAP – Grupo de
Pesquisa Arte na Pedagogia e GPeMC – Grupo de Pesquisa em Mediação Cultural: contaminações e
provocações estéticas.
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incitar você a somar a sua voz à minha”2. Nesse caso, somar implica no estabelecimento de um
diálogo que exige o silenciar-se para ouvir o outro, o que poderá se abrir para rumos
inesperados, conectando-nos com o que foi aprendido com Dewey (2010), Paulo Freire (1987)
Rancière (2010 e 2012), entre tantos outros. Este texto, portanto, pretende alimentar
diálogos...

Processos de criação de artistas, aprendizes e educadores

São várias as concepções sobre o trabalho com projetos e suas articulações com a prática
transformadora. Conceber o trabalho com projetos como uma atitude pedagógica frente ao
ensino vai além de considerá-la como um método e podemos pensar sobre projetos a partir da
arte. Artistas trabalham por projetos?
A produção da famosa obra Guernica3, de Pablo Picasso, alvo do estudo de inúmeros teóricos,
como Arnhein (1976), foi um projeto que durou 34 dias e para o qual foram produzidos 45
desenhos preparatórios, sendo a obra recriada até seu término, quando saiu do ateliê do
artista para representar a Espanha na Exposição Internacional em Paris. O processo de criação
de Guernica abre o texto sobre projetos no livro Teoria e prática do ensino de arte: a língua do
mundo (Martins et al, 2010, p. 143-150), justamente porque pela ação do artista é possível
perceber que um projeto é um perseguir de ideias que nascem no próprio fazer. Como disse
Pareyson (1984, p. 32), a arte “é um tal fazer que enquanto faz, inventa o por fazer e o modo
de fazer”. Há uma intenção, uma ideia que vai se transformando na própria ação.
O mesmo acontece na escola, quando os projetos nascem de uma ideia propositora ou de
um fio condutor, que tanto pode partir dos alunos como do professor que se ocupa em ler os
interesses, as necessidades e os desafios, em função das oportunidades de desenvolvimento
daqueles que estão sob sua orientação. Para isso é preciso uma avaliação iniciante,
diagnóstica, que indique como os alunos lidam com a questão de imagens móveis ou estáveis
em suas produções e leituras, o que sabem, o querem saber, como podem pesquisar, ou

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Robert Filliou, como artista, já esteve na 30ª Bienal de São Paulo. A frase que cito neste texto se tornou
um ícone para mim.
3
A obra Guernica (3,51x7,82 m) está hoje no Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia, em Madri, e
só foi para a Espanha quando o governo de Franco foi deposto, desvelando a visão política de Picasso.
Esteve na II Bienal de São Paulo, em 1953.
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mesmo uma visita a um museu para leitura de algumas obras, entre outras ações possíveis.
Planejar encaminhamentos pode ser o segundo momento de um projeto, no qual serão
levantadas proposições que possibilitem aprender com o assunto e não apenas sobre ele.
Estratégias de busca em diferentes fontes, como a utilização de programas direcionados ao
ensino e aprendizado de arte, expedições a museus, parques, bibliotecas, etc. que propiciem o
encontro com a arte e a cultura, produções em diferentes linguagens, ou o aprofundamento
em uma delas, podem nos levar a proposições pensadas e avaliadas também com os
aprendizes. O replanejamento é fundamental e pode mudar o rumo do projeto, do mesmo
modo que Guernica foi sendo transformada durante o fazer. Não há, sob essa perspectiva,
uma única produção, mas muitas, desvelando todo o processo vivido. O terceiro momento, a
sistematização, acontece quando podemos examinar junto com os alunos todo o caminho
vivido e todas as avaliações feitas ao longo do processo, a fim de permitir uma apropriação do
que foi estudado, descoberto, do que foi mais significativo e do que poderia ter sido diferente,
talvez abrindo espaço para outro projeto.
Os materiais educativos da Midiateca Arte na Escola4 são exemplos de projetos que
partem de uma avaliação iniciante (O passeio dos olhos dos alunos), encaminham propostas
(Ampliando o olhar; Conhecendo pela pesquisa; Desvelando a poética pessoal) e sistematizam
o que foi construído (Amarrações de sentido: portfólio e Valorizando a processualidade),
sempre na busca constante e desafiadora de possibilitar encontros com os territórios de arte e
cultura. Linguagens artísticas, códigos das linguagens entre forma-conteúdo, materialidades,
processos de criação, patrimônio cultural, saberes estéticos e culturais, são territórios
inseridos em um pensamento rizomático, que fundamenta essa midiateca, e expandem as
possibilidades de um projeto, abrindo frestas para além do lugar comum. Como exemplo,
podemos observar o mapa potencial do documentário Ilusões fotográficas de Vik Muniz
(2002).

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A Midiateca do Instituto Arte na Escola oferece uma variedade de materiais educativos. Entre eles 162
documentários sobre arte brasileira, em especial a contemporânea, sendo 41 online, acompanhados por
materiais educativos disponíveis em pdf.
3
Para cada vídeo, uma cartografia revela vários aspectos que poderiam ser trabalhados e
muitos projetos com focos que se conectam e/ou se aprofundam. Revela, também, um
pensamento rizomático, porque esses aspectos não se mostram como uma listagem de ações
sequenciais, mas potências que podem construir percursos, somando conceitos e experiências.
Nessa perspectiva, o conhecimento não é compreendido como um sistema arbóreo em que a
hierarquização do saber com disciplinas ou saberes fragmentados não se comunicam. Os
filósofos Deleuze e Guattari (2009) trazem outra metáfora: o rizoma, um tipo de caule, cujas
pequenas raízes, nele emaranhadas em meio a diminutos bulbos, se conectam em vários
pontos, formando um conjunto complexo, no qual a multiplicidade de aspectos rompe com a
hierarquização, o que permite à cartografia criar mapeamentos outros, sempre reinventados.
Criar rizomas é viver processos de criação com múltiplas conexões para além do que já se
sabe. Para Cecília Almeida Salles (2011, p. 66), a criação é “como um percurso direcionado por

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um projeto, inserido na continuidade do processo. É a tensão entre projeto e processo,
deixando aparente o ato criador como um projeto em processo”. Nessa tensão estão o caos, o
acaso, o diálogo com aquilo que vai sendo construído, as pesquisas, acertos e desacertos, as
tomadas de decisão pelo meio do caminho. E é desse modo que se revelam poéticas, tanto dos
aprendizes como dos educadores, e, para acompanhar todo o rico processo contido em um
projeto, a nossa documentação pedagógica há de ser registrada, assim como os portfólios ou
diários de bordo confeccionados pelos alunos.
Para Fernando Hernández (2000, p. 166), “O que caracteriza definitivamente o portfólio
como uma modalidade de avaliação não é tanto o seu formato físico (pasta, caixa, CD-ROM,
etc.), mas sim a concepção de ensino e de aprendizagem que evidencia”. E essa concepção se
tornará visível pela maneira particular de cada aluno ao explicitar seu próprio processo de
aprendizagem, as descobertas e produções mais significativas, avaliando e se apropriando do
processo vivido. Portfólios individuais, de grupos ou de toda a classe tornam-se produções que
também permitem que as famílias compreendam e participem do processo educativo.

Curadorias educativas: ampliando contatos com arte e cultura

Entre as ações de um projeto, destacamos o conceito de ‘curadoria’, um dos territórios de


arte e cultura que aprofundamos em publicações como Pensar juntos mediação cultural:
[entre]laçando experiências e conceitos (Martins, 2014), desenvolvido junto ao Grupo de
Pesquisa Mediação Cultural: contaminações e provocações estéticas.
Curadoria é criação! O curador inventa, pesquisa, seleciona, organiza e cria conceito-
chave capaz de impulsionar leituras do público, embora também se discuta o quanto pode
determinar caminhos restritos aos artistas para adequá-los à sua própria criação. Um
professor-curador assume essa ação quando seleciona obras, espetáculos, músicas que serão
apresentados aos aprendizes ou quando planeja visitas a instituições culturais, organiza
exposições, e apresentações de seus alunos e abre espaços para intervenções poéticas.
Um bom exemplo é a Sala de Interpretação da Pinacoteca do Estado de São Paulo, na qual
imagens de obras do acervo provocam o público-curador. Em um pequeno folheto azul está a
tarefa: “Selecione, organize e disponha as imagens no mural, formando sua coleção” e
pergunta: “Como se chama sua exposição? Por quê?” Na ação mediadora, criada pela equipe

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do Núcleo de Ação Educativa, vemos contínua provocação à criação, evidenciada por outras
ações propostas na mesma sala, como a organização de uma coleção a partir de objetos
oferecidos, assim como em outras salas expositivas, onde um texto de parede convida o
público a fazer inter-relações das obras exibidas na sala e uma obra contemporânea.
Selecionar e combinar são propostas para criar uma curadoria ou uma coleção que
provoque diálogos não só entre o público e as obras, mas também entre as obras.
Como em toda curadoria, a escolha das imagens faz trabalhar o olhar, um olhar escavador de
sentidos. Olhar mais profundo e ao mesmo tempo sem pressa, ultrapassando o
reconhecimento, o fim utilitário das imagens, e que se torna um leitor de signos. Nesse
movimento do olhar, segundo o filósofo francês Georges Didi-Huberman (1998), não só olhamos
a obra como ela também nos olha. Atento aos sentidos das imagens, tal qual um arqueólogo
que escava a procura do desconhecido, o professor-pesquisador é um leitor de imagens que
elege aquelas que vão adentrar na sala de aula para o deleite e investigação dos alunos.
Nessa tarefa de leitura, as sandálias de professor-pesquisador imantam imagens para compor
uma seleção, uma combinação de imagens. Seleção é dizer sim e não, sempre é ênfase e
exclusão. Combinação é recorte. Todo recorte é comprometido com um ponto de vista que se
elege, exercendo a força de uma idéia, de um conteúdo que é desejo explorar ou de uma
temática possível de desencadear um trabalho junto aos alunos.
Selecionar e combinar são, então, uma interpretação do professor-pesquisador. Não uma
interpretação que cria a armadilha de responder questões, mas a interpretação que vai propor
aos alunos um processo instigante de novas e futuras escavações de sentido. Interpretação
entendida como um encontro "entre um dos infinitos aspectos da forma e um dos infinitos
pontos de vista da pessoa” como diz Pareyson (1984, p. 167). Pontos de vista que, se
socializados num grupo, proliferam em múltiplos sentidos.5

Curadorias educativas expandem olhares para os territórios de arte e cultura trazendo


aspectos às vezes impensados ou pouco explorados, como o patrimônio cultural e a cultura
popular; problematizam e potencializam espaços de criação, selecionando obras com a
intenção de gerar diálogos, confrontos, estranhamentos, análises comparativas. A
interdisciplinaridade, o hibridismo, a cultura visual podem alimentar nossa curadoria
educativa, planejada para instituir espaços de criação por meio das obras sugeridas, sem se
fixar nas obras consagradas, mas, sim, naquelas que se expandem para o patrimônio cultural,
para a cultura popular, para a produção dos próprios estudantes.

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Material educativo preparado para a 4ª Bienal do Mercosul, como coordenadora da Ação Educativa
(INVENTÁRIO dos achados: o olhar do professor-escavador de sentidos. Supervisão geral Mirian Celeste
Martins e Gisa Picosque. Porto Alegre: Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul - Ação Educativa,
2003. p. 8. Disponível em: <http://www.bienalmercosul.art.br/4bienal/site/pdf/4BM_Caderno.pdf>.
Acesso em: set. 2016.
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Compomos curadorias educativas para problematizar, ampliar, provocar encantamentos e
estranhamentos, enfim, aproximar todos da arte, pois acreditamos no outro, como Marcel
Duchamp (1986, p. 74) que afirma: “O ato criador não é executado pelo artista sozinho; o
público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e
interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato
criador”.
Aprendizes também criam suas próprias curadorias educativas quando escolhem
imagens oferecidas pela web para suas pesquisas. Nessa tarefa, tornam-se capazes de
descobrir que qualquer tema pode gerar múltiplas conexões transdisciplinares; de aprender
que as imagens precisam ter qualidade de reprodutibilidade; de perceber a necessidade da
busca das autorias e citá-las devidamente; de gerar critérios e conceitos que fundamentem as
escolhas das obras e de entender a importância do modo como as apresentam.
Dessa forma, a curadoria educativa impulsiona a ampliação de repertório, pois é um
gatilho para novas conexões entre artistas de épocas e espaços diversos, entre linguagens da
arte, entre áreas de conhecimento, entre nossas escolhas e a de nossos aprendizes na relação
direta com o cotidiano, trazendo a contemporaneidade para a escola, mesmo que estejamos
tratando de épocas passadas, ultrapassando a linearidade cronológica que tende a nos
perseguir.
Nem sempre percebemos o teor de nossas escolhas ou mesmo as fronteiras que surgem
com tais escolhas. Às vezes, são traçadas barreiras que impedem acesso para um universo
desconhecido da arte contemporânea, de outros povos, do que nos é estranho e sobre o qual
ainda temos poucas informações. Ficamos presos ao que já conhecemos, repetindo
“biografias” para apresentar artistas, como se essa fosse a nossa tarefa de educadores de
arte? Quais espaços oferecemos para provocar reais encontros com a arte?

Professores-propositores e os desafios da mediação cultural

Nós somos os propositores: nós somos o molde, cabe a você soprar dentro dele o sentido da
nossa existência.
Nós somos os propositores: nossa proposição é o diálogo. Sós, não existimos. Estamos à sua
mercê.
Nós somos os propositores: enterramos a obra de arte como tal e chamamos você para que o
pensamento viva através de sua ação.

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Nós somos os propositores: não lhe propomos nem o passado, nem o futuro, mas o agora.
Lygia Clark (1968)

Artistas-propositores, como Lygia Clark, Hélio Oiticica e Robert Filliou, provocaram a ação.
Hoje, outros artistas têm ativado corpos, em obras, instalações, no teatro e nas salas de
concerto, em exposições entendidas como “campos dinâmicos de agregação de experiências”,
como diz a historiadora, professora e crítica de arte Claire Bishop (2012), que tem apontado a
arte participativa como uma marca contemporânea. O artista Olafur Eliasson, além de propor
situações que nos jogam na experiência estética, escreve: “Invertamos o ponto de vista: o
museu como sujeito, o espectador como objeto” (ELIASSON, 2012, p. 25). Sentirmo-nos
sentindo, vermo-nos vendo, perceber-nos pensando, convida Olafur em seu texto e em suas
obras.
Do ponto de vista contemporâneo pode-se, por exemplo, olhar a arte como parte
integrante da vida dos indígenas brasileiros no passado e nos dias de hoje; pode-se olhar o
barroco brasileiro sob a ótica da colonização portuguesa, das obras de Adriana Varejão ou pelo
estado do patrimônio hoje; pode-se olhar o neoclássico pelas mãos de Dom João VI, fugindo
de Napoleão, em contraposição ao olhar modernista. “Tudo junto e misturado”, dizem os
jovens. É a antropofagia (anthropos - homem; phago - comer) dos modernistas Oswald e Mário
de Andrade, Tarsila do Amaral, Raul Bopp, reavivada pelos Tropicalistas nos anos de 1970 e
que podemos retomar novamente, como fios que enlaçam o presente. Se nossos índios
comiam apenas a carne dos inimigos valentes, metabolizando, assim, simbolicamente o valor
do outro, hoje somos mediadores antropófagos conectando culturas, vivendo e somando
experiências, que comemos, digerimos e produzimos rizomas em múltiplas conexões.
Mediação cultural, como um “estar entreS” – grafado no plural como licença poética para
provocar o pensar sobre estar em meio a muitos, sejam aprendizes, obra, artista, curador,
críticos de arte, estudiosos da arte, espaço museológico, legenda, e..., e... É o olhar/corpo
inteligente sensível, aberto e em vigília criativa, somando vozes para ver mais, ouvir mais,
pensar mais. Um “estar entreS” não é uma ponte que vai de uma margem a outra e que
distingue duas posições antagônicas de quem sabe e de quem não sabe, mas, sim, indica,
como em um rizoma, “um movimento transversal que as carrega uma ´e´ outra, riacho sem
início, sem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio”, como teorizam

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Deleuze e Guattari (2009, p. 37). Um tecer sem início e sem fim, que traz em seus fios muitas
marcas da história e da cultura, esgarçados pelos contextos de suas texturas, em fluxo
partilhado com tudo e todos que estão à nossa volta.
Mediação é [con]tato, daquele que toca e é tocado. Entretanto, no teatro, no museu, na
sala de aula pode acontecer a indiferença, o afastamento, a recusa do contato. Aí, como diz
Agnaldo Farias (2007, p. 67), é que devemos pensar cuidadosamente na mediação cultural.
Ocorre que a mediação, empregada como fator de aproximação, pode ser problemática,
especialmente quando, no afã de estabelecer a ponte entre a obra e o público, incorre em
estratégias simplificadoras, trai exatamente aquilo que pretende defender. Ora, mediação não
pode incorrer na simplificação do processo que se estabelece entre público e obra, não pode
pretender reduzir a complexidade do trabalho que está sendo apresentado. Ela tem que
garantir que a obra seja apresentada em toda a sua plenitude, fruída da melhor maneira
possível. Mas temos que admitir que tem sido muito comum o uso e abuso de estratégias
didáticas no sentido trivial e pedante do termo. Esse tem sido nosso maior pecado. Em relação
às estratégias de aproximação, incomodam aqueles que convertem as obras em ilustrações de
teses frouxas, aparentadas com notas de rodapé de teor superficial. O professor/mediador tem
que tomar muito cuidado em relação a isso.

Reconhecendo que o saber não é um conjunto de conhecimentos e a ignorância a sua


falta, mas uma posição frente ao conhecimento, como nos diz Rancière (2010 e 2012), nossa
ação mediadora requer considerar o outro em uma posição de igualdade (nunca de
inferioridade), vivendo uma prática emancipadora. Uma mesma inteligência em ação frente ao
conhecimento! Uma mesma inteligência em ação frente à arte. Para isso temos de silenciar
nossas vozes para dar voz ao outro e essa não é uma tarefa fácil para nós, educadores.
Para Rancière, a explicação é considerada um ato embrutecedor do educador porque não
provoca o pensar. É outra a ação, quando há apresentação de uma obra (perceber seu
tamanho pode ser surpreendente!) ou quando oferecemos informações interessantes para
que se possa pensar mais sobre ela e trocar nossas impressões com os outros. Pesquisar,
buscar outras interpretações, estudos, críticas sobre as obras são também ações mediadorase
que vão além de justificar uma obra dentro de um determinado movimento, por exemplo.
Nossas aulas são de história da arte ou de arte? Como provocamos encontros com o fazer e
com o universo da arte?

Uma experiência estética

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Larrosa (2004) nos alerta para nossa condição babélica. O que falamos não é
compreendido do mesmo modo pelo outro. Contou-me uma professora que somente quando
seus alunos viram as obras na Pinacoteca é que perceberam que as belas reproduções que
tinham visto em sala de aula não eram “as” obras. Como fazer para que se imaginem frente às
obras? Como provocar a percepção materialidade da obra? Como fazê-los ativar a obra
imaginando como o artista se colocou frente ao foco de sua obra, como sintetizou suas ideias,
como escolheu seu modo de se expressar e como isso de liga à sua poética? Diz Dewey (2010,
p. 137)6:
Para perceber, o espectador ou observador tem de criar sua experiência. E a criação deve incluir
relações comparáveis às vivenciadas pelo produtor original. Elas não são idênticas, em um
sentido literal. Mas, tanto naquele que percebe quanto no artista deve haver uma ordenação
dos elementos do conjunto que, em sua forma, embora não nos detalhes, seja idêntica ao
processo de organização conscientemente vivenciado pelo criador da obra. Sem um ato de
recriação, o objeto não é percebido como uma obra de arte. O artista escolheu, simplificou,
esclareceu, abreviou e condensou a obra de acordo com seu interesse. Aquele que olha deve
passar por estas operações de acordo com seu ponto de vista e seu interesse. Em ambos, ocorre
um ato de abstração, isto é, de extração daquilo que é significativo.

Dewey aponta a singularidade de cada experiência, nomeando-a como “uma experiência


estética”, quando ela é afetiva, cognitiva e conectada à vida. Uma experiência que nos toca,
que nos acontece, como designa Larrosa (2002).
Somar sua voz à minha, somar nossa voz à de nossos aprendizes, coloca-nos juntos na
experiência e sempre renova horizontes potenciais na escola contemporânea. O convite é para
que possamos valorizar processos vividos, tornarmo-nos conscientes de nossas curadorias
educativas e dos desafios da mediação cultural.
Para encerrar, trago um fragmento da poesia ‘Maldição’, de autoria do poeta, compositor,
cantor e cronista Zeca Baleiro (2010)7: “Meu coração não quer dinheiro, quer poesia”. A poesia
está escrita em uma tira cor de laranja enrolada dentro de uma caixa de remédio com tarja
preta e “Venda sob prescrição poética”. Lê-se na caixa a posologia: “Uso oral - cinco estrofes”

6
O livro de John Dewey foi publicado em 1934, a partir de conferências na Universidade de Harvard,
quando o filósofo da educação estava com 72 anos.
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A Editora da Universidade Federal de Goiás oferece algo mais do que um songbook de Zeca Baleiro.
Roger Mello uniu texto e imagem que com lirismo, originalidade e ludicidade apresentam o universo do
artista poeta.
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e mais uma informação importante: “Agite-se antes de usar.”. Esta é a minha recomendação
ao final deste curso: Agite-se!

Referências
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