Alceste No Hades

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

ESCOLA DE MÚSICA E ARTES CÊNICAS

RENATA ALESSANDRA WEBER

ALCESTE NO HADES:
Poéticas do Feminino na Criação Cênica Contemporânea

Goiânia
2010
RENATA ALESSANDRA WEBER

ALCESTE NO HADES:
Poéticas do Feminino na Criação Cênica Contemporânea

Trabalho de conclusão de curso apresentado como


requisito parcial para obtenção do título de Bacharel
em Artes Cênicas, pela Universidade Federal de
Goiás

Orientador: Prof. Dr. Alexandre Silva Nunes.

Goiânia
2010
RENATA ALESSANDRA WEBER

ALCESTE NO HADES:

Poéticas do Feminino na Criação Cênica Contemporânea

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à Escola de Música e Artes
Cênicas da Universidade Federal de Goiás
em dezembro de 2010 e aprovada pela
banca examinadora constituída pelos
professores.

_______________________________________________________________

Prof. Dr. Alexandre Silva Nunes

_______________________________________________________________

Prof. Dra. Urânia Maia

_______________________________________________________________

Prof. Dr. Adriano Correia


Aos meus pais, Ivani Fátima Weber e Eloi Weber, por
acreditarem e me apoiarem incondicionalmente a
sempre seguir meus próprios sonhos. E em memória de
Melânia Stiermer Pastóri, minha amada nona, por ter
sido meu grande exemplo de mulher.

AGRADEÇO
Ao meu orientador Alexandre Nunes, por toda a atenção, dedicação e paciência
emprestados a este trabalho.

A Urânia Maia, por ter me apresentado a “Alceste”, texto analisado nesta pesquisa.

A Valéria Braga, por todo carinho e confiança. Por dedicar parte de seu tempo a ouvir as
mágoas que nasciam em determinados momentos, sendo eles os mais difíceis e, acima de
tudo, por ter sido a mais especial entre todas.

A todos os professores, tendo cada um a seu modo contribuído para a minha formação
acadêmica e artística.

A Elisa Gomes e Agostinho Bizinoto, meus pais no teatro, por terem a sensibilidade de
perceberem a arte dentro de mim e por acreditarem que eu era capaz.

Aos meus mais lindos amigos que trago sempre no coração, mesmo com toda a distância
me incentivavam e alimentavam minha alma com suas energias positivas, e por entenderem
a minha ausência para me dedicar à academia: Elenor Cecon, Mary Claudia e Bia Galharini.

A Diego Weber, meu querido irmão, simplesmente por me amar.

A Cia de teatro Sala 3 por toda a experiência artística me que proporcionou nos quase cinco
anos de trabalho árduo em busca de uma arte completa.

Aos meus queridos e especialíssimos: Taiom Tawera, Diogo Sanqueta e Gerda Arianna.
Agradeço por todas as deliciosas gargalhadas e por todas as lágrimas que compartilharam
comigo nessa caminhada, foram quatro longos anos da mais pura cumplicidade, sem vocês
tudo teria sido muito menos doce, pois como diria o poeta: “Ninguém disse que ia ser fácil...
mas também ninguém disse que ia ser tão difícil”. Obrigado!

A ele, que em meio a uma tempestade me fez sentir o melhor de todos os sentimentos!
Há de haver algum lugar
Um confuso casarão
Onde os sonhos serão reais
E a vida não...

Um lugar deve existir


Uma espécie de bazar
Onde os sonhos extraviados
Vão parar
Entre escadas que fogem dos pés
E relógios que rodam pra trás...

Chico Buarque

RESUMO
O estudo, de caráter teórico-prático, toma como base inicial de referência um
estudo bibliográfico focado na tragédia grega antiga Alceste, de Eurípedes.
Primeiramente, é realizada a análise propriamente dita dos conteúdos e da estrutura
dramática de Alceste. Na obra, destaca-se a virtude altruísta da personagem, que
aceita a morte para recuperar o marido, coadunando as temáticas de amor e morte.
Dando sequência aos estudos, a personagem Alceste é amplificada, a partir dos
elementos arquetípicos de duas deusas gregas: Deméter e Perséfone. Elas
englobam alguns dos principais temas da feminilidade, segundo a mitologia grega.
Nesta pesquisa, alguns aspectos da vida de Eurípeses (o autor), considerado o
trágico solitário do fim do século V a.C., são estudados. A investigação tem
continuidade com a busca de alguns elementos do teatro grego antigo, que
colaboram com a compreensão da temática. Esta pesquisa se desenvolve também
através de experimentações cênicas, de cunho contemporâneo, nas quais
trabalham-se especialmente as temáticas do feminino, do amor e da morte.

Palavras-chave: Eurípedes, Alceste, feminino, amor e morte.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 - Deméter.............................................................................................41
Ilustração 2 – Hades e Perséfone...........................................................................42
Ilustração 3 – Perséfone.........................................................................................43
Ilustração 4 - Perséfone..........................................................................................43
Ilustração 5 - Deméter.............................................................................................44
Ilustração 6 - Deméter.............................................................................................44

SUMÁRIO
RESUMO...................................................................................................................7
LISTA DE ILUSTRAÇÕES........................................................................................8

INTRODUÇÃO........................................................................................................10

1 ALCESTE NO HADES........................................................................................13

2 O EFEITO TRÁGICO..........................................................................................22
2.1 O poeta da busca.........................................................................................29

3 UM BREVE PASSEIO PELA MITOLOGIA.........................................................33

4 CAMINHANDO RUMO À CRIAÇÃO CÊNICA....................................................39


4.1 Considerações finais....................................................................................45

REFERÊNCIAS.......................................................................................................46

INTRODUÇÃO
Esta pesquisa é resultado de curiosidades e desejos acerca de alguns
elementos referentes à temática do feminino e da mitologia grega, em relação com o
teatro. Essas curiosidades surgiram durante minha vida artística, e me
acompanharam até o ingresso na universidade. Foi lá, na vida acadêmica, que elas
foram sendo intensificadas e amadurecidas.
Em 2005, ao término de um curso técnico de artes dramáticas, tínhamos
como trabalho final a montagem de um espetáculo, o texto escolhido foi Édipo Rei,
de Sófocles, uma tragédia grega das mais conhecidas. Na ocasião interpretei
Jocasta, a mãe/esposa do rei Édipo.
Passados três anos, em 2008, já cursando Artes Cênicas na UFG, tive
contato, por meio de um trabalho vinculado a uma companhia de teatro da cidade,
com o universo feminino contido nas músicas do compositor Chico Buarque.
Desde então, fiquei com esses dois desejos pulsando fortemente em mim: o
teatro grego, através da dramaturgia trágica e o universo feminino. Depois da
entrada no curso, tive certo contato com as temáticas indicadas, principalmente no
que diz respeito ao teatro grego, o que aguçou ainda mais meu interesse.
Vislumbrei a possibilidade de unir esses dois pontos de interesse, quando
percebi a possibilidade de um ponto de convergência entre eles, afinal são muitas as
figuras femininas de destaque dentro das tragédias gregas: Medéia, Antígona,
Jocasta, Electra, Clitemnestra, entre outras.
Porém, precisava me apaixonar por uma delas de forma especial para
continuar alimentando meu desejo e dar prosseguimento à pesquisa. Apesar de ser
inegável minha tendência a pesquisar Medéia ou Antígona, por já conhecer as suas
comoventes trajetórias, intuitivamente me negava a optar por qualquer uma delas.
Foi quando, um dia, reunida com amigos na cantina da universidade, uma
professora pára, nos cumprimenta e me fala de Alceste, enfatizando seu final feliz na
obra, que destoa do final de todas as tragédias. Em seguida, a professora diz:
“Alceste vai da desdita para a dita”.
E assim estava feita a minha escolha. Depois de ler a obra e identificar o
entusiasmo da professora, tinha em mãos uma tragédia grega homônima à
protagonista. A esposa caracterizada por seu altruísmo, que aceita morrer por amor
ao marido: Alceste, de Eurípedes.
Porém, altruísmo definitivamente não era sua única característica. Apesar de
ser este o principal enfoque da minha análise, Alceste trazia consigo muito mais, e
na busca por ampliar os pontos de vista sobre a personagem, dando a ela
particularidades do feminino, escolhi duas deusas gregas como arquétipos capazes
de compor Alceste, são elas: Deméter (deusa da terra cultivada) e Perséfone (rainha
do Hades).
Depois de observar os elementos míticos que permeiam a tragédia, percebi a
necessidade de me aprofundar em alguns estudos que colaborassem para a
compreensão da temática.
Assim, este trabalho se organiza inicialmente através de uma pesquisa
bibliográfica, acompanhada de um processo de experimentação, que resultará na
apresentação de uma performance de cena. Enquanto trabalho de conclusão de um
curso de bacharelo, achei oportuno me concentrar no estudo de uma peça teatral de
referência, e em algumas possibilidades cênicas de levar ao palco estes estudos, na
forma de experimento artístico.
No que se refere ao presente trabalho escrito, ele está estruturado em quatro
capítulos, dispostos da seguinte forma: 1) Alceste no Hades – consiste na análise da
tragédia de Eurípedes, focada no altruísmo da personagem, combinando os temas
amor e morte; 2) O Efeito Trágico – discute o gênero teatral trágico e o efeito que ele
causa no espectador, 2.1) O Poeta da Busca – como parte do capítulo sobre o efeito
trágico, este subcapítulo apresenta uma trajetória de Eurípedes, aspectos de sua
vida e de sua obra; 3) Um Breve Passeio pela Mitologia – como o próprio título
indica, trata-se de um breve vislumbre da mitologia grega, trazendo conceitos
essenciais à identificação dos elementos míticos presentes em Alceste; 4)
Caminhando Rumo à Criação Cênica – Trata-se de uma exposição do processo de
experimentações, em prol da montagem cênica, que será embasada em todos esses
elementos estudados nos capítulos anteriores. Este processo de experimentação
teve como base de referência a tríade: feminino, amor e morte, encontrada em
Alceste e nas figuras arquetípicas selecionadas.
A tragédia grega Alceste, apesar de ter sido a mais antiga de Eurípedes a
chegar até nós, não vem sendo um texto de grande destaque nas produções atuais.
Em uma breve investigação sobre as possíveis montagens do texto, encontrei
pouquíssimas informações.
Pelo mundo afora vemos poucas montagens significantes do texto, a não ser
várias óperas que se intitulam Alceste, porém sem a mínima certeza de estarmos
falando da Alceste de Eurípedes. No Brasil, a representatividade desta tragédia é
ainda menor, não tendo sido possível encontrar muitas informações acerca de
montagens do texto.
1. ALCESTE NO HADES

Alceste, segundo a mitologia grega, é neta de Poseidon (Deus do Mar) e filha


de Pélias. Tem como uma das irmãs Medéia, que planeja a morte do próprio pai.
Alceste, porém, é a única das filhas que se recusa a participar do parricídio.
A tragédia grega Alceste, de Eurípedes, é a peça mais antiga dentre as que
chegaram até nós e está entre as raras tragédias que têm um final feliz. Afora isso,
alguns autores antigos diziam que o texto seria o último da sequência de uma
tetralogia. Desses quatro textos, os três primeiros seriam tragédias propriamente
ditas e Alceste traria aspectos próximos ao drama satírico, não deixando, é claro, de
conter características trágicas.
No segundo capítulo deste trabalho, apresentaremos algumas das
características das obras de Eurípedes, dentre as quais está o enfoque privilegiado
na individualidade do ser humano, nos seus sentimentos e não mais nas figuras
divinas. Podemos observar em Alceste que os principais personagens são
praticamente personificações dos próprios sentimentos. Temos Alceste com seu
altruísmo, Heraclés e Apolo movidos pela gratidão e Ádmeto e Feres representando
o antagonismo de um mesmo sentimento: o egoísmo. Ádmeto, porém, é ainda
caracterizado pela covardia, a qual o leva a permitir a morte da esposa, de modo a
que ele próprio viva.
O drama de Eurípedes inicia com a apresentação de Apolo, também
conhecido pelo epíteto de deus da luz. Isso nos revela mais uma das características
da obra do autor: trazer a figura do deus somente no prólogo ou no epílogo dos
dramas. Apolo tem a função de proteger o palácio do rei da Tessália, Ádmeto, cujo
nome significa, etimologicamente, o indomável. O deus se apresenta nessa função
depois de ter seu filho, Asclépio, morto pelos raios de Zeus. Neste contexto, põe fim
à vida de alguns artesãos do fogo, os chamados cíclopes, e, por esta razão, é
castigado e condenado a vagar pela terra como pastor de ovelhas.
Em suas primeiras palavras, ele nos conta como conseguiu enganar as
Moiras1, embriagando-as para salvar Ádmeto de seu sacrifício. Ele faz isso por

1
Moiras eram as três deusas responsáveis pelo destino dos mortais; Cloto é a responsável por fiar,
Láquesis por marcar o destino e Átropos por cortar o fio, pondo fim à vida de um mortal.
gratidão à atitude hospitaleira do rei, que o acolhe justamente após o castigo que
recebera. Mas seu feito obteve êxito apenas em parte, já que, para a salvação de
Ádmeto, era necessário ofertar outro cadáver ao mundo subterrâneo. Mas quem
seria capaz de doar a própria vida para salvar a de Ádmeto? Os primeiros a serem
cogitados são os seus pais, por serem velhos e já terem vivido bastante, mas
Ádmeto se surpreende com a negação do pedido. A única pessoa a aceitar a morte
em prol da vida do rei é sua própria esposa, a rainha Alceste.
Nesse momento do texto, ainda não nos certificamos se a atitude da
protagonista configura um ato de heroísmo, ou de plena ingenuidade e submissão,
perante a figura masculina. Mas já percebemos a figura da rainha sendo alçada em
benefício da vida de Ádmeto. Por essa razão, o altruísmo da rainha é sempre
enfatizado, dando-lhe as características de uma heroína corajosa e forte,
representante da capacidade máxima de amar do ser humano. Por outro lado,
Ádmeto é avaliado por sua total covardia e apatia, ao permitir que Alceste seja
sacrificada em seu lugar.
Thânatos surge como personificação da morte. Ele empunha uma espada,
tem vestes negras, uma longa barba e é dono de uma aparência claramente
masculina. A morte chega certa de sua missão: levar Alceste consigo, e é taxativa
ao afirmar a Apolo que, dessa vez, não salvará o corpo da rainha como salvou o do
rei.
Apolo ainda assim se mostra calmo, e faz alusão a um certo forasteiro que
virá até o palácio, pedir abrigo a Ádmeto. Essa característica de Apolo é outra de
suas características, enquanto deus que enxerga de longe. Na tragédia, ele sempre
adianta os fatos. A morte, no entanto, demonstra pressa e não dá importância às
palavras do deus, sempre clamando pelo corpo de Alceste, que deve ser preparado
para o sacrifício. Temos aqui a primeira descrição de uma espécie de ritual de
morte, pelo qual todos que se encontrassem perto do fim deveriam passar. A
primeira característica deste ritual é o corte de cabelo da vitima do sacrifício, através
da ceifa da morte, sendo os fios jogados em uma fogueira. Neste ponto, termina o
prólogo.
Em frente ao palácio, os cidadãos téssalos se encontram ansiosos a fim de
saber se a rainha ainda vive ou se já está morta; novamente nesse trecho do texto
encontramos elementos dos rituais que antecediam o sacrifício. Fazia parte das
manifestações rituais que as pessoas mais próximas do morto batessem as mãos
sobre as próprias cabeças, expressando a angústia causada pela perda.
Num outro trecho do texto, podemos ler a seguinte indicação ritual: “não
vemos sequer diante das portas a água lustral tirada das fontes para ser espargida
nos umbrais da casa onde há defuntos.” (EURÍPEDES, 1993, p. 161). Segundo
Ménard (1991, p. 116), faz-se referência, aqui, a uma tradição grega antiga, segundo
a qual, mergulhava-se um pedaço de madeira queimado uma espécie de carvão,
ainda em brasas, num vaso com água, de modo a orvalhar as pessoas que tivessem
tido contato com o cadáver, como forma de purificação.
O coro em sua angustiante espera por notícias, faz menção a Asclépio, o filho
de Apolo morto por Zeus. Asclépio era um deus de cura, que além de curar os
doentes tinha ainda o poder de trazer os mortos de volta à vida. Se não tivesse sido
morto por Zeus, seria capaz de salvar Alceste de seu destino.
As primeiras notícias sobre a rainha chegam por meio de uma serva que
relata os últimos momentos de Alceste no palácio e nos descreve minuciosamente
sua despedida. Segundo a serva, Alceste, percebendo que sua partida está próxima,
começa sua comovente despedida: banha-se em água pura, adereça-se com roupas
e jóias das mais preciosas, ajoelha-se em frente à lareira e reza. Rogando pelo
futuro de seus filhos, implora para que tenham casamentos dignos e uma sorte
oposta à dela: que ao invés da morte prematura, prosperem:

Ah! Senhora!
Já vou descer as profundezas infernais,
mas antes quero dirigir-te de joelhos,
pela última vez, minha sentida prece:
vela pelo dois filhos que deixarei órfãos;
une meu filho a uma esposa que ele ame
e minha filha a um marido incomparável
pela nobreza. Ouve, deusa, minha súplica:
outorga-lhes uma sorte muito melhor
que a de sua mãe moribunda! Em vez da morte
antes da hora, dá prosperidade a ambos
nas terras de seus pais e as delícias da vida!
(EURÍPEDES, 1993, p. 164).

Ao que tudo indica, a Senhora à qual Alceste se refere é Perséfone, a rainha


do mundo subterrâneo. Isso parece cabível porque Alceste está prestes a doar sua
vida ao Hades, de modo que é cabível que ela implore à esposa do deus do
submundo a prosperidade dos filhos. Porém, uma segunda interpretação pode nos
levar à terceira filha de Deméter, não muito conhecida na mitologia, mas que, como
nos informa Brandão (2009, p. 300), é conhecida exatamente pela alcunha de
Senhora. A história de origem dessa terceira filha de Deméter é curiosa. Diz a lenda
que Poseidon perseguia Deméter que, para fugir, disfarça-se de égua. O deus,
tomando a forma de um cavalo, encontra e copula com a deusa, gerando-lhe dois
filhos: além de Aríon, essa terceira filha, cujo nome só era conhecido pelos iniciados
nos Mistérios de Elêusis, e por esta razão ficou conhecida popularmente por
Senhora.
Dando sequência à história, a rainha percorre todos os altares do palácio,
proferindo as mesmas preces. Até esse momento ela consegue se manter tranquila
dentro do que a realidade permite, porém, ao se deparar com a cama, ninho onde se
entregou ao marido, Alceste cai em prantos, deitada sob os lençóis. Roga para que
não exista outra mulher que venha a substituí-la e deitar-se em meio àqueles
lençóis. É cruel sua tentativa de abandonar o leito: por vezes se afasta, mas volta a
se jogar na cama, inundando-a com suas lágrimas.
O adeus prossegue e agora a rainha se agarra aos filhos, que choram
acompanhando o pranto da mãe. Seu filho Êumelo sofre prevendo um futuro privado
da figura materna. Ela cumprimenta, um a um, todos os seus servos, contemplando
a tristeza com que eles a fitam, o que mais uma vez evidencia o caráter humilde
desta personagem.
Ádmeto, ao ver a despedida, percebe que, mesmo tendo sido poupado pelo
ato heróico da amada, pagará um preço ainda maior, sentindo o peso da vida sem a
esposa. As moiras, tendo sido enganadas para a salvação de Ádmeto agora se
cobram, levando para as profundezas o bem mais precioso do rei, e assim, mesmo
em vida o filho de Feres terá a alma morta, e será vítima do pior dos castigos: viver
torturado pela dor.
O rei surge à frente do palácio com Alceste nos braços. Em seus últimos
suspiros, a rainha tem delírios e vê a barca de Caronte 2 que se aproxima. Sente-se
pressionada a caminhar rumo à companhia de Hades e o desespero do rei é
assistido por todo o povo téssalo. Ádmeto, a pedido da própria Alceste, coloca-a em
seu sepulcro e observa os lamentos a partida da esposa. Mas ainda antes do fim de
sua agonia, a rainha profere seu último pedido, o mesmo feito à Senhora: repete
agora tendo como testemunha todo o povo de Feras. Diz ao marido que morre por
2
Caronte é um velho de barba branca, roupas sujas e olhos flamejantes. Navega de margem a
margem onde as almas esperam para terem seus corpos transportados em direção ao Hades, usa
um pequeno barco, o qual ele próprio rema.
sua honra, que jamais suportaria ver seus filhos órfãos de pai, e por isso tomou a
decisão de morrer em seu lugar. Mas exige, em forma de gratidão, que o rei prometa
em frente à cidade e seus cidadãos, que os filhos herdarão o palácio e que Ádmeto
não fará nenhuma mulher de madrasta para os filhos.
Nesse trecho, observamos a racionalidade pesando sobre o sofrimento.
Alceste chega a ser fria, no intuito de que suas palavras sejam levadas a sério e
ganhem o peso que, para ela, merecem. A mãe é quem agora fala e pensa
unicamente nos filhos.
Ainda nesse pequeno solilóquio da protagonista, vemos descritos aspectos do
pensamento grego referente ao casamento, quase um tabu, como em muitos
lugares do mundo até hoje. A virgindade era o que proporcionava à mulher uma
próspera união, e ainda nos demonstra, mesmo que de forma rasa, o sistema em
que se compunham as famílias:

A madrasta que chega


odeia os filhos do primeiro casamento,
E as víboras não se superam na maldade.
Um filho homem certamente encontrará
em seu progenitor a proteção que espera,
mas tu, filhinha, como poderás sem mim
viver honrada e puramente como virgem?
Que mulher acharás numa segunda esposa
de teu amado pai? Queiram as divindades
que ela não vá, descuidando de tua fama,
por em perigo a solidez de tuas núpcias
na flor da juventude! Já não terás mãe
para te dar em casamento, nem tampouco
para reconfortar-te na hora do parto,
quando nada equivale à feição materna.
(EURÍPEDES, 1993, p, 170).

O rei de Feras declara à esposa que jamais outra mulher se deitará em seu
leito, e que por toda a eternidade que a ele restar, odiará os pais por não terem se
colocado à disposição para o ato de sacrifício. A rainha morre e o luto é
estabelecido.
Na fala que segue, logo após a morte de Alceste, somos apresentados a mais
alguns pequenos rituais referentes à passagem de uma alma ao mundo subterrâneo.
São os rituais fúnebres. Ádmeto ordena que todos cortem seus cabelos e usem
roupas pretas. Até mesmo os cavalos, que serviam como transporte para o povo,
deveriam ter suas crinas ceifadas. Durante doze longas luas, não se poderia tocar
nem flautas nem liras. O único canto permitido era o hino fúnebre, esse cantado
para agradar ao deus das profundezas.
Em meio a essa atmosfera de luto, surge o episódio já anunciado por Apolo.
Heraclés que, seguindo ordens de seu primo Euristeu, rei de Tirinto, vem retirar as
éguas de Diomedes, filho de Ares (deus da guerra), e levá-las ao rei. O forasteiro
observa as vestes negras e os cabelos cortados. Então, decide recuar e pedir abrigo
em outro lugar, já que não seria justo se hospedar em um palácio onde o luto se
instaurou. Porém, Ádmeto insiste para que ele fique e se abrigue ali, ou seja, o rei
decide recalcar a própria dor para hospedar o forasteiro.
Esse é um dos poucos momentos do texto em que o rei é exaltado por um
adjetivo positivo: sua hospitalidade é o que faz com que ele seja protegido pelos
deuses. Prova disso está no início do texto, quando Apolo admite proteção ao
palácio em forma de gratidão pela recepção do rei. Isso porque como também já
citamos, no decorrer da tragédia só são creditados a ele egoísmo, covardia e
fragilidade.
Por meio de Heraclés, o texto amplia seus aspectos míticos. Heraclés é um
herói que tem como principais feitos doze grandes trabalhos. Os doze trabalhos
foram impostos pela deusa Hera (rainha das deusas gregas) e, se o herói passasse
por todos, deixaria de ser um simples mortal para se tornar imortal.
Entre seus doze trabalhos destacamos o oitavo, ou seja, referente às Éguas
de Diomedes, por ser no cumprimento dessa missão que Heraclés passa por Feras
e se abriga no palácio de Ádmeto.
Para a descrição desse oitavo trabalho, parafrasearemos a versão de
Brandão (2009, p. 109). Diomedes era dono de quatro éguas, as quais se
alimentavam de carne humana, mais precisamente de estrangeiros que por ali
passavam. Euristeu ordena que o herói traga as éguas para Argos. Heraclés lutou
contra o próprio Diomedes e venceu a batalha, jogando o corpo às éguas, que
depois de devorarem o dono, calmamente se deixaram ser conduzidas até Argos.
No palácio, o corpo de Alceste está pronto para o ritual fúnebre. É
encaminhado até os cidadãos de Feras para que lhes prestem as últimas
homenagens. Em meio ao cortejo, surge o pai de Ádmeto, que traz consigo um
manto. Ele pretendia dá-lo a Alceste para que o levasse consigo ao mundo dos
mortos, mas o rei investe agressivamente contra o pai, impedindo-lhe de colocar o
manto no sepulcro. Nesta passagem prolifera um embate antagônico de dois
personagens movidos pelos mesmos sentimentos: o egoísmo e o apego à vida
saltam em suas palavras.
A conversa consiste em uma troca de acusações e argumentações, como
justificativas para as próprias atitudes. Mas a verdade é que Feres demonstra maior
coerência, ao explicar ao filho que não tinha nenhuma responsabilidade em pôr a
própria vida em prol da dele, pois já havia lhe dado muito, além de tudo que o rei
herdara, havia lhe dado a própria vida:

Eu mesmo te engendrei
e te criei para fazer de ti, meu filho,
o senhor desta casa, mas nada me obriga
a perecer antes do tempo em teu lugar.
Não aprendi de meus avós e nem da Grécia
a lei que impõe aos pais morrerem pelos filhos.
Nasceste, Ádmeto, para ser quem tu és,
feliz ou infeliz. Já te demos a vida;
teus súditos são numerosos, numerosas
são as propriedades que te deixarei,
todas elas herdadas de meu nobre pai.
Que mal te fiz ou de que bem te despojei?
Não terás de morrer por mim, da mesma forma
em que não morro por ti. Tens o maior prazer
em ver a luz do dia; crês que eu, teu pai,
sofro com a luz?
(EURÍPEDES, 1993, p. 189).

O apego à vida é de fato natural ao ser humano, o que deixa Feres indignado é
o fato de ser acusado e repreendido por querer viver, exatamente por alguém que,
movido pelo mesmo desejo, foi capaz de deixar a própria mulher que jurava amar,
padecer em seu lugar. Feres arremessa suas últimas palavras chamando o filho de
assassino da própria esposa, e depois se afasta do cortejo, sob as ofensas do filho.
A procissão levando o corpo de Alceste segue o seu destino.
Heraclés está no palácio recebendo todas as honrarias destinadas a um
visitante, comendo e bebendo à vontade, ornamentado com uma guirlanda na
cabeça. Essa imagem com a qual o herói se apresenta nos remete a uma forma
burlesca, a elementos do drama satírico, mas logo em seguida a tragédia é
retomada. O servo que acompanha o forasteiro não é capaz de esconder a
indignação ao ver tanta festa em uma casa assolada pela desgraça e, ao ser
inquirido, conta tudo a Heraclés, que fica imensamente surpreso com o gesto
carinhoso do rei, mesmo na atual realidade.
Tomado pela gratidão, o herói traça sua estratégia para trazer a rainha de volta
ao convívio dos seus. Se necessário, pretende ir ao mundo subterrâneo clamar
diretamente a Hades e Perséfone pela vida de Alceste. Mas o que faz realmente é
usar de sua força descomunal e em um combate com Thânatos arranca a rainha das
garras da morte, no momento em que esta ia ser sepultada.
Ádmeto retorna do cortejo aos prantos, contemplando o palácio onde nunca
mais encontrará a esposa. Ao observar o lugar, percebe a entrada do homem que
acabara de abrigar, mas o hóspede não estava sozinho, trazia pela mão uma mulher
coberta por um véu.
O herói confessa ao rei que descobriu o real motivo do luto estabelecido por
toda a cidade. Mostra-lhe a moça e diz tê-la ganhado em uma competição, e que
agora ele precisa entregá-la aos cuidados do rei para que possa cumprir a missão
que o levou a Tessália. Mas o rei, por vezes, implora que Heraclés a leve para outra
casa, lembrando-se do juramento que fez à esposa, prometendo jamais deixar outra
mulher tomar o seu lugar. Pede que não o obrigue a ser desleal com aquela que se
sacrificou por ele, mas Heraclés insiste veementemente para que ele cuide da moça.
Muito a contragosto, o rei estende a mão para receber a hóspede, enfatizando mais
uma vez a hospitalidade.
Com a moça entre as próprias mãos, o rei vê sendo retirado o véu que lhe
cobria o rosto e para sua surpresa, aquela que estava entre seus braços era Alceste,
que retorna ao palácio pelas mãos do grato Heraclés. A rainha ainda não era capaz
de proferir palavra alguma, pois o processo de purificação precisava se completar.
Mas o luto está terminado. Agora, o reino de Ádmeto entra em festa, e todos
celebram o retorno da rainha que, antes levada ao Hades, agora volta ao convívio
do seu povo, dos seus filhos e do seu amado. Após cumprida a missão, o forasteiro
responsável pela desmedida alegria, decide prosseguir sua jornada, tendo deixado
em Tessália a prova de sua gratidão.
Alceste nos apresenta personagens ambíguos, dotados de sentimentos reais.
Mas o que transforma a protagonista em uma heroína, aos olhos do espectador, é
seu ato de amor. A morte tem destaque especial, por através dela, vemos o que seu
perigo iminente revela em cada ser humano.
Observamos ainda que a morte, nesse contexto e talvez em outros, possa ser
bela se acompanhada por um ato de amor: ao amar a morte e a finitude, esta se
converte em vida. Talvez o que suavize essa tragédia, inclusive, sendo colocado em
discussão seu gênero, seja o fato do autor encontrar o caminho para que a
personagem retorne a vida.
Numa leitura dos símbolos da obra, podemos dizer que aquilo que faz com
que Alceste volte, é a grandeza de seu sentimento, sua capacidade de amar o outro
a tal ponto de se sacrificar por ele, ou seja, um altruísmo fortemente presente na
personagem. Por outro lado, a entrega de Alceste à morte alude à conexão
intrínseca entre as temáticas de amor e morte, como se a experiência do amor
pudesse ser compreendida como uma experiência de morte e vice-versa.
O fim dessa tragédia, que para muitos nada tem de trágico, por evidenciar
sentimentos nobres como o amor e a felicidade, nos fazem refletir acerca das
diferenças entre a realidade atual e aquela antiga. Para a Grécia daquele tempo, o
ato de amor de Alceste engrandeceu o presente drama, porque era um ato simbólico
de engrandecimento da vida. Porém, hoje, o mesmo ato, para a maioria das
pessoas, poderia ser visto como loucura ou tolice, já que o amor, assim como todos
os grandes valores, perdeu sua força simbólica originária.
2. O EFEITO TRÁGICO

Neste capítulo, faremos uma breve discussão acerca do gênero da tragédia,


bem como o efeito que ela causa ao espectador, para que, dessa forma, tentemos
identificar os elementos trágicos que acabamos de encontrar na análise de Alceste.
São muitos teóricos que, presos ao surgimento do fenômeno teatral, pretendem
entender o seu desenvolvimento. Porém Touchard (1978) no livro Dioniso: Apologia
do teatro, afirma que o desenvolvimento da arte teatral pouco tem a ver com as
questões relacionadas ao processo histórico de seu surgimento, e aponta a tragédia
como um possível intensificador de popularidade, por ter a capacidade de levar o
espectador a alcançar algo profundamente desejado: a expurgação dos
sentimentos.
A tragédia tem sua origem diretamente relacionada aos rituais dionisíacos,
pois, presentes no culto ao deus, estão evidenciados elementos que posteriormente
caracterizaram o gênero trágico. Um exemplo é o estado de embriaguês que
comumente promovia o ritual a Dioniso, o mesmo estado se repete na forma de
reação e/ou recepção do espectador no seu processo de identificação e, mais
fortemente, no alcance da catarse.
Touchard, num outro livro denominado O Teatro e a Angústia dos Homens
(1970), apresenta uma das muitas versões do mito de Dioniso. O primeiro Dioniso
vem da relação de Zeus e Perséfone (filha da deusa Deméter), que foi devorado
pelos titãs a mando de Hera, esposa de Zeus. O segundo Dioniso é fruto da relação
do deus com uma mortal, Sêmele, que engoliu o coração do primeiro Dioniso, ainda
palpitando depois do ataque dos titãs. Mas, em algumas versões do mito, quem teria
engolido o coração de Dioniso teria sido o próprio Zeus.
Novamente, Hera é tomada pela raiva e pelo ciúme e traça outro plano para
acabar com o novo Dioniso. Ela se disfarça de ama e aconselha Sêmele a pedir a
Zeus que se mostre a ela em toda sua plenitude. A jovem faz o pedido ao deus
supremo, inocente e sem atentar ao fato de que os mortais jamais poderiam
contemplar um deus, em sua forma hierofânica. Como havia prometido não
contrariá-la, Zeus se vê obrigado a ceder ao pedido. A força do deus incendeia o
castelo onde está Sêmele e a jovem morre queimada. O deus retira o feto do ventre
da mãe e o introduz em sua coxa, para o término da gestação de Dioniso.
Para manter-se longe da fúria de Hera, Dioniso foi criado por Ninfas
(divindades dos campos e das florestas) e Sátiros (conhecidos popularmente como
os homens-bode), em meio a florestas. E foi lá que ele encontrou as primeiras
parreiras, onde colheu as uvas, esmagou-as e bebeu, dando origem ao que
conhecemos hoje como o vinho. Ninfas e Sátiros também bebiam, e movimentavam
seus corpos de forma vertiginosa, ao som de Címbalos (antigo instrumento de
cordas), dançando embriagados, até desfalecerem.
Esse processo de beber o vinho até se embriagar e dançar com vertigem até
o desfalecer dos corpos se tornou uma forma de culto a Dioniso, repetido todos os
anos na colheita das uvas, ocasião na qual as pessoas se fantasiavam de Sátiros.
Dioniso fica conhecido, desde então, como o deus do vinho, da loucura e da
embriaguês. Nascido em meio a um ato de vingança divina, ele tem intrínsecos em
si os sentimentos de amor e ódio. Essa contradição fica explícita em

[...] seu aspecto alegre e generoso e sua faceta repulsiva e tenebrosa... o


mesmo deus é aclamado como doador de inumeráveis dons e temido como
devorador de carne fresca e esquartejador de homens... ele proporciona o
êxtase, a comunhão espiritual e a intoxicação selvagem, da qual é líder, de
modo que pode ser chamado o deus da loucura e do frenesi. (GUTHRIE
apud LÓPEZ-PEDRAZA, 2002, p. 8).

Ainda sobre o mito de Dioniso, há também os que descrevem o ritual como o


sacrifício de um bode ao deus, pois se retornarmos ao mito, veremos que a última
forma adquirida por Dioniso, entre as constantes transformações com o intuito de
escapar dos Titãs, teria sido um bode e que, depois de devorado, Dioniso teria
ressuscitado em forma de um bode divino, bode sagrado.
Brandão também traz na definição do termo tragédia, em seu livro Teatro
grego: tragédia e comédia (2002), a figura do bode como algo significativamente
importante: “’ tragoidía’ = ‘tragos’, bode + ‘oidé’, canto + ia donde o latim tragoidea e
o nosso tragédia” (Ibid., 2002, p. 10).
A contradição dionisíaca apresentada acima, aponta-nos a mesma oposição de
elementos que vemos no fato de que o temor e a piedade sentidos pelo espectador
libertam-nos. Segundo Touchard (1970), um espetáculo trágico causa no espectador
uma grande satisfação, que para Aristóteles vem desses dois principais elementos,
temor e piedade:

[s]e todos estão de acordo sobre este ponto, pode-se perguntar de onde
nascem as dificuldades? Do fato de que Aristóteles parece fazer intervir os
sentimentos de medo e piedade como os únicos susceptíveis de provocar
em nós o sentimento de libertação. Admitimos facilmente que o riso seja
libertador; mas e o medo e a piedade? Qual o milagre que faz com que o
espetáculo de uma ação infeliz e trágica provoque em nós um agradável
sentimento de alívio? (Ibid, p. 36).

A identificação que gera esta satisfação liberta emoções reprimidas, através da


experiência – experimentada – do intérprete e/ou espectador – o que causa um
alívio correspondente à catarse, como descreve o autor.
Touchard (1970) afirma ainda que a interpretação mais acertada da teoria de
Aristóteles seria quando aceitamos que no temor e na piedade estão intrínsecas a
libertação, só assim é possível explicar a possibilidade do alívio ao assistirmos uma
tragédia; mais precisamente quando canalizamos esse temor e essa piedade para o
outro e esquecemos a nós mesmos, nossos martírios. É assim que alcançamos a
plena satisfação.
O silêncio é o primeiro efeito causado, um silêncio reflexivo. O espectador não
tem mais necessidade da verbalização do que vê, ao contrário, alcança por meio do
silêncio a meditação; estado individual, mas que em determinado momento caminha
em direção à consciência coletiva.
Para o autor (TOUCHARD, 1970), o teatro tem alguns objetivos e entre eles o
de alimentar essa meditação, neste caso, um objetivo muitas vezes ignorado. E
também deve uma comunhão por meio da reação do público pelo ator e com o ator.
Permeando esses objetivos, estão as ligações formuladas por esse fenômeno, já
que permitem uma identificação de público/ator e público/público, pois são
indivíduos que estão em um mesmo ambiente, buscando as mesmas respostas,
tratando de suas angústias, e essa relação se dá mesmo que seja de modo
inconsciente.
Esse é um aspecto que exemplifica o teatro como sendo religioso, exatamente
nessa relação de comunhão coletiva do fenômeno: “religioso no seu efeito, que, sem
dúvida, é a comunhão na tomada de consciência de uma realidade de vida e de uma
realidade de morte comuns, o teatro ainda o é por seu privilegiado meio de
expressão.” (TOUCHARD, 1978, p. 13).
Como citado acima, os espectadores chegam tomados por suas angústias e,
por isso, a identificação com o herói é fácil e rápida, já que o segundo alimenta os
sentidos do primeiro, por meio da beleza estética (olhos), da fala ritmada (ouvidos) e
da generosidade (espírito). Essa aproximação passa pela admiração, mas também
pela inveja de liberdade, já que o herói satisfaz os instintos de cada indivíduo.
Instintos até então repreendidos pela sociedade, pelo superego. Superego é posto
aqui, no sentido clássico freudiano, como uma instância da personalidade formadora
de idéias, e que age inconscientemente sobre o ego, contra as pulsões suscetíveis
de provocar o extravasamento dos limites permitidos.
Voltamos nesse momento à discussão a respeito do temor e da piedade. Se o
herói está em perigo, o espectador teme por ele, e como sempre está ameaçado,
isso favorece a criação do suspense na tragédia. Quando o herói desafia a morte, o
espectador se sente desafiando-a, se o herói é derrotado, há um sentimento de
piedade, ambas são sensações advindas do processo de identificação. Como
observa o filósofo Mircea Eliade, a respeito do assunto:

Um traço característico dos heróis é a sua morte. Excepcionalmente, certos


heróis são transportados às ilhas dos Bem-Aventurados (como Menelau), à
ilha mítica de Leuce (Aquiles), ao Olimpo (Ganimedes) ou desaparecem sob
a terra (Trofônio, Anfiarau). Mas a enorme maioria sofre morte violenta na
guerra (como os heróis de que fala Hesíodo, caídos diante de Tebas e
Troia), em combates singulares ou vítimas de traição (Agamêmnon morto
por Clitemnestra, Laio por Édipo etc.). Muitas vezes têm morte
singularmente dramática: Orfeu e Penteu são despedaçados, Actéon é
estraçalhado por cães, Glauco, Diomedes e Hipólito, por cavalos; ou são
devorados ou fulminados por Zeus (Asclépio, Salmoneu, Licáon etc.) ou
mordidos por uma serpente (Orestes, Mopso etc.).
E, no entanto, é sua morte que lhes confirma e proclama a condição sobre-
humana. Se, por um lado, não são imortais como os deuses, por outro, os
heróis se distinguem dos seres humanos pelo fato de continuarem a agir
depois da morte. Os despojos dos heróis são carregados de temíveis
poderes mágico-religiosos. Os seus túmulos, relíquias, cenotáfios atuam
sobre os vivos séculos e séculos a fio. Em certo sentido, poderíamos dizer
que os heróis se aproximam da condição divina graças à sua morte: gozam
de uma pós-existência ilimitada, que nem é larvária nem puramente
espiritual, mas consiste numa sobrevivência sui generis, uma vez que
depende dos restos, traços ou símbolos de seus corpos. (ELIADE, 2010, p.
273).

A morte, traço característico dos heróis, é, segundo Touchard (1970), o maior


medo, a maior angústia do ser humano. Diz o autor que os próprios psicólogos
descrevem a angústia como medo da morte. Esse medo é o medo do irreparável, ou
seja, do que não está suscetível a mudanças, que fogem ao nosso controle. A morte
é, sem dúvida alguma, um destino comum a todos nós e é, por sua vez, certa e
irreparável, ou melhor, o mais adequado símbolo do irreparável.
O medo vem desse irreversível. Então nos libertamos de nossas angústias,
quando estamos frente a uma tragédia, porque enfrentamos a morte de frente,
somos colocados por meio da identificação com o herói frente a perigos eminentes,
e o que nos leva à satisfação é o distanciamento seguro que mantemos. Afinal,
mesmo com toda a identificação sabemos, no fim, que o herói não existe e estamos
protegidos pelo edifício teatral e pelo aparato cênico, tendo todo o conforto
necessário à nossa liberdade momentânea. Esse medo gerado em nós é a causa do
suspense no momento em que o herói, principal objeto de identificação, está em
perigo. Touchard (1970) admite o sofrimento do espectador, mas agora esse
sofrimento é aliado à força e não à fraqueza, já que é um sentimento distanciado da
realidade.
Cada indivíduo tem a liberdade de aplicar à arte a finalidade que melhor lhe
couber. E se para Aristóteles a arte só tinha o objetivo de agradar, hoje essa
questão é mais profunda, e os questionamentos, no que diz respeito ao sentido do
teatro se estenderam. Assim, Touchard (1970) destaca, na tentativa de suavizar a
questão, o fato de a arte dramática causar essa sensação de liberdade ao
espectador, sendo no mínimo interessante observarmos o processo, mesmo que ele
não nos sacie todos os desejos de chegarmos a uma resposta precisa.
O homem vive cercado por leis sociais que moralmente o impedem de
desenvolver todos os seus limites, o teatro vem para revelar com sua ação
dramática todo o recalque escondido dentro de cada ser; é como se no palco
estivessem os sentimentos humanos vistos por meio de uma enorme lente de
aumento. São os sentimentos, muitas vezes mais íntimos e até sórdidos, mas
instintivos de qualquer indivíduo. Eles vão da alegria, do desejo ao mais puro ódio e
crueldade: o homem sofre de uma personalidade doentia, como aponta o autor.
Quem mais se entrega, neste caso está ligado principalmente à tragédia, é quem
mais se submete às leis sociais (TUOCHARD, 1978, p. 15).
Claro que essa essência teatral passa por deturpações, já que existem
pessoas que optam por desenvolver o outro lado do teatro, transformando a arte em
produto comercial ou político; essa é uma prática que foge aos preceitos da arte
dramática, propriamente dita, e sua exigência de livre manifestação, como nos
expõe o autor.
O espetáculo teatral é, por prática, um processo de reintegração social
momentânea, por isso é fenômeno efêmero, na intenção de libertação do público. E
é nesse sentido que, em suas palavras, Touchard (1978) deixa claro para o leitor
que o teatro será uma arte eterna, pois enquanto existir o homem ele estará em
busca da liberdade, e enquanto perdurar essa busca existirá teatro.
A comédia surge e se desenvolve junto à tragédia, e da mistura desses dois
gêneros teve origem o que conhecemos hoje como drama ou peça, mas que
perderam em si suas identidades, na prática. Isso se deu porque é fácil misturá-las,
o problema está em encontrar o ponto de convergência que se entende como a
representatividade do homem no seu “estado de embriaguês – liberdade –
espontaneidade [lembremo-nos do culto a Dioniso]” (TOUCHARD, 1978, p. 18). A
tragédia é a dor, a comédia o prazer, e a tentativa de combinações entre esses
gêneros, como o melodrama ou a tragicomédia, somente são possibilidades dessa
dor e desse prazer.
Mesmo sem conseguirmos definir com exatidão os gêneros, podemos
perceber nitidamente uma atmosfera, tanto trágica quanto cômica, e essa atmosfera
se dá por meio da reação do espectador, ou seja, ela não é trágica pelo que é, e
sim, pela piedade e pelo temor que provoca.
A reação do público acontece, no caso da tragédia, por meio da identificação
com o personagem. Esse processo chega ao ponto do indivíduo esquecer que
aquele destino posto em cena não é o seu. Touchard (1978) denomina esse
acontecimento de tensão dionisíaca, é o espectador tomado pela embriaguês,
sentindo-se o sujeito da ação.
Essa identificação se dá por um caminho tendencioso, pois é mais fácil nos
reconhecermos com a imagem de um ser superior no palco, do que com o
personagem da comédia, que representa o ser inferior, nos causando repúdio e
distanciamento. É exatamente na morte que fica explícita a identificação e o
distanciamento, a dor e o prazer, uma vez que a morte representada no palco de
uma tragédia provoca, no espectador, o sentimento de piedade e temor, apontados
por Aristóteles. Pois o sujeito encontra-se identificado com a figura do herói,
sentindo a apreensão de um perigo iminente e próximo de si.
Na comédia há um distanciamento, o espectador não se identifica com o
personagem ali representado, ele é o outro. Não há apreensão e temor no
desencadear do martírio do herói, portanto o sentimento do espectador é de prazer,
o sofrimento é do outro e não seu. No momento em que não mais me faço o sujeito
da ação dramática e o converto no outro, alcanço a atmosfera cômica, esta
fortemente presente no desejo da ruptura. Voltamos ao aspecto que traz a imagem
de superioridade. Mas, neste caso, a inferioridade é que faz com que desloquemos o
personagem para longe de nós. A curiosidade é que nos preenche a comicidade e
nos leva ao riso, concretização de uma ruptura com a própria liberdade.
Nesta pequena aproximação com o gênero trágico e, por conseqüência, com a
comédia, podemos perceber a nossa reação para com a atitude da protagonista de
nosso drama e a identificação ou não com os personagens, o que nos levam a
alguns questionamentos.
Seriamos capazes de uma atitude altruísta como a de Alceste (claro, a salvo as
devidas proporções, e diferentes realidades)? Ou simplesmente nos divertimos com
uma atitude estúpida de uma mulher submissa?
Heraclés é herói de nossa história. Depois de tudo que expomos sobre a figura
do herói, concordamos com ele? O forasteiro deveria ter buscado Alceste? E nós,
nos sentimos cara a cara com a morte e nos libertamos quando o herói vence
Thânatos trazendo a rainha de volta?
E quanto a Ádmeto, nos consternamos com sua dor? Ou apontamos seu
egoísmo nos distanciando do personagem que, por instantes, nos faz rir do ridículo
de sua covardia?
A verdade é que mesmo que estudos expliquem e comprovem seu gênero, cada
espectador tem a liberdade sensível de identificar-se ou não com Alceste.
2.1 O Poeta da Busca

Seguindo nossa tentativa de aproximação com Alceste, vamos conhecer um


pouco da história de seu autor, sua vida e suas influências artísticas. Esses
elementos, de forma direta ou indireta, influenciaram Eurípedes na criação de suas
obras, fato esse observado na construção da tragédia aqui em questão.
Eurípedes, pensador do início do século V a.C. e o primeiro “dramaturgo
moderno” é o terceiro da tríade de poetas de grande importância, na história da
dramaturgia trágica, sendo eles, na sequência: Ésquilo, Sófocles e Eurípedes.
O poeta teria nascido no ano de 484 a.C, no mês de setembro, na cidade de
Salamina. Filho de Mnesárquedis e Clito, sua morte teria se dado em 406 a.C, em
Pelas. Sobre as causas pouco se fala, porém o autor de A tragédia grega afirma que
Ésquilo teria sido “despedaçado por cães selvagens, mas isto por certo não passa
de uma anedota” (LESKY, 2006, p. 188). Deixou três filhos: Mnesárquides
(comerciante), Mnesíloco (ator) e Eurípedes (poeta), que após a morte do pai levou
à cena algumas de suas obras.
Teve uma educação privilegiada, interessou-se pelo atletismo e pela pintura
para só então admitir a filosofia, fazendo um grande esforço para ser poeta em uma
realidade grega em crise. Foi patriota apaixonado, mas essa paixão não era de todo
reconhecida, já que o povo não se identificara com sua obra. Lesky fala em certa
amargura de Eurípedes para com a própria pátria, pois os atenienses só lhe deram a
honra devida após a sua morte. Na ocasião da morte do poeta, Sófocles se pôs todo
de preto, juntamente com seu coro, para representar seu luto. E para Atenas, a fim
de se redimir com um dos seus filhos mais ilustres, fica a construção de um
cenotáfio, uma espécie de monumento erguido em homenagem póstuma, mas que
não guarda o corpo.
Além disso, o autor de Alceste foi alvo de zombarias vindas de cômicos da
época. As brincadeiras eram levadas ao palco e Aristófanes foi o maior dos
“brincalhões”. Eram alvo das gozações tanto a estrutura inovadora, proposta por
Eurípedes, como também sua vida pessoal, pois fora traído pelas duas esposas e,
por conta disso, não suportaria mulheres. Esta é uma informação curiosa para um
autor que tem na maioria de suas obras a figura feminina como protagonista. Sobre
esse aspecto discutiremos mais à frente.
Eurípedes trouxe várias mudanças para a estrutura trágica da época. O poeta
retira sua tragédia não mais do mito e, sim, do coração humano, “ao qual o grande
poeta desceu como se fora um mergulhador e de lá arrancou sua tragédia”
(BRANDÃO, 2002, p. 57). O mesmo autor descreve ainda essa estrutura, dando
ênfase principalmente no que se refere ao rompimento para com os deuses,
elemento extremamente recorrido por seus antecessores:

[...] em Eurípedes o rompimento foi total. Nota-se em suas peças uma


consciente dessacralização do mito com uma conseqüente proletarização
da tragédia. Das trevas de Elêusis de Ésquilo aos píncaros do Olímpo de
Sófocles, a tragédia de Eurípedes desceu para as ruas de Atenas. Mara, a
fatalidade cega de Ésquilo, e Lágos, a razão socrática de Sófocles,
transmutaram-se em Eurípedes em EROS, a força da paixão. Como diz a
própria Medéia, vinte e dois séculos antes de Pascal, o coração tem razões
que a própria razão desconhece (med 1080). (BRANDÃO, 2002, p. 57).

Tanto Brandão (2002) como Lesky (2006) falam dessas mudanças,


concordando que exteriormente talvez elas não tenham sido tão visíveis, mas que
interiormente, em sua atmosfera, a transformação foi sentida de forma intensa.
Brandão (2002) inclusive atribui a Eurípedes qualidades bem específicas:
pensador, observador, atento, dotado de alta sensibilidade. E foram esses adjetivos
que fizeram com que esse poeta pensasse conforme os acontecimentos do seu
século, jamais ignorando o contexto histórico no qual estava inserido. Gassner o
descreve como “[...] um homem que estava fora de sintonia com a maioria. Era um
livre pensador, humanitário e pacifista num período que se tornou cada vez mais
intolerante e enlouquecido pela guerra.” Eurípedes seguiu como soldado lutando em
frentes na guerra até os seus sessenta anos; e ainda como um “exemplo clássico de
artista incompreendido” (GASSNER, 2002, p. 64).
Também é de comum acordo o fato de Eurípedes ter ficado conhecido como
o “poeta da busca”, em consideração a todas as investidas para se aproximar de
todas as escolas possíveis, mas sem nunca chegar a uma conclusão. O autor não
se contentava com o que lhe era apresentado como teoria pronta, ele queria mais,
ele se arriscava a não se filiar a nenhuma filosofia, garantindo total liberdade de
pensamento e formulação de suas próprias idéias.
Eurípedes acaba por se posicionar contra a forma já existente, um ato que
caracterizava sua rebeldia, perante uma tradição arraigada, um público de gosto já
tendenciosamente formulado e uma estrutura trágica já definida e muitas vezes
imutável.
Em sua nova estrutura, substitui o objetivo pelo subjetivo, apresenta seus
personagens tomados por uma paixão latente. Sobre isso Brandão (2002) nos
apresenta um dado interessante: Foram dezessete os dramas euripidianos que
chegaram até nós, desses, doze têm como título um nome feminino, os quais
correspondiam a suas protagonistas, além da décima terceira que não traz o título,
mas que tem também em seu papel principal uma mulher. “Nesse sentido, o teatro
euripidiano, tomado em bloco, é uma espécie de “nóstos”, de retorno a um mundo
imaginário, onde o sofrimento e a dor não se justificam mais” (Ibid., p. 58).
Além disso, Eurípedes também é responsável por diminuir a importância do
coro, dá ênfase a um personagem destacado do coro que se torna o porta-voz.
Como exemplo, Brandão (2002) nos aponta como destaques as amas, que passam
por confidentes e/ou inconscientes de suas protagonistas. E como já citado, o poeta
retira o drama do Olímpo e o coloca para transitar pelas ruas de Atenas, porém
mantém as figuras dos deuses no prólogo e no epílogo dos dramas.
O destino inflexível agora é substituído pelas consequências advindas dos
atos de inconsequência contidos nas grandes paixões, “eis ai a razão por que o
drama do poeta de Hécuba é bem mais realista que os de Ésquilo e Sófocles”
(BRANDÃO, 2002, p. 60).
Touchard (1970, p. 41), em O teatro e a angústia dos homens define o poeta
moderno como “[...] o homem está entregue ao capricho dos deuses, nada mais, e
encara a condição humana sem abertura para a esperança, seja em direção ao céu,
ou seja, em direção ao futuro: irremediavelmente infeliz.”
Gassner (2002, p.66) frisa fortemente as várias influências sofridas pelo
trágico. Um de seus professores foi Anaxágoras, um filósofo e um dos “primeiros
pensadores científicos do mundo”, e Protágoras, que dominava “a ciência da
linguagem”. Porém, Eurípedes inteligentemente percebe que é preciso acariciar a
vontade do público para, de forma camuflada, inserir sua nova proposta, que insiste
em aplicar mesmo após a morte de seus mestres:

Em meio a esses acontecimentos, Eurípedes continuou a escrever peças


que mantinham em solução os ensinamentos dos exilados, sendo
pessoalmente salvo do banimento em parte porque suas heresias eram
mais expressas por seus personagens que por ele mesmo e em parte
porque o dramaturgo apresentava sua filosofia num molde tradicional.
Empregando deuses que nos prólogos e epílogos de suas peças apareciam
com mais freqüência que nas obras de seus predecessores, em aparência
era mais formal que o próprio Ésquilo. Cautelosamente deixou também sua
argumentação em suspenso. O ateniense comum era abrandado por um
final convencional, ou sutilezas da peça podiam escorregar por suas mãos
como água e seus sentidos excitavam-se com as doces canções e coloridas
músicas de Eurípedes, populares junto às massas. Por esses meios,
Eurípedes pode continuar suas funções em Atenas por longo tempo, mesmo
sendo considerado com suspeita e suas peças recebendo normalmente o
segundo ou terceiro lugares dos vigilantes juízes do festival de teatro.
(GASSNER, 2002, p. 67).

E dessa forma, Eurípedes foi desenvolvendo seu belo trabalho, no que diz
respeito à construção de grandes dramaturgias trágicas, dentre elas Alceste.
Segundo Lesky (2006, p. 194), Alceste seria de 455 a.C., e como já citamos
no primeiro capítulo, designaria o mais antigo escrito de Eurípedes. Nesta obra, o
poeta mantém uma estrutura mais clássica, que mais tarde viria a ser abandonada
por ele. O autor ainda afirma que Alceste seria o quarto texto de uma tetralogia.
Sendo assim, representaria um drama satírico apresentado após três tragédias,
como já nos referimos no início de nossa análise. Porém, encontramos uma
informação de Gassner (2002, p. 71) que diverge de Lesky. Para este último, a obra
(Alceste) só viria acompanhada de duas outras tragédias, e em sua análise vai além,
denominando a peça como sendo quase um conto de fadas, devido ao seu final
feliz, nada comum nas dramaturgias trágicas.
Viemos desde a análise de Alceste, passamos pela discussão da tragédia e,
agora chegando a Eurípedes, nos deparamos com elementos míticos, os quais nos
levam ao capítulo seguinte, com o anseio de ampliar os conhecimentos, no que se
refere à mitologia e suas adjacências.
3. UM BREVE PASSEIO PELA MITOLOGIA

Como sabemos, tivemos como ponto de partida para esta pesquisa a tragédia
grega antiga Alceste. Mas percebemos, durante o estudo, a necessidade de
compreender melhor algumas questões relativas ao tema objeto, de modo a melhor
desenvolver as discussões aqui propostas. Sendo assim, neste terceiro capítulo,
abordaremos alguns conceitos relativos à mitologia que, por repetidas vezes,
mostraram-se importantes para as reflexões presentes nos capítulos anteriores.
Para isso, nos reportaremos, principalmente, a dois grandes autores e especialistas
em mitologia: Junito de Souza Brandão, especialmente por meio de dois dos três
volumes de Mitologia Grega, e Mircea Eliade, mais especificamente no primeiro
volume do livro História das Crenças e das Idéias Religiosas: da Idade da Pedra aos
Mistérios de Elêusis. Tal escolha se justifica porque esses dois autores parecem
suficientes para a apresentação das principais ideias acerca do que vem a ser
mitologia. Essa apresentação se dá de forma simples, sem perder de vistas a
complexidade inerente à temática.
Para Brandão (2009c), mitologia não é outra coisa senão o estudo que tem
como objeto central de investigação o mito; mas juntamente com essa conceituação,
o referido autor amplifica a questão, abordando dois outros termos a ela ligados:
mitologema e mitema. Então vamos, pelas palavras de Brandão, nos aproximar do
significado de cada uma dessas palavras e do ponto de convergência entre elas:

[s]e mitologema é a soma dos elementos antigos transmitidos pela tradição


e mitema as unidades constitutivas desses elementos, mitologia é o
“movimento” desse material: algo de estável e mutável simultaneamente,
sujeito, portanto a transformações. Do ponto de vista etimológico, mitologia
é o estudo dos mitos concebidos como história verdadeira. (BRANDÃO,
2009b, p. 40).

A partir de agora, investigaremos um pouco sobre a história da mitologia, a fim


de entender os processos pelos quais ela foi exposta e as transformações que
sofreu, ao longo dos séculos, para só então focarmos nosso estudo no mito.
Observamos a grande influência desse fenômeno tanto na vida do homem
grego, quanto na sua arte. Porém, o mesmo entusiasmo a favor da mitologia, foi
também contra, na medida em que parte da elite grega une forças na intenção de
desmitizar3 e enfraquecer a crença do povo. A primeira estratégia escolhida, na
tentativa de desmitização, foi colocar à prova o caráter sagrado dos deuses.
As investidas contra o apego às entidades foram primeiramente direcionadas à
questão das formas dessas figuras sobrenaturais, na aproximação ou não dos
deuses com a forma mortal, tanto na aparência quanto nas atitudes. Já Xenófanes
(apud BRANDÃO, 2009b, p. 27) afirmava que “um Deus verdadeiro jamais poderia
ser concebido como injusto, vingativo, adúltero e ciumento”. A verdade é que, com
tantos questionamentos e desconfianças, o campo da mitologia chega ao século V
a.C. bastante depurado:

Bem diferente é a atitude do pensamento racional, sobretudo dos Pré-


Socráticos, muitos dos quais tentaram desmitizar ou dessacralizar o mito em
nome do lógos, da razão. Acertadamente afirma Mircea Eliade: “Em
nenhuma outra parte vemos, como na Grécia, o mito inspirar e guiar não só
a poesia, mas também as artes plásticas; por outro lado, a cultura grega foi
a única a submeter o mito a uma longa e penetrante análise, da qual ele
saiu radicalmente ‘desmitizado’. A ascensão do racionalismo jônico coincide
com uma crítica cada vez mais corrosiva da mitologia ‘clássica’, tal qual é
expressa nas obras de Homero e Hesíodo. Se em todas as línguas
européias o vocábulo ‘mito’ denota uma ‘ficção’, é porque os gregos o
proclamaram há vinte e cinco séculos.” (BRANDÃO, 2009b, p. 27).

Foram intensas as investidas para a desmitização: o homem grego não deveria


mais temer aos deuses ou mesmo a influência deles no destino de cada um. A
investida, exatamente neste ponto, é explicada pelo forte pessimismo que fazia parte
do pensamento dos helênicos. Como observa Brandão (2009b), o pessimismo da
cultura grega antiga era tal que, comumente, prevalecia a noção de que a vida era
nada mais que um infortúnio e que o melhor destino era a morte. Sobre este
assunto, Eliade (2010, p. 249) nos lembra da história mítica de uma mãe que, certa
vez, pediu a Apolo que presenteasse seus dois filhos com o mais precioso dos
presentes. Em consequência, ocorreu que, visando atender ao pedido da mãe, o
deus fez com que as crianças deixassem de existir: para ele, a morte prematura
seria um alívio àqueles pequenos seres.
Os gregos acreditavam que seus destinos já estavam traçados no momento do
nascimento, e que as Moiras eram as responsáveis por tecê-los e regê-los. Dessa
3
O verbo desmitizar é, segundo o Dicionário Aulete, sinônimo do verbo desmitificar. Disponível em
(http://aulete.uol.com.br) acessado em 31 de outubro de 2010. Usarei aqui o primeiro, de modo a
manter sintonia com Brandão, que também faz uso dele. Outrossim, é oportuno apontar a diferença
entre o mais conhecido verbo desmistificar e o menos conhecido desmitificar que, apesar das
semelhanças, são amplamente distintos, advindo cada qual de raízes etimológicas distintas: as
mesmas que distinguem místico e mito.
forma, tudo que se fazia em vida estava sujeito à aprovação das entidades divinas e,
no caso de uma reprovação, o castigo se aplicaria de formas cruéis. Os deuses
deveriam ser justos, assim não castigavam nenhum homem sem que ele
ultrapassasse os limites4 propriamente formulados pelo grupo ao qual pertenciam.
Essas inseguranças, lançadas em detrimento do divino, deram força à
dessacralização da mitologia, juntamente com o processo de politização, que
Brandão (2009b, p. 29) ressalta, considerando o fato de Atenas estar no centro das
atenções. Sendo assim, por força de aspectos políticos, os mitos, principalmente os
ligados aos heróis, passaram a ser deslocados, ou seja, ao herói ateniense eram
creditados grandes méritos, enquanto aos heróis de outras localidades só restavam
os débitos do fracasso. E quando o êxito destes últimos parecia ser inegável, ele
obrigatoriamente precisava se transformar em um genuíno ateniense.
Os heróis, juntamente com os deuses, também exerciam fascínio sobre o povo,
afinal era concedida a eles a proteção de cada cidade. Brandão (2009a, p. 19) nos
descreve um pouco dessa figura dos semideuses, observando que os heróis trilham
caminhos semelhantes. Filhos de um(a) deus(a) com um(a) mortal, seu nascimento
é sempre muito difícil: fruto de incesto ou estupro, ele surge como uma ameaça a
seus genitores e, por isso, é abandonado rio abaixo, dentro de pequenos cestos.
Resgatados por famílias humildes, mostra desde muito cedo seus dotes
sobrenaturais, sobretudo a força descomunal, sendo comumente amamentado por
animais. Em certo momento de sua vida, decide sair em busca dos pais verdadeiros,
na intenção de retomar o que lhe é de direito, inclusive sua origem nobre. Seu fim é
quase sempre trágico, devido às batalhas que enfrenta. É oportuno observar, neste
sentido, que a personagem Alceste, destoa de todas estas características comuns
aos personagens trágicos: não é deusa nem semideusa, mas apenas mortal,
embora desafie a morte de modo heróico. Heraclés, por outro lado, é o herói
responsável pela salvação de Alceste, guardando todas as características acima
relacionadas.
Quando citamos esse processo de dessacralização, vale relembrar Eurípedes,
que tinha como característica dentro do seu novo modelo de estrutura trágica a
dessacralização como foco, retomemos Brandão quando menciona: “nota-se em

4
Esse limite é conhecido, no contexto das tragédias gregas, pelo nome de métron. Ao ultrapassá-lo, o
herói trágico fica sujeito à vingança divina.
suas peças uma consciente dessacralização do mito com uma conseqüente
proletarização da tragédia” (BRANDÃO, 2002, p. 57).
Acompanhando a trajetória percorrida pela mitologia, observamos ao longo da
rica história grega, que houve fortes tentativas de enfraquecer a influência da
mitologia sobre o homem, através de diversos processos de desmitização. E foi
somente no século I d. C., que surgem dois outros movimentos opostos, no intuito
de resgatar a mitologia: o “Alegorismo” e o “Evemerismo”. Quando usamos ‘resgate’,
não estamos nos referindo somente ao sentido puro e simples de ajudar, ao
contrário, estamos indo além, pois esses dois movimentos auxiliaram na retomada
da força da mitologia muito a seu modo, lançando mão inclusive e, principalmente,
de críticas.
O Alegorismo vem em defesa de que o mito não pode ser compreendido em
sua literalidade, pois se utiliza de metáforas para expressar sua mensagem. Como
aponta Brandão, alegoria em sua etimologia significa “dizer outra coisa” (Ibid., p. 31).
Esse pensamento configurava ao mito uma maior complexidade de sentido, muito
diferente da forma com que era entendido até então. O Evemerismo vem de certa
forma na contramão do alegorismo, embora não o negando, mas propondo outro
enfoque: transfere as atenções do sentido para a história propriamente dita,
trazendo os deuses para caminharem mais próximos dos mortais.
Essas duas novas formas de pensar o mito foram essenciais, sendo capazes
de doarem forças para trazerem de volta a mitologia ao seu lugar. Após um
processo degradante pelo qual acabara de passar, não era de se esperar que o
pensamento mitológico retornasse sem nenhum arranhão. Mas a prova de que ainda
permanecia presente era o fato de que o povo, mesmo alheio aos últimos
movimentos, continuava firme em suas crenças e fortemente ligado às tradições
religiosas:

[e]m conclusão: foi graças ao alegorismo e ao evemerismo e sobretudo


porque a literatura grega e as artes plásticas se desenvolveram cimentadas
no mito que os deuses e heróis de Hélade sobreviveram ao longo processo
de desmitização e dessacralização, mesmo após o triunfo do cristianismo,
que acabou por absorvê-los, porque já então estavam esvaziados por
completo de “valores religiosos viventes.” (BRANDÃO, 2009b, p. 350).

Somado a esses novos pensamentos, está o processo pelo qual o próprio povo
helênico passa, transformando sua visão e seu entendimento sobre a vida. Pois a
partir da conclusão de que a moira de cada um está traçada (e que nada se poderia
fazer, afinal a morte é inevitável ao ser humano), o homem grego adquire nova
postura: a de aceitar a vida da forma como ela nos foi dada e encontrar nessa nova
fase a “alegria de viver”.
Manifestar o novo sentimento por meio de rituais coletivos e bem organizados
foi o que suavizou a relação do cidadão grego com o divino, mudança extremamente
bem vinda, pois re-estabeleceu a possibilidade de relação entre a dimensão humana
e a dimensão dos deuses. Abordando o assunto, Eliade observa que a visão trágica
dos gregos, em vez de inibir o pensamento religioso, “conduziu a uma revalorização
paradoxal da condição humana”. E é com espanto que observamos o modo de
funcionamento da espiritualidade grega antiga, pois, “paradoxalmente, uma religião
que proclama a distância irredutível entre o mundo divino e dos mortais [é a mesma
que] faz da perfeição do corpo humano a representação mais adequada dos deuses”
(ELIADE, 2010, p. 251).
Bem, após esse breve passeio pela história da mitologia, focaremos
precisamente a outros conceitos. Nosso principal objetivo é conceituar o mito, sem
esquecer que mito e rito estão diretamente ligados, sendo assim, pretendemos
também chegar a um melhor entendimento do que se conceitua como rito.
Basicamente, o mito vem sempre carregado de aspectos religiosos. São
histórias referentes à criação, as origens da vida, histórias criadas a partir do
pensamento antigo, de que tudo à nossa volta era uma forma de representatividade
de um Deus, ou seja, todos os fenômenos naturais eram consequência da ação dos
deuses. Dizemos antigo porque muitas dessas crenças foram suavizadas e outras
até desapareceram nesse mundo moderno.
Porém nessa mesma forma de pensamento, havia espaço para que o mito
fosse, por vezes, interpretado no seu sentido mais fantasioso, algo mais distante do
real. Esta é, aliás, uma das formas de compreensão do mito mais populares
atualmente, segundo a qual, o significado do mito se aproxima da noção de mentira.
Entretanto, em sua exposição, Brandão deixa claro que o mito tem como cerne o
oposto: “talvez fosse mais exato defini-lo como uma verdade profunda de nossa
mente.” (BRANDÃO, 2009b, p. 39)
Essa explicação de Brandão nos leva a pensar no mito como um
autoconhecimento que nos é permitido por meio do sagrado. Já que o mito se refere
às origens da vida, da nossa própria origem, ele tem o poder de fazer com que
olhemos para nós mesmos, compreendendo, através da reflexão sobre o início de
nossa existência, tudo o que faz e fez parte do que hoje somos. Isso é o que permite
ao indivíduo visitar todo o processo de construção do seu ser que, pelo acúmulo de
experiências, o levou à realidade atual.
Uma das formas de contato com essas origens, com esses mitos, ocorre por
meio dos rituais. Os rituais são formas criadas pelo ser humano para vivenciar a
história do mito, reconstituindo sua epifania. São vários os rituais que se
perpetuaram ao longo da história humana. No que se refere à Grécia antiga, talvez
os rituais mais conhecidos sejam os relativos aos cultos a Dioniso e a Deméter-
Perséfone:

Através do rito, o homem se incorpora ao mito, beneficiando-se de todas as


forças e energias que jorraram nas origens. A ação ritual realiza no imediato
uma transcendência vivida. O rito toma, nesse caso, “o sentido de uma ação
essencial e primordial através da referencia que se estabelece do profano
ao sagrado”. Em resumo: o rito é a práxis do mito. É o mito em ação. O mito
rememora, o rito comemora. (BRANDÃO, 2009b, p. 41).

Devemos nos lembrar de todas as passagens de nossa análise em que


destacamos alguns rituais. No caso de Alceste, esses rituais estão todos ligados à
passagem da vida para a morte. São formas de expressão, mudanças físicas ou
mesmo gestualidades que externalizam a dor e\ou objetos utilizados na purificação
da alma de quem parte e no corpo de quem ainda vive.
Nesta breve investigação sobre o mito, percebemos que ele funciona como
matéria-prima da tragédia. É através dele que surgiram as inúmeras histórias que se
tornaram os dramas gregos, hoje conhecidos e admirados, incluindo Alceste,
tragédia que analisamos.
Em resumo, o mito é o material da tragédia e é incorporado pelo homem por
meio do rito que, por sua vez, é carregado por tradições religiosas. Importante
observarmos que os mitos se diferenciam e se apropriam da cultura de cada lugar,
onde irão atuar, e ainda têm influência em todos os âmbitos da vida de um ser
humano, mesmo que esse não o perceba. Mas talvez o essencial disso tudo é que,
com o mito, temos a possibilidade clara de alcançarmos o autoconhecimento por
meio do sagrado.
4. CAMINHANDO RUMO À CRIAÇÃO CÊNICA

Nosso estudo rumo à construção da encenação se dá primeiramente por


meio da aproximação com as duas deusas escolhidas como arquétipos, em função
da necessidade de realizar uma ampliação de certos aspectos de nossa
personagem principal.
Lançaremos mão, também, de fragmentos de texto da personagem. É
importante, neste momento, lembrar que pretendemos nos focar em alguns aspectos
míticos presentes no texto, para criar uma performance cênica sob inspiração das
imagens que o texto provoca, e que não objetivamos a montagem clássica e exata
da tragédia Alceste. Durante esta exposição, iremos destacar alguns momentos da
rainha, principalmente no que diz respeito a sua passagem.
A relação de Alceste com as deusas Deméter-Perséfone se exemplifica no
texto em vários trechos. Aliás, é possível perceber relações entre deusas e
personagem durante toda a sua história. Se observarmos com atenção, somos
capazes de ver em Alceste o seu destino caminhando em paralelo tanto com a
deusa da terra cultivada, como da rainha do Hades. Apesar de nossas deusas terem
suas histórias coadunadas, vamos aqui separá-las, por instantes, para melhor
analisá-las.
Alceste é a mãe de um casal de filhos, essa é, com certeza, a maior
aproximação entre Alceste e Deméter. O desespero da rainha, ao perceber que irá
deixar os filhos órfãos de mãe, é equivalente à reação de Deméter, ao ter a filha
raptada por Hades. Vamos além, nossa protagonista em sua decida ao mundo dos
mortos deixa o reino de Feras em profundo luto, Ádmeto seu esposo, mergulhado
em uma enorme cólera.
Relacionamos o sofrimento do rei com o processo de seca decorrente da
busca da deusa do trigo por Core (Core só passa a ser chamada de Perséfone
depois de se tornar rainha das profundezas), como dissemos raptada. Deméter
abdica de suas funções de deusa da fertilidade e passa dias em busca da jovem;
tomada pela saudade, a deusa se abriga em uma caverna, onde passa dias
mergulhada em seu sofrimento, deixando a terra tão seca quanto a alma de Ádmeto,
depois de perder a esposa para a morte.
No trecho abaixo, Alceste expressa a dor de deixar os filhos sem a presença
de uma figura materna, além de demonstrar o desprezo para com os pai de Ádmeto,
que, por ele, não foram capazes de fazer o mesmo que agora ela faz com os
próprios filhos:

Recusei-me a viver separada de ti


com filhos órfãos de seu pai e desprezei
os dons da mocidade, fontes de alegria.
Teu pai, porém, e aquela que te deu à luz
te abandonaram, numa idade provecta
em que seria justa a salvação do próprio filho
enquanto morreriam gloriosamente.
Eles tinham apenas tu e não podiam
ter esperanças de engendrar outro filho
se agora lhes faltasses, e nós viveríamos
a nossa vida inteira e tu não estarias
gemendo assim, privado de tua mulher
e com teus filhos órfãos inda por criar.
Mas tudo é fruto da vontade de algum deus (EURÍPEDES, 1993, p. 170).

Ilustração 1 - Deméter
Deméter quase sempre aparece com ramos de trigo, ou então com os
archotes que carregava nas duas mãos, na ocasião da incessante procura pela filha
mundo afora. Ela ainda tem uma feição sempre muito séria, em algumas imagens
traz na face a profunda tristeza que sentiu. É o mister de força que representa a
figura materna e da fragilidade inevitável, causada por não ter sua filha consigo.
Agora, o aspecto mais forte que liga nossa heroína a Perséfone: a bela e
jovem filha de Deméter foi raptada e levada até o mundo subterrâneo. Ao comer a
romã do Hades, é obrigada a passar um terço do ano ao lado do deus das
profundezas, como rainha do Hades. De modo similar, Alceste é raptada dos braços
do marido, como única forma de fazer o rei sobreviver, e é também levada ao mundo
dos mortos, pelas garras de Thânatos. E, assim como a rainha do mundo dos
mortos, que retorna para o convívio da mãe, a rainha de Feras percorre o mesmo
caminho, na decida ao Hades, e é salva por Heraclés, retornando à vida, ao lado de
filhos e esposo. Devemos lembrar que Perséfone passa um período do ano com a
mãe e o outro com Hades, mas Alceste volta em definitivo.
Aqui, uma passagem da personagem em um dos delírios que antecedem sua
partida:

Estou sendo arrastada! Já me levam


para a mansão dos mortos! Não percebes?
Por baixo de seus supercílios grossos
o olhar der Hades brilha! Ele tem asas,
o teneberoso Hades! Que farás?
Solta-me de teus braços!...Que percurso
__ai, ai! __ é este por onde me arrastam? (EURÍPEDES, 1993, p.168)
Ilustração 2 – Hades e Perséfone

Como Deméter, Perséfone aparece sempre com uma feição de tristeza,


enclausurada no reino de Hades, sofre com a falta da mãe. Na imagem acima
vemos a jovem em uma tentativa de se libertar do rei das profundezas, percebemos
fisicamente a impossibilidade, seu rosto é de cansaço e desânimo. Outras imagens
figuram a rainha no momento em que ela come a romã, o que faz com ela seja
obrigada a permanecer no Hades por alguns meses do ano.
Pretendemos levar à cena todas essas impressões e relações feitas por meio
da análise e pela aproximação com as deusas, utilizaremos de imagens de Deméter
e Perséfone para que, através das experimentações corporais, surjam impulsos para
a criação da personagem e conseqüentemente da encenação.
Brandão (2009) nos apresenta, em forma de quadro algumas características
das deusas. Vamos expor tais características, juntamente com as imagens que
estão sendo utilizadas como estudo para a construção da performance Alceste no
Hades.

Perséfone:
Ilustração 3 - Perséfone Ilustração 4 - Perséfone

Parafraseando o autor, Perséfone tem como atributos o fato ser jovem e se


tornar rainha do Hades. Sua natureza é de Deusa vulnerável e tem como função
arquetípica a dependência materna, além de ser uma mulher receptiva.

Derméter:

Ilustração 5 – Deméter Ilustração 6 - Deméter

A mãe de Perséfone é, segundo Brandão, deusa da terra cultivada e também


se caracteriza por ser uma Deusa vulnerável. Tem como funções arquetípicas as
características já citadas no presente estudo: mãe e nutridora (BRANDÃO, 2009c, p.
371).

Com base nestas idéias, bem com nas imagens das deusas e personagens,
estamos realizando um estudo cênico que toma como norte referencial a experiência
corporal. Iniciamos o estudo prático através de leituras do texto dramático de
Eurípedes. Em seguida, realizei uma síntese das principais idéias da tragédia. Esta
síntese foi também o protótipo do primeiro capítulo deste trabalho escrito. Em
seguida, selecionamos as deusas Deméter e Perséfone para servirem como motes
de amplificação das características de Alceste, e para ampliar nossas possibilidades
cênicas. A partir daí, passamos ao estudo de imagens referentes a Alceste, Deméter
e Perséfone. Paralelamente a meu estudo, o pesquisador Taiom Faleiro passou a
estudar imagens referentes a Hades e Thânatos, de modo a atuar de modo
complementar na performance. É com base nesse estudo que a performance
Alceste no Hades está sendo estruturada. Esperamos atingir um bom nível de
elaboração e de relação com o espectador, lembrando que se trata apenas de um
exercício de pesquisa, sem maiores pretensões.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse trabalho, em primeiro lugar, vem cumprindo a missão de saciar em


partes meus desejos iniciais. Digo em partes porque trata-se da primeira reflexão
mais detida que faço acerca do teatro grego. Nesse sentido, é importante ressaltar
que, acompanhado de todos os seus elementos, o teatro grego é imensamente
amplo, e é um tanto pretensioso querer desvendá-lo por completo em um só estudo,
mesmo que tentemos nos focar em alguns dos campos que lhe compõem, ainda
assim sua complexidade é extrema
Porém é inegável sua importância no teatro feito pós era grega. As tragédias
escritas há séculos nos emocionam e nos permitem uma identificação ainda hoje por
meio dos mitos, que salvo as transformações a que sofreram devido ao tempo, ainda
nos valem de uma interpretação extremamente atual.
Revivemos nossos mitos todos os dias, ritualizamos nossas crenças e
acreditamos, cada um a seu modo, na relação mortal-imortal, cotidiano-divino. Toda
essa fé é intrínseca ao ser humano, e só nos resta olharmos mais para dentro de
nós, para alcançarmos aquele autoconhecimento que o sagrado nos proporciona.
Ver uma personagem como Alceste, capaz de morrer pelo marido, como
também citamos nos primeiros capítulos, onde atualmente essa atitude seria muito
menos gloriosa, nos leva a profundas reflexões: afinal o que estamos cultuando
como amor, ou ainda: como nos relacionamos com esse fenômeno irreversível da
morte.
São tantas as questões que esse estudo me instigou a ir além. Pensando no
papel da mulher, em toda a nossa história, encontramos uma rainha que,
caracterizada por um sentimento nobre, perde o que há de mais precioso a um ser
humano, pela covardia de um homem.
Afora todas essas impressões finais, a pesquisa ainda está me
proporcionando uma experiência artística com a qual ainda não tinha tido contato: o
processo de criação de personagem por meio de fotografias, imagens estáticas.
Experimentando corporalmente tais imagens surge um impulso interior, quase
naturalmente, e dessa prática construo o íntimo da personagem.
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