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Alceste No Hades
Alceste No Hades
Alceste No Hades
ALCESTE NO HADES:
Poéticas do Feminino na Criação Cênica Contemporânea
Goiânia
2010
RENATA ALESSANDRA WEBER
ALCESTE NO HADES:
Poéticas do Feminino na Criação Cênica Contemporânea
Goiânia
2010
RENATA ALESSANDRA WEBER
ALCESTE NO HADES:
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AGRADEÇO
Ao meu orientador Alexandre Nunes, por toda a atenção, dedicação e paciência
emprestados a este trabalho.
A Urânia Maia, por ter me apresentado a “Alceste”, texto analisado nesta pesquisa.
A Valéria Braga, por todo carinho e confiança. Por dedicar parte de seu tempo a ouvir as
mágoas que nasciam em determinados momentos, sendo eles os mais difíceis e, acima de
tudo, por ter sido a mais especial entre todas.
A todos os professores, tendo cada um a seu modo contribuído para a minha formação
acadêmica e artística.
A Elisa Gomes e Agostinho Bizinoto, meus pais no teatro, por terem a sensibilidade de
perceberem a arte dentro de mim e por acreditarem que eu era capaz.
Aos meus mais lindos amigos que trago sempre no coração, mesmo com toda a distância
me incentivavam e alimentavam minha alma com suas energias positivas, e por entenderem
a minha ausência para me dedicar à academia: Elenor Cecon, Mary Claudia e Bia Galharini.
A Cia de teatro Sala 3 por toda a experiência artística me que proporcionou nos quase cinco
anos de trabalho árduo em busca de uma arte completa.
Aos meus queridos e especialíssimos: Taiom Tawera, Diogo Sanqueta e Gerda Arianna.
Agradeço por todas as deliciosas gargalhadas e por todas as lágrimas que compartilharam
comigo nessa caminhada, foram quatro longos anos da mais pura cumplicidade, sem vocês
tudo teria sido muito menos doce, pois como diria o poeta: “Ninguém disse que ia ser fácil...
mas também ninguém disse que ia ser tão difícil”. Obrigado!
A ele, que em meio a uma tempestade me fez sentir o melhor de todos os sentimentos!
Há de haver algum lugar
Um confuso casarão
Onde os sonhos serão reais
E a vida não...
Chico Buarque
RESUMO
O estudo, de caráter teórico-prático, toma como base inicial de referência um
estudo bibliográfico focado na tragédia grega antiga Alceste, de Eurípedes.
Primeiramente, é realizada a análise propriamente dita dos conteúdos e da estrutura
dramática de Alceste. Na obra, destaca-se a virtude altruísta da personagem, que
aceita a morte para recuperar o marido, coadunando as temáticas de amor e morte.
Dando sequência aos estudos, a personagem Alceste é amplificada, a partir dos
elementos arquetípicos de duas deusas gregas: Deméter e Perséfone. Elas
englobam alguns dos principais temas da feminilidade, segundo a mitologia grega.
Nesta pesquisa, alguns aspectos da vida de Eurípeses (o autor), considerado o
trágico solitário do fim do século V a.C., são estudados. A investigação tem
continuidade com a busca de alguns elementos do teatro grego antigo, que
colaboram com a compreensão da temática. Esta pesquisa se desenvolve também
através de experimentações cênicas, de cunho contemporâneo, nas quais
trabalham-se especialmente as temáticas do feminino, do amor e da morte.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 - Deméter.............................................................................................41
Ilustração 2 – Hades e Perséfone...........................................................................42
Ilustração 3 – Perséfone.........................................................................................43
Ilustração 4 - Perséfone..........................................................................................43
Ilustração 5 - Deméter.............................................................................................44
Ilustração 6 - Deméter.............................................................................................44
SUMÁRIO
RESUMO...................................................................................................................7
LISTA DE ILUSTRAÇÕES........................................................................................8
INTRODUÇÃO........................................................................................................10
1 ALCESTE NO HADES........................................................................................13
2 O EFEITO TRÁGICO..........................................................................................22
2.1 O poeta da busca.........................................................................................29
REFERÊNCIAS.......................................................................................................46
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa é resultado de curiosidades e desejos acerca de alguns
elementos referentes à temática do feminino e da mitologia grega, em relação com o
teatro. Essas curiosidades surgiram durante minha vida artística, e me
acompanharam até o ingresso na universidade. Foi lá, na vida acadêmica, que elas
foram sendo intensificadas e amadurecidas.
Em 2005, ao término de um curso técnico de artes dramáticas, tínhamos
como trabalho final a montagem de um espetáculo, o texto escolhido foi Édipo Rei,
de Sófocles, uma tragédia grega das mais conhecidas. Na ocasião interpretei
Jocasta, a mãe/esposa do rei Édipo.
Passados três anos, em 2008, já cursando Artes Cênicas na UFG, tive
contato, por meio de um trabalho vinculado a uma companhia de teatro da cidade,
com o universo feminino contido nas músicas do compositor Chico Buarque.
Desde então, fiquei com esses dois desejos pulsando fortemente em mim: o
teatro grego, através da dramaturgia trágica e o universo feminino. Depois da
entrada no curso, tive certo contato com as temáticas indicadas, principalmente no
que diz respeito ao teatro grego, o que aguçou ainda mais meu interesse.
Vislumbrei a possibilidade de unir esses dois pontos de interesse, quando
percebi a possibilidade de um ponto de convergência entre eles, afinal são muitas as
figuras femininas de destaque dentro das tragédias gregas: Medéia, Antígona,
Jocasta, Electra, Clitemnestra, entre outras.
Porém, precisava me apaixonar por uma delas de forma especial para
continuar alimentando meu desejo e dar prosseguimento à pesquisa. Apesar de ser
inegável minha tendência a pesquisar Medéia ou Antígona, por já conhecer as suas
comoventes trajetórias, intuitivamente me negava a optar por qualquer uma delas.
Foi quando, um dia, reunida com amigos na cantina da universidade, uma
professora pára, nos cumprimenta e me fala de Alceste, enfatizando seu final feliz na
obra, que destoa do final de todas as tragédias. Em seguida, a professora diz:
“Alceste vai da desdita para a dita”.
E assim estava feita a minha escolha. Depois de ler a obra e identificar o
entusiasmo da professora, tinha em mãos uma tragédia grega homônima à
protagonista. A esposa caracterizada por seu altruísmo, que aceita morrer por amor
ao marido: Alceste, de Eurípedes.
Porém, altruísmo definitivamente não era sua única característica. Apesar de
ser este o principal enfoque da minha análise, Alceste trazia consigo muito mais, e
na busca por ampliar os pontos de vista sobre a personagem, dando a ela
particularidades do feminino, escolhi duas deusas gregas como arquétipos capazes
de compor Alceste, são elas: Deméter (deusa da terra cultivada) e Perséfone (rainha
do Hades).
Depois de observar os elementos míticos que permeiam a tragédia, percebi a
necessidade de me aprofundar em alguns estudos que colaborassem para a
compreensão da temática.
Assim, este trabalho se organiza inicialmente através de uma pesquisa
bibliográfica, acompanhada de um processo de experimentação, que resultará na
apresentação de uma performance de cena. Enquanto trabalho de conclusão de um
curso de bacharelo, achei oportuno me concentrar no estudo de uma peça teatral de
referência, e em algumas possibilidades cênicas de levar ao palco estes estudos, na
forma de experimento artístico.
No que se refere ao presente trabalho escrito, ele está estruturado em quatro
capítulos, dispostos da seguinte forma: 1) Alceste no Hades – consiste na análise da
tragédia de Eurípedes, focada no altruísmo da personagem, combinando os temas
amor e morte; 2) O Efeito Trágico – discute o gênero teatral trágico e o efeito que ele
causa no espectador, 2.1) O Poeta da Busca – como parte do capítulo sobre o efeito
trágico, este subcapítulo apresenta uma trajetória de Eurípedes, aspectos de sua
vida e de sua obra; 3) Um Breve Passeio pela Mitologia – como o próprio título
indica, trata-se de um breve vislumbre da mitologia grega, trazendo conceitos
essenciais à identificação dos elementos míticos presentes em Alceste; 4)
Caminhando Rumo à Criação Cênica – Trata-se de uma exposição do processo de
experimentações, em prol da montagem cênica, que será embasada em todos esses
elementos estudados nos capítulos anteriores. Este processo de experimentação
teve como base de referência a tríade: feminino, amor e morte, encontrada em
Alceste e nas figuras arquetípicas selecionadas.
A tragédia grega Alceste, apesar de ter sido a mais antiga de Eurípedes a
chegar até nós, não vem sendo um texto de grande destaque nas produções atuais.
Em uma breve investigação sobre as possíveis montagens do texto, encontrei
pouquíssimas informações.
Pelo mundo afora vemos poucas montagens significantes do texto, a não ser
várias óperas que se intitulam Alceste, porém sem a mínima certeza de estarmos
falando da Alceste de Eurípedes. No Brasil, a representatividade desta tragédia é
ainda menor, não tendo sido possível encontrar muitas informações acerca de
montagens do texto.
1. ALCESTE NO HADES
1
Moiras eram as três deusas responsáveis pelo destino dos mortais; Cloto é a responsável por fiar,
Láquesis por marcar o destino e Átropos por cortar o fio, pondo fim à vida de um mortal.
gratidão à atitude hospitaleira do rei, que o acolhe justamente após o castigo que
recebera. Mas seu feito obteve êxito apenas em parte, já que, para a salvação de
Ádmeto, era necessário ofertar outro cadáver ao mundo subterrâneo. Mas quem
seria capaz de doar a própria vida para salvar a de Ádmeto? Os primeiros a serem
cogitados são os seus pais, por serem velhos e já terem vivido bastante, mas
Ádmeto se surpreende com a negação do pedido. A única pessoa a aceitar a morte
em prol da vida do rei é sua própria esposa, a rainha Alceste.
Nesse momento do texto, ainda não nos certificamos se a atitude da
protagonista configura um ato de heroísmo, ou de plena ingenuidade e submissão,
perante a figura masculina. Mas já percebemos a figura da rainha sendo alçada em
benefício da vida de Ádmeto. Por essa razão, o altruísmo da rainha é sempre
enfatizado, dando-lhe as características de uma heroína corajosa e forte,
representante da capacidade máxima de amar do ser humano. Por outro lado,
Ádmeto é avaliado por sua total covardia e apatia, ao permitir que Alceste seja
sacrificada em seu lugar.
Thânatos surge como personificação da morte. Ele empunha uma espada,
tem vestes negras, uma longa barba e é dono de uma aparência claramente
masculina. A morte chega certa de sua missão: levar Alceste consigo, e é taxativa
ao afirmar a Apolo que, dessa vez, não salvará o corpo da rainha como salvou o do
rei.
Apolo ainda assim se mostra calmo, e faz alusão a um certo forasteiro que
virá até o palácio, pedir abrigo a Ádmeto. Essa característica de Apolo é outra de
suas características, enquanto deus que enxerga de longe. Na tragédia, ele sempre
adianta os fatos. A morte, no entanto, demonstra pressa e não dá importância às
palavras do deus, sempre clamando pelo corpo de Alceste, que deve ser preparado
para o sacrifício. Temos aqui a primeira descrição de uma espécie de ritual de
morte, pelo qual todos que se encontrassem perto do fim deveriam passar. A
primeira característica deste ritual é o corte de cabelo da vitima do sacrifício, através
da ceifa da morte, sendo os fios jogados em uma fogueira. Neste ponto, termina o
prólogo.
Em frente ao palácio, os cidadãos téssalos se encontram ansiosos a fim de
saber se a rainha ainda vive ou se já está morta; novamente nesse trecho do texto
encontramos elementos dos rituais que antecediam o sacrifício. Fazia parte das
manifestações rituais que as pessoas mais próximas do morto batessem as mãos
sobre as próprias cabeças, expressando a angústia causada pela perda.
Num outro trecho do texto, podemos ler a seguinte indicação ritual: “não
vemos sequer diante das portas a água lustral tirada das fontes para ser espargida
nos umbrais da casa onde há defuntos.” (EURÍPEDES, 1993, p. 161). Segundo
Ménard (1991, p. 116), faz-se referência, aqui, a uma tradição grega antiga, segundo
a qual, mergulhava-se um pedaço de madeira queimado uma espécie de carvão,
ainda em brasas, num vaso com água, de modo a orvalhar as pessoas que tivessem
tido contato com o cadáver, como forma de purificação.
O coro em sua angustiante espera por notícias, faz menção a Asclépio, o filho
de Apolo morto por Zeus. Asclépio era um deus de cura, que além de curar os
doentes tinha ainda o poder de trazer os mortos de volta à vida. Se não tivesse sido
morto por Zeus, seria capaz de salvar Alceste de seu destino.
As primeiras notícias sobre a rainha chegam por meio de uma serva que
relata os últimos momentos de Alceste no palácio e nos descreve minuciosamente
sua despedida. Segundo a serva, Alceste, percebendo que sua partida está próxima,
começa sua comovente despedida: banha-se em água pura, adereça-se com roupas
e jóias das mais preciosas, ajoelha-se em frente à lareira e reza. Rogando pelo
futuro de seus filhos, implora para que tenham casamentos dignos e uma sorte
oposta à dela: que ao invés da morte prematura, prosperem:
Ah! Senhora!
Já vou descer as profundezas infernais,
mas antes quero dirigir-te de joelhos,
pela última vez, minha sentida prece:
vela pelo dois filhos que deixarei órfãos;
une meu filho a uma esposa que ele ame
e minha filha a um marido incomparável
pela nobreza. Ouve, deusa, minha súplica:
outorga-lhes uma sorte muito melhor
que a de sua mãe moribunda! Em vez da morte
antes da hora, dá prosperidade a ambos
nas terras de seus pais e as delícias da vida!
(EURÍPEDES, 1993, p. 164).
O rei de Feras declara à esposa que jamais outra mulher se deitará em seu
leito, e que por toda a eternidade que a ele restar, odiará os pais por não terem se
colocado à disposição para o ato de sacrifício. A rainha morre e o luto é
estabelecido.
Na fala que segue, logo após a morte de Alceste, somos apresentados a mais
alguns pequenos rituais referentes à passagem de uma alma ao mundo subterrâneo.
São os rituais fúnebres. Ádmeto ordena que todos cortem seus cabelos e usem
roupas pretas. Até mesmo os cavalos, que serviam como transporte para o povo,
deveriam ter suas crinas ceifadas. Durante doze longas luas, não se poderia tocar
nem flautas nem liras. O único canto permitido era o hino fúnebre, esse cantado
para agradar ao deus das profundezas.
Em meio a essa atmosfera de luto, surge o episódio já anunciado por Apolo.
Heraclés que, seguindo ordens de seu primo Euristeu, rei de Tirinto, vem retirar as
éguas de Diomedes, filho de Ares (deus da guerra), e levá-las ao rei. O forasteiro
observa as vestes negras e os cabelos cortados. Então, decide recuar e pedir abrigo
em outro lugar, já que não seria justo se hospedar em um palácio onde o luto se
instaurou. Porém, Ádmeto insiste para que ele fique e se abrigue ali, ou seja, o rei
decide recalcar a própria dor para hospedar o forasteiro.
Esse é um dos poucos momentos do texto em que o rei é exaltado por um
adjetivo positivo: sua hospitalidade é o que faz com que ele seja protegido pelos
deuses. Prova disso está no início do texto, quando Apolo admite proteção ao
palácio em forma de gratidão pela recepção do rei. Isso porque como também já
citamos, no decorrer da tragédia só são creditados a ele egoísmo, covardia e
fragilidade.
Por meio de Heraclés, o texto amplia seus aspectos míticos. Heraclés é um
herói que tem como principais feitos doze grandes trabalhos. Os doze trabalhos
foram impostos pela deusa Hera (rainha das deusas gregas) e, se o herói passasse
por todos, deixaria de ser um simples mortal para se tornar imortal.
Entre seus doze trabalhos destacamos o oitavo, ou seja, referente às Éguas
de Diomedes, por ser no cumprimento dessa missão que Heraclés passa por Feras
e se abriga no palácio de Ádmeto.
Para a descrição desse oitavo trabalho, parafrasearemos a versão de
Brandão (2009, p. 109). Diomedes era dono de quatro éguas, as quais se
alimentavam de carne humana, mais precisamente de estrangeiros que por ali
passavam. Euristeu ordena que o herói traga as éguas para Argos. Heraclés lutou
contra o próprio Diomedes e venceu a batalha, jogando o corpo às éguas, que
depois de devorarem o dono, calmamente se deixaram ser conduzidas até Argos.
No palácio, o corpo de Alceste está pronto para o ritual fúnebre. É
encaminhado até os cidadãos de Feras para que lhes prestem as últimas
homenagens. Em meio ao cortejo, surge o pai de Ádmeto, que traz consigo um
manto. Ele pretendia dá-lo a Alceste para que o levasse consigo ao mundo dos
mortos, mas o rei investe agressivamente contra o pai, impedindo-lhe de colocar o
manto no sepulcro. Nesta passagem prolifera um embate antagônico de dois
personagens movidos pelos mesmos sentimentos: o egoísmo e o apego à vida
saltam em suas palavras.
A conversa consiste em uma troca de acusações e argumentações, como
justificativas para as próprias atitudes. Mas a verdade é que Feres demonstra maior
coerência, ao explicar ao filho que não tinha nenhuma responsabilidade em pôr a
própria vida em prol da dele, pois já havia lhe dado muito, além de tudo que o rei
herdara, havia lhe dado a própria vida:
Eu mesmo te engendrei
e te criei para fazer de ti, meu filho,
o senhor desta casa, mas nada me obriga
a perecer antes do tempo em teu lugar.
Não aprendi de meus avós e nem da Grécia
a lei que impõe aos pais morrerem pelos filhos.
Nasceste, Ádmeto, para ser quem tu és,
feliz ou infeliz. Já te demos a vida;
teus súditos são numerosos, numerosas
são as propriedades que te deixarei,
todas elas herdadas de meu nobre pai.
Que mal te fiz ou de que bem te despojei?
Não terás de morrer por mim, da mesma forma
em que não morro por ti. Tens o maior prazer
em ver a luz do dia; crês que eu, teu pai,
sofro com a luz?
(EURÍPEDES, 1993, p. 189).
O apego à vida é de fato natural ao ser humano, o que deixa Feres indignado é
o fato de ser acusado e repreendido por querer viver, exatamente por alguém que,
movido pelo mesmo desejo, foi capaz de deixar a própria mulher que jurava amar,
padecer em seu lugar. Feres arremessa suas últimas palavras chamando o filho de
assassino da própria esposa, e depois se afasta do cortejo, sob as ofensas do filho.
A procissão levando o corpo de Alceste segue o seu destino.
Heraclés está no palácio recebendo todas as honrarias destinadas a um
visitante, comendo e bebendo à vontade, ornamentado com uma guirlanda na
cabeça. Essa imagem com a qual o herói se apresenta nos remete a uma forma
burlesca, a elementos do drama satírico, mas logo em seguida a tragédia é
retomada. O servo que acompanha o forasteiro não é capaz de esconder a
indignação ao ver tanta festa em uma casa assolada pela desgraça e, ao ser
inquirido, conta tudo a Heraclés, que fica imensamente surpreso com o gesto
carinhoso do rei, mesmo na atual realidade.
Tomado pela gratidão, o herói traça sua estratégia para trazer a rainha de volta
ao convívio dos seus. Se necessário, pretende ir ao mundo subterrâneo clamar
diretamente a Hades e Perséfone pela vida de Alceste. Mas o que faz realmente é
usar de sua força descomunal e em um combate com Thânatos arranca a rainha das
garras da morte, no momento em que esta ia ser sepultada.
Ádmeto retorna do cortejo aos prantos, contemplando o palácio onde nunca
mais encontrará a esposa. Ao observar o lugar, percebe a entrada do homem que
acabara de abrigar, mas o hóspede não estava sozinho, trazia pela mão uma mulher
coberta por um véu.
O herói confessa ao rei que descobriu o real motivo do luto estabelecido por
toda a cidade. Mostra-lhe a moça e diz tê-la ganhado em uma competição, e que
agora ele precisa entregá-la aos cuidados do rei para que possa cumprir a missão
que o levou a Tessália. Mas o rei, por vezes, implora que Heraclés a leve para outra
casa, lembrando-se do juramento que fez à esposa, prometendo jamais deixar outra
mulher tomar o seu lugar. Pede que não o obrigue a ser desleal com aquela que se
sacrificou por ele, mas Heraclés insiste veementemente para que ele cuide da moça.
Muito a contragosto, o rei estende a mão para receber a hóspede, enfatizando mais
uma vez a hospitalidade.
Com a moça entre as próprias mãos, o rei vê sendo retirado o véu que lhe
cobria o rosto e para sua surpresa, aquela que estava entre seus braços era Alceste,
que retorna ao palácio pelas mãos do grato Heraclés. A rainha ainda não era capaz
de proferir palavra alguma, pois o processo de purificação precisava se completar.
Mas o luto está terminado. Agora, o reino de Ádmeto entra em festa, e todos
celebram o retorno da rainha que, antes levada ao Hades, agora volta ao convívio
do seu povo, dos seus filhos e do seu amado. Após cumprida a missão, o forasteiro
responsável pela desmedida alegria, decide prosseguir sua jornada, tendo deixado
em Tessália a prova de sua gratidão.
Alceste nos apresenta personagens ambíguos, dotados de sentimentos reais.
Mas o que transforma a protagonista em uma heroína, aos olhos do espectador, é
seu ato de amor. A morte tem destaque especial, por através dela, vemos o que seu
perigo iminente revela em cada ser humano.
Observamos ainda que a morte, nesse contexto e talvez em outros, possa ser
bela se acompanhada por um ato de amor: ao amar a morte e a finitude, esta se
converte em vida. Talvez o que suavize essa tragédia, inclusive, sendo colocado em
discussão seu gênero, seja o fato do autor encontrar o caminho para que a
personagem retorne a vida.
Numa leitura dos símbolos da obra, podemos dizer que aquilo que faz com
que Alceste volte, é a grandeza de seu sentimento, sua capacidade de amar o outro
a tal ponto de se sacrificar por ele, ou seja, um altruísmo fortemente presente na
personagem. Por outro lado, a entrega de Alceste à morte alude à conexão
intrínseca entre as temáticas de amor e morte, como se a experiência do amor
pudesse ser compreendida como uma experiência de morte e vice-versa.
O fim dessa tragédia, que para muitos nada tem de trágico, por evidenciar
sentimentos nobres como o amor e a felicidade, nos fazem refletir acerca das
diferenças entre a realidade atual e aquela antiga. Para a Grécia daquele tempo, o
ato de amor de Alceste engrandeceu o presente drama, porque era um ato simbólico
de engrandecimento da vida. Porém, hoje, o mesmo ato, para a maioria das
pessoas, poderia ser visto como loucura ou tolice, já que o amor, assim como todos
os grandes valores, perdeu sua força simbólica originária.
2. O EFEITO TRÁGICO
[s]e todos estão de acordo sobre este ponto, pode-se perguntar de onde
nascem as dificuldades? Do fato de que Aristóteles parece fazer intervir os
sentimentos de medo e piedade como os únicos susceptíveis de provocar
em nós o sentimento de libertação. Admitimos facilmente que o riso seja
libertador; mas e o medo e a piedade? Qual o milagre que faz com que o
espetáculo de uma ação infeliz e trágica provoque em nós um agradável
sentimento de alívio? (Ibid, p. 36).
E dessa forma, Eurípedes foi desenvolvendo seu belo trabalho, no que diz
respeito à construção de grandes dramaturgias trágicas, dentre elas Alceste.
Segundo Lesky (2006, p. 194), Alceste seria de 455 a.C., e como já citamos
no primeiro capítulo, designaria o mais antigo escrito de Eurípedes. Nesta obra, o
poeta mantém uma estrutura mais clássica, que mais tarde viria a ser abandonada
por ele. O autor ainda afirma que Alceste seria o quarto texto de uma tetralogia.
Sendo assim, representaria um drama satírico apresentado após três tragédias,
como já nos referimos no início de nossa análise. Porém, encontramos uma
informação de Gassner (2002, p. 71) que diverge de Lesky. Para este último, a obra
(Alceste) só viria acompanhada de duas outras tragédias, e em sua análise vai além,
denominando a peça como sendo quase um conto de fadas, devido ao seu final
feliz, nada comum nas dramaturgias trágicas.
Viemos desde a análise de Alceste, passamos pela discussão da tragédia e,
agora chegando a Eurípedes, nos deparamos com elementos míticos, os quais nos
levam ao capítulo seguinte, com o anseio de ampliar os conhecimentos, no que se
refere à mitologia e suas adjacências.
3. UM BREVE PASSEIO PELA MITOLOGIA
Como sabemos, tivemos como ponto de partida para esta pesquisa a tragédia
grega antiga Alceste. Mas percebemos, durante o estudo, a necessidade de
compreender melhor algumas questões relativas ao tema objeto, de modo a melhor
desenvolver as discussões aqui propostas. Sendo assim, neste terceiro capítulo,
abordaremos alguns conceitos relativos à mitologia que, por repetidas vezes,
mostraram-se importantes para as reflexões presentes nos capítulos anteriores.
Para isso, nos reportaremos, principalmente, a dois grandes autores e especialistas
em mitologia: Junito de Souza Brandão, especialmente por meio de dois dos três
volumes de Mitologia Grega, e Mircea Eliade, mais especificamente no primeiro
volume do livro História das Crenças e das Idéias Religiosas: da Idade da Pedra aos
Mistérios de Elêusis. Tal escolha se justifica porque esses dois autores parecem
suficientes para a apresentação das principais ideias acerca do que vem a ser
mitologia. Essa apresentação se dá de forma simples, sem perder de vistas a
complexidade inerente à temática.
Para Brandão (2009c), mitologia não é outra coisa senão o estudo que tem
como objeto central de investigação o mito; mas juntamente com essa conceituação,
o referido autor amplifica a questão, abordando dois outros termos a ela ligados:
mitologema e mitema. Então vamos, pelas palavras de Brandão, nos aproximar do
significado de cada uma dessas palavras e do ponto de convergência entre elas:
4
Esse limite é conhecido, no contexto das tragédias gregas, pelo nome de métron. Ao ultrapassá-lo, o
herói trágico fica sujeito à vingança divina.
suas peças uma consciente dessacralização do mito com uma conseqüente
proletarização da tragédia” (BRANDÃO, 2002, p. 57).
Acompanhando a trajetória percorrida pela mitologia, observamos ao longo da
rica história grega, que houve fortes tentativas de enfraquecer a influência da
mitologia sobre o homem, através de diversos processos de desmitização. E foi
somente no século I d. C., que surgem dois outros movimentos opostos, no intuito
de resgatar a mitologia: o “Alegorismo” e o “Evemerismo”. Quando usamos ‘resgate’,
não estamos nos referindo somente ao sentido puro e simples de ajudar, ao
contrário, estamos indo além, pois esses dois movimentos auxiliaram na retomada
da força da mitologia muito a seu modo, lançando mão inclusive e, principalmente,
de críticas.
O Alegorismo vem em defesa de que o mito não pode ser compreendido em
sua literalidade, pois se utiliza de metáforas para expressar sua mensagem. Como
aponta Brandão, alegoria em sua etimologia significa “dizer outra coisa” (Ibid., p. 31).
Esse pensamento configurava ao mito uma maior complexidade de sentido, muito
diferente da forma com que era entendido até então. O Evemerismo vem de certa
forma na contramão do alegorismo, embora não o negando, mas propondo outro
enfoque: transfere as atenções do sentido para a história propriamente dita,
trazendo os deuses para caminharem mais próximos dos mortais.
Essas duas novas formas de pensar o mito foram essenciais, sendo capazes
de doarem forças para trazerem de volta a mitologia ao seu lugar. Após um
processo degradante pelo qual acabara de passar, não era de se esperar que o
pensamento mitológico retornasse sem nenhum arranhão. Mas a prova de que ainda
permanecia presente era o fato de que o povo, mesmo alheio aos últimos
movimentos, continuava firme em suas crenças e fortemente ligado às tradições
religiosas:
Somado a esses novos pensamentos, está o processo pelo qual o próprio povo
helênico passa, transformando sua visão e seu entendimento sobre a vida. Pois a
partir da conclusão de que a moira de cada um está traçada (e que nada se poderia
fazer, afinal a morte é inevitável ao ser humano), o homem grego adquire nova
postura: a de aceitar a vida da forma como ela nos foi dada e encontrar nessa nova
fase a “alegria de viver”.
Manifestar o novo sentimento por meio de rituais coletivos e bem organizados
foi o que suavizou a relação do cidadão grego com o divino, mudança extremamente
bem vinda, pois re-estabeleceu a possibilidade de relação entre a dimensão humana
e a dimensão dos deuses. Abordando o assunto, Eliade observa que a visão trágica
dos gregos, em vez de inibir o pensamento religioso, “conduziu a uma revalorização
paradoxal da condição humana”. E é com espanto que observamos o modo de
funcionamento da espiritualidade grega antiga, pois, “paradoxalmente, uma religião
que proclama a distância irredutível entre o mundo divino e dos mortais [é a mesma
que] faz da perfeição do corpo humano a representação mais adequada dos deuses”
(ELIADE, 2010, p. 251).
Bem, após esse breve passeio pela história da mitologia, focaremos
precisamente a outros conceitos. Nosso principal objetivo é conceituar o mito, sem
esquecer que mito e rito estão diretamente ligados, sendo assim, pretendemos
também chegar a um melhor entendimento do que se conceitua como rito.
Basicamente, o mito vem sempre carregado de aspectos religiosos. São
histórias referentes à criação, as origens da vida, histórias criadas a partir do
pensamento antigo, de que tudo à nossa volta era uma forma de representatividade
de um Deus, ou seja, todos os fenômenos naturais eram consequência da ação dos
deuses. Dizemos antigo porque muitas dessas crenças foram suavizadas e outras
até desapareceram nesse mundo moderno.
Porém nessa mesma forma de pensamento, havia espaço para que o mito
fosse, por vezes, interpretado no seu sentido mais fantasioso, algo mais distante do
real. Esta é, aliás, uma das formas de compreensão do mito mais populares
atualmente, segundo a qual, o significado do mito se aproxima da noção de mentira.
Entretanto, em sua exposição, Brandão deixa claro que o mito tem como cerne o
oposto: “talvez fosse mais exato defini-lo como uma verdade profunda de nossa
mente.” (BRANDÃO, 2009b, p. 39)
Essa explicação de Brandão nos leva a pensar no mito como um
autoconhecimento que nos é permitido por meio do sagrado. Já que o mito se refere
às origens da vida, da nossa própria origem, ele tem o poder de fazer com que
olhemos para nós mesmos, compreendendo, através da reflexão sobre o início de
nossa existência, tudo o que faz e fez parte do que hoje somos. Isso é o que permite
ao indivíduo visitar todo o processo de construção do seu ser que, pelo acúmulo de
experiências, o levou à realidade atual.
Uma das formas de contato com essas origens, com esses mitos, ocorre por
meio dos rituais. Os rituais são formas criadas pelo ser humano para vivenciar a
história do mito, reconstituindo sua epifania. São vários os rituais que se
perpetuaram ao longo da história humana. No que se refere à Grécia antiga, talvez
os rituais mais conhecidos sejam os relativos aos cultos a Dioniso e a Deméter-
Perséfone:
Ilustração 1 - Deméter
Deméter quase sempre aparece com ramos de trigo, ou então com os
archotes que carregava nas duas mãos, na ocasião da incessante procura pela filha
mundo afora. Ela ainda tem uma feição sempre muito séria, em algumas imagens
traz na face a profunda tristeza que sentiu. É o mister de força que representa a
figura materna e da fragilidade inevitável, causada por não ter sua filha consigo.
Agora, o aspecto mais forte que liga nossa heroína a Perséfone: a bela e
jovem filha de Deméter foi raptada e levada até o mundo subterrâneo. Ao comer a
romã do Hades, é obrigada a passar um terço do ano ao lado do deus das
profundezas, como rainha do Hades. De modo similar, Alceste é raptada dos braços
do marido, como única forma de fazer o rei sobreviver, e é também levada ao mundo
dos mortos, pelas garras de Thânatos. E, assim como a rainha do mundo dos
mortos, que retorna para o convívio da mãe, a rainha de Feras percorre o mesmo
caminho, na decida ao Hades, e é salva por Heraclés, retornando à vida, ao lado de
filhos e esposo. Devemos lembrar que Perséfone passa um período do ano com a
mãe e o outro com Hades, mas Alceste volta em definitivo.
Aqui, uma passagem da personagem em um dos delírios que antecedem sua
partida:
Perséfone:
Ilustração 3 - Perséfone Ilustração 4 - Perséfone
Derméter:
Com base nestas idéias, bem com nas imagens das deusas e personagens,
estamos realizando um estudo cênico que toma como norte referencial a experiência
corporal. Iniciamos o estudo prático através de leituras do texto dramático de
Eurípedes. Em seguida, realizei uma síntese das principais idéias da tragédia. Esta
síntese foi também o protótipo do primeiro capítulo deste trabalho escrito. Em
seguida, selecionamos as deusas Deméter e Perséfone para servirem como motes
de amplificação das características de Alceste, e para ampliar nossas possibilidades
cênicas. A partir daí, passamos ao estudo de imagens referentes a Alceste, Deméter
e Perséfone. Paralelamente a meu estudo, o pesquisador Taiom Faleiro passou a
estudar imagens referentes a Hades e Thânatos, de modo a atuar de modo
complementar na performance. É com base nesse estudo que a performance
Alceste no Hades está sendo estruturada. Esperamos atingir um bom nível de
elaboração e de relação com o espectador, lembrando que se trata apenas de um
exercício de pesquisa, sem maiores pretensões.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
MÉNARD, René. Mitologia Greco-romana. Tradução Aldo Della Nina. São Paulo:
Opus, 1991.
TOUCHARD, P. O teatro e a angústia dos homens. Tradução Pedro Paulo de Sena
Madureira e Bruno Palma. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1970.
______. Dioniso: Apologia do teatro. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1978.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1990.