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AS DEZ MAIS DO CÓRTEX CEREBRAL

de Cyrano Rosalém

Cena - Um balcão de um hospital psiquiátrico. Atrás dele encontra-se uma


enfermeira em seus afazeres. Entra um homem de terno e pasta 007.

H - Bom dia.

E - Bom dia.

H - Por favor, aqui é o Hospital Psiquiátrico Paz Interior?

E - Sim, pois não.

H - Eu queria me internar.

(Pausa)

E - Como? Eu não entendi!

H - Eu quero me internar.

(Pausa)

E - Internar... E por que?

H - Como por que?... Porque eu sou louco!

E - Por que o Sr. Acha que é louco?

H - Eu não acho, eu sou louco.

E - Me desculpe, mas o Sr. não tem aparência de louco.

H - E prá ser louco tem que parecer louco?

(Pausa. Enfermeira mede o homem de cima a baixo.)

H - (Ameaçador) Se a Sra. quiser eu posso lhe dar uma mordida.

E - (Rápida) Não! Não é necessário! (Apanha o telefone) Eu vou encaminhá-lo ao nosso


psiquiatra...
H - A Sra. não entendeu. (Delicadamente apanha o telefone da mão dela e recoloca no
gancho) Eu não
preciso de um psiquiatra, só preciso ser internado.

E - Como o Sr. pode ter tanta certeza?

H - Sabe o que é, eu ouço músicas na minha cabeça.

E - Isso é normal, muita gente ouve música na cabeça.

H - Sei, só que quando a música começa eu sinto um impulso irresistível e saio


dançando. Às vezes,
sapateando!

(Pausa)

E - O Sr. está ouvindo música agora?

H - Claro que não, senão não estaria parado.

E - Qual a freqüência desses acessos?

H - Atualmente várias vezes por dia.

E - O Sr. é bailarino?

H - (Impaciente) Não, minha senhora, sou contador.

E - Puxa, um contador bailarino!

H - A Sra. está surda? Já disse que não sou bailarino!

E - Mas já fez balé?

H - (Nervoso) Nunca.

E - O Sr. vai muito a bailes? Sim, porque às vezes a gente fica reprimido e não coloca prá
fora um lado
artístico que a gente tem. Eu me lembro de um caso que passou por aqui...

H - Espere! Está vindo agora! Ah, não, essa não!

(Ouve-se a música em crescendo. Só a enfermeira não ouve. Homem gruda-se no


balcão. Como se movidas por vontade própria suas pernas começam a dançar. Num
crescente elas vão puxando o homem que, aos poucos, vai desgrudando-se. Seu rosto é
puro desespero. A enfermeira, tentando ajudar, segura seus braços. Mas a força da

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dança é muito grande, e inicia-se um cabo-de-guerra por cima do balcão. Por fim ele se
solta e sai dançando livremente com todo o corpo. Ao final, volta ao balcão, ofegante.)

E - (Impressionadíssima) Mas é inacreditável!

H - Eu não disse!

E - Puxa, como o Sr. dança bem!!!

H - O quê que é isso, minha senhora!

E - Me desculpe.

(Pausa. Ele retoma o fôlego.)

H - Eu preciso me internar, não agüento mais...

E - E que música o Sr. ouvia?

H - Esse é que é o problema. Ainda se fossem músicas que eu gostasse... Mas não...
Imagine que agora
era “ELE É O BOM”, com o Eduardo Araújo.

E - E o Sr. não gosta?! Ah, eu acho linda...

H - Por favor...

E - Verdade! Eu adoro toda essa fase da jovem guarda. (Disfarçando) Se bem que eu era
muito nova
nessa época... (De supetão) Quantos anos o Sr. acha que eu tenho?

H - Não muda de assunto! A Sra. viu o meu acesso, eu preciso me internar.

E - (Meio ofendida) Olha, isso não é tão simples assim, não.

H - O quê que precisa.

E - O Sr. não pode pedir sua própria internação. É alguém que precisa pedir pelo Sr.

H - Então eu vou continuar dando escândalo por aí?!

E - Por que o Sr. não tenta ver pelo lado bom da coisa. Afinal, o Sr. está levando arte
para as ruas.

H - Eu sou contador, não mambembe!

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E - Compra um chapéu.

H - Como assim?

E - É! Cada vez que o Sr. tiver um ataque, deixa o chapéu discretamente no chão. As
pessoas vão
achar que é show e pode até dar uma grana!

H - E eu lá preciso de esmola de público!

E - Com a situação do jeito que está a gente não pode perder nenhuma chance.

H - A Sra. diz isso porque não era a Sra. que estava dançando “VOU DE TÁXI”, com a
Angélica
hoje de manhã na fila do banco.

E - Meu Deus!

H - Pois é.

E - E o Sr. também sapateia?

H - Nem me lembre.

E - Qual foi a última que o Sr. Sapateou?

H - “HAJA AMOR”, do Luís Caldas.

E - Ai, eu adoro o Luís Caldas!

H - Pelo amor de Deus...

E - (Empolgada) Como era mesmo a letra dessa música?...

H - Minha senhora!...

E - (Insinuando-se) Senhorita...

H - Iiiihhhhh...

E - Como era mesmo, me ajuda.

H - (Muito a contragosto)
Eu queria ser uma abelha prá pousar na tua flor.
Haja amor, haja amor.
Fazer zum-zum na cama e gemer sem sentir dor.

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Haja amor, haja amor.

E - (Pegando a letra e seguindo empolgada)


Haja amor, haja amor.
Na colmeia dos teus sonhos quero ser seu cantador.
Haja amor, haja amor.
Pois batuqueiro é batuqueiro e cantador é cantador.
Haja amor, haja amor.

H - (Gritando) Quer parar!

E - (Pausa) Desculpe! (Pausa. Suspira) Ai, o Luís Caldas... (Desconfiada) Mas o Sr.
sapateou um
fricote? Eu, hein!

H - Escuta...

E - (Interrompendo) Será que não é obturação?

H - Como? Que obturação?

E - Eu já soube de um caso que a obturação do paciente sintonizava uma rádio.

H - Por acaso eu tenho cara de antena?

E - Ah, tudo é possível, né...

H - Minhas obturações são de porcelana, ó. (Mostra com a boca bem aberta)

E - (Olhando e quase falando dentro da boca dele) Ih, o Sr. tá com uma cárie ali...

H - Minha senhora, eu vim aqui prá me internar!

E - Eu entendo. Deve ser mesmo muito difícil conviver com músicas dentro da cabeça.
Quando
começou?

H - Há umas duas semanas. Eu estava na rua, passando em frente a uma Igreja Batista,
quando comecei a ouvir “OUTRA VEZ”, do Roberto Carlos.

E - (Canta, como que para confirmar)


Você foi, o maior dos meus casos,
de todos os abraços,
o que eu nunca esqueci.

H - (Irritado) É, é, é essa aí.

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E - É linda. Eu adoro o Roberto.

H - Sei, tá. Mas quando a música começou eu até procurei ao redor prá ver se tinha
alguém com rádio
perto. Quando percebi que vinha do meu cérebro eu parei, assustado. E então,
incontrolavelmente,
eu comecei a dançar. Como a música era romântica, eu dançava suavemente, com
passos de balé
clássico, imagine! Tinham uns crioulos num bar em frente tomando cachaça que
começaram a
fazer “Huuuummmmmm”... Um deles gritou: “Até que a bicha dança bem!” O pessoal da
Igreja
Batista vinha saindo e, ao me ver, começou a gritar “Aleluia, aleluia, irmão”. Enquanto
eu
dançava ficaram os dois coros: “Bicha, bicha, aleluia, aleluia!” Que vergonha...

(A enfermeira está segurando o riso. Ele percebe.)

H - A Sra. ri, é?

E - Me desculpe, mas é engraçado.

H - Engraçado porque não é com a Sra.

E - (Insinuando-se novamente) Senhorita...

H - Senhorita, tá bom... Olha, eu quero...

E - (Interrompendo) Acho que o Sr. tem epilepsia.

H - O quê?

E - Epilepsia. Todo mundo que tem ataque tem epilepsia. A sua é epilepsia
musicogênica.

H - (Desolado) Ai, meu Deus.

E - Liga não, bobo, isso já tem cura.

(Homem começa a tremer.)

E - Ê, que quié isso? Vai baixar o santo?

H - Tá vindo de novo.

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(Ouve-se “BUMBUMBATICUMBUMBRUGURUNDUM”, o famoso samba-enredo. Homem
sai dançando e dá um show. Enfermeira, mesmo sem ouvir a música, também dança,
fascinada.)

E - (Ao final) Mas o Sr. é do babado, hein!

H - Eu sou uma pessoa culta, educada, saudável. Passei a vida inteira ouvindo música
clássica, jazz,
E agora me aparece esse problema, e ainda por cima só com música brega!

(Pausa. Enfermeira fica indignada.)

E - Ah, não! Ah, não, que eu gosto dessas músicas e eu não sou brega!

H - Por favor, eu só quero me internar.

E - (Ofendida) Só porque o Sr. não gosta do Luís Caldas e do Roberto não quer dizer que
eles são
brega.

H - (Muito irritado) Prá mim são, porra! Que merda que você tem com isso?

E - Ê, pera lá, vai baixar o nível, é?

H - Não é questão de baixar o nível, cacete, é que você me deixou nervoso. E toda vez
que eu fico
nervoso me vem... Me vem... Me vem...

E - (Ansiosa) Me vem o quê?

H - (Começando a se mexer) Me vem uma música e uma baita vontade de dançar.

(Começa a dançar descontroladamente. A enfermeira sai em sua perseguição. Ouve-se


estática de rádio com a música por baixo.)

E - Que música é? Que música é?

H - (Dançando, desesperado) Eu detesto essa, detesto.

E - Fala, qual é a música?

H - Tô tentando me lembrar...

E - Faz uma força, qual é a música?

H - Tá quase, deixa chegar no refrão.

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E - Vai. Força. Pensa. É sua última chance. Qual é a música?

H - (Dançando e gritando) Lembrei! É “O AMOR E O PODER”, da Rosana. Que merda!

E - (Empolgada, dançando também) Eu conheço. É linda!

(Ouve-se a música alto. Os dois dançam até o fim.)

H - (Extenuado) Que bosta!

E - (extasiada) Que lindo!

H - Eu não agüento mais...

E - Isso, mais, mais.

H - Eu quero me internar!

E - (Ignorando) O Sr. tem uma seleção ótima! É como uma parada musical. Eu diria que
em seu
cérebro o Sr. tem... Como é mesmo no rádio... Já sei: “AS DEZ MAIS”! É isso!
(Grandiosa) “AS
DEZ MAIS DO CÓRTEX CEREBRAL”!

(O homem está abismado com o delírio da enfermeira.)

H - Mas... Escuta: quem é que está louco aqui?

(E a enfermeira continua...)

E - É fantástico, é inesperado, é incrível, minha gente. De dentro do cérebro deste


homem. Um homem
como eu, como vocês. Um homem que podia estar aí ao seu lado, ouvindo esse
programa. Pois
de dentro do cérebro medíocre e comum deste homem sai a melhor seleção musical
da década...
É fabuloso...

H - Calma...

E - (Cada vez mais empolgada) Não, ele não vai sair daqui sem um prêmio. Porque aqui,
no nosso
programa, o talento é reconhecido.

H - Minha senhora, calma...

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E - Você participa e você ganha. Ligue prá gente, a felicidade pode estar mais próxima do
que você
imagina...

H - (Tentando acalmá-la) Por favor, a Sra. está muito excitada.

(ELA o agarra.)

E - Tire as mãos de cima de mim!

H - (Tentando se livrar dela) Eu só estou tentando ajudar...

E - Me larga!

H - A Sra. se descontrolou...

E - É sempre assim: a gente dá a mão e vocês querem o braço todo...

H - Não é nada disso...

E - Pensa que eu não sei das suas intenções? (Grita) Socorro!

H - O quê é isso?... Fale baixo!

E - (Gritando) Socorro, tem um tarado na portaria!

H - Não, a Sra. não entendeu, eu só queria me internar...

E - Socorro! Socorro!

H - (Assustado, meio sem saber o que fazer) Eu só queria me internar... Eu só queria me


internar...
Só me internar...

(Decide sair dali. Livra-se dela. Apanha a maleta 007. Quando vai saindo a maleta se
abre e deixa cair sapatilhas, meias, collants, tutu, e mais um vasto material de dança.
Pausa. Enfermeira apanha uma sapatilha e olha para ele com ar de reprovação.)

E - (Irônica) Contador...

H - (Tímido) Você gostou?

E - (Respirando fundo) Tá bom, Alfredo, você já deu o show de hoje. Agora volta pro seu
quarto. Mais
tarde eu passo lá, tá?

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(Alfredo vai catando suas coisas e pondo na maleta, enquanto enfermeira fala para a
platéia.)

E - É sempre assim, gente. Todo dia o Alfredo vem dar um showzinho aqui na portaria. O
médico
mandou não contrariar. Então eu não “contrareio”. Mas eu já estou ficando cansada
disso. Tô
ficando estressada mesmo, sabe.

(Enquanto ela fala, ele vai saindo. De repente ele começa a cantar uma música brega de
sucesso.)

E - (De saco cheio) Ai, meu Deus! Pára, Alfredo!

(Ele continua. Enfermeira vai até a mesa e, com raiva, liga o rádio. Ouve-se estática
enquanto ela procura uma estação. Quando ela acha, entra a música que Alfredo estava
cantando no ponto exato onde ele estava. Enfermeira assusta-se. Ele canta um pouco
junto com o rádio e diz:)

H - Não falei! Não falei!

(Alfredo sai cantando. Enfermeira fica embasbacada.)

FIM

de Cyrano Rosalém

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