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de Cyrano Rosalém
H - Bom dia.
E - Bom dia.
H - Eu queria me internar.
(Pausa)
H - Eu quero me internar.
(Pausa)
(Pausa)
E - O Sr. é bailarino?
H - (Nervoso) Nunca.
E - O Sr. vai muito a bailes? Sim, porque às vezes a gente fica reprimido e não coloca prá
fora um lado
artístico que a gente tem. Eu me lembro de um caso que passou por aqui...
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dança é muito grande, e inicia-se um cabo-de-guerra por cima do balcão. Por fim ele se
solta e sai dançando livremente com todo o corpo. Ao final, volta ao balcão, ofegante.)
H - Eu não disse!
E - Me desculpe.
H - Esse é que é o problema. Ainda se fossem músicas que eu gostasse... Mas não...
Imagine que agora
era “ELE É O BOM”, com o Eduardo Araújo.
H - Por favor...
E - Verdade! Eu adoro toda essa fase da jovem guarda. (Disfarçando) Se bem que eu era
muito nova
nessa época... (De supetão) Quantos anos o Sr. acha que eu tenho?
E - O Sr. não pode pedir sua própria internação. É alguém que precisa pedir pelo Sr.
E - Por que o Sr. não tenta ver pelo lado bom da coisa. Afinal, o Sr. está levando arte
para as ruas.
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E - Compra um chapéu.
H - Como assim?
E - É! Cada vez que o Sr. tiver um ataque, deixa o chapéu discretamente no chão. As
pessoas vão
achar que é show e pode até dar uma grana!
E - Com a situação do jeito que está a gente não pode perder nenhuma chance.
H - A Sra. diz isso porque não era a Sra. que estava dançando “VOU DE TÁXI”, com a
Angélica
hoje de manhã na fila do banco.
E - Meu Deus!
H - Pois é.
H - Nem me lembre.
H - Minha senhora!...
E - (Insinuando-se) Senhorita...
H - Iiiihhhhh...
H - (Muito a contragosto)
Eu queria ser uma abelha prá pousar na tua flor.
Haja amor, haja amor.
Fazer zum-zum na cama e gemer sem sentir dor.
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Haja amor, haja amor.
E - (Pausa) Desculpe! (Pausa. Suspira) Ai, o Luís Caldas... (Desconfiada) Mas o Sr.
sapateou um
fricote? Eu, hein!
H - Escuta...
E - (Olhando e quase falando dentro da boca dele) Ih, o Sr. tá com uma cárie ali...
E - Eu entendo. Deve ser mesmo muito difícil conviver com músicas dentro da cabeça.
Quando
começou?
H - Há umas duas semanas. Eu estava na rua, passando em frente a uma Igreja Batista,
quando comecei a ouvir “OUTRA VEZ”, do Roberto Carlos.
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E - É linda. Eu adoro o Roberto.
H - Sei, tá. Mas quando a música começou eu até procurei ao redor prá ver se tinha
alguém com rádio
perto. Quando percebi que vinha do meu cérebro eu parei, assustado. E então,
incontrolavelmente,
eu comecei a dançar. Como a música era romântica, eu dançava suavemente, com
passos de balé
clássico, imagine! Tinham uns crioulos num bar em frente tomando cachaça que
começaram a
fazer “Huuuummmmmm”... Um deles gritou: “Até que a bicha dança bem!” O pessoal da
Igreja
Batista vinha saindo e, ao me ver, começou a gritar “Aleluia, aleluia, irmão”. Enquanto
eu
dançava ficaram os dois coros: “Bicha, bicha, aleluia, aleluia!” Que vergonha...
H - A Sra. ri, é?
H - O quê?
E - Epilepsia. Todo mundo que tem ataque tem epilepsia. A sua é epilepsia
musicogênica.
H - Tá vindo de novo.
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(Ouve-se “BUMBUMBATICUMBUMBRUGURUNDUM”, o famoso samba-enredo. Homem
sai dançando e dá um show. Enfermeira, mesmo sem ouvir a música, também dança,
fascinada.)
H - Eu sou uma pessoa culta, educada, saudável. Passei a vida inteira ouvindo música
clássica, jazz,
E agora me aparece esse problema, e ainda por cima só com música brega!
E - Ah, não! Ah, não, que eu gosto dessas músicas e eu não sou brega!
E - (Ofendida) Só porque o Sr. não gosta do Luís Caldas e do Roberto não quer dizer que
eles são
brega.
H - (Muito irritado) Prá mim são, porra! Que merda que você tem com isso?
H - Não é questão de baixar o nível, cacete, é que você me deixou nervoso. E toda vez
que eu fico
nervoso me vem... Me vem... Me vem...
H - Tô tentando me lembrar...
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E - Vai. Força. Pensa. É sua última chance. Qual é a música?
H - Eu quero me internar!
E - (Ignorando) O Sr. tem uma seleção ótima! É como uma parada musical. Eu diria que
em seu
cérebro o Sr. tem... Como é mesmo no rádio... Já sei: “AS DEZ MAIS”! É isso!
(Grandiosa) “AS
DEZ MAIS DO CÓRTEX CEREBRAL”!
(E a enfermeira continua...)
H - Calma...
E - (Cada vez mais empolgada) Não, ele não vai sair daqui sem um prêmio. Porque aqui,
no nosso
programa, o talento é reconhecido.
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E - Você participa e você ganha. Ligue prá gente, a felicidade pode estar mais próxima do
que você
imagina...
(ELA o agarra.)
E - Me larga!
H - A Sra. se descontrolou...
E - Socorro! Socorro!
(Decide sair dali. Livra-se dela. Apanha a maleta 007. Quando vai saindo a maleta se
abre e deixa cair sapatilhas, meias, collants, tutu, e mais um vasto material de dança.
Pausa. Enfermeira apanha uma sapatilha e olha para ele com ar de reprovação.)
E - (Irônica) Contador...
E - (Respirando fundo) Tá bom, Alfredo, você já deu o show de hoje. Agora volta pro seu
quarto. Mais
tarde eu passo lá, tá?
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(Alfredo vai catando suas coisas e pondo na maleta, enquanto enfermeira fala para a
platéia.)
E - É sempre assim, gente. Todo dia o Alfredo vem dar um showzinho aqui na portaria. O
médico
mandou não contrariar. Então eu não “contrareio”. Mas eu já estou ficando cansada
disso. Tô
ficando estressada mesmo, sabe.
(Enquanto ela fala, ele vai saindo. De repente ele começa a cantar uma música brega de
sucesso.)
(Ele continua. Enfermeira vai até a mesa e, com raiva, liga o rádio. Ouve-se estática
enquanto ela procura uma estação. Quando ela acha, entra a música que Alfredo estava
cantando no ponto exato onde ele estava. Enfermeira assusta-se. Ele canta um pouco
junto com o rádio e diz:)
FIM
de Cyrano Rosalém
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