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UMA NOITE NA LUA.

De João Falcão

Um homem em cima de um palco.


Pensando.
Uma luz mais assim,
E um silêncio.

Pausa.

Será que a Berenice vai gostar desse começo?


É claro que ela vai ver a peça.
Também se não for, azar o dela.

Um homem em cima de um palco pensando.


Pensando alto, é claro, senão como é que o público vai saber o que é que ele está pensando?
Um homem em cima de um palco, pensando alto.

Pausa.

Ô Berenice, você foi meio burra!


Burra não, como é que você ia saber, não é?
Você foi mas é sem sorte.
Viveu comigo tanto tempo, e nada que eu pensava dava certo.
Ou eu pensava e não escrevia,
ou escrevia e não terminava,
ou terminava e ninguém lia, e nunca dava em nada.
Foi só você me deixar, pronto. Eu vou fazer sucesso.
Será que era você, Berenice? Desculpa, mas até parece.
Esquece a Berenice, e pensa na peça!

Um Homem, em cima de um palco, pensando.

Pausa.

Você precisava ver, Berenice.


O jeito que eu cheguei pro cara lá na festa. E a minha cara de gente: Desculpa, você não
me conhece, mas por acaso eu escutei sua conversa, enfim, eu tenho a sua peça. A peça que
você procura. Um Homem em cima de um palco, pensando. Está pronta. Eu tenho essa
peça.

Você acredita que eu tive coragem, Berenice?

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Você acredita que eu disse isso?
Nem eu acredito que eu disse.
Mas eu disse: Escrevi essa peça, faz tempo. Nunca mostrei a ninguém. Nunca achei que
fosse o momento. Mas agora eu não tenho dúvidas. Você é o ator perfeito pra representar
minha peça.
Assim, sem culpa.
Nem parecia eu.
Mas era.
Eu mesmo.
E nem doeu, acredita? Foi normal. Parecia que eu tinha nascido pra isso. Pra estar naquela
festa naquele momento, falar aquilo ali daquele jeito e deixar o cara louco de vontade de ler
minha peça. Queria que eu viesse aqui em casa, na mesma hora, pegar o texto pra ele.
Eu falei agora?
Ele falou porque não?
Eu falei porque não amanhã?
Ele falou amanhã de manhã?,
Eu falei porque não.
Foi lindo!
Lindo não. Profissional.
Ele é um ator e precisa de uma peça.
Eu sou autor, tenho a peça que ele precisa e eu preciso de um ator como ele.
Ele é importante? Eu também vou ficar. Quando estrear minha peça.
E depois aquilo era uma festa, Berenice, eu não ia sair correndo pra casa, só porque alguém
se interessou por minha peça.

Não, eu nunca te mostrei essa peça, Berenice.


Não. Essa peça não.
Não, eu nunca te falei dessa peça.
Não, eu não tenho essa peça, Berenice, mas eu vou ter.

Pausona.

Um homem em cima de um palco pensando.

Pausa.

Eu vou escrever essa peça.

Pausa.

De hoje pra amanhã, sim, Berenice, o que é que tem? Você duvida? É tempo de sobra.

Pausa.

A parte mais difícil eu já fiz, que foi ir naquela festa, abordar o cara e dizer que tinha o
texto. Depois que eu fiz aquela cena, eu faço qualquer peça.

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E chega de conversa, Berenice, que eu tenho a noite inteira pela frente, mas a peça ainda
está no começo.
A gente se vê por aí. Tá? Dá licença.

Um Homem em cima de um palco pensando.

Pausa.

A Berenice vai gostar, sim. Desse começo.

Pausa

E tudo que ele pensa ele fala.

Pausa.

É claro que ela vai ver a peça.

Pausa.

E o que é que ele pensa?

Pausa.

Também, se não for, azar o dela.


O que é que ele pensa?

Pausa.

A Berenice pensa que...


O que é que ele pensa?

Pausa.

É que a Bereni...
O que é que ele pensa?

Pausa.

Eu só estava pensando que a Bere...


O que é que ele pensa?

Pausa.

O que é que ele pensa?


O que é que ele pensa?
O que é que ele pensa,

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Ele pensa qualquer coisa!
Que coisa?
Por exemplo...
por exemplo?
Digamos...
digamos?
Ele pensa... Ah,

Berenice! Eu não estou nem aí se você vai gostar ou não do começo do meio ou do fim
dessa peça. Não é a você que eu tenho que agradar fazendo essa peça
Antes de você tem muita gente pra gostar.
Tem gente que vai ver a peça.

Ai, meu Deus tem gente que vai ver a peça!

Tem gente que vai sair de casa pra ver a peça, vai combinar com alguém, vai tomar um
banho, vai escolher uma roupa!

Ai, Meu Deus, Tem gente que vai escolher uma roupa pra ir na minha peça!
Tem gente que vai ouvir falar, tem gente que vai ler no jornal sobre a peça.
Ai, meu Deus! Tem gente que vai escrever no Jornal sobre a peça.

O que quiser! O que bem entender!


Tem gente que vai ler!

Tem a minha mãe!


É muita gente diferente pra gostar de uma mesma peça!

Meu pensamento ainda não tinha chegado nessa parte.


Essa parte dá um negócio na gente.
Além de fazer a peça, eu ainda tenho que fazer as pessoas gostarem!
Não sei se eu sei fazer as duas coisas ao mesmo tempo.

Letreiro: “Nome do Patrocinador apresenta”

Ai, meu Deus, ainda tem o produtor que vai ter que gostar!

Letreiro: “Nome do Ator em”

Ai meu Deus, tem o cara, lá, da festa, o ator. Que se ele não gostar...

Letreiro: “Nome da peça e do autor”

E além de inventar a peça eu ainda tenho que inventar um título pra ela!

Letreiro: “Nome de alguém da ficha técnica”

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Ai, meu Deus!

Letreiro: “Nome de outro alguém da ficha técnica”

Ai, meu Deus!

Letreiro: “Nome de outro alguém da ficha técnica”

Ai meu Deus!

Letreiro: “Nome de outro alguém da ficha técnica”

Ai meu Deus, É muita gente envolvida nessa peça.

Letreiro: “Nome de outro alguém da ficha técnica”

Que é isso, gente!

Letreiro: “Nome de outro alguém da ficha técnica depois o nome de outro e assim por
diante durante todo o parágrafo seguinte.”

Não era um homem em cima de um palco, pensando? Ai, meu Deus tem muito mais coisa,
muito mais gente. E sou eu que tenho que ocupar o pensamento dessa gente toda? Essa
peça tem que precisar dessa gente toda, de tudo isso? Eu vou ter que pensar numa peça que
precise de tanta gente? Devagar, gente. Devagar. Eu ainda nem tenho a peça e vocês já
ocupam o meu pensamento desse jeito?
Chega!

Final dos créditos.

Um homem em cima de um palco pensando.

Eu marquei cedo demais. Eu devia ter marcado à tarde.

Um homem em cima de um palco pensando.

Será que vai dar tempo?

Um homem em cima de um palco pensando?

É claro que vai dar tempo.

Um homem em cima de um palco pensando

Tirando o tempo que eu vou levar de táxi daqui até o centro...

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Um homem em cima de um palco pensando...

Eu ainda tenho pelo menos umas oito horas.

Digamos que eu queira fazer uma peça com uma hora e meia. Eu vou ter... cinco minutos e
vinte segundos pra pensar em cada minuto de peça.
Se eu começar agora dá tempo.
Vamos lá.
É uma peça, não é?
É.
Uma peça.
Então.
Uma peça...

Um homem em cima de um palco pensando.

Calma.
Eu estou calmo.
Vai ser mole fazer essa peça.
Eu sei.
Então?
Vai ser mole fazer essa peça.

Um homem em cima de um palco pensando.

Calma!
Eu estou calmo.
O começo é sempre difícil.
Eu sei.
Depois que começa, a coisa vai.
Isso mesmo.
Então.

Um homem em cima de um palco pensando.

Calma.
Eu estou calmo.
Calma.
Eu estou calmo.
Calma.
Eu estou calmo. Eu já falei que estou calmo! Eu estou calmíssimo!!!
Eu só estou levemente ansioso, mas isso até ajuda, já que eu quero fazer uma peça tensa.
Eu quero ver a Berenice “assim”- na cadeira.

Como é que começa uma peça tensa?

Um homem em cima de um palco pensando.

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Lá se foi um pedaço do tempo que eu tinha pra cada minuto da minha peça e nada.
E lá se foi mais um pouco do tempo!
E lá se foi mais um pouco.
E não para de ir.
Olha o tempo indo embora.
Olha o tempo, olha o tempo, olha o tempo...
Pára tempo, Pára!
Pára um pouco, pelo menos!
Deixa eu ter uma idéia primeiro.
Depois você volta a passar.

Então, vai! Quer passar, passa! passa, passa mais rápido, vai, passa, passa, passa mais
rápido, mais rápido ainda, vai, tempo, passa bem rápido! Eu quero ouvir você quebrar.
Eu vou fazer uma comédia.

Vai ser muito mais rápido.


Quer ver?
Uma piada:

Um homem em cima de um palco pensando:

Como é difícil inventar uma piada!

Pausa.

E se ninguém rir da minha piada?


E se ninguém rir hora nenhuma?
Vai ser o fim.
A Berenice vai ficar constrangidíssima.
Vai ser horrível!
Não.
Eu vou fazer uma peça séria. É menos arriscado. Se o público ficar em silêncio o tempo
todo, justifica-se. Está tentando entender o sentido da peça.
E eu vou fazer uma peça sem sentido nenhum.
A Berenice vai ficar louca atrás do sentido. E no final vai pensar “que peça difícil!”
Vai ter que dizer que adorou só pra não passar por burra.
Não, ela não cai nesse truque.
Ela vai odiar.

Ela ia gostar se tivesse música.


Quer escutar música, Berenice, liga o rádio, compra um CD.
Isso aqui é uma peça.

Tem que ter música, essa peça.

Um homem em cima de um palco pensando. E tudo o que ele pensa ele canta

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Eu vou fazer primeiro a letra. Depois eu boto a música.

(cantarolando) Um Homem em cima de um ...

Não. Eu vou fazer primeiro a música. Depois eu boto a letra.

Um tango? Um samba? Um fado? Um blues?

Não. Eu vou fazer logo tudo junto pra ganhar tempo.

(cantarolando) Um tango?! Um samba?! Um fado?! Um blues

Alguém cantando um blues.

Um homem comum
Um qualquer
Um qualquer um

Será que a Berenice vai achar que sou eu esse homem em cima desse palco pensando?

Onde andará meu amor

Já vi tudo. A Berenice vai achar que sou eu cantando pra ela.


É uma canção de amor, sim, Berenice mas não tem nada a ver com nós dois.

Porque será que a gente gosta


Porque será que a gente inventa alguém
Pra ser alguém que a gente gosta
Alguém em quem a gente pense.

Alguém por quem a gente chore


Parece até que agente gosta
Porque será que tem que ter alguém.

Não. A Berenice vai ter certeza que é pra ela essa música, essa peça.
Ah, Berenice, por favor. Como você é presunçosa!
Você não tem nada a ver com essa peça.
Essa música não tem nada a ver com você.
É melhor esquecer essa música.
Não vou botar música nenhuma nessa peça!

Alguém por quem a gente morra.


Alguém por quem gente queira viver

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Se eu botar essa música nessa peça a Berenice vai se sentir “a musa”.

Alguém por quem a gente mate


Pra quem a gente se entregue

Eu não penso mais em você, Berenice.

Por que é que a gente opta


Será que tem volta
Por que é que a gente vai

Ficou redondinha.
Mas ficou a cara da Berenice, eu não posso começar a peça com essa música.
O pior é que ficou na minha cabeça e não quer mais sair.
Era só o que faltava: A Berenice invadir a minha cabeça em forma de música.
Sai do meu pensamento, Berenice. Deixa eu pensar em paz, vai!
Sai dessa peça.
Berenice!
Será possível, Berenice?

Olha aí. Eu não estou falando?


Berenice, dá um tempo. Não está vendo que eu tenho mais o que fazer do que ficar
pensando em você. Tenho coisa mais importante pra pensar. Eu, hein? Você nunca foi
disso. Eu ficava dias sem pensar em você e você respeitava o meu pensamento.
Ficava puta quando eu não ouvia o que você falava, mas você me respeitava.
Depois que foi embora virou isso.
Eu mando você sair e você não sai. Fica aqui dentro. Roubando minha atenção.
É atenção que você quer, Berenice?
Lá vai: Seu vestido é lindo.
Você mandou fazer?
Como “ninguém mais manda fazer, meu amor?
Ficou ótimo.
Parece que foi mandado fazer.
E depois essa cor favorece você.
Te emagrece.
Eu sei que você está mais magra, meu amor. Eu notei.
Claro que não é a cor, meu amor, é você.
Eu notei, meu amor.
Você está um palito.
Você está sumindo.

Pára o blues.

Sumiu.

Um homem em cima de um palco pensando.

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Foi embora a Berenice?
Será que ela saiu do meu pensamento?
Eu duvido. Deve estar fingindo que saiu, mas não saiu.

Volta o blues.

Berenice isso é tão feio! Isso é coisa de mulherzinha, sabia? Tentando me fazer pensar que
eu não estou pensando em você, quando você sabe muito bem que eu estou.
Eu estou sim, pensando em você. Pronto. Falei, está falado. Assumi.
Eu estou pensando em você, sim.
E não estou nem aí.
Berenice, Berenice, Berenice, Berenice, Berenice, Berenice, Berenice, Berenice, Berenice,
Berenice, Berenice, Berenice, Berenice, Berenice,

Eu desisto, Berenice.
É isso que você quer?
Eu desisto.
Eu ligo pro cara agora, digo que cheguei em casa, reli a peça, e o “homem cima de um
palco pensando” da minha peça é mudo. Mas se ainda assim ele insistir em ler minha peça,
ele pode passar numa papelaria, comprar umas folhas em branco que vai dar no mesmo.
É isso que você quer? Que eu ligue agora, eu ligo.
Eu sei que o meu telefone foi cortado, Berenice, e o gás também. Eu sei, que a Dona Inalda
foi embora e você também, e eu sei que a culpa é minha, Berenice. Você já disse.

Já não escutamos mais o “Blues da Berenice.”

Berenice! Berenice! Eu estou falando com você! Berenice,

Foi embora, a Berenice.


E a culpa foi minha, ela disse. Mas eu não fiz nada. Nada de diferente.
É claro, o problema foi esse.
Ninguém passa a vida inteira gostando da mesma coisa do mesmo jeito.
Foi esse, o motivo?
Isso é motivo?
Disse que eu era um caso perdido.
Eu sou um caso perdido.
Mas isso também não é motivo.
Disse que eu não usava os presentes que ela me dava, disse que eu perdi o cartão que ela
pintou pra mim no dia seguinte à primeira noite da gente.
Eu não perdi o cartão. Eu esqueci onde guardei.
Disse que eu era muito esquecido.
Que qualquer dia eu ia esquecer onde guardei a cabeça e ia dizer que tinha perdido.
Ô, Berenice! Não era disso mesmo que você gostava em mim no começo?

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Lembra que você achava uma graça da minha mania de sair do ar no meio de uma
conversa? Lembra, você ficava um tempo rindo da minha cara e depois perguntava está
bom aí? Onde? Na lua. Dá pra melhorar um pouquinho.
Você achava mais graça ainda
Às vezes reclamava que eu pensava demais e não ligava pra você.
Ciúme de pensamento, Berenice? Eu dizia. Vem cá. Eu vou te contar o que é que eu tanto
penso.
Você adorava as idéias que eu tinha, as histórias que eu contava . Qualquer besteira que eu
inventava você dizia gênio. E me dava um beijo.

Quando foi que você parou de achar graça das minhas besteiras hein, Berenice? Quando foi
a última vez que você disse gênio e me deu um beijo?

Teve um último dia, não teve?


Que dia foi esse?
A que horas exatamente?
Foi de repente?
Como é que você foi fazer uma coisa dessas, Berenice? Parar de gostar de mim assim, sem
aviso prévio?
Cansou de esperar que acontecesse alguma coisa do lado de fora da minha cabeça, não foi?

Cansou de ver dar em nada um monte de quase livro, um monte de quase filme, um monte
de quase peça.
Um quase autor, é o que eu sou. A Berenice tem razão de pensar isso.
Quem pensa coisa demais como eu não pode pensar nada que preste.
Ela fez bem de ir embora.
Viver a vida dela.
Foi melhor assim.
Pra ela e pra mim.
Se ontem eu era um, e hoje eu sou outro completamente diferente, É por causa dela.
Porque ela foi embora e eu fiquei pensando nos motivos dela. E resolvi que ia virar outro,
fui naquela festa e agora estou aqui escrevendo uma peça.
Se a gente mesmo não cria as oportunidades as coisas não acontecem, não é assim,
Berenice?
Eu aprendi.
É a gente que tem que dar o primeiro passo, não é?
Eu dei!
Dei aproximadamente uma dúzia de passos com a minhas próprias pernas da varanda até a
mesa de canapés e com essas mesmas mãozinhas apanhei um redondinho de queijo com
cebola e enquanto saboreava o canapé acabei escutando a conversa do cara do lado que
estava procurando uma peça e pensei A HORA É ESSA!

Se agora eu sou uma pessoa que vira pra um cara numa festa e fala “desculpe, você não me
conhece mas por acaso eu escutei sua conversa enfim eu tenho a sua peça etc. etc. etc.”, eu
devo a você, Berenice!

Pois é.

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É aquela chapéu que você trouxe de Havana pra mim e eu falei “tá louca, Berenice? Onde é
que eu vou usar isso??
Olha aqui, eu com ele na cabeça !
Ah, é aquela gravata moderninha que você me deu de aniversário e que nunca saiu da
gaveta.
Gostou do look?
Foi assim que eu fui na festa.
Ficou bonzinho, não ficou?
Pois é Berenice. Eu criei coragem.
Agora só falta criar a peça.
A primeira de uma série.
Eu vou fazer peça por quilo, Berenice.
Eu vou virar volume um volume dois volume três volume mil.
E vou fazer o maior sucesso.
E você vai voltar a achar graça das minhas besteiras.
Vai olhar diferente pros meus defeitos. Defeito vira estilo quando a gente faz sucesso. E eu
vou fazer tanto sucesso que todo mundo vai querer saber como é que eu sou. Como é que
eu durmo, Como é que eu trepo, o que é que eu faço pra manter a minha forma. O número
do meu pé, o nome do meu médico, o meu modelo preferido de cueca.

Um sonho?
Depende do dia,
Uma meta?
Depende da hora,
Um desejo?
Depende da lua.
Uma palavra?
Depende.

Um resumo da peça?

Pausa.

O quê?

Um resumo?
Da minha peça?

A minha peça?
Se passa aqui. Na minha cabeça. Tá tudo aqui. Na minha cabeça.
Se passa aqui. Na minha cabeça. Tá tudo aqui. Na minha cabeça. Só falta sair.
E é aí que a porca torce o rabo. O rabo da gente. E você pode chamar essa porca de
processo criativo ou máquina de reciclar pensamentos que iam pro lixo.
É isso essa peça.
É sobre isso essa peça.
Isso é uma espécie de resumo da peça.
Fim da entrevista.

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Gostou Berenice?
Do estilo?
Pois é, meu amor! Sua ausência tem feito muito bem pra esse meu novo jeito.
Obrigado!
Sua ausência vai fazer muito bem pra minha peça.

Ele fala no novo estilo da peça.

Um homem em cima de um palco pensando:

Será que não ficou um pouco demais essa roupa, esse “chapéu”?
Não ficou não.

Um homem em cima de um palco pensando.

Ficou, sim. Demais até. Não precisava dessa produção toda pra ir naquela festa.
Precisava sim. Todo mundo naquela festa tinha um lay out especial, fazia um tipo

Um homem em cima de um palco pensando.

E a minha cena lá na festa? “Desculpe você não me conhece, mas por acaso eu escutei sua
conversa...” Será que não foi demais?
Não foi não.
Foi sim. Isso não se faz. Se meter na conversa alheia e oferecer uma peça!
Se bem que isso se faz sim. É assim que as coisas acontecem.
Não se faz não. Ainda mais com essa roupa, olha só pra você. Olha o papelão que você fez.
Foi naquela festa fantasiado de outro só porque achou que ela ia estar lá e ia pensar “nossa,
ele é outro!”
Não, eu não fui naquela festa pra encontrar a Berenice.
Porque é que você foi naquela festa?
Eu fui naquela festa porque...
Porque é que eu fui naquela festa? Só pra encontrar a Berenice!
Então porque eu não fui embora quando vi que ela não estava?
Você não foi embora porque...
Porque você não foi embora quando viu que ela não estava?
Eu não fui porque achei que ela ia acabar chegando, chegava todo mundo!

E você lá plantado na varanda, olhando pro portão.


“Agora é ela, agora é ela!”
Não era! E você:
“Quem sabe se eu sair da varanda ela não chega, quem sabe se eu comer um canapé ela não
chega?
Chega Berenice, chega.
Chega!
Você saiu da varanda e nada dela. Você apanhou um canapé e nada dela. Você mordeu o
canapé, o canapé estava uma merda e ainda assim você continuou na festa:

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“O que é que eu faço com esse canapé, como é que eu me livro dele?”

Porque é que você não foi embora ali, naquele momento?


Se tivesse ido embora naquele exato momento não teria escutado aquela conversa e não
teria feito aquela cena:
“Desculpa você não me conhece mas por acaso eu escutei sua conversa enfim eu tenho a
sua peça...”

O que é isso? Esse texto? Essa roupa, essa gravata, essa chapéu!!
Você não é esse daí. Esse daí é outro. Você não tem esse jeito você não tem essa peça!
Você não engana ninguém. Estava escrito na sua testa:
“Atenção gente eu sou como cada um de vocês que está nessa festa assim como quem está
numa festa, E eu me visto assim como quem se veste assim, ou seja, eu sou legal.”

Legal! Botar um chapéu pra virar outro homem e acabar virando o homem do chapéu. Você
foi “O Homem do Chapéu” naquela festa:
“O Homem do Chapéu não pára de olhar pro portão. O Homem do Chapéu
finalmente saiu da varanda. Vai pegar um canapé, o Homem do Chapéu. Gente, o Homem
do Chapéu odiou o canapé. Está pondo o canapé mordido no bolso? Olha o Homem do
Chapéu prestando atenção na conversa alheia. Vai se meter na conversa quer ver? Não
falei? Graças a Deus! Engatou um papo. Estava tão deslocado, na festa, o Homem do
Chapéu. O que será que ele tanto fala, todo ali, daquele jeito com aquele brinco na ore...

Você botou um brinco pra ir nessa festa?


Eu não acredito que você furou a orelha pra ir nessa festa.

Furei, sim o que é que tem? Tem muito homem da minha idade que usa brinco há muito
tempo.

Há muito tempo! Você devia ter furado a orelha há muito tempo se quisesse, hoje, ser uma
pessoa que usa brinco.
Não furou, passou, esquece.
Você já passou da idade do primeiro brinco.
Você acha que é só botar um brinco, pronto, virei outro?
Está difícil de você virar esse outro.

Esse outro é muitos em um.


Lê Platão, mas também adora filme de chinês dando chute no vento. Mas também é frágil.
Mas também é forte. Mas também é louco. Mas também é prático. Mas também é poeta.
Mas também troca um pneu que é uma beleza.
Você não passa nem perto desse outro.
Não chega nem junto.
Você não chega aos pés
desse outro.
Esse outro tem uma outra estampa. Outro muque, outra coluna, outro abdômen. Mantidos
através de horas diárias dedicadas ao esporte.
E você? Lembra o que você disse quando comprou essa bolinha?

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“Descobri meu esporte, é tênis, começo assim que passar essa gripe. Já tenho até a
bolinha.”

Essa bolinha tem umas duas décadas. E ainda está novinha.


Esse outro teve todas as mulheres que quis, e terá todas de volta a hora que quiser.
Enquanto você! O que você sabe de mulher não enche meia página de agenda.
Não teve uma aventura enquanto teve a Berenice.
Não saiu com mais que meia dúzia, antes dela.
Saiu com cinco, pra ser exato. Quatro e meia que a Rita de Cássia nem conta direito.

A Berenice pensa que foram umas vinte.


Foi o que eu disse quando ela me perguntou.
Ela achou pouquíssimo.
Eu devia ter dito “vamos dormir, Berenice. Que é papo é esse?” Ela ia achar que eu tinha
tido umas mil. Ia achar que eu sabia mais que ela.

Ela sabe muito mais que você. Tirando a Rita de Cássia, todas sabiam mais do que você. A
Maria Emília sabia mais do que você, a Vitória sabia mais do que você, a Valéria sabia
mais do que você, A Elisa!...

A Elisa, eu não sei. Com a Elisa foi uma vez só, e era a minha primeira vez.
E eu sentia que ela queria que eu pensasse que era a primeira vez dela também. Eu não
sabia se era ou se não era a primeira vez dela. Por que era a minha primeira vez e a primeira
vez é assim mesmo, não dá pra saber de nada. Mas ela insistia em parecer que não sabia
como era, e era isso que fazia parecer que não era a primeira vez dela. Porque ela sabia
muito bem como parecer que era. E se ela sabia como era, ela sabia também que era a
minha primeira vez. E isso era tudo que eu não queria. Eu não queria parecer que era a
minha primeira e era isso que fazia parecer que era. Era muito mais fácil pra ela parecer que
era a primeira vez do que pra mim parecer que não era. Porque pra ela, fazer parecer que
era a primeira, era só não saber como era, ou então lembrar como era não saber, mesmo que
já soubesse. E pra mim, fazer parecer que não era a primeira vez, era difícil sem saber
como era.
Eu não sei porque ela queria tanto parecer que era a primeira vez dela.
Talvez pra eu não saber que ela sabia que era a minha primeira vez.
Não era a primeira vez dela.
E ela sabia muito bem que a minha era a primeira.

Eu vou fazer equitação em vez de tênis, tem muito mais a ver comigo.
Equitação, não.
Tai chi chuan.
Se bem que natação...
Golf.
Não. Tênis. Já tenho até a bolinha.

SOM DE VIDRO QUEBRADO.

Dane-se. Eu já passei da idade da primeira bolinha.

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Não é agora que eu vou começar a sair correndo atrás de uma delas.
Tem uma hora que a gente tem que esquecer algumas coisa que poderia ter sido e pensar:
Eu sou assim. É o que temos.
Não tenho o abdômen perfeito.
Paciência.
Não tive um milhão de mulheres.
Não dá mais tempo.
Não uso brinco na orelha.
Qual é o problema?
Eu nunca fui ao Maracanã.

PERPLEXO:

Foi por isso, Berenice?


Que você me deixou?
Porque eu nunca te falei qual era o meu time?
Você nunca perguntou!

Berenice!!
Por que eu não grito “vai Mengo, porra?”

Eu achei que te agradava eu não gostar de futebol, ficava em casa, com você.
Desculpa.
Se foi por isso, volta já.
É só você pedir que eu grite “vai Mengo, porra”, que eu grito “vai Mengo, porra.”
Não deve ser tão difícil assim gritar “vai Mengo, porra.”

Coitada da Berenice. Esse tempo todo, nenhuma mancha de batom no meu colarinho. Nem
uma caixinha de fósforo de motel pra eu falar: é de um amigo que me emprestou pra eu
acender um cigarro no estádio e a caixinha acabou ficando comigo!” e pensar “que futebol
que nada ele tá é com mulher, que eu não sou boba”. Nunca pôde pensar isso. Nunca pôde
dizer isso assim, de mim, quanto a isso. Coitada. O que é que ela conversava com as
colegas? Cada qual com seu orgulho: O Murilo é fogo! O César é um cafajeste! E o
Fonseca! Sonso! E você? Devia se sentir um E. T., um Lixo. Casada com um cara que não
oferece o menor perigo. Qual é a graça?

Ô Berenice. Eu pensava que eu batia um bolão.


E se eu prometer que de agora em diante eu só vou viver pra isso, Berenice.
Pra reverter essa situação.
Pra pegar o jeito desse outro.
Eu vou aprender a usar uma roupa bacana, uma gravata, um chapéu e até um brinco, que
vai parecer que nasceu comigo, Berenice.
E ninguém no mundo vai gritar “vai Mengo porra” melhor que eu.
“Vai, Mengo, porra!”
“Vai, mengo, porra!”
“Vai, Mengo, porra!”...
“É gol, porra!”

16
“É gol, porra!”
“É gol porra!”...

Ficou falso, não ficou?


Você achou, pode falar.
Podia ser melhor, eu sei.
É que vai levar um tempo até eu entrar nesse personagem.
Quando eu dominar a técnica, ah! Não vai ter pra ninguém.
Eu teria começado bem antes se eu soubesse que era esse o problema.
Mas não é fácil adivinhar o pensamento de uma mulher, Berenice.
Não é pra qualquer um não!
Pensamento de mulher é um negócio muito... sofisticado.

E o pensamento da Berenice?
Onde será que está
nesse momento
o pensamento
da Berenice?
Está pensando em que, Berenice?
Está pensando em quem?
Está saindo com alguém?
Berenice! Pra casa!
Quem é esse, Berenice, eu conheço?
Nem você conhece direito? Berenice, olha a mão dele!
Não deixa ele fazer isso!
O que é que você está fazendo, Berenice?
O que é que isso?
Na primeira noite!
Você demorou um tempão pra fazer comigo assim!

Vê lá, hein, Berenice!


Vê lá o que é que você está pensando em fazer por aí.
Depois você quer voltar... Pode ficar esquisito.
Tem coisa que a gente faz que é irreversível.
Por isso é melhor você ficar sozinha em casa uns tempos, deprimindo. Escuta uma música,
pensa em mim, chora um pouquinho, toma um calmante...

Musica volta, Ele volta a se envolver completamente.

Um calmante, Berenice.
Eu falei um.
Berenice, você ficou louca?
Tarja preta, Berenice!
Como foi que você conseguiu tanta receita?
Não se mata não, Berenice.

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Está tentando se matar por minha causa, a louca da Berenice.
Ela não sabe viver sem mim.

Você não sabe viver sem mim, Berenice. Mas não sabe mesmo. Eu posso não ter tido
muitas, mas de você eu entendo. Eu sei como é que você gosta.
E eu gosto de fazer do seu jeito. Eu gosto tanto de você, Berenice! Da sua boca e do resto.
É claro que você vai voltar pra mim, antes até do que eu penso.
E eu penso que você vai ligar agora. Dizendo que esta voltando.
Vai, Berenice, liga agora pra mim, eu estou precisando tanto!..

Eu sei que meu telefone foi cortado, Berenice. Não precisa repetir.
E o gás também e a Dona Inalda foi embora. Eu sei que a culpa é minha, Berenice. Você já
disse!

Um homem em cima de um palco pensando.

Será que ainda dá tempo de fazer essa peça?

Onde foi que eu larguei meu cigarro?


Eu parei de fumar?
Eu tinha parado, acabei de voltar.
Se eu conseguir fazer essa peça eu juro que volto a parar.

Onde foi que eu larguei meu cigarro?

É claro que não vai dar tempo.

Tirando o tempo que eu vou levar de táxi daqui até o centro...

Onde foi que eu larguei meu cigarro?

Eu só tenho dois minutos e quarenta segundos pra pensar em cada minuto de peça.

Onde foi que eu larguei meu cigarro?

Isso pra fazer uma peça de uma hora e vinte.


Eu lembro que eu guardei um último cigarro num lugar bem difícil que era pra eu não
lembrar.
Mas eu lembro!

Na geladeira. Tirando coisas de dentro.

Se eu conseguir fazer essa peça eu juro que eu vou ser uma pessoa que não fuma, que não
dorme tarde, que não tem preguiça, que não come doce, que não come carne, que não bebe
álcool, e que não toma nada pra dormir.

18
Pega uma garrafa de leite.

Se eu conseguir fazer essa peça eu juro que eu vou ser uma pessoa que não.

A partir de amanhã.
Hoje não dá.
Hoje eu sou uma pessoa que sim, e fim.
Pessoas que sim são tão assim, não são?

Vai interpretando uma “pessoa que sim” enquanto o leite vai derramando no chão.

São sim.
Eu sei.
Sim.
Aceito.
É.
Foi.
Foi sim.
Isso.
Gosto.
Gostei.

Guarda a garrafa.

Vai ser bom, sim.


Tomara que sim.
Sim.
Eu sim.
Berenice não.
Não está mais aqui.
Atira 1 ovo
Não quis ficar.
Atira 1 ovo
Falou que não volta.
Atira o penúltimo ovo e fica com o último na mão.
Vai atirar o último ovo mas não atira. Escuta algo dentro dele.
É um ovinho tipo caixinha de música.
Ele abre e dentro tem um pintinho piando carregando um bilhete no bico.
Ele abre o bilhete e lê em silêncio.
Numa tela lemos o texto do bilhete:
“Canalha! Já está louco pra fumar, não é?”

Eu escrevi isso?

Continua a ler e na tela lemos o resto:

19
“Se você olhar no verso deste bilhete você vai descobrir onde escondeu seu último
cigarro. Rasgue imediatamente o papel e diga: “Eu não sou um verme”.

Eu sou um verme.

Dito isto ele vira o papel e lê em silêncio. Na tela, vemos o desenho de uma meia.
Ele apanha um cigarro amassado guardado na meia.

VAI ACENDER O CIGARRO, E SE ATRAPALHA COM O BILHETE, O OVO O


PINTINHO, O ISQUEIRO, O CIGARRO.
FECHA O OVINHO. VAI ACENDER O CIGARRO. O PINTINHO NÃO PAROU DE
PIAR.
TENTA FECHAR MELHOR. NÃO CONSEGUE. TENTA ABAFAR O SOM DO
PINTINHO COM O TECIDO DO PALETÓ. VAI ACENDER O CIGARRO, O
PINTINHO AGORA ESTÁ PIANDO NO BOLSO QUE ESTÁ PERTO DO OUVIDO
DELE.
ELE LEVANTA O CHAPÉU PÕE O OVO NO CHAPÉU VOLTA A POR O CHAPÉU, O
PINTINHO NÃO PÁRA DE PIAR ELE TENTA FECHAR O OVINHO, NÃO
CONSEGUE E ATIRA O OVO CONTRA TELA.
O PINTINHO APARECE NA TELA E VAI CAMINHANDO EM DIREÇÃO AO
INFINITO.

Ele fala pro pintinho:

Se encontrar a Berenice, fala que por aqui está tudo ótimo!

MÚSICA. ELE PÕE O CIGARRO NA BOCA ACENDE E DÁ UMA TRAGADA,


SOLTA A FUMAÇA, TUDO ISSO SE SENTINDO UM FRED ASTAIRE.

Deita-se confortavelmente olhando pro alto, fuma, admira a fumaça. No alto um


letreiro: “O ministério da saúde adverte: quem fuma adoece mais de úlcera no
estômago.”
Senta, sopra a fumaça contra o letreiro e torna a deitar. O letreiro se dilui e em seu
lugar surge uma lua.
Luzinha piscando atravessa o escuro do palco. Um avião atravessa a lua.

Se alguém aí encontrar a Berenice, fala que isso aqui está um paraíso.


mas se ela quiser voltar eu prometo fazer tudo voltar a ser aquele inferno de antes.

O telefone lá tocando...
Atende o telefone, Berenice!
E você nem!... Lá dentro. Tomando seu banhozinho quente no seu chuveirinho a gás.
O aspirador de pó da dona Inalda me perseguindo pela casa inteira,
- Dona Inalda a senhora ainda acaba me aspirando!

20
Lembrando.

AH, E o Micro Systems da Dona Inalda nas alturas.


Dona Inalda, o telefone está tocando. A senhora pode atender, por favor, que eu estou
pensando? Pensando! Pen-san-do!
Nada não, Dona Inalda, eu atendo.
Deixa eu atender depois a senhora aspira!
Alô?
Baixa um pouquinho o som
Alô?
O som!... Ai, meu Deus.
Esse papel aí vale, Dona Inalda. Esses daí também
Alô?
Eu ainda quero essa Coca, Dona Inalda. Esse isqueiro também.
Então é a senhora, Dona Inalda, que aspira todos os meus isqueiros?

Pára o som do aspirador, do Micro Systems da Dona Inalda, do chuveiro.

Quem diria, hein Dona Inalda?


Que um dia eu estaria aqui. Sentindo a sua falta.
O silêncio aqui está muito alto.
Eu não estou acostumado a tanta paz.
Quem é que pode ter uma idéia com uma tranquilidade dessas pesando sobre a cabeça.
E agora eu só tenho um minuto e meio pra pensar em cada minuto de peça, Dona Inalda.
Isso, contando que eu vou fazer uma peça de uma hora e dez, uma hora e quinze no
máximo.

Será que se eu ler um livro?

Não eu não tenho cabeça.

E se eu botar um disco?

Esse não.

Nem esse.

Esse também não.

Nem esse.

Esse também não.

E se eu fizer uma novena?

21
Não eu não tenho tanto tempo.

E se eu apagar a luz?

E se eu plantar bananeira?

E se eu encostar o calcanhar na cabeça?

E se eu der três cambalhotas no ar e cair sentado?

E se eu ficar em pé?

E se eu abrir a janela?

Abre-se um quadrado de luz que ilumina o homem da cintura pra cima.


Vemos ao fundo a silhueta do homem à janela. Vemos, também ao fundo, a silhueta de
alguns pombos voando assustados com o impacto da janela se abrindo.
Ruído de janela sendo aberta.
Ruído de pombos fugindo.
Enquanto o homem fala o texto do parágrafo seguinte, vemos a silhueta dos pombos
voltando calmamente, um de cada vez, ao lugar de onde saíram.

Um homem na janela olhando a noite.


Se não fosse esse prédio aí na frente dava pra ver o Cristo.
Se não fosse esse prédio aí na frente o aluguel era mais caro.
Um sujeito de pijama,
Uma gorda abrindo a geladeira,
Um homem caminhando em direção a uma mulher na intenção de matá-la,
Um vulto deitado vendo TV no quarto.
Ih, caiu um ladrilho!
Será que é pra fazer um pedido?
O sujeito de pijama apagou a luz.
A gorda não dá sossego à geladeira.
O homem continua perseguindo a mulher na intenção de matá-la.

Ouvimos uma música que lembra filme de suspense. Homem adquire ar de


perplexidade que acaba virando ansiedade e acaba virando desespero.

O que é isso, meu Deus?

O homem mata a mulher e passa a perseguir o garoto!

Calma, calma, calma!

De repente pára o olhar, e grita em direção ao apartamento da frente.

22
Janela Indiscreta!
Duble de corpo!
O Exterminador do Futuro dois!!!

Os pombos fogem, assustados.

Desculpa, eu não tinha a intenção de soprar. Foi mal.

Ele fecha a janela.


Tudo fica escuro outra vez.

Um homem pensando num palco em cima de quem, meu Deus?


Porque é que você foi inventar de dizer que você tinha uma peça que você não tem?
Como é que você foi se meter numa merda dessas?
Agora sabe o que é que vai acontecer?
Agora você vai fazer essa peça
Você vai ter que ter uma idéia.
E agora!
Senão sabe o que eu vou fazer com você?

ELE TEM UM ATAQUE DE RAIVA E Mergulha a própria cabeça na água. Vemos,


acima do homem com a cabeça mergulhada no balde, uma tela panorâmica com a
imagem em close-up do seu rosto imerso na água sob o ponto de vista do fundo do
balde. Ouvimos, em off, a voz do homem

Eu não pensava tanta coisa interessante? Não tinha umas idéias incríveis, uns saques? Eu
não era criativo?

Homem mergulha e seu rosto aparece na tela. Voz off. Homem volta à tona e a tela
desaparece.

Será que não era eu? Era outro? Era Deus?


Se era você, Deus porque é que você não tem uma idéia pra mim agora?
Porque é que não acode esse filho que ora sofre e não manda pra ele um pensamentozinho
que sirva, que preste pra alguma coisa, que caiba numa peça!
Quer o que, que eu sofra?
Eu sofro.

Mergulha, seu rosto aparece na tela, ele volta à tona, a tela some.

Quer que eu suplique?


Em inglês, que fica mais chique?
Please, my Lord.
Quer o quê, que eu relaxe?
É difícil, Deus...
Relaxa!

23
Mergulha a cabeça. Imagem do rosto dele na tela. Ele solta bolhas como se tentasse
falar. Legendas traduzem o que ele “fala”.

Pronto. Relaxei.
Quer mais ainda?
Olha aqui.
Mais um pouquinho?
Está bom assim?

Volta à tona.

Mais relaxado que isso eu não consigo.


Eu tento. Mas não consigo.
É inútil, Deus. Quanto mais tento relaxar mais tenso fico.

Oh, meu Deus, vem aqui essa noite. Conversar um pouco, trocar umas idéias, tomar um...
um... uma água!
Não quer vir pessoalmente manda uma carta, um bilhete, liga!
Eu sei que meu telefone foi cortado, Deus. E o gás também e a Dona Inalda. E eu sei que a
culpa é minha, a Berenice já cansou de me dizer.

E se eu acender um defumador?
Um incenso?
Um defumador e um incenso?
Dois de cada?
Mais?
Vários defumadores e vários incensos?
Vários defumadores e vários incensos
Olhe aí, meu Pai. Tô relaxadinho. Pode vir. Mande a idéia.
Essa não, meu Rei. Essa já tiveram.
Essa é boa também. Mas também já tiveram.
Essa também.
Essa também.
Também.
Também.
Também.
Porra, Deus. Que merda!
Puta que pariu, eu falei “porra Deus, que merda.” Caralho. Eu falei “puta que pariu, porra,
Deus, que merda”. Foda-se. Eu não acredito em Deus mesmo!
Essa também já tiveram.

Pausa

É brincadeira, Deus. É claro que eu acredito em você.

24
Fala à parte.

Por via das dúvidas...

Volta a falar com Deus.

...é claro que eu acredito em você!


“Por via das dúvidas” é uma maneira de falar. Desculpa.
Não, Deus. Não estou tentando limpar minha barra pro caso de você existir, não. Eu não
tenho dúvida nenhuma. Foi só uma brincadeira.
Ai Deus, você também é muito sensível. Não tem o menor senso de humor.
Ficou chateadíssimo comigo, Deus. Não ficou? Ficou.
Idéia então nem pensar, não é?
Tudo bem.
Eu só acho que não está certo.
Botar um sujeito no mundo, numa época em que todas as idéias já foram tidas, todas as
frases já foram ditas.
Inclusive essa, provavelmente.
Fala a verdade, eu sei que você guardou uma bela de uma idéia pra uma ocasião especial!
Libera aí! Aquela da diretoria.
Eu sei que deve ter um monte de gente nesse momento tentando ter essa idéia antes de
mim.
Êpa! Pára todo mundo. O mundo todo. Pode parar. Essa idéia é minha.
Eu ainda não tive mas eu vou ter.
Eu já estou tendo.
Eu vou ter agora, quer ver?

Um homem em cima de um palco pensando...

Tiveram antes de mim.


Dessa vez foi por pouco.
Mas foi. Paciência.
O pior é que um dia eu ainda vou ver numa música num filme ou numa peça a idéia que eu
ia tendo e não tive.
Com o Hamlet aconteceu isso!
Eu fiquei paralisado, quando eu li.
Eu teria escrito aquela história. Palavra por palavra.
Só que o cara nasceu antes.
Todo mundo nasceu antes de mim!
Assim é fácil. As pessoas nascem antes, vão pegando as minhas idéias e vão usando como
se fossem delas.
Em peças, músicas, livros, filmes.
Cidadão Kane?
Eu tinha tudo aqui na cabeça antes de ver o filme.
Não tinha os detalhes.
Mas a idéia geral eu tinha.

25
Os detalhes eu tinha era da Quinta. Nota por nota. Tempo por tempo. Instrumento por
instrumento.
Mentira minha. Eu não tinha.
Mas podia muito bem ter tido. Quem é que pode dizer que eu não teria?
Eu teria feito a Quinta Sinfonia.
Bastava que Bethoven não tivesse feito antes.
Odeio Bethoven. Odeio ele.
Bethoven, Wells, William, Pablo, Charles, Federico, Jobim, Gonzaga, Pessoa, Nelson, e
qualquer outro que tenha tido ou que ainda venha a ter alguma idéia que quem deveria ter
tido era eu.
Ah, Berenice.
Não entra na minha cabeça agora, não, que eu não estou bem

Berenice outra vez. Estava demorando.


Assim não dá, Berenice.
Assim não tem peca não tem nada.
Eu estou há um tempão tentando pensar numa peça e olha o que eu tenho de peça:
Um homem em cima de um palco pensando em você
Não vê que eu estou trabalhando?
Não vê?
Não sabe que eu tenho um compromisso?
Não sabe?
Não vê que é por você que eu faço tudo isso?

Não vê?
É por você

Que eu penso
Que eu janto.
Que eu durmo.
Que eu canto...

Vem
Pintar minha alegria
de presença tua.
Vem ocupar as minhas mãos.

Meus espaços, minhas ruas,


Minhas vias, minhas veias,
Meu coração,
Vem passear na minha lua.

Valsa instrumental.

Essa é pra você, essa canção.

26
Não é pra peça não é pra nada, esquece a peça
Essa é pra você.
Que eu amo
Que eu amo
Que eu amo
Que eu amo
Tanto.

LONGA PAUSA.

Hum?

OUVIMOS O CANTO DE UM GALO

E peça que é bom...

BUZINA E MOTOR DE CARRO E OS OUTROS SONS DE CIDADE.

Já foi, já deu, dançou, fodeu.

Mas não precisa se preocupar comigo não, Berenice, eu estou bem.

Eu não tenho a menor idéia de como é que eu vou dizer pro cara que eu não tenho a peça,
que eu nunca tive peça nenhuma, mas eu dou um jeito.
Eu posso... fugir.
Eu posso morrer.
Eu posso me fazer de doido.
Eu posso perder a memória.
Eu posso dormir. Se eu conseguir.
Se eu conseguir esquecer esse homem em cima desse palco pensando.
PAUSA.

Pensando o que, seu imbecil? O que é que esse homem tanto pensa, meu Deus?
Está com algum problema? Está pensando numa solução?
Ei! Esse homem! O que é que você está fazendo aí, em cima desse palco?
É você, sim, quem mais? Só tem você aí! Fui eu que inventei você em cima
desse palco pensando.
Ei, esse homem!

Coitado desse meu autor. Coitado dele. Pensa que é dono de mim, como se um
dono ele também não tivesse. O que será que ele faria se de repente pensasse
que ele também tem um autor e que sou eu o autor dele? Que fui eu que
inventei ele assim, desse jeito pra ser o personagem da minha peça. Coitado
desse meu autor. Coitado dele.

27
Você está falando de mim?
Hein, esse homem, em cima desse palco pensando.
É isso que você pensa?
Que você é o meu autor, e eu sou personagem da sua peça?
Oh, meu autor! Faz tempo que eu queria te encontrar pra te dizer umas
coisas. Ou tu não gostas de mim, ou então és um autor de muito pouco
talento. Inventar um sujeito assim como eu, pra depois botar ele numa
situação dessas! Isso é vida que se invente? Isso é trama que se monte?
Que personagem foi esse aí que você inventou, meu autor? Que sujeito sem graça.
Sem gás, sem telefone, sem Dona Inalda, sem Berenice, sem idéia, sem peça.

Cria uma virada pra mim, meu autor. Inventa um fato novo pra minha vida. O
momento é esse. Quando ninguém mais no mundo espera mais nada desse
personagem aqui, esse personagem aqui tem um idéia pra uma peça e tudo
começa a dar certo. Cria essa cena pra mim, meu autor. Essa cena pode
apontar um final pra sua peça.
Eu faço um trato com você, meu autor.
Inventa essa virada pra minha vida, que eu prometo que invento um final pra
sua peça.
Como é essa sua peça, hein, meu autor.
Diz. Como é que ela começa?
Um homem em cima de um palco pensando?
É assim que você se refere a mim, aí, na sua peça?
E a sua peça é o meu pensamento?
Eu penso muita besteira?
Não precisa responder, eu sei que eu penso.
Às vezes eu penso cantando?
Tem Berenice na peça?
Quase que o tempo todo, é?
Berenice, Berenice, Berenice, Berenice?

E foi você que inventou tudo que eu penso desde que eu cheguei da festa e
comecei a pensar na peça?
Então é você também que está inventando essa parte agora, exatamente essa,
em que eu estou pensando em usar tudo isso que você inventou, na minha peça, não é?
Valeu, meu autor.
Você já pensou nessa peça até agora. Agora vai descansar.

O resto deixa que eu mesmo penso.


Deixa que a partir de agora, tudo que eu pensar vai virar peça.
E o que é que eu penso agora? Agora eu penso:
"E o final, meu Deus! Como é o final dessa peça? Já está na hora de
encontrar o cara e não tem final essa peça.
E agora? O que é que eu penso agora? Agora eu penso:
"Espero só mais um pouquinho pra ver se eu invento um final agora? Ou vou
embora agora e no caminho eu penso?

28
Eu vou embora agora. Não, eu espero e penso. Eu vou embora agora. Não, eu
espero e penso: "Eu vou embora, chamo o elevador e enquanto eu espero eu penso:
O que é que eu penso enquanto eu espero o elevador?
Eu penso que o cara já vai estar lá, me esperando, e eu ainda vou estar lá,
Esperando o elevador que vai demorar uma eternidade pra chegar. E o que é
que eu penso durante toda essa eternidade? Eu penso num final pra minha
peça! Um fato, uma palavra, um gesto, uma luz, sei lá um som, um efeito, um
objeto voador não identificado desce do alto e me leva de vez pro espaço e
eu não preciso mais pensar em final nenhum pra peça nenhuma nunca mais na
minha vida."
Mas depois eu penso “não. Talvez o teatro não tenha altura suficiente pra
Caber um objeto assim lá em cima” e penso e se for o contrário?
Se o final da minha peça vier de baixo? Cabos de aço são fincados no chão e arrancam a
casca do palco.

SOBE O JARDIM

E me levam a algum lugar lá longe, no passado. Sem gás, sem telefone, sem dona Inalda.
Só o cheiro da
Berenice perfumando o mundo inteiro.

Não. Isso não é o final da minha peça. Isso é o cartão que a Berenice
pintou pra mim no dia seguinte à primeira noite da gente. Como é que ele
veio parar aqui na peça?
Está vendo, Berenice. Eu não perdi o cartão, não. Eu guardei ele aqui dentro.
É lindo.

O CENÁRIO VAI DESCENDO.

Pena que não dá pra encaixar na peça. Não tem nada a ver com o resto.
Ô, Berenice. Eu faço uma outra peça só pra usar essa cena no final.

E o final da minha peça?


Qual era a parte em que eu estava?
Eu vou embora, chamo o elevador e enquanto eu espero eu penso um monte
besteira que não serve pra nada até que aparece o elevador. Eu entro no
elevador e vou pensando está perto, o final. Nunca esteve tão perto. Quatro,
três, dois, um... Térreo. E o final não aparece.
Atravesso a portaria pensando no final e ele não aparece. Nem o final nem o
porteiro que nunca aparece de primeira pra abrir o portão. E eu penso "como
é que eu abro esse portão? Como é que eu termino essa peça?"
Aparece o porteiro. E o final não aparece. Estou na rua. Na frente do meu
prédio. E o que é que eu penso enquanto estou na frente do meu prédio?
Eu penso: "Espero o táxi nessa rua mesmo ou caminho até àquela que tem mais
movimento?" E penso: Espero nessa rua mesmo. E enquanto eu espero eu penso num final.
Uma passagem de tempo!

29
E pulo pra um dia qualquer, lá na frente. Um dia em que eu já vou ter inventado esse final
há muito tempo.
A minha peça já vai estar acontecendo em algum teatro do Rio de Janeiro.
É o dia vinte e sete de novembro de mil novecentos e noventa e oito. Mais
precisamente às vinte e duas horas, trinta e dois minutos e quarenta segundos.
Eu penso que nesse momento algumas pessoas que estarão na platéia vão
conferir seus relógios.
E penso como serão pessoas que estarão nesse dia assistindo à minha peça.
Serão pessoas muito simpáticas, uma bela platéia. Na poltrona 7 da fila F
estará sentada uma jovem de cabelos lisos e um sorriso encantador. A
poltrona 10 da fila E estará ocupada por um distinto senhor muito
compenetrado prestando bastante atenção. E no centro da fila “H" eu penso
numa senhora muito elegante e muito bonita um pouco encabulada ao ver sua
imagem numa tela do palco.
E se tudo acontecer como eu penso, vai ser muito bom pro cara que vai estar
fazendo essa peça. Ele vai estar muito feliz nesse momento.
E onde era que eu estava enquanto eu pensava nisso?
Esperando um táxi. E esse táxi que não chega! E esse final que não aparece!
Até que aparece. Um táxi. "Táxi!" E eu penso: "está ocupado", e penso
"odeio quando eu faço sinal pra táxi ocupado". E penso "se está ocupado
porque é que parou aqui na frente? E esse final que não aparece?" aparece a
Berenice. Saindo do táxi. Bem aqui na minha frente. E ela me diz:

Trilha pára bruscamente.

Oi!
Oi, Berenice.
Você está Saindo?
Porquê? Você está voltando?
Está parecendo.
Então fica aí, Berenice. Vai subindo. Sua chave está lá, atrás do quadro.
Eu estou saindo mas eu estou voltando.
E a Berenice acha uma graça dessa besteira! A mesma graça que achava no começo.
E acha mais graça ainda quando eu fico emocionado.
Eu mudei, Berenice. Agora eu sou outro homem.
A Berenice fica olhando pra mim, eu fico olhando pra ela, ela fica olhando
pra mim enquanto eu penso: "Engraçado... a Berenice voltou pra mim antes de
saber que eu tinha mudado." e penso sobre isso mais um tempo ainda e vou
pensando e vou pensando e chego lá na lua. E quando volto encontro a
Berenice às gargalhadas de ver que eu não mudei foi nada
Pára com isso Berenice.
Pára de rir de mim.
Pára, Berenice!
Vem cá.
Me dá um Beijo.
Aí já viu.

30
Música.

Vai ser aquela coisa de beijo, e aquele vai-entra no táxi-


volta-beijo, e mais um vai-entra no táxi-volta-beijo, e aquela música de
beijo, e aquele beijo e aquele beijo...

Apoteose e fim da música de beijo.

E acabou a peça.

Fim.

31

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