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De João Falcão
Pausa.
Pausa.
Pausa.
1
Você acredita que eu disse isso?
Nem eu acredito que eu disse.
Mas eu disse: Escrevi essa peça, faz tempo. Nunca mostrei a ninguém. Nunca achei que
fosse o momento. Mas agora eu não tenho dúvidas. Você é o ator perfeito pra representar
minha peça.
Assim, sem culpa.
Nem parecia eu.
Mas era.
Eu mesmo.
E nem doeu, acredita? Foi normal. Parecia que eu tinha nascido pra isso. Pra estar naquela
festa naquele momento, falar aquilo ali daquele jeito e deixar o cara louco de vontade de ler
minha peça. Queria que eu viesse aqui em casa, na mesma hora, pegar o texto pra ele.
Eu falei agora?
Ele falou porque não?
Eu falei porque não amanhã?
Ele falou amanhã de manhã?,
Eu falei porque não.
Foi lindo!
Lindo não. Profissional.
Ele é um ator e precisa de uma peça.
Eu sou autor, tenho a peça que ele precisa e eu preciso de um ator como ele.
Ele é importante? Eu também vou ficar. Quando estrear minha peça.
E depois aquilo era uma festa, Berenice, eu não ia sair correndo pra casa, só porque alguém
se interessou por minha peça.
Pausona.
Pausa.
Pausa.
De hoje pra amanhã, sim, Berenice, o que é que tem? Você duvida? É tempo de sobra.
Pausa.
A parte mais difícil eu já fiz, que foi ir naquela festa, abordar o cara e dizer que tinha o
texto. Depois que eu fiz aquela cena, eu faço qualquer peça.
2
E chega de conversa, Berenice, que eu tenho a noite inteira pela frente, mas a peça ainda
está no começo.
A gente se vê por aí. Tá? Dá licença.
Pausa.
Pausa
Pausa.
Pausa.
Pausa.
Pausa.
Pausa.
É que a Bereni...
O que é que ele pensa?
Pausa.
Pausa.
3
Ele pensa qualquer coisa!
Que coisa?
Por exemplo...
por exemplo?
Digamos...
digamos?
Ele pensa... Ah,
Berenice! Eu não estou nem aí se você vai gostar ou não do começo do meio ou do fim
dessa peça. Não é a você que eu tenho que agradar fazendo essa peça
Antes de você tem muita gente pra gostar.
Tem gente que vai ver a peça.
Tem gente que vai sair de casa pra ver a peça, vai combinar com alguém, vai tomar um
banho, vai escolher uma roupa!
Ai, Meu Deus, Tem gente que vai escolher uma roupa pra ir na minha peça!
Tem gente que vai ouvir falar, tem gente que vai ler no jornal sobre a peça.
Ai, meu Deus! Tem gente que vai escrever no Jornal sobre a peça.
Ai, meu Deus, ainda tem o produtor que vai ter que gostar!
Ai meu Deus, tem o cara, lá, da festa, o ator. Que se ele não gostar...
E além de inventar a peça eu ainda tenho que inventar um título pra ela!
4
Ai, meu Deus!
Ai meu Deus!
Letreiro: “Nome de outro alguém da ficha técnica depois o nome de outro e assim por
diante durante todo o parágrafo seguinte.”
Não era um homem em cima de um palco, pensando? Ai, meu Deus tem muito mais coisa,
muito mais gente. E sou eu que tenho que ocupar o pensamento dessa gente toda? Essa
peça tem que precisar dessa gente toda, de tudo isso? Eu vou ter que pensar numa peça que
precise de tanta gente? Devagar, gente. Devagar. Eu ainda nem tenho a peça e vocês já
ocupam o meu pensamento desse jeito?
Chega!
5
Um homem em cima de um palco pensando...
Digamos que eu queira fazer uma peça com uma hora e meia. Eu vou ter... cinco minutos e
vinte segundos pra pensar em cada minuto de peça.
Se eu começar agora dá tempo.
Vamos lá.
É uma peça, não é?
É.
Uma peça.
Então.
Uma peça...
Calma.
Eu estou calmo.
Vai ser mole fazer essa peça.
Eu sei.
Então?
Vai ser mole fazer essa peça.
Calma!
Eu estou calmo.
O começo é sempre difícil.
Eu sei.
Depois que começa, a coisa vai.
Isso mesmo.
Então.
Calma.
Eu estou calmo.
Calma.
Eu estou calmo.
Calma.
Eu estou calmo. Eu já falei que estou calmo! Eu estou calmíssimo!!!
Eu só estou levemente ansioso, mas isso até ajuda, já que eu quero fazer uma peça tensa.
Eu quero ver a Berenice “assim”- na cadeira.
6
Lá se foi um pedaço do tempo que eu tinha pra cada minuto da minha peça e nada.
E lá se foi mais um pouco do tempo!
E lá se foi mais um pouco.
E não para de ir.
Olha o tempo indo embora.
Olha o tempo, olha o tempo, olha o tempo...
Pára tempo, Pára!
Pára um pouco, pelo menos!
Deixa eu ter uma idéia primeiro.
Depois você volta a passar.
Então, vai! Quer passar, passa! passa, passa mais rápido, vai, passa, passa, passa mais
rápido, mais rápido ainda, vai, tempo, passa bem rápido! Eu quero ouvir você quebrar.
Eu vou fazer uma comédia.
Pausa.
Um homem em cima de um palco pensando. E tudo o que ele pensa ele canta
7
Eu vou fazer primeiro a letra. Depois eu boto a música.
Um homem comum
Um qualquer
Um qualquer um
Será que a Berenice vai achar que sou eu esse homem em cima desse palco pensando?
Não. A Berenice vai ter certeza que é pra ela essa música, essa peça.
Ah, Berenice, por favor. Como você é presunçosa!
Você não tem nada a ver com essa peça.
Essa música não tem nada a ver com você.
É melhor esquecer essa música.
Não vou botar música nenhuma nessa peça!
8
Se eu botar essa música nessa peça a Berenice vai se sentir “a musa”.
Ficou redondinha.
Mas ficou a cara da Berenice, eu não posso começar a peça com essa música.
O pior é que ficou na minha cabeça e não quer mais sair.
Era só o que faltava: A Berenice invadir a minha cabeça em forma de música.
Sai do meu pensamento, Berenice. Deixa eu pensar em paz, vai!
Sai dessa peça.
Berenice!
Será possível, Berenice?
Pára o blues.
Sumiu.
9
Foi embora a Berenice?
Será que ela saiu do meu pensamento?
Eu duvido. Deve estar fingindo que saiu, mas não saiu.
Volta o blues.
Berenice isso é tão feio! Isso é coisa de mulherzinha, sabia? Tentando me fazer pensar que
eu não estou pensando em você, quando você sabe muito bem que eu estou.
Eu estou sim, pensando em você. Pronto. Falei, está falado. Assumi.
Eu estou pensando em você, sim.
E não estou nem aí.
Berenice, Berenice, Berenice, Berenice, Berenice, Berenice, Berenice, Berenice, Berenice,
Berenice, Berenice, Berenice, Berenice, Berenice,
Eu desisto, Berenice.
É isso que você quer?
Eu desisto.
Eu ligo pro cara agora, digo que cheguei em casa, reli a peça, e o “homem cima de um
palco pensando” da minha peça é mudo. Mas se ainda assim ele insistir em ler minha peça,
ele pode passar numa papelaria, comprar umas folhas em branco que vai dar no mesmo.
É isso que você quer? Que eu ligue agora, eu ligo.
Eu sei que o meu telefone foi cortado, Berenice, e o gás também. Eu sei, que a Dona Inalda
foi embora e você também, e eu sei que a culpa é minha, Berenice. Você já disse.
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Lembra que você achava uma graça da minha mania de sair do ar no meio de uma
conversa? Lembra, você ficava um tempo rindo da minha cara e depois perguntava está
bom aí? Onde? Na lua. Dá pra melhorar um pouquinho.
Você achava mais graça ainda
Às vezes reclamava que eu pensava demais e não ligava pra você.
Ciúme de pensamento, Berenice? Eu dizia. Vem cá. Eu vou te contar o que é que eu tanto
penso.
Você adorava as idéias que eu tinha, as histórias que eu contava . Qualquer besteira que eu
inventava você dizia gênio. E me dava um beijo.
Quando foi que você parou de achar graça das minhas besteiras hein, Berenice? Quando foi
a última vez que você disse gênio e me deu um beijo?
Cansou de ver dar em nada um monte de quase livro, um monte de quase filme, um monte
de quase peça.
Um quase autor, é o que eu sou. A Berenice tem razão de pensar isso.
Quem pensa coisa demais como eu não pode pensar nada que preste.
Ela fez bem de ir embora.
Viver a vida dela.
Foi melhor assim.
Pra ela e pra mim.
Se ontem eu era um, e hoje eu sou outro completamente diferente, É por causa dela.
Porque ela foi embora e eu fiquei pensando nos motivos dela. E resolvi que ia virar outro,
fui naquela festa e agora estou aqui escrevendo uma peça.
Se a gente mesmo não cria as oportunidades as coisas não acontecem, não é assim,
Berenice?
Eu aprendi.
É a gente que tem que dar o primeiro passo, não é?
Eu dei!
Dei aproximadamente uma dúzia de passos com a minhas próprias pernas da varanda até a
mesa de canapés e com essas mesmas mãozinhas apanhei um redondinho de queijo com
cebola e enquanto saboreava o canapé acabei escutando a conversa do cara do lado que
estava procurando uma peça e pensei A HORA É ESSA!
Se agora eu sou uma pessoa que vira pra um cara numa festa e fala “desculpe, você não me
conhece mas por acaso eu escutei sua conversa enfim eu tenho a sua peça etc. etc. etc.”, eu
devo a você, Berenice!
Pois é.
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É aquela chapéu que você trouxe de Havana pra mim e eu falei “tá louca, Berenice? Onde é
que eu vou usar isso??
Olha aqui, eu com ele na cabeça !
Ah, é aquela gravata moderninha que você me deu de aniversário e que nunca saiu da
gaveta.
Gostou do look?
Foi assim que eu fui na festa.
Ficou bonzinho, não ficou?
Pois é Berenice. Eu criei coragem.
Agora só falta criar a peça.
A primeira de uma série.
Eu vou fazer peça por quilo, Berenice.
Eu vou virar volume um volume dois volume três volume mil.
E vou fazer o maior sucesso.
E você vai voltar a achar graça das minhas besteiras.
Vai olhar diferente pros meus defeitos. Defeito vira estilo quando a gente faz sucesso. E eu
vou fazer tanto sucesso que todo mundo vai querer saber como é que eu sou. Como é que
eu durmo, Como é que eu trepo, o que é que eu faço pra manter a minha forma. O número
do meu pé, o nome do meu médico, o meu modelo preferido de cueca.
Um sonho?
Depende do dia,
Uma meta?
Depende da hora,
Um desejo?
Depende da lua.
Uma palavra?
Depende.
Um resumo da peça?
Pausa.
O quê?
Um resumo?
Da minha peça?
A minha peça?
Se passa aqui. Na minha cabeça. Tá tudo aqui. Na minha cabeça.
Se passa aqui. Na minha cabeça. Tá tudo aqui. Na minha cabeça. Só falta sair.
E é aí que a porca torce o rabo. O rabo da gente. E você pode chamar essa porca de
processo criativo ou máquina de reciclar pensamentos que iam pro lixo.
É isso essa peça.
É sobre isso essa peça.
Isso é uma espécie de resumo da peça.
Fim da entrevista.
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Gostou Berenice?
Do estilo?
Pois é, meu amor! Sua ausência tem feito muito bem pra esse meu novo jeito.
Obrigado!
Sua ausência vai fazer muito bem pra minha peça.
Será que não ficou um pouco demais essa roupa, esse “chapéu”?
Não ficou não.
Ficou, sim. Demais até. Não precisava dessa produção toda pra ir naquela festa.
Precisava sim. Todo mundo naquela festa tinha um lay out especial, fazia um tipo
E a minha cena lá na festa? “Desculpe você não me conhece, mas por acaso eu escutei sua
conversa...” Será que não foi demais?
Não foi não.
Foi sim. Isso não se faz. Se meter na conversa alheia e oferecer uma peça!
Se bem que isso se faz sim. É assim que as coisas acontecem.
Não se faz não. Ainda mais com essa roupa, olha só pra você. Olha o papelão que você fez.
Foi naquela festa fantasiado de outro só porque achou que ela ia estar lá e ia pensar “nossa,
ele é outro!”
Não, eu não fui naquela festa pra encontrar a Berenice.
Porque é que você foi naquela festa?
Eu fui naquela festa porque...
Porque é que eu fui naquela festa? Só pra encontrar a Berenice!
Então porque eu não fui embora quando vi que ela não estava?
Você não foi embora porque...
Porque você não foi embora quando viu que ela não estava?
Eu não fui porque achei que ela ia acabar chegando, chegava todo mundo!
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“O que é que eu faço com esse canapé, como é que eu me livro dele?”
O que é isso? Esse texto? Essa roupa, essa gravata, essa chapéu!!
Você não é esse daí. Esse daí é outro. Você não tem esse jeito você não tem essa peça!
Você não engana ninguém. Estava escrito na sua testa:
“Atenção gente eu sou como cada um de vocês que está nessa festa assim como quem está
numa festa, E eu me visto assim como quem se veste assim, ou seja, eu sou legal.”
Legal! Botar um chapéu pra virar outro homem e acabar virando o homem do chapéu. Você
foi “O Homem do Chapéu” naquela festa:
“O Homem do Chapéu não pára de olhar pro portão. O Homem do Chapéu
finalmente saiu da varanda. Vai pegar um canapé, o Homem do Chapéu. Gente, o Homem
do Chapéu odiou o canapé. Está pondo o canapé mordido no bolso? Olha o Homem do
Chapéu prestando atenção na conversa alheia. Vai se meter na conversa quer ver? Não
falei? Graças a Deus! Engatou um papo. Estava tão deslocado, na festa, o Homem do
Chapéu. O que será que ele tanto fala, todo ali, daquele jeito com aquele brinco na ore...
Furei, sim o que é que tem? Tem muito homem da minha idade que usa brinco há muito
tempo.
Há muito tempo! Você devia ter furado a orelha há muito tempo se quisesse, hoje, ser uma
pessoa que usa brinco.
Não furou, passou, esquece.
Você já passou da idade do primeiro brinco.
Você acha que é só botar um brinco, pronto, virei outro?
Está difícil de você virar esse outro.
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“Descobri meu esporte, é tênis, começo assim que passar essa gripe. Já tenho até a
bolinha.”
Ela sabe muito mais que você. Tirando a Rita de Cássia, todas sabiam mais do que você. A
Maria Emília sabia mais do que você, a Vitória sabia mais do que você, a Valéria sabia
mais do que você, A Elisa!...
A Elisa, eu não sei. Com a Elisa foi uma vez só, e era a minha primeira vez.
E eu sentia que ela queria que eu pensasse que era a primeira vez dela também. Eu não
sabia se era ou se não era a primeira vez dela. Por que era a minha primeira vez e a primeira
vez é assim mesmo, não dá pra saber de nada. Mas ela insistia em parecer que não sabia
como era, e era isso que fazia parecer que não era a primeira vez dela. Porque ela sabia
muito bem como parecer que era. E se ela sabia como era, ela sabia também que era a
minha primeira vez. E isso era tudo que eu não queria. Eu não queria parecer que era a
minha primeira e era isso que fazia parecer que era. Era muito mais fácil pra ela parecer que
era a primeira vez do que pra mim parecer que não era. Porque pra ela, fazer parecer que
era a primeira, era só não saber como era, ou então lembrar como era não saber, mesmo que
já soubesse. E pra mim, fazer parecer que não era a primeira vez, era difícil sem saber
como era.
Eu não sei porque ela queria tanto parecer que era a primeira vez dela.
Talvez pra eu não saber que ela sabia que era a minha primeira vez.
Não era a primeira vez dela.
E ela sabia muito bem que a minha era a primeira.
Eu vou fazer equitação em vez de tênis, tem muito mais a ver comigo.
Equitação, não.
Tai chi chuan.
Se bem que natação...
Golf.
Não. Tênis. Já tenho até a bolinha.
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Não é agora que eu vou começar a sair correndo atrás de uma delas.
Tem uma hora que a gente tem que esquecer algumas coisa que poderia ter sido e pensar:
Eu sou assim. É o que temos.
Não tenho o abdômen perfeito.
Paciência.
Não tive um milhão de mulheres.
Não dá mais tempo.
Não uso brinco na orelha.
Qual é o problema?
Eu nunca fui ao Maracanã.
PERPLEXO:
Berenice!!
Por que eu não grito “vai Mengo, porra?”
Eu achei que te agradava eu não gostar de futebol, ficava em casa, com você.
Desculpa.
Se foi por isso, volta já.
É só você pedir que eu grite “vai Mengo, porra”, que eu grito “vai Mengo, porra.”
Não deve ser tão difícil assim gritar “vai Mengo, porra.”
Coitada da Berenice. Esse tempo todo, nenhuma mancha de batom no meu colarinho. Nem
uma caixinha de fósforo de motel pra eu falar: é de um amigo que me emprestou pra eu
acender um cigarro no estádio e a caixinha acabou ficando comigo!” e pensar “que futebol
que nada ele tá é com mulher, que eu não sou boba”. Nunca pôde pensar isso. Nunca pôde
dizer isso assim, de mim, quanto a isso. Coitada. O que é que ela conversava com as
colegas? Cada qual com seu orgulho: O Murilo é fogo! O César é um cafajeste! E o
Fonseca! Sonso! E você? Devia se sentir um E. T., um Lixo. Casada com um cara que não
oferece o menor perigo. Qual é a graça?
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“É gol, porra!”
“É gol porra!”...
E o pensamento da Berenice?
Onde será que está
nesse momento
o pensamento
da Berenice?
Está pensando em que, Berenice?
Está pensando em quem?
Está saindo com alguém?
Berenice! Pra casa!
Quem é esse, Berenice, eu conheço?
Nem você conhece direito? Berenice, olha a mão dele!
Não deixa ele fazer isso!
O que é que você está fazendo, Berenice?
O que é que isso?
Na primeira noite!
Você demorou um tempão pra fazer comigo assim!
Um calmante, Berenice.
Eu falei um.
Berenice, você ficou louca?
Tarja preta, Berenice!
Como foi que você conseguiu tanta receita?
Não se mata não, Berenice.
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Está tentando se matar por minha causa, a louca da Berenice.
Ela não sabe viver sem mim.
Você não sabe viver sem mim, Berenice. Mas não sabe mesmo. Eu posso não ter tido
muitas, mas de você eu entendo. Eu sei como é que você gosta.
E eu gosto de fazer do seu jeito. Eu gosto tanto de você, Berenice! Da sua boca e do resto.
É claro que você vai voltar pra mim, antes até do que eu penso.
E eu penso que você vai ligar agora. Dizendo que esta voltando.
Vai, Berenice, liga agora pra mim, eu estou precisando tanto!..
Eu sei que meu telefone foi cortado, Berenice. Não precisa repetir.
E o gás também e a Dona Inalda foi embora. Eu sei que a culpa é minha, Berenice. Você já
disse!
Eu só tenho dois minutos e quarenta segundos pra pensar em cada minuto de peça.
Se eu conseguir fazer essa peça eu juro que eu vou ser uma pessoa que não fuma, que não
dorme tarde, que não tem preguiça, que não come doce, que não come carne, que não bebe
álcool, e que não toma nada pra dormir.
18
Pega uma garrafa de leite.
Se eu conseguir fazer essa peça eu juro que eu vou ser uma pessoa que não.
A partir de amanhã.
Hoje não dá.
Hoje eu sou uma pessoa que sim, e fim.
Pessoas que sim são tão assim, não são?
Vai interpretando uma “pessoa que sim” enquanto o leite vai derramando no chão.
São sim.
Eu sei.
Sim.
Aceito.
É.
Foi.
Foi sim.
Isso.
Gosto.
Gostei.
Guarda a garrafa.
Eu escrevi isso?
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“Se você olhar no verso deste bilhete você vai descobrir onde escondeu seu último
cigarro. Rasgue imediatamente o papel e diga: “Eu não sou um verme”.
Eu sou um verme.
Dito isto ele vira o papel e lê em silêncio. Na tela, vemos o desenho de uma meia.
Ele apanha um cigarro amassado guardado na meia.
O telefone lá tocando...
Atende o telefone, Berenice!
E você nem!... Lá dentro. Tomando seu banhozinho quente no seu chuveirinho a gás.
O aspirador de pó da dona Inalda me perseguindo pela casa inteira,
- Dona Inalda a senhora ainda acaba me aspirando!
20
Lembrando.
E se eu botar um disco?
Esse não.
Nem esse.
Nem esse.
21
Não eu não tenho tanto tempo.
E se eu apagar a luz?
E se eu plantar bananeira?
E se eu ficar em pé?
E se eu abrir a janela?
22
Janela Indiscreta!
Duble de corpo!
O Exterminador do Futuro dois!!!
Eu não pensava tanta coisa interessante? Não tinha umas idéias incríveis, uns saques? Eu
não era criativo?
Homem mergulha e seu rosto aparece na tela. Voz off. Homem volta à tona e a tela
desaparece.
Mergulha, seu rosto aparece na tela, ele volta à tona, a tela some.
23
Mergulha a cabeça. Imagem do rosto dele na tela. Ele solta bolhas como se tentasse
falar. Legendas traduzem o que ele “fala”.
Pronto. Relaxei.
Quer mais ainda?
Olha aqui.
Mais um pouquinho?
Está bom assim?
Volta à tona.
Oh, meu Deus, vem aqui essa noite. Conversar um pouco, trocar umas idéias, tomar um...
um... uma água!
Não quer vir pessoalmente manda uma carta, um bilhete, liga!
Eu sei que meu telefone foi cortado, Deus. E o gás também e a Dona Inalda. E eu sei que a
culpa é minha, a Berenice já cansou de me dizer.
E se eu acender um defumador?
Um incenso?
Um defumador e um incenso?
Dois de cada?
Mais?
Vários defumadores e vários incensos?
Vários defumadores e vários incensos
Olhe aí, meu Pai. Tô relaxadinho. Pode vir. Mande a idéia.
Essa não, meu Rei. Essa já tiveram.
Essa é boa também. Mas também já tiveram.
Essa também.
Essa também.
Também.
Também.
Também.
Porra, Deus. Que merda!
Puta que pariu, eu falei “porra Deus, que merda.” Caralho. Eu falei “puta que pariu, porra,
Deus, que merda”. Foda-se. Eu não acredito em Deus mesmo!
Essa também já tiveram.
Pausa
24
Fala à parte.
25
Os detalhes eu tinha era da Quinta. Nota por nota. Tempo por tempo. Instrumento por
instrumento.
Mentira minha. Eu não tinha.
Mas podia muito bem ter tido. Quem é que pode dizer que eu não teria?
Eu teria feito a Quinta Sinfonia.
Bastava que Bethoven não tivesse feito antes.
Odeio Bethoven. Odeio ele.
Bethoven, Wells, William, Pablo, Charles, Federico, Jobim, Gonzaga, Pessoa, Nelson, e
qualquer outro que tenha tido ou que ainda venha a ter alguma idéia que quem deveria ter
tido era eu.
Ah, Berenice.
Não entra na minha cabeça agora, não, que eu não estou bem
Não vê?
É por você
Que eu penso
Que eu janto.
Que eu durmo.
Que eu canto...
Vem
Pintar minha alegria
de presença tua.
Vem ocupar as minhas mãos.
Valsa instrumental.
26
Não é pra peça não é pra nada, esquece a peça
Essa é pra você.
Que eu amo
Que eu amo
Que eu amo
Que eu amo
Tanto.
LONGA PAUSA.
Hum?
Eu não tenho a menor idéia de como é que eu vou dizer pro cara que eu não tenho a peça,
que eu nunca tive peça nenhuma, mas eu dou um jeito.
Eu posso... fugir.
Eu posso morrer.
Eu posso me fazer de doido.
Eu posso perder a memória.
Eu posso dormir. Se eu conseguir.
Se eu conseguir esquecer esse homem em cima desse palco pensando.
PAUSA.
Pensando o que, seu imbecil? O que é que esse homem tanto pensa, meu Deus?
Está com algum problema? Está pensando numa solução?
Ei! Esse homem! O que é que você está fazendo aí, em cima desse palco?
É você, sim, quem mais? Só tem você aí! Fui eu que inventei você em cima
desse palco pensando.
Ei, esse homem!
Coitado desse meu autor. Coitado dele. Pensa que é dono de mim, como se um
dono ele também não tivesse. O que será que ele faria se de repente pensasse
que ele também tem um autor e que sou eu o autor dele? Que fui eu que
inventei ele assim, desse jeito pra ser o personagem da minha peça. Coitado
desse meu autor. Coitado dele.
27
Você está falando de mim?
Hein, esse homem, em cima desse palco pensando.
É isso que você pensa?
Que você é o meu autor, e eu sou personagem da sua peça?
Oh, meu autor! Faz tempo que eu queria te encontrar pra te dizer umas
coisas. Ou tu não gostas de mim, ou então és um autor de muito pouco
talento. Inventar um sujeito assim como eu, pra depois botar ele numa
situação dessas! Isso é vida que se invente? Isso é trama que se monte?
Que personagem foi esse aí que você inventou, meu autor? Que sujeito sem graça.
Sem gás, sem telefone, sem Dona Inalda, sem Berenice, sem idéia, sem peça.
Cria uma virada pra mim, meu autor. Inventa um fato novo pra minha vida. O
momento é esse. Quando ninguém mais no mundo espera mais nada desse
personagem aqui, esse personagem aqui tem um idéia pra uma peça e tudo
começa a dar certo. Cria essa cena pra mim, meu autor. Essa cena pode
apontar um final pra sua peça.
Eu faço um trato com você, meu autor.
Inventa essa virada pra minha vida, que eu prometo que invento um final pra
sua peça.
Como é essa sua peça, hein, meu autor.
Diz. Como é que ela começa?
Um homem em cima de um palco pensando?
É assim que você se refere a mim, aí, na sua peça?
E a sua peça é o meu pensamento?
Eu penso muita besteira?
Não precisa responder, eu sei que eu penso.
Às vezes eu penso cantando?
Tem Berenice na peça?
Quase que o tempo todo, é?
Berenice, Berenice, Berenice, Berenice?
E foi você que inventou tudo que eu penso desde que eu cheguei da festa e
comecei a pensar na peça?
Então é você também que está inventando essa parte agora, exatamente essa,
em que eu estou pensando em usar tudo isso que você inventou, na minha peça, não é?
Valeu, meu autor.
Você já pensou nessa peça até agora. Agora vai descansar.
28
Eu vou embora agora. Não, eu espero e penso. Eu vou embora agora. Não, eu
espero e penso: "Eu vou embora, chamo o elevador e enquanto eu espero eu penso:
O que é que eu penso enquanto eu espero o elevador?
Eu penso que o cara já vai estar lá, me esperando, e eu ainda vou estar lá,
Esperando o elevador que vai demorar uma eternidade pra chegar. E o que é
que eu penso durante toda essa eternidade? Eu penso num final pra minha
peça! Um fato, uma palavra, um gesto, uma luz, sei lá um som, um efeito, um
objeto voador não identificado desce do alto e me leva de vez pro espaço e
eu não preciso mais pensar em final nenhum pra peça nenhuma nunca mais na
minha vida."
Mas depois eu penso “não. Talvez o teatro não tenha altura suficiente pra
Caber um objeto assim lá em cima” e penso e se for o contrário?
Se o final da minha peça vier de baixo? Cabos de aço são fincados no chão e arrancam a
casca do palco.
SOBE O JARDIM
E me levam a algum lugar lá longe, no passado. Sem gás, sem telefone, sem dona Inalda.
Só o cheiro da
Berenice perfumando o mundo inteiro.
Não. Isso não é o final da minha peça. Isso é o cartão que a Berenice
pintou pra mim no dia seguinte à primeira noite da gente. Como é que ele
veio parar aqui na peça?
Está vendo, Berenice. Eu não perdi o cartão, não. Eu guardei ele aqui dentro.
É lindo.
Pena que não dá pra encaixar na peça. Não tem nada a ver com o resto.
Ô, Berenice. Eu faço uma outra peça só pra usar essa cena no final.
29
E pulo pra um dia qualquer, lá na frente. Um dia em que eu já vou ter inventado esse final
há muito tempo.
A minha peça já vai estar acontecendo em algum teatro do Rio de Janeiro.
É o dia vinte e sete de novembro de mil novecentos e noventa e oito. Mais
precisamente às vinte e duas horas, trinta e dois minutos e quarenta segundos.
Eu penso que nesse momento algumas pessoas que estarão na platéia vão
conferir seus relógios.
E penso como serão pessoas que estarão nesse dia assistindo à minha peça.
Serão pessoas muito simpáticas, uma bela platéia. Na poltrona 7 da fila F
estará sentada uma jovem de cabelos lisos e um sorriso encantador. A
poltrona 10 da fila E estará ocupada por um distinto senhor muito
compenetrado prestando bastante atenção. E no centro da fila “H" eu penso
numa senhora muito elegante e muito bonita um pouco encabulada ao ver sua
imagem numa tela do palco.
E se tudo acontecer como eu penso, vai ser muito bom pro cara que vai estar
fazendo essa peça. Ele vai estar muito feliz nesse momento.
E onde era que eu estava enquanto eu pensava nisso?
Esperando um táxi. E esse táxi que não chega! E esse final que não aparece!
Até que aparece. Um táxi. "Táxi!" E eu penso: "está ocupado", e penso
"odeio quando eu faço sinal pra táxi ocupado". E penso "se está ocupado
porque é que parou aqui na frente? E esse final que não aparece?" aparece a
Berenice. Saindo do táxi. Bem aqui na minha frente. E ela me diz:
Oi!
Oi, Berenice.
Você está Saindo?
Porquê? Você está voltando?
Está parecendo.
Então fica aí, Berenice. Vai subindo. Sua chave está lá, atrás do quadro.
Eu estou saindo mas eu estou voltando.
E a Berenice acha uma graça dessa besteira! A mesma graça que achava no começo.
E acha mais graça ainda quando eu fico emocionado.
Eu mudei, Berenice. Agora eu sou outro homem.
A Berenice fica olhando pra mim, eu fico olhando pra ela, ela fica olhando
pra mim enquanto eu penso: "Engraçado... a Berenice voltou pra mim antes de
saber que eu tinha mudado." e penso sobre isso mais um tempo ainda e vou
pensando e vou pensando e chego lá na lua. E quando volto encontro a
Berenice às gargalhadas de ver que eu não mudei foi nada
Pára com isso Berenice.
Pára de rir de mim.
Pára, Berenice!
Vem cá.
Me dá um Beijo.
Aí já viu.
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Música.
E acabou a peça.
Fim.
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