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Henrique Amorim*
A teoria do valor foi até hoje lida com base em três recortes analíticos amplos. Um recorte anterior a
Marx, o de Marx e dos marxistas e o dos neoclássicos. O anterior a Marx tem como elementos centrais
a ideia de que o valor é uma categoria central das sociedades de economia mercantil ou de troca, que
nas sociedades capitalistas ganharia sua expressão mais avançada no processo de criação da riqueza.
Em Marx, o valor é considerado como a categoria econômica mercantil fundamental. No entanto, esse
tipo de economia é apreciado como transitório, isto é, há uma determinação histórica da economia
mercantil que se vincula diretamente à existência do valor. Já para os neoclássicos, o valor é uma
categoria da atividade econômica em geral, sendo, portanto, a atividade econômica capitalista uma
forma particular dessa atividade econômica geral. Sua preocupação central está, nesses termos,
voltada para o equilíbrio geral apoiado na análise marginalista do valor. No entanto, o debate em torno
do valor hoje parece ir além dessas classificações. Sua recuperação se sintetiza na seguinte pergunta:
as teses sobre as novas tecnologias da informação e sobre o trabalho imaterial convergiriam para uma
nova forma da teoria do valor-trabalho ou para a superação dessa teoria? O objetivo central deste artigo
é caracterizar introdutoriamente as principais teses do debate na teoria social, que incorporam,
atualizam ou negam a teoria do valor-trabalho no processo de análise do trabalho imaterial.
PALAVRAS-CHAVE: teoria do valor-trabalho, trabalho material e imaterial, Marx, sociologia contemporânea.
Um conjunto de fatores influenciou a crítica – motivada, sobretudo, pela prosperidade dos paí-
estrutural da teoria do valor-trabalho a partir dos ses europeus sob o Estado de bem-estar social
anos 1970. Podemos delimitá-los, mesmo que (Inglehart, 1997); das teorias dos novos movimentos
esquematicamente, dividindo-os em duas frentes: sociais (Gohn, 2006; Offe, 1994) que, ao criticar o
uma histórica e outra teórica. A primeira delas se caráter redutor do paradigma produtivo, vislumbrava
manifestou em decorrência do colapso de Bretton uma diversidade de processos de sociabilização para
Woods e da crescente intervenção dos Estados nas além do universo do trabalho; e da teoria da socie-
políticas salariais, das crises do petróleo, do enfra- dade pós-industrial, que pressupõe a nova socieda-
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“hegemonia” industrial, superada pelo setor de possível mensurar o tempo de trabalho necessário
serviços e posteriormente pela financeirização da à produção imaterial? Sendo essa mensuração
economia, a teoria do valor-trabalho foi designada inviável, a teoria do valor perderia sua validade
como uma teoria historicamente ultrapassada. teórico-analítica? Seria o trabalho abstrato uma fic-
Contudo, a partir do final dos 1990, com a ção, já que não possui uma natureza física? Ou ele
crescente utilização de trabalhos nos quais predo- sintetizaria a forma acabada das relações sociais
minam atividades não manuais, a teoria do valor- capitalistas?
trabalho volta à baila, sobretudo, nas análises so- Tenho, nesse sentido, como objetivo, pri-
ciológicas acerca do trabalho imaterial e das novas meiramente, indicar que as teses sobre o trabalho
tecnologias da informação. imaterial e a teoria do valor são uma tentativa de
Essa recuperação da teoria do valor-traba- atualização ou ruptura com a análise de Marx. Em
lho vincula-se contemporaneamente a dois gran- segundo lugar, saliento que a distinção entre tra-
des pilares teóricos. O primeiro configura-se em balho material e imaterial não faz parte da forma
torno das análises sobre o processo de transforma- como Marx desenvolve sua crítica à produção ca-
ção tecnológica na produção industrial, e também pitalista, ou seja, ao separar trabalho material de
no setor de serviços, da diminuição do tempo de imaterial, a sociologia, que trata do tema, criaria
trabalho necessário à produção de mercadorias e um falso problema.
da participação humana nas atividades
concernentes às áreas tecnológicas mais desenvol-
vidas. O segundo, e como consequência do pri- A REDESCOBERTA DA TEORIA DO VALOR
meiro, relaciona-se ao crescimento do trabalho de
tipo imaterial como força produtiva central. As formas de utilização do trabalho desen-
A ideia geral é de que haveria um distan- volvidas no último quarto do século XX e início
ciamento das novas formas de trabalho (imaterial, do XXI, sintetizadas primeiro na figura do operá-
informacional e cognitivo)2 em relação às ativida- rio polivalente, da subcontratação, da redução re-
des de constituição física dos objetos produzidos. lativa dos salários e, também, pelo consequente
O trabalho que tem como matéria-prima as capaci- aumento do setor de serviços, motivaram, na teo-
dades cognitivas não poderia ser analisado pelo ria social, a reproblematização conceitual do traba-
mesmo estatuto teórico daqueles trabalhos que têm lho e, especialmente, das teorias dos processos de
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teoria do valor-trabalho. Em linhas gerais, essa duz a capacidade física da força de trabalho, mas
transforma seu usuário (Lazzarato, 1993, p. 114).
requalificação vincula-se à ideia segundo a qual as
novas formas de utilização do trabalho demanda- Em outros termos, Gorz qualifica mais siste-
riam um novo tipo de trabalhador, cujos conteú- maticamente sua análise do trabalho imaterial.4 Se-
dos comunicacionais, informativos, cognitivos, gundo ele, a radicalização da produção de tipo
informacionais, em resumo, suas competências imaterial parece levar a teoria do valor-trabalho à
profissionais, deslocariam sua subordinação a um excrescência, pois indica uma contradição
novo estágio político e social, estágio esse que rom- intransponível entre a lógica de universalização dos
peria com a lógica de valorização do capital no produtos imateriais e a mercadoria. Haveria, assim,
momento em que os objetos produzidos pelos tra- um redimensionamento da forma histórica de valo-
balhadores não seriam mais passíveis de rização do capital nas sociedades economicamente
quantificação. avançadas. O capital tentaria incessantemente con-
Como expressão dessa leitura, Negri anun- servar, restringir o acesso, patentear o conhecimen-
cia o trabalho imaterial da seguinte forma: to presente nos produtos comercializados, mas não
poderia fazê-lo por completo, pois fugiria do movi-
O trabalho imaterial – aquele que produz os bens mento intrínseco, ao capital, de acumulação e de
imateriais como a informação, os saberes, as
ideias, as imagens, as relações e os afetos – tende extensão da exploração do trabalho. Portanto, como
a tornar-se hegemônico. […] o trabalho imaterial
só pode ser realizado coletivamente, trocando fundamenta Gorz, para produtos imateriais, essa
informações, conhecimentos. [...] Toda pessoa que lógica não faria mais sentido. A universalização dos
trabalha com a informação ou com o saber – do
agricultor que desenvolve as propriedades espe- produtos do trabalho imaterial acabaria por caracte-
cíficas das sementes ao programador de softwares rizar o conhecimento formalizado e codificado como
– utiliza o saber comum transmitido por outros e
contribui para produzi-lo. (Negri, 2004, p. 44) uma “não-mercadoria”, um bem comum. Assim, o
movimento de independência do trabalho imaterial
Há, nesse sentido, uma tentativa de frente ao processo de acumulação de capital que
reapropriação da teoria do valor-trabalho de Marx este último – o capital – deveria conter, seria
dentro de um ciclo ampliado de produção e repro- construído. A imensurabilidade, essa propriedade
dução sociais, não apenas relacionado à produção particular dos trabalhos imateriais, somente seria
fabril, mas também à formação de um coletivo de utilizada como fonte de um novo processo de valo-
trabalhadores inter-relacionados pela produção- rização na medida em que ela fosse restringida. O
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do usual, e não tem como destinação primária a capital e a constituição social do capitalismo, como
de servir à produção de sobrevalor, nem mesmo um fenômeno de existência recíproca e inseparável,
de valor, no sentido usual.” (Idem, 2005, p. 54- teria sido um equívoco de Marx? Mais especifica-
55). Dessa forma, ele, o capital conhecimento, não mente, o trabalho imaterial, como força produtiva
se adequaria à norma tradicional de valorização e, central descolada da lógica de valorização do capi-
ao mesmo tempo, desenvolver-se-ia como força pro- tal, seria exatamente a prova empírica desse equí-
dutiva central, apresentando-se, com isso, como voco? Ou o processo de valorização teria alcança-
momento de negação do capitalismo. O valor mer- do um novo estatuto distinto da materialidade
cantil daria lugar a uma riqueza que não poderia pensada por Marx no século XIX? A imaterialidade
mais ser regulamentada pelo capital. Por fim, essa seria mais uma nova fronteira de produtividade
separação formaria espontaneamente um processo superada pelo capital, ou seja, seria outro univer-
de solidariedade e coletividade como vetor central so produtivo submetido à lógica de valorização e
de organização social (Idem, 2005, p. 57). acumulação capitalista?
A desvinculação do trabalho imaterial das
formas tradicionais de produção criaria uma nega-
ção em relação à produção tipicamente capitalista, TEMPO DE TRABALHO E TRABALHO INTE-
uma vez que esse trabalho extravasaria a lógica da LECTUAL NAS ANÁLISES SOCIOLÓGICAS
exploração de tempo de trabalho. Com isso, fun- CONTEMPORÂNEAS DA TEORIA DO VALOR-
damentar-se-ia: 1– o fim da produção fundada no TRABALHO
valor, pois, 2 – o processo de produção imediato
perderia seu caráter forçado, compulsório, isto é, A sociologia que discute o valor-trabalho
seu caráter antagônico, dessa forma, o objetivo da hoje indica, em linhas gerais, uma configuração
produção não seria mais reduzir o tempo de traba- do trabalho radicalmente nova e não prevista pe-
lho e aumentar o sobretrabalho, mas sim reduzir o las análises anteriores, calcadas, sobretudo, na
trabalho necessário àquela parcela mínima que sa- análise do trabalho industrial, de seus processos
tisfaça as necessidades sociais.5 de trabalho e na convergência de relações sociais
Em um sentido restrito, a tendência de subs- de produção que contaminariam o modo de vida
tituição de trabalho vivo por trabalho passado e de da sociedade como um todo. Dentro dessa discus-
incorporação da ciência e da tecnologia nesse pro- são, a questão do tempo de trabalho e da utilização
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dida de trabalho deixaria de existir. O tempo dis- projeta-se como fundamento da produção. Entre-
ponível deixaria de ter uma forma antitética com tanto, o autor indaga: “... não seria o caso de situar
relação ao tempo de trabalho, passando a ser go- (também) no mesmo espaço, a apropriação pelo
vernado por um tempo necessário, aquele pauta- capital das forças intelectuais?” (1994, p. 212). Para
do nas necessidades dos indivíduos sociais. Com ele, a mercadoria força de trabalho, em sua forma
isso, o desenvolvimento das forças produtivas supérflua, acaba por redefinir um estágio do de-
sociais encontraria uma produção nunca antes vista senvolvimento das forças produtivas (trabalho abs-
e que, mesmo sendo calculada com base no inte- trato) que, em seu conjunto, poderia caracterizar a
resse comum, ainda produziria tempo disponível, ruptura, mas que, contrariamente, encaminha a
“... já que a riqueza real é a força produtiva desen- permanência das relações sociais capitalistas. Ha-
volvida de todos os indivíduos. O tempo de traba- veria, nesse sentido, uma continuidade do pro-
lho, já não é então, de modo algum, a medida da cesso de valorização do capital e do trabalho como
riqueza, mas sim o tempo disponível.” (Idem, 1980, meio de realização dessa valorização. No entanto,
p. 232). O tempo de trabalho deixa de ser medida o trabalho, na sua forma imediata, daria lugar às
de valor, pois, por um lado, transforma a ativida- formas mediatas da atividade produtiva,
de do trabalhador em uma atividade de vigilância estruturando-se uma expressão metamorfoseada do
e regulação e, por outro, o produto do trabalho valor-trabalho.
deixa de ser produto imediato, isolado, passando A forma do valor tornar-se-ia cada vez mais a
a ser uma combinação do trabalho social. A ativi- forma do valor trabalho intelectual-abstrato, ou seja,
dade social, nesse modelo analítico, substitui aque- as formas de intelectualização da força de trabalho
le conjunto de indivíduos que formava a figura poderiam, assim, ser entendidas como razão primei-
produtora: o trabalhador coletivo. ra da valorização do capital. Flexibilidade, rapidez
De outro ponto de vista, as indicações de de deslocamento e autotransformação permanente
Marx sobre a supressão do trabalho vivo e sobre o caracterizar-se-iam e se autovalorizariam com base na
aumento do trabalho passado fazem eco nas indi- incorporação constante do conhecimento retido como
cações sobre a impossibilidade do aumento do valor de troca. A cooperação, nesse sentido, tornar-
“emprego”, haja vista a incorporação tecnológica se-ia uma forma produtiva “processual”.
cada vez mais intensa. A ampliação da produção A crescente “intelectualização” do trabalho,
de mercadorias não estaria apenas ligada à produ- caracterizada pelo deslocamento da formação e de
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ção industrial; sua abrangência apresentar-se-ia sua valorização da produção stricto sensu para ou-
como prerrogativa da nova lógica produtiva. tras áreas concernentes, muitas vezes, à administra-
André Tosel, por exemplo, caracteriza um ção e ao gerenciamento de fluxos de informação,
quadro social com base na análise dos “prestadores” faria aflorar novas possibilidades de domínio do
de serviços, dos chamados autômatos de serviços. coletivo de trabalho frente ao mando capitalista.
Os serviços seriam novas formas de utilização do Do ponto de vista empresarial, a produção
trabalho que romperiam a divisão entre trabalho de um conhecimento específico deve ser
manual e intelectual.6 A qualificação intelectual “objetivada”. Nesse sentido, as relações de troca
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Em termos conceitualmente mais rigorosos, não faz sen- aparecem como formas de automatização do traba-
tido falar em trabalho manual e intelectual. Nenhum
trabalho é desprovido de um repertório cognitivo. A di- lho intelectual, já que ele mesmo deveria ser
visão conceitual absoluta entre trabalho manual e inte- objetivado como valor, através do dinheiro. As-
lectual tem por fim o objetivo, não esperado, de
estigmatização do trabalho, isto é, em vez de estabelecer sim, parecem estar vinculadas a um projeto mais
conceitos e noções mais densos, que possibilitem anali-
sar as formas de trabalho e de exploração diferenciadas amplo de delegação de tarefas e serviços. Dentro
de trabalho, acabam por criar obstáculos a esse projeto.
Talvez, uma leitura menos maniqueísta das atividades dessa perspectiva, abre-se a questão do aumento
ligadas aos processos de trabalho seja aquela de Harry da produtividade pela constante inserção de no-
Braverman (1980), na qual enfatiza tal divisão nos ter-
mos de concepção e execução do trabalho. vas tecnologias à produção, o que tenderia a libe-
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rar uma quantidade de tempo de trabalho não mais Com a industrialização, verificar-se-ia uma
necessária a determinada produção. subsunção formal-material do trabalho ao capital.
A questão que se coloca hoje à teoria do va- Com a formação da “pós-grande indústria”, criar-
lor-trabalho como uma teoria da exploração expos- se-ia uma outra e terceira forma. “O homem não é
ta, particularmente, nos Grundrisse e em O Capital, mais sujeito do processo de produção. […] O ho-
é a seguinte: estaria Marx falando da formação de mem é de certo modo ‘posto para fora’, liberado
um coletivo de trabalhadores intelectualizados já (freigesetzt) do processo, mas é assim mesmo que
no interior das sociedades capitalistas, de uma ele passa a dominar o processo.” (Idem, 1989, p.
convivência entre duas forças realmente antagôni- 52). A última reestruturação da produção, com base
cas ou tratar-se-ia de uma projeção teórico-históri- no desenvolvimento da automação, teria constitu-
ca da transformação da produção em uma socieda- ído uma nova condição de subordinação que não
de de novo tipo? necessitaria mais de uma subordinação material
Um dos primeiros a tratar esse tema foi do trabalho ao capital, isto é, na “pós-grande in-
Marcuse, em seu livro A Ideologia da Sociedade dústria”, a subordinação material desapareceria,
Industrial (Marcuse, 1969). Sua opção é clara e se dando lugar a uma subordinação formal-intelectu-
tornou hegemônica durante a segunda metade do al do trabalho ao capital. (Idem, 1989, p. 60). Há,
século XX. Marcuse indica o processo de dessa forma, uma relativização da ruptura entre
automatização como um desdobramento do pro- trabalho vivo e trabalho passado. A ciência conti-
gresso técnico. Não apenas como um processo da na máquina a caracterizaria como uma força de
quantitativo de acúmulo de forças produtivas. A trabalho intelectual, pois não necessitaria quase
automatização é concebida pelo autor como um nunca de trabalho para estar em ação. A condição
conjunto de elementos que poderia catalisar a trans- de vigia e supervisor da máquina não implicaria,
formação estrutural da sociedade capitalista. A luta, assim, a existência ativa do trabalhador. “O autô-
no contexto do progresso técnico, poderia dar iní- mato [diz Fausto] é agora autômato espiritual, não
cio e, nesse sentido, fundamentaria a forma de simples autômato ‘vivo’” (Idem, 1989, p. 58-59).
transgressão de um modo de produção a outro. “A Dentro da mesma problemática, Prado (2004)
automatização, ao se tornar o próprio processo de indica que o desenvolvimento da grande indústria
produção material, revolucionaria a sociedade in- levaria o capitalismo a uma fase de transição, a “pós-
teira.” (Idem, 1969, p. 53). Dessa formulação po- grande indústria”, na qual a produção não seria mais
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fim, a superação das relações de produção capita- arbitrárias sobre quem pertencia ou não a uma
listas. Os conteúdos dos trabalhos materiais e determinada classe, sobre quais seriam os setores
imateriais são anunciados como políticos; eles car- da classe mais aptos a realizar a revolução, quais
regariam consigo elementos antagônicos à ordena- seriam os mais adequados a ascenderem a uma
ção social capitalista, caracterizando a constitui- suposta consciência de classe ou a triunfar em sua
ção de uma política transformadora. “missão histórica” de transformação estrutural da
Essa tese advém de uma leitura sobre os sociedade capitalista.
conteúdos e significado dos trabalhos, segundo a O segundo ponto está relacionado à ques-
qual a informação, por exemplo, somente conse- tão da materialidade. Creio que a literatura marxis-
guiria adquirir valor no momento em que fosse, ta ortodoxa valeu-se de parâmetros físicos para
na produção imaterial, reformulada, reorganizada, compreender o que seria material ou não-material
isto é, no momento em que fosse incorporada pelo na produção e no trabalho. Por conseguinte, a bi-
produtor-consumidor. A ideia central seria a de bliografia que se ergue nos anos 1970, em torno da
que hoje o capital teria criado um problema sem ideia de superação do paradigma produtivo, acaba
solução. Ele passou, outra vez – como nos tempos por responder a um falso problema. Ela parece ter
dos mestres de ofício – a depender do trabalha- sido, portanto, constituída em sinal inverso às te-
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ses do marxismo ortodoxo até então. Nesse senti- trabalho nas quais predominam as atividades de
do, reproduz-se uma oposição teoricamente inefi- concepção. A análise histórica da passagem da
caz e não-dialética entre material e imaterial como manufatura à maquinaria caracterizou, para Marx,
eixo explicativo de todo debate nos anos que se uma redução das formas de intervenção do traba-
seguem. Uma oposição que parece, de um lado, estar lhador em relação ao como produzir. Em tendên-
presente em dicotomias enrijecidas como as de tra- cia, é possível, assim, concordar com Marx que a
balho produtivo e improdutivo, de trabalho inte- divisão do trabalho acentua progressivamente a
lectual e manual, de classe operária e classe traba- subordinação do trabalhador em relação ao meio
lhadora na literatura marxista e, de outro, que figu- de trabalho dominado pelo capital.
ram nos termos do trabalho cognitivo e trabalho Mesmo que as relações de produção já este-
manual, da sociedade do conhecimento e socieda- jam consolidadas na manufatura, a forma típica
de industrial, do capital imaterial e capital material. de produção que permite o desenvolvimento da
É importante dizer que a divisão conceitual extração de mais-valia é a maquinaria.9 Nesses ter-
entre trabalho intelectual e trabalho manual mais mos, é possível ler a história da produção capita-
dissimula que ajuda na compreensão das novas lista como aquela da progressiva submissão do tra-
formas de trabalho. A relação central, na teoria de balhador à necessidade de o capital diminuir o
Marx, sobre o processo de valorização do capital tempo de trabalho necessário. No entanto, realizar
se dá entre valor de uso e valor de troca. Os con- uma divisão absoluta entre trabalho manual e tra-
ceitos de trabalho manual e trabalho intelectual, balho intelectual pressupõe a completa e irrestrita
ou mesmo de trabalho produtivo e trabalho im- subordinação dos subordinados e, com isso, a
produtivo, devem ser examinados sempre com impossibilidade lógica destes recriarem suas con-
referência à relação entre valor de uso e valor de dições de vida individual e coletiva, caracterizan-
troca, trabalho concreto e abstrato. do, assim, também a impossibilidade relacional de
A constituição do valor de troca e, posteri- sua atividade profissional, produtiva e política.
ormente, do dinheiro como equivalente geral e Se a relação social central, nas sociedades
mercadoria específica são os elementos que cons- capitalistas, fundamenta-se na produção de mer-
tituem a base do raciocínio de Marx sobre o pro- cadorias, e essas mercadorias se constituem pela
cesso de exploração do trabalho com o objetivo de relação de exploração baseada na extração de mais
ampliação da mais-valia relativa com base na redu- trabalho, produtivo é todo aquele trabalho ou co-
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na análise que Marx realiza da produção de mer- conjunto de relações sociais. Qualificação, maté-
cadorias e do valor-trabalho, seria um falso pro- ria-prima, ferramentas, máquinas, informações,
blema. A produção de mais-valia, ou mais valor, softwares, etc. etc. são o resultado de relações so-
não é caracterizada pela relação de transformação ciais específicas. Todos eles são constituídos por
física dos objetos trabalhados. A teoria de Marx relações de exploração e dominação sociais deter-
evidencia um conjunto específico de relações so- minadas no terreno da estrutura social, isto é, das
ciais que tem por característica central a produção relações de classe.
de mercadorias sob um objetivo particular. O obje- Como desdobramento, não há lógica em afir-
tivo da produção capitalista, é bom que se frise, mar que o valor-trabalho pode ou será transforma-
não é produzir valor, mas sim produzir um núme- do com a transformação das forças produtivas en-
ro maior de mercadorias em um tempo cada vez volvidas no processo de produção de mercadori-
mais reduzido. as, já que tais forças produtivas, em última instân-
O valor-trabalho deve, então, ser considera- cia, são expressão de relações sociais de produção
do como um desdobramento das atividades e das cristalizadas.11 A materialidade é dada, então, pelo
relações sociais que engendram a produção capi- conjunto de relações sociais estabelecidas e não
talista. A discussão sobre a materialidade e a pela “fisicidade” dos elementos ativos em um pro-
imaterialidade do trabalho pode ser relacionada cesso de trabalho.
muito mais à especificidade da produção capita- Falar em materialismo (histórico), portan-
lista, ou seja, ao objetivo de valorização do capital to, não é simplesmente indicar o caráter tangível
baseado na ampliação das mercadorias produzi- das coisas. É muito mais que isso: trata-se de reco-
das. Isto é, quanto maior for a produção (em um nhecer as relações efetivas que constituem nossa
tempo menor), maior será a mais-valia relativa existência sob um determinado conjunto de rela-
constitutiva do conjunto de mercadorias. As rela- ções sociais. A diferenciação entre material e
ções sociais que dão base e garantem essa emprei- imaterial não se relaciona, nesses termos, ao valor
tada sequer se valem da natureza física das coisas. de troca, ao trabalho abstrato, mas sim ao valor de
Não importa, desse modo, se estamos fa- uso, ao trabalho concreto. Dessa forma, só faz sen-
lando da produção de uma mercadoria conheci- tido diferenciar a materialidade e a imaterialidade
mento ou de uma mercadoria máquina. Pelo con- do trabalho quanto ao conteúdo do trabalho, e não
trário, o importante é analisar como, em que con- quanto à produção do valor de troca, já que ele
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dições, sob que tipo de empreendimento, em que continua determinado pelo tempo de trabalho so-
encontro de relações sociais o conhecimento e a cialmente necessário à produção de mercadorias
máquina foram produzidos. Em termos gerais, distintas. Em resumo, material ou imaterial, a va-
ambos podem ter sido produzidos na forma de lorização do capital tem fundamento na relação de
uma mercadoria capitalista: redução do tempo glo- troca entre mercadorias, isto é, em sua forma e não
bal de produção com aumento de produtividade, no conteúdo do trabalho empregado.
gerando, com isso, uma diferença para cima entre
o capital inicial e o final, informada pelo pagamen- (Recebido para publicação em agosto de 2009)
to de um salário que não expressa o tempo total (Aceito em novembro de 2009)
gasto na produção.
Nesses termos, inferir que a qualificação
profissional do trabalhador, a matéria-prima traba-
lhada e os recursos utilizados representam, infor-
mam e constituem as relações sociais que
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estruturam o processo de trabalho não impõe a Para Bihr (2001, p. 57, tomo I), “ As forças produtivas
constituem em conjunto o conteúdo ao mesmo tempo
designação de uma materialidade que determina o material e social das relações de produção.”.
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Keywords: Labor Theory of Value, Labor, Material MOTS-CLÉS: théorie de la valeur travail, travail matériel
and Immaterial Labor, Marx, Contemporary et immatériel, Marx, sociologie contemporaine.
Sociology.
Henrique Amorim - Pós-Doutor em Sociologia pela UNICAMP e pela EHESS/Paris. Doutor em Ciên-
cias Sociais pela UNICAMP. Professor de Sociologia da UNIFESP-Campus Guarullhos. Autor dos
livros: “Trabalho Imaterial: Marx e o Debate contemporâneo, publicado pela Ed. Annablume
e “Teoria Social e Reducionismo Analítico: para uma crítica ao debate sobre a centralidade do
trabalho”, publicado pela EDUCS, além de diversos capítulos de livros e artigos em periódicos
científicos. Atua predominantemente na área de Teoria Sociológica e Sociologia do Trabalho, traba-
lhando particularmente os temas: classes e estratificação sociais, valor-trabalho e trabalho imaterial.
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