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g.

Edilberto Carlos Pontes Lima é


g doutor em Economia pela Universi-
| g :dade de Brasília (UnB), mestre em
^ Economia pela Universidade Federal
| v ::do Ceará (CAEN-UFCE), especialista
em políticas públicas^pela George
Washington University e bacharel
em Direito pela Universidade de
| Fortaleza (Unifor) e em Economia
. pela Universidade Federal do Ceará
f - (UFCE). Foi professor da Universida-
de de Brasília (UnB) e da Fundação
Getulio Vargas (FGV). Foi Técnico de
J|í. Planejamento e Pesquisas do IPEA
| | : (Instituto de Pesquisa Econômica
^ Aplicada), Consultor de Orçamentos
sl&da Câmara dos Deputados, Consul-
^ tor Legislativo da Câmara dos Depu-
tados, instituições em que ingressou
: : por concurso público. Foi aprovado
em diversos concursos públicos, en-
g, tre eles o de Consultor Legislativo do
g Senado Federal, em primeiro lugar
na Área de Finanças Públicas e Po-
;# lítica Econômica. Escreveu diversos
^ •a rtig o s e capítulos de livros sobre
finanças públicas e é autor do livro
4g‘ Regras fiscais: teoria e evidência. Atual-
mente é Conselheiro do Tribunal de
í f Contas do Ceará.
EDILBERTO CARLOS PONTES LIMA

CURSO DE
FINANÇAS PÚBLICAS
Uma Abordagem Contemporânea

SAO PAULO
EDITORA ATLAS S.A. - 2015
© 2014 by Editora Atlas S.A.

Capa: Zenário A. de Oliveira


Composição: Lino-Jato Editoração Gráfica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

• Lima, Edilberto Carlos Pontes


Curso de finanças públicas : uma abordagem contemporânea /
Edilberto Carlos'Pontes Lima. —São Paulo : Atlas, 2015.

Bibliografia.
ISBN 978-85-224-9690-7
ISBN 978-85-224-9691-4 (PDF)

1. Finanças públicas I. Título.

14-12539
CDU-34:336

índice para catálogo sistemático:

1. Finanças públicas 34:336

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1 • *r

Para Magda, minha principal incentivadora, com quem compar­


tilho as alegrias e desafios da vida.
Para Pedro Henrique, Maria Clara e Maria Luísa, nossos queridos
filhos.
Para Hernandes e Liduina, meus amados pais.
Para Herlano, Edson e Maria Helena, meus irmãos e amigos para ; ;
a vida inteira.
Sem essas pessoas, não teria graça realizar projetos.
1

ESTADO, SOCIEDADE E ECONOMIA

James Madison, um dos artífices do modelo de organização política implementa­


do pela Constituição dos Estados Unidos, apontava que se as pessoas fossem anjos,
o governo não seria necessário. A origem do governo era proteger parte da sociedade
contra a opressão de outra parte, evitando que os mais fortes impusessem sua vontade
aos mais fracos, como no estado de natureza. Ele refletia sobre como se poderia montar
instituições que fossem funcionais e, ao mesmo tempo, evitassem abusos de poder,
argumentando que o governo também não seria formado por anjos, sendo necessários
pesos e contrapesos entre os seus diferentes departamentos.1
Como, em vez de anjos, há apenas pessoas com interesses, falhas e, claro, algumas
virtudes, o governo - ou o Estado, em termos mais gerais - é uma instituição presente
em todas as sociedades, em todos os lugares. O Estado, entre várias funções, estabelece
e faz cumprir as leis (inclusive por meio da violência), promove políticas públicas e
redistribui renda. O tamanho do Estado e as áreas e em que grau ele atua é que variam
ao longo do tempo e conforme o lugar. Há muitas pessoas que defendem uma presença
substancial do Estado, enquanto outras defendèm participação mais modesta. Diversas
teorias têm sido debatidas para defender as diferentes posições.
Uma das imagens mais conhecidas entre os economistas e até em grupos mais am­
plos é a da “mão invisível”, de Adam Srqith. De acordo com ele, se cada cidadão buscas­
se seu autointeresse, sem maiores considerações pelos valores gerais, o interesse coleti­
vo seria atingido. Uma “mão invisível” coordenaria as ações, de forma que os interesses
da sociedade seriam alcançados. Smith ilustra com a famosa afirmação:

“Não é da benevolência do padeiro, do açougueiro ou do cervejeiro que


eu espero que saia o meu jantar, mas sim do empenho deles em promover
seu autointeresse. Nós nos dirigimos não às suas humanidades, mas à

1 Essa é uma das mais citadas passagens dos "Federalist Papers". Está no Federalist ns 51 (“A estrutura do
governo deve conter pesos e contrapesos adequados entre os diferentes departamentos”) : “Jf men were angels,
no governments would be necessary. If angels were to govern men, neither externai nor internai Controls on government
would be necessary. In framing a government which is to be administered by men over men, the great difficulty lies in this:
you mustfirst enable the government to control the government; and in the next place oblige it to control itselj ” (p. 1690-
1691, Ibooks edition).
6 Curso de Finanças Públicas • Pontes Lima

sua autoestima e nunca falamos a eles de nossas necessidades, mas sim


das'vantagens para eles.’’

De fato, o interesse comum é atingido, afinal todos são abastecidos, sem interferên­
cia do governo ou de qualquer entidade de coordenação. Apenas o autointeresse moveu
os produtores: "Ele pretende apenas seu próprio ganho e, nisto, e como em muitos
outros casos, é levado por uma mão invisível a promover um fim que não era parte de
sua intenção.” (tradução e grifos nossos)
Na visão de Adam Smith, portanto, o Estado atuaria apenas para atender o que a
"mão invisível” não conseguisse. Smith buscava combater o mercantilismo, que promo­
via substanciais intervenções na economia, protegendo fortemente certos setores, proi­
bindo a produção de diversos produtos, decidindo que atividades seriam empreendidas.
Por óbvio, o sistema gerava muitas inefíciências e abria amplas margens para corrupção.
A mão invisível de Adam Smith foi demonstrada formalmente a partir de idéias de
equilíbrio geral de Leon Walras, um economista e matemático francês do século XIX,
defensor do livre mercado.2 O equilíbrio eficiente a que os mercados livres chegam é
cercado de uma série de hipóteses - empresas e consumidores maximizam utilidade, os
produtos são homogêneos, não há poder de monopólio, entre outras simplificações. O
equilíbrio é eficiente, porque não se consegue melhorar a posição de ninguém sem pio­
rar a situação de outros (eficiência de Pareto), mas não significa que todos estejam em
boa situação. O equilíbrio pode implicar que alguns ficam com 10 e outros com apenas
1, assim como poderia ser igualmente eficiente um equilíbrio em que ambos os partici­
pantes ficassem com 5 cada um. Questões distributivas, portanto, não fazem parte das
considerações sobre eficiência nos modelos de equilíbrio. O mercado produz bem, mas
não necessariamente distribui bem.
Adam Smith, no entanto, enxergava um papel relevante para o Estado na pro­
dução. Se é o autointeresse que move as pessoas, haverá atividades que precisam
ser desenvolvidas que não despertarão o autointeresse (porque são pouco lucrati­
vas, envolvem elevados riscos, exigem investimentos muito altos ou apresentam prazos
de maturação muito longos). Além disso, o Estado deveria, em certos casos, providen­
ciar os meios para que o autointeresse florescesse. Nesse sentido, reservar-se-iam para
o Estado as funções de defesa nacional, justiça e segurança e infraestrutura econômica.
Note-se que na visão de Smith já estão as sementes das análises de falhas de mercado
e o conseqüente papel do governo que seriam sistematizados quase duzentos anos de­
pois, principalmente por Paul Samuelson (1955, 1958) e muitos outros autores que se
seguiram (Musgrave, 1959, Stiglitz, 1988, só para citar dois).
Embora antigo, o debate sobre o papel do Estado na economia permanece extre­
mamente atual, como exemplifica a reportagem de 23 de janeiro de 2010, na revista
The Economist, em que se alerta para o crescimento do governo no mundo capitalista na

Schumpeter (1954) chegou a escrever que considerava Walras o maior economista de todos os tempos.
Estado, sociedade e economia 7

primeira década do século XXI. É que após o apogeu das idéias liberais nos anos 1980
e 1990, o intervencionismo estatal recrudesceu com força. Nos Estados Unidos, por
exemplo, após o gasto público continuamente cair até situar-se abaixo dos 35% do PIB
em 2000, ele voltou a elevar-se desde então, alcançando 42% do PIB em 2010. No Reino
Unido, o crescimento foi ainda mais dramático, de 37% do PIB em 2000, para 53% do
PIB em 2010! Mesmo na França, onde o movimento liberal não teve tanta força, após
cair 2% do PIB a partir de 1995 até 2000, quando a participação do governo voltou a
subir para situar-se em 55% do PIB em 2010.
A revista alerta ainda que, além da expansão dos gastos públicos, o aumento da
intervenção governamental tem se dado pelo con<iderável crescimento da regulação
governamental: sete mil novas páginas de regulação federal apenas no Governo Bush,
localizadas principalmente em segurança pública e combate ao terrorismo, após os
ataques de 11 de Setembro, e no sistema financeiro, pós-crise de 2008, já no governo
Obama. Fenômenos semelhantes se deram no Reino Unido.
O tema é recorrente nas páginas da The Economist. Reportagem de capa de 21 de
janeiro de 2012 tratou em detalhes da ascensão do que chamou de "capitalismo de Es­
tado” nos países emergentes. A matéria é basicamente uma crítica ao crescimento das
empresas estatais na China, índia, Rússia e Brasil, que ampliaram substancialmente
a participação nas economias desses países nos 15 anos antecedentes. Aponta-se que
80% do valor do mercado de ações da China é de empresas estatais (62% na Rússia) e
que um terço do investimento direto nos países emergentes entre 2003 e 2010 é de em­
presas estatais. A revista caracteriza essas empresas como corporações híbridas, de pro­
priedade estatal, mas comportando-se como multinacionais do setor privado. No Brasil,
refere-se à crescente importância da Petrôbras, à interferência do governo na Vale, que
foi privatizada nos anos 90, e ao incentivo governamental - inclusive com créditos do
BNDES - para que empresas privadas menores se fundam para formar "Campeões na­
cionais,” empresas brasileiras com capacidade de competir globalmente.
Qual seria, então, o papel mais adequado para o Estado? Produtor direto, regulador
(e em que grau de regulação) ou um Estado que interfere minimamente, Inhitandõ-se a
definir as regras do jogo e assegurar que elas sejam cumpridas, mas sem participar dire­
tamente da economia ou participando apenas em casos extremos, como na formação de
infraestrutura econômica? A questão não tem resposta óbvia ou única. Ao longo da his­
tória, formularam-se diferentes concepções, variando imensamente as funções no tempo
e conforme o lugar. O século XVI, por exemplo, representou o auge do mercantilismo,
com o Estado interferindo largamente nas decisões econômicas - o que produzir, como
produzir, para quem produzir - o século XIX e o começo do século XX foram o auge do
liberalismo econômico, apogeu da influência das idéias de Adam Smith e David Ricar­
do. Os fisiocratas, primeira escola de pensamento econômico sistematizado, no século ,
XVlll, criadores do Tabíeau Éconnmique. foram os precuisores das idéias I f ^ ^ s eâitiiiz#
ram pela primeira vez o famoso termo laissez-faire, que consiste em um dos mais signifi-
8 Curso de Finanças Públicas • Pontes Lima

cativos pilares da economia liberal, preconizando para deixar a economia operar por suas
próprias leis, com um mínimo de interferência governamental (Burbridge, 2005).
O fim da Segunda Guerra Mundial, por sua vez, assistiu à ampliação da influência
das idéias intervencionistas, Keynes como o grande teórico. O Estado passou a ser visto
como o atenuador das flutuações dos ciclos econômicos e redistribuidor da renda. O
capitalismo é tratado como um eficiente produtor de riquezas, mas incapaz de distribuir
com justiça a riqueza gerada. Além disso, sem ação governamental, crises periódicas
seriam inerentes ao capitalismo. O New Deal, nos Estados Unidos, é o grande exemplo
de políticas governamentais fortemente intervencionistas.
Até os anos 70, a hegemonia das idéias intervencionistas foi praticamente incontes­
tável em grande parte do mundo não socialista, principalmente na Europa e nos Estados
Unidos, embora as vozes dos economistas liberais sempre estivessem presentes. Nesse
sentido, Milton Friedman e Friedrich Hayec, ambos ganhadores do prêmio Nobel, fo­
ram os dois maiores expoentes dessas idéias no século XX.
A economia mundial cresceu a taxas elevadas e aprofundaram-se os programas de
assistência social e distribuição de renda. Nos anos 70, o modelo começou a dar sinais
de esgotamento. Após o primeiro grande choque do petróleo, em 1973, a economia
dos países desenvolvidos parou de crescer e não reagiu positivamente às políticas mo­
netária e fiscal que lhes foram aplicadas. Ao contrário, tais políticas apenas trouxeram
inflação. “Estagflação” - estagnação econômica e inflação - foi o termo que caracteri­
zou o período.
Como resposta, o liberalismo retornou com força nos anos 80. Privatização, desre-
gulamentação e diminuição dos programas sociais foram políticas seguidas em vários
países. O diagnóstico era a necessidade de ajuste fiscal e de ampliação de incentivos à
eficiência. O ajuste fiscal seria necessário pela premência de controlar o déficit público,
tido como a causa mais importante para a inflação, e os incentivos à eficiência adviriam
da maior exposição da indústria nacional a um ambiente econômico menos protegido,
mais exposto à competição nacional e internacional.
Além disso, muitos passaram a defender que as alíquotas de imposto estavam mui­
to elevadas, o que estimulava a sonegação e diminuía os incentivos para o trabalho
duro e assunção de riscos. Nessa época, ganhou força a chamada “Curva de Laffer”,
proposta pelo economista americano Arthur Laffer, que preconizava que, por aquelas
razões, a partir de determinado patamar de alíquotas, a arrecadação começava a cair. A
ideia teve influência sobre as políticas liberalizantes de menor carga tributária e menor
participação do governo que foram implementadas pelo Presidente Ronald Reagan, nos
Éstados Unidos, nos anos 1980, e influenciaram diversos países.
Como dito anteriormente, esse movimento variou enormemente entre os países.
A liberalização, por exemplo, não atingiu os países do Leste asiático, que seguiram ao
longo dos anos 80 e 90 com fortes políticas intervencionistas, modelo para os críticos da
liberalização no resto do mundo, uma vez que eles cresceram a taxas muito superiores
Estado, sociedade e economia 9

às do restante do mundo (Stiglitz, 2003 e Chang, 2008). Até que, na segunda metade
dos anos 90, o sudeste asiático também sofreu aguda crise, com forte saída de capital e
queda de 15 a 20% do PIB em alguns países nos anos seguintes. Seus modelos passaram
a ser fortemente criticados, por gerarem ineficiência e corrupção.
Chang (2008) interpreta as políticas liberalizantes de forma muito crítica. Segundo
ele, não foram essas as políticas seguidas pelos países desenvolvidos até atingirem tal
condição. Ao contrário, eles protegeram fortemente sua indústria, por meio de tarifas à
importação e subsídio aos produtores. A proteção, associada a maciços investimentos
em educação, entre outras políticas, é que levaria ao crescimento. No seu dizer, os paí­
ses ricos “chutam” a escada do desenvolvimento que utilizaram, usando uma expressão
de List, economista alemão do século XIX.
Uma evidência sobre a expansão do Estado no século XX é o crescimento da carga
tributária, saindo de pouco mais de 10% do PIB no seu início, para alcançar atualmente
mais de 50% em alguns países da Europa. Mesmo com o forte movimento liberal nos
anos 1980 e 1990, a carga tributária continuou crescendo, tendo no máximo estabiliza­
do em alguns países. É fato que houve profundas alterações no perfil dos impostos e dos
gastos públicos ao longo do tempo. Tanzi (2008) aponta que a tributação passou por
duas “inovações tecnológicas”: a generalização do Imposto de Renda progressivo e a in­
trodução do Imposto sobre Valor Adicionado - IVA, com a notável exceção dos Estados
Unidos, que não adotaram um IVA. Além disso, impostos sobre a folha de salários, com
o intuito de financiar a seguridade social, tornaram-se muito relevantes.
Em contrapartida, do lado dos gastos públicos, houve substancial incremento dos
dispêndios voltados para os programas de assistência social, de saúde e, principalmente,
de previdência pública. +■
A crise financeira mundial que eclodiu com força em 2008 (a pior desde a crise dç,
1930, segundo o Financial Times) tornou evidente que ò Estado tem pap£l fundamental
na estabilização da economia. Sem a ação dos governos, a economia teria entrado em
colapso. Grandes bancos privados foram estatizados nos Estados Unidos, a regulação
bancária tornou-se mais restritiva, amplos pacotes de apoio foram providenciados aos
países em situação mais crítica como Portugal, Espanha e Grécia, reafirmando a impor­
tância não apenas de instituições nacionais, mas de organismos supranacionais para
assegurar a estabilidade.
A crise revelou - mais uma vez - as fragilidades do liberalismo econômico. O laissez-
-faire é um formidável motor da máquina produtiva, muito mais do que qualquer outro
sistema produtivo empreendido até aqui, mas, ao mesmo tempo, gera instabilidades
constantes, presentes em vários momentos da história, mas muito mais intensas com a
integração que as modernas comunicações, principalmente a Internet, trouxeram para
os mercados financeiros. Tornou-se evidente que apenas mecanismos clássicos de in­
tervenção estatal não são suficientes. Um diagnóstico comum é de que parece ser ne­
cessário um Estado muito mais presente, muito mais ágil e muito mais preparado, sob
10 Curso de Finanças Públicas • Pontes Lima

pena de que o capitalismo se deteriore por completo ou coloque o mundo em crises


profundamente desagregadoras, de conseqüências imprevisíveis.
A necessidade de regulação é ainda mais premente no mercado financeiro, onde sem­
pre prevaleceu a máxima expressa pelo personagem Gordon Gekko, no famoso filme Wall
Street, “greed is good”. Ora, ganância implica pouquíssimas preocupações com o coletivo
- radicalização da busca do autointeresse de Adam Smith - e, deixado sem regulação,
pululam o risco moral, consubstanciado nos financiamentos sem as devidas garantias, os
créditos de recuperação duvidosa, a especulação desmedida em busca de maiores taxas
de retorno. A história das crises financeiras é geralmente antecedida por períodos de eu­
foria em que tais características se manifestam de forma exacerbada: bolhas, maiores ou
menores, antecedem as crises. Foi assim na Grande Depressão e também na crise que se
iniciou em 2008, com a difusão em larga escala dos chamados empréstimos hipotecários
subprime, que foram securitizados e utilizados como garantia em outras operações que
geravam altíssimo rendimento (Greenspan, 2008). Pouco antes da crise, empréstimos
imobiliários não exigiam comprovação de renda, avaliação independente dos imóveis,
parte do pagamento como entrada, entre outras facilidades que, com o desencadeamento
da crise, revelaram a fragilidade e os elevados riscos envolvidos.
Há, portanto, um evidente papel para o governo na regulação desse mercado. A cri­
se de 2008 revelou como os controles não funcionaram adequadamente, permitindo a
proliferação de riscos muito elevados. O problema da intervenção do governo aposteriori
- para salvar instituições financeiras em crise (too big tofail) e evitar crises sistêmicas - é
a ampliação do risco moral. Ora, se a instituição sabe que será salva, se os investidores
sabem que seus ativos serão, de alguma forma, salvaguardados pelo governo, a pru­
dência na assunção de riscos diminui consideravelmente e a busca por retornos mais
elevados passa a ser a tônica. O risco torna-se subprecifícado, portanto.
Daí o enorme caminho para reflexões sobre a extensão e a forma de intervenção
do governo. De um lado, a regulação preventiva deve evitar riscos exagerados, mas ao
mesmo tempo não pode sufocar as inovações, a criatividade do sistema financeiro, sob
pena de esmaecer uma das principais virtudes do capitalismo, que o faz um sistema
gerador de riquezas sem precedentes. Por seu turno, a regulação aposteriori tem que se
preocupar com a disseminação das crises e os riscos de transbordamento para o sistema,
sem, no entanto, funcionar como um seguro para os que se arriscaram além da conta, ou
seja, não deve prevalecer a prática de “privatizar os lucros e socializar os prejuízos,” pois
além de não parecer justo para a sociedade, só faz estimular a ganância desmesurada e
o moral hazard.

As Funções do Governo na Economia


O clássico livro Public finance, de Richard Musgrave, publicado em 1959, apresenta
uma bem elaborada síntese de séculos de discussões sobre as funções do governo na
economia - alocativa, distributiva e estabilizadora. Embora o livro tenha sido escrito no
Estado, sociedade e economia 11

auge do keynesianismo pós-guerra, a taxonomia que ele propõe, com os temperamentos


devidos, permanece em pleno vigor.
Aliás, como dito anteriormente, a variabilidade das funções governamentais é sig­
nificativa no tempo e no lugar. Dependem do país e do momento histórico o grau e a
profundidade da intervenção governamental. Determinadas funções são defendidas em
certos períodos históricos e em outros, passam a ser criticadas. No Brasil, por exemplo,
durante muito tempo se defendeu o provimento direto pelo governo de bens e serviços
públicos por meio de empresas estatais. Nos anos 90, influenciado pelo movimento
liberal em boa parte do mundo ocidental, e em razão de uma série de dificuldades inter­
nas, a privatização das estatais passou a ser tônica, com resistências em alguns setores,
como seria de se esperar.
No final da primeira década do século XXJ, já se percebem outra vez movimentos
em defesa de empresas estatais, como a reportagem da revista The Economist, acima ci­
tada, que reflete e critica. O debate nos EUA em prol da nacionalização de bancos em
dificuldade que receberam ajuda governamental é um dos caminhos apontados. Outra
manifestação em favor da maior intervenção do Estado na economia é a defesa do pro­
tecionismo, com pressões para que o governo restrinja as importações por meio do
aumento de tarifas e imposição de quotas. Ou seja, conforme o momento econômico,
com suas dificuldades e desafios, o papel do Estado vai se moldando. Daí porque não
existe uma resposta única sobre esse papel que se ajuste a todos os países, em todas as
épocas. Abaixo, apresentamos algumas questões que exemplificam a complexidade do J ?
problema.

O governo controla a taxa de crescimento e a taxa de desemprego da e c o n o m i a |


O governo deve forçar os bancos á reduzirem as taxas dé juros para emprésti­
mos ao setor privado?
* : mm
O governo deve regular monopólios e oligopólios?
O governo deve proteger o meio* ambiente?
O governo deve controlar o tráfego aéreo e marítimo?
O governo deve tributar mais pesadamente os mais ricos?
O governo deve dar bolsa-escola?
O governo deve ajudar os pobres? De que forma?
O governo deve pagar advogados de defesa para os pobres?
Como lidar com indústrias que poluem os rios e o ar?
O governo deve proteger certas indústrias nacionais da competição de indús5|
trias estrangeiras?
O governo deve investir em pesquisa e desenvolvimento?
O governo deve estimular as exportações? •
12 Curso de Finanças Públicas v Pontes Lima

“ O governo deve impor tarifas elevadas para produtos estrangeiros a tim de


proteger os produtos produzidos internamente?
• O governo deve determinar o tipo de embalagem que os supermercados de­
vem usar?
• O governo deve proibir a venda de soda cáustica em supermercados? E de
medicamentos?
• O governo deve proibir bancas de revista de vender picolé? E medicamentos?
• O governo deve proibir bares e restaurantes de produzir o seu próprio gelo?
• O governo deve determinar que os supermercados tenham embaladores?
• O governo deve obrigar as empresas de ônibus a empregarem cobradores?
• O governo deve proibir os postos de gasolina de utilizarem bombas automá­
ticas de abastecimento?
• O governo deve proibir o trabalho de crianças?
• O governo deve limitai* preços de bens e serviços em caso de calamidades
públicas?
• O governo deve fixar o salário-mínimo? E o piso salarial de determinadas
categorias?
• O governo deve limitar os direitos de propriedade?
• O governo deve proteger os direitos de propriedade?
• O governo deve proibir o consumo de certos bens e serviços, como drogas e
prostituição? ,
i
• Por que o governo falha?
• As falhas de governo são maiores que as falhas de mercado?
• Os funcionários públicos buscam o interesse público?.
• Como as escolhas públicas são feitas em uma sociedade heterogênea?

A resposta a cada uma dessas questões não é óbvia e certamente encontrará inúme­
ras reflexões.; Ao longo deste livro, vamos apresentar instrumentos que nos permitam
analisá-las de forma mais rigorosa, mas sempre mantendo a perspectiva de que não há
resposta única ou resposta correta, mas perspectivas analíticas distintas e ponderações
maiores ou menores sobre determinadas variáveis.
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