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LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE (LEI 4.

898/1965)

1 – Introdução

A Lei de Abuso de Autoridade não é exclusivamente penal. O ato de abuso enseja tríplice
responsabilidade: administrativa, civil e penal (art. 1º):

Art. 1º O direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa civil e

penal, contra as autoridades que, no exercício de suas funções, cometerem abusos, são

regulados pela presente lei.

Neste curso, serão analisados apenas os aspectos penais do abuso de autoridade.

2 – Objetividade jurídica

Os crimes de abuso de autoridade possuem dupla objetividade jurídica:

i) imediata ou principal: proteção dos direitos e garantias individuais e coletivos das pessoas
físicas e jurídicas;

ii) mediata ou secundária: a normalidade, a regularidade e a lisura dos serviços públicos. Isso
porque o abuso de autoridade é sempre uma irregular prestação de serviço público.

3 – Elemento subjetivo

O elemento subjetivo do abuso de autoridade é somente o dolo. Não existe abuso de


autoridade culposo. Se a autoridade se excede ou se omite por culpa, não há crime.

Além do dolo de praticar a conduta típica, é necessária, ainda, a finalidade específica de


abusar. Ou seja, a intenção de agir abusivamente. Assim, se a autoridade, na justa intenção
de cumprir seu dever e proteger o interesse público, acaba se excedendo, haverá ilegalidade
no ato, mas não o crime de abuso de autoridade, por ausência da intenção específica de
abusar.

4 – Formas de conduta

Os crimes de abuso de autoridade podem ser praticados por ação (comissivos) ou por
omissão (omissivos).

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O abuso de autoridade por omissão é possível, portanto. Aliás, os crimes do art. 4º, letras
“c”, “d”, “g”, e “i”, somente podem ser praticados por omissão (crimes omissivos puros ou
próprios).

5 – Consumação e tentativa

Os crimes de abuso de autoridade estão previstos nos arts. 3º e 4º da Lei.

5.1 – Crimes do art. 3º

Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:

Os crimes do art. 3º não admitem tentativa, pois o simples atentado já configura crime
consumado (unanimidade na doutrina).

A consumação se dá com a simples prática da conduta, mesmo que não ocorra o efetivo
resultado naturalístico (crime formal ou de consumação antecipada).

5.3 – Crimes do art. 4º

Os crimes previstos nas alíneas “c”, “d”, “g” e “i” do art. 4º não admitem tentativa, por
serem omissivos puros ou próprios. As demais alíneas admitem tentativa.

O momento consumativo será analisado caso a caso, quando do estudo do dispositivo legal.

6 – Ação penal nos crimes de abuso de autoridade (art. 12)

A espécie de ação penal no crime de abuso de autoridade é a pública incondicionada. Ou


seja, Delegado e MP agem de ofício. Não é necessária a representação da vítima.

Art. 12. A ação penal será iniciada, independentemente de inquérito policial ou

justificação por denúncia do Ministério Público, instruída com a representação da vítima

do abuso.

A representação a que se refere o art. 12 é apenas o direito de petição contra abuso de


poder, garantido no art. 5º, XXXIV, “a”, da CR:

Art. 5º (...) XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou

abuso de poder; (...)

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Trata-se do assunto mais recorrente em concurso em tema de abuso de autoridade, por
fazer a lei parecer que o crime seria de ação pública condicionada à representação, mas ser,
na verdade, de ação penal pública incondicionada.

7 – Competência para julgar crime de abuso de autoridade

7.1 – Competência do JECRIM

A pena máxima do crime de abuso de autoridade é de seis meses de prisão. É, portanto,


infração de menor potencial ofensivo. A regra é a seguinte: a competência é a do JECRIM
estadual ou federal (neste caso, se o crime atingir interesse da União).

7.2 – Questões específicas acerca da competência

Neste tópico, serão analisadas questões específicas acerca da competência para o


julgamento dos crimes de abuso de autoridade.

7.2.1 – abuso de autoridade praticado contra servidor federal

Se o abuso for praticado contra servidor federal, no exercício das funções, a competência é
do JECRIM federal (Súmula 147 do STJ):

Súmula 147 - Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes praticados contra

funcionário público federal, quando relacionados com o exercício da função.

7.2.2 – abuso de autoridade praticado por servidor público federal

Se o abuso for praticado por servidor federal (ou seja, o autor do abuso é o servidor federal),
há duas correntes:

1ª corrente: a competência é do JECRIM federal, na medida em que o abuso praticado


por servidor federal atinge a regularidade (normalidade) e a lisura do serviço público
federal. Esta é a corrente que prevalece na doutrina e no STJ.

2ª corrente: a competência é do JECRIM estadual, se o crime não atingiu interesse da


União. Ou seja, o fato de o autor do abuso ser servidor federal, por si só, não justifica
a competência do JECRIM federal (Nucci).

7.2.3 – abuso praticado por servidor federal fora da função, mas em razão dela

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O STJ decidiu que, no caso de abuso de autoridade praticado por servidor federal fora das
funções, mas em razão delas, a competência é do JECRIM estadual (HC 102.049/ES, julgado
em 14 de junho de 2010).

O caso foi o seguinte: um Delegado Federal foi a um pronto-socorro, fora das suas funções,
se identificou como Delegado e exigiu que a médica lhe entregasse prontuários médicos,
tendo ela se recusado. O Delegado a agrediu fisicamente. O Delegado Federal estava fora da
função e queria os prontuários para fins particulares. O STJ entendeu que, se ele estava fora
da função e agiu por motivos particulares, não há nenhum interesse da União no caso, razão
pela qual a competência é do JECRIM estadual.

7.2.4 – abuso praticado por militar

O abuso praticado por militar é da competência do JECRIM, estadual ou federal. Não é


competência da Justiça Militar, mesmo que o abuso seja praticado contra outro militar. Isso
porque não se trata de crime militar (Súmula 172 do STJ):

Súmula 175 - Compete à Justiça Federal processar e julgar militar por crime de abuso de

autoridade, ainda que praticado em serviço.

7.2.5 – abuso de autoridade conexo com crime militar

Praticado abuso de autoridade conexo com crime militar, haverá separação de processos
(STF HC 92.912/RS e STJ HC 81.752/RS). Exemplo: lesão corporal conexa com abuso de
autoridade. Lesão é crime militar, abuso não. Haverá separação de processos.

8 – Concurso de crimes

O STF e o STJ já pacificaram que o crime de abuso de autoridade não absorve os crimes
conexos (ex.: lesão corporal, homicídio tentado ou consumado, crime contra a honra etc.) e
também não é absorvido por eles (STJ Ag RG no REsp 781.957).

A tortura absorve o crime de abuso de autoridade? Na doutrina, prevalece que sim, pois o
abuso é meio de execução da tortura. O STJ admite o concurso entre abuso e tortura (STJ
RHC 22.727/GO).

9 – Sujeitos do crime de abuso de autoridade

9.1 – Sujeito ativo

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Sujeito ativo do crime de abuso de autoridade é a autoridade. Abuso de autoridade é crime
próprio, por exigir condição especial do sujeito ativo (ser autoridade). O conceito de
autoridade está no art. 5º da Lei:

Art. 5º Considera-se autoridade, para os efeitos desta lei, quem exerce cargo, emprego ou

função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem

remuneração.

Perceba que o conceito de autoridade, para fins da Lei de Abuso de Autoridade, é


amplíssimo. Inclui qualquer pessoa que exerça uma função pública, pertença ou não à
Administração Pública, e ainda que exerça tal função de forma gratuita e passageira (ex.
jurado, mesário etc.)

Funcionário público exonerado, demitido ou aposentado não pode cometer abuso de


autoridade sozinho, porque não ostenta mais a qualidade de autoridade. Todavia, essas
pessoas podem ser responsabilizadas por ato de abuso de autoridade cometido enquanto
em atividade.

As pessoas que exercem múnus público não são autoridades, para fins penais. Ex.: curador e
tutor dativos, depositário judicial, administrador de falência, advogado. Múnus público é um
encargo imposto pela lei ou pelo Juiz para a proteção de um interesse particular ou social. As
pessoas que exercem múnus público não detém parcela do poder estatal. Por tal razão, não
são consideradas funcionários públicos para fins penais.

O particular que não exerce nenhuma função pública pode cometer abuso de autoridade?
Sozinho jamais, pois não tem a qualidade de autoridade. Mas pode cometer o crime de
abuso de autoridade juntamente com uma autoridade, desde que saiba que o comparsa é
autoridade.

Se o particular comete crime juntamente com a autoridade, sabendo que ela é autoridade, a
condição pessoal da autoridade, sendo elementar do crime, transmite-se àquele, coautor ou
partícipe (art. 30 do CP):

Art. 30 - Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo

quando elementares do crime. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Ex.: o policial está batendo em torcedor no estádio. Um sujeito da torcida adversária ajuda o
policial a bater nele. Este sujeito responderá por abuso de autoridade.

9.2 – Sujeito passivo

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Uma vez que, como visto, o crime de abuso de autoridade tem sempre dupla objetividade
jurídica, o sujeito passivo do crime de abuso de autoridade terá sempre dupla subjetividade
passiva: terá um sujeito passivo imediato ou direto (a pessoa física que sofre o abuso) e um
mediato ou indireto (a administração pública representada pelo autor do abuso, cujo serviço
foi prejudicado).

O abuso de autoridade pode ter como vítima uma autoridade. O sujeito ativo e o passivo,
nesse caso, serão autoridades. Ex.: o Delegado comete abuso contra o agente policial ou o
Oficial do Exercito comete abuso contra o Praça.

Pessoa jurídica pode também ser sujeito passivo de abuso de autoridade. Tanto faz se de
direito privado ou público.

Criança ou adolescente pode ser vítima de abuso de autoridade? Sim, desde que o fato não
configure crime do ECA, que é lei especial em relação à Lei de Abuso de Autoridade. Assim,
sempre que haja criança ou adolescente, deve-se verificar no ECA se não há crime correlato.

10 – Prescrição

A Lei de Abuso de Autoridade não tem regras sobre a prescrição. Aplica-se, portanto, o CP. A
pena máxima prevista para o abuso de autoridade é de seis meses. O prazo prescricional
será, portanto, de 3 anos, tanto para a prescrição da pretensão punitiva quanto para a da
pretensão executória.

11 – Dos crimes de abuso de autoridade previstos no art. 3º

A objetividade jurídica principal da Lei de Abuso de Autoridade são os direitos e garantias


individuais e coletivos. Com efeito, todas as hipóteses previstas nos alíneas do art. 3º são
direitos e garantias individuais e coletivos previstos no art. 5º da CR, com exceção da letra
“g”, que é um direito político previsto nos arts. 14 e seguintes da CR.

O art. 3º da Lei de Abuso de Autoridade é inconstitucional? Há doutrina (ex. Capez) que


sustenta que sim, por violação ao princípio da taxatividade, previsto no art. 1º do CP e no art.
5º, XXXIX, da CR.

O princípio da taxatividade exige que os tipos penais incriminadores sejam claros, precisos e
completos, para que as pessoas possam saber exatamente qual é o comportamento proibido
pela norma (questão de segurança jurídica). O princípio da taxatividade proíbe tipos penais
vagos, genéricos, imprecisos. Ele está na expressão: “defina” dos dispositivos da CR e do CP
citados:

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Art. 5º (...) XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia

cominação legal;

Definir significa expor com precisão, dar a conhecer com exatidão.

Capez sustenta a inconstitucionalidade do dispositivo por ter conteúdo vago, genérico,


impreciso.

Outra corrente sustenta que o art. 3º é constitucional, pois não há como o legislador prever
todas as formas possíveis de abuso de autoridade. Por isso, é justificável a técnica da norma
aberta, tal como ocorre nos crimes culposos. Prevalece esta segunda corrente.

11.1 – Atentado à liberdade de locomoção (letra “a”)

Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:

a) à liberdade de locomoção; (...)

A liberdade de locomoção inclui o direito de permanecer em locais públicos. É o direito de ir,


vir e ficar. A jurisprudência já condenou, por abuso de autoridade, Policiais Militares que
expulsaram pessoas de uma praça pública, sem nenhum motivo (o famoso “circulando”).

Restrições legítimas à liberdade de locomoção configuram exercício de poder de polícia. Não


há crime de abuso de autoridade, nesses casos. Exemplos: bloqueio policial, retirada de
pessoas de certos locais, por estarem causando tumulto ou colocando em perigo a
integridade física própria ou alheia, conduzir a pessoa até a Delegacia para o esclarecimento
de uma situação de dúvida etc.

Detenção momentânea é a breve retenção da pessoa ou a condução dela a alguma


repartição, pelo tempo necessário para o esclarecimento de uma justificável situação de
dúvida. Ex.: conduzir à Delegacia uma pessoa que consta como procurada, mas que não está
mais sendo procurada. Muita gente consta como procurada e não está mais, por falta de
atualização do sistema. Já a prisão para averiguação é a restrição da liberdade sem ordem
judicial, para efetiva investigação de suposta prática de crime.

A detenção momentânea é ato legítimo de poder de polícia. A prisão para averiguação é


sempre crime de abuso de autoridade. Deve-se atentar para essa distinção doutrinária, feita
muito bem por Mirabete.

11.2 – Atentado à inviolabilidade do domicílio (letra “b”)

Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:

b) à inviolabilidade do domicílio; (...)

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Domicílio é qualquer local não aberto ao público onde alguém exerça atividade, profissão ou
moradia, ainda que momentânea. Ex.: quarto de hotel ocupado.

O STF já pacificou que escritórios profissionais e de contabilidade são domicílios para fins
constitucionais e, por consequência, para fins penais. Se fiscais ingressam em escritórios de
contabilidade (do balcão para dentro) ou em escritórios profissionais de empresários para a
apreensão de documentos comprobatórios de crimes contra a ordem tributária sem ordem
judicial, a prova é ilícita, por violação ao domicílio.

11.3 – Atentado ao sigilo da correspondência (letra “c”)

Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: (...)

c) ao sigilo da correspondência; (...)

11.3.1 – conceito de correspondência

O tipo penal previsto no art. 3º, “c”, protege as correspondências escritas e eletrônicas.
Quanto às escritas, o tipo penal somente protege as que estão fechadas. As abertas perdem
o caráter sigiloso. Ex.: o funcionário recebe uma carta, lê e deixa sobre a mesa. O chefe
passa, pega a carta e a lê. Isso não é crime de abuso de autoridade nem de violação de
correspondência. O mesmo ocorre com a correspondência eletrônica impressa deixada
sobre a mesa.

11.3.2 – correspondência de advogados

O art. 7º, II, do EAOAB (Lei 8.906/1994) autorizava a violação de correspondência do


advogado (escrita ou eletrônica) em caso de apreensão determinada judicialmente e
acompanhada de representante da OAB:

Art. 7º São direitos do advogado: (...)

II - ter respeitada, em nome da liberdade de defesa e do sigilo profissional, a

inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, de seus arquivos e dados, de sua

correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônicas ou afins, salvo caso de

busca ou apreensão determinada por magistrado e acompanhada de representante da

OAB; [Redação antiga]

O dispositivo foi alterado pela Lei 11.767/2008 e agora prevê a inviolabilidade de quaisquer
correspondências do advogado relacionadas ao exercício da advocacia, sem qualquer
ressalva.

Redação nova:

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Art. 7º São direitos do advogado: (...)

II – a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus

instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e

telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia; (Redação dada pela Lei nº

11.767, de 2008)

A redação anterior permitia a apreensão de correspondência de advogados com ordem


judicial e acompanhada de representante da Ordem. Hoje, as correspondências do
advogado, relacionadas ao exercício da advocacia, não podem ser violadas nem por ordem
judicial.

Se o advogado é o próprio indiciado ou acusado, a questão é diversa, pois não há sigilo


profissional a ser observado. O sujeito está sendo investigado na condição de suspeito do
crime, e não como advogado.

11.3.3 – interceptação telefônica, de informática ou telemática

A interceptação de comunicação telefônica, de informática ou telemática não configura


crime de abuso de autoridade, mas crime do art. 10 da Lei 9.296/1996 (Lei de Interceptação
Telefônica):

Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de

informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com

objetivos não autorizados em lei.

Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.

11.4 – Atentado às liberdades e direito de reunião (letras “d”, “e”, “f” e “h”)

Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: (...)

d) à liberdade de consciência e de crença;

e) ao livre exercício do culto religioso;

f) à liberdade de associação;

h) ao direito de reunião; (...)

O art. 3º, letras “d”, “e”, “f” e “h”, protege as liberdades de consciência e de crença, o direito
ao livre exercício do culto religioso, a liberdade de associação e o direito de reunião.

Esses direitos, entretanto, não são absolutos. Isso significa dizer que eles podem ser
limitados, regulamentados ou até interrompidos por atos legítimos de poder de polícia, sem
que isso configure abuso de autoridade. Exemplos: a polícia pode interromper culto religioso
realizado com excesso de som (inclusive, excesso de som é contravenção penal de

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perturbação do sossego alheio); é possível a dissolução de associação com fins ilícitos ou
paramilitares (como a associação para o tráfico); é possível a dissolução de reunião realizada
de forma violenta (como uma greve, um protesto de servidores em que eles têm pedaços de
pau na mão, quebrando carros etc.), inclusive responsabilizando os participantes dela.

11.5 – Atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto


(letra “g”)

Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: (...)

g) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto; (...)

Aplica-se a letra “g” do art. 3º, que coíbe o atentado aos direitos e garantias legais
assegurados ao exercício do voto, se a conduta da autoridade não configurar crime eleitoral.

Exemplos:

i) o art. 292 do Código Eleitoral diz que pratica crime o juiz que nega ou retarda, sem
fundamento legal, a inscrição de alguém como eleitor:

Art. 292. Negar ou retardar a autoridade judiciária, sem fundamento legal, a inscrição

requerida:

Pena - Pagamento de 30 a 60 dias-multa.

ii) o art. 298 do Código Eleitoral prevê como crime prender ou deter ilegalmente eleitor,
impedindo-o de votar:

Art. 298. Prender ou deter eleitor, membro de mesa receptora, fiscal, delegado de partido

ou candidato, com violação do disposto no Art. 236:

Pena - Reclusão até quatro anos.

Assim, o art. 3º, “g”, é crime subsidiário, aplicando-se se ao fato não configurar crime
eleitoral.

11.6 – Atentado à incolumidade física do indivíduo (letra “i”)

Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: (...)

i) à incolumidade física do indivíduo; (...)

A alínea “i” do art. 3º pune o atentado à incolumidade física do indivíduo praticado pela
autoridade, que pode ir desde as vias de fato até o homicídio. Ela protege também, de
acordo com a maioria, a integridade psíquica do indivíduo.

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Se o atentado à incolumidade resultar em lesões corporais ou homicídio, tentado ou
consumado, haverá concurso de crimes. O abuso de autoridade não fica absorvido ou
absorve aqueles crimes. Para a maioria, trata-se de concurso material. Para a minoria (ex.:
Capez), trata-se de concurso formal impróprio.

Segundo a doutrina, se o ato de abuso configurar tortura, ele resta absorvido. O STJ, no
entanto, admite o concurso de crimes.

Se o abuso de autoridade consistir em vias de fato (ex.: o policial dá um empurrão na vítima),


predomina o entendimento de que as vias de fato ficam absorvidas pelo abuso.

O art. 322 do CP prevê o crime de violência arbitrária:

Art. 322 - Praticar violência, no exercício de função ou a pretexto de exercê-la:

Pena - detenção, de seis meses a três anos, além da pena correspondente à violência.

Esse crime foi tacitamente revogado pela Lei de Abuso de Autoridade? De acordo com o STF,
o crime de violência arbitrária previsto no CP não foi tacitamente revogado pelo art. 3º, “i”,
da Lei de abuso de autoridade (STF RHC 95.617/MG, j. em 2009).

11.7 – Atentado aos direitos e garantias assegurados ao exercício profissional (letra


“j”)

Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: (...)

j) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional. (Incluído pela Lei nº

6.657,de 05/06/79)

O crime previsto na alínea “j” do art. 3º é norma penal em branco, que precisa ser
complementada pela norma que prevê a garantia ao direito profissional.

Exemplos:

i) Delegado impediu o Promotor de Justiça de visitar os presos na cadeia. O TJSP entendeu


que o Delegado praticou abuso de autoridade, pois violou prerrogativa profissional do
Promotor de fiscal da lei e da execução penal (o MP tem o dever de visitar os presos);

ii) Delegado que impede o advogado de ter acesso aos autos do inquérito policial viola
prerrogativa profissional do advogado, prevista no art. 7º, XIV, do EAOAB, e na Súmula
Vinculante nº 14:

Art. 7º São direitos do advogado: (...)

XIV - examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de

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flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade,

podendo copiar peças e tomar apontamentos;

Súmula Vinculante 14 - É DIREITO DO DEFENSOR, NO INTERESSE DO REPRESENTADO, TER

ACESSO AMPLO AOS ELEMENTOS DE PROVA QUE, JÁ DOCUMENTADOS EM

PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO REALIZADO POR ÓRGÃO COM COMPETÊNCIA DE

POLÍCIA JUDICIÁRIA, DIGAM RESPEITO AO EXERCÍCIO DO DIREITO DE DEFESA.

12 – Dos crimes de abuso de autoridade previstos no art. 4º

12.1 – Crime do art. 4º, “a”

Art. 4º Constitui também abuso de autoridade:

a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades

legais ou com abuso de poder;

Na conduta de “ordenar”, o crime previsto na letra “a” é formal, consumando-se com a


simples ordem abusiva, ainda que ela não seja cumprida. A tentativa é possível, na forma
escrita.

Na conduta de “executar”, o crime é material, consumando-se com a efetiva execução da


restrição ilegal. A tentativa também é perfeitamente possível.

Exemplo de medida privativa de liberdade sem as formalidades legais: recolher à prisão


pessoa em situação de flagrante sem lavrar o auto de prisão (a pessoa está em situação de
flagrante, mas ele não foi formalizado).

Exemplo de medida privativa de liberdade com abuso de poder: algemar


desnecessariamente o sujeito (Súmula Vinculante nº 11):

Súmula Vinculante 11 - SÓ É LÍCITO O USO DE ALGEMAS EM CASOS DE RESISTÊNCIA E DE

FUNDADO RECEIO DE FUGA OU DE PERIGO À INTEGRIDADE FÍSICA PRÓPRIA OU ALHEIA,

POR PARTE DO PRESO OU DE TERCEIROS, JUSTIFICADA A EXCEPCIONALIDADE POR

ESCRITO, SOB PENA DE RESPONSABILIDADE DISCIPLINAR, CIVIL E PENAL DO AGENTE OU

DA AUTORIDADE E DE NULIDADE DA PRISÃO OU DO ATO PROCESSUAL A QUE SE REFERE,

SEM PREJUÍZO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO.

A responsabilidade penal a que se refere é o crime de abuso de autoridade. Isso restou


consignado na sessão em que aprovada a Súmula.

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Vale observar que privar ilegalmente criança ou adolescente de sua liberdade configura
crime do art. 230 do ECA (Lei 8.069/1990):

Art. 230. Privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão

sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade

judiciária competente:

Pena - detenção de seis meses a dois anos.

Parágrafo único. Incide na mesma pena aquele que procede à apreensão sem observância

das formalidades legais.

A criança ou o adolescente somente pode ter sua liberdade restringida em caso de flagrante
de ato infracional (hipótese válida apenas para o adolescente) ou por ordem judicial. A regra
é a mesma que vale para os adultos e tem fundamento na CR.

Privar a criança ou adolescente de sua liberdade ilegalmente significa executar medida


privativa da liberdade com abuso de poder. Não se trata, todavia, de abuso de autoridade,
mas do crime do art. 230 do ECA.

12.2 – Crime do art. 4º, “b”

Art. 4º Constitui também abuso de autoridade: (...)

b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não

autorizado em lei;

Só haverá o crime de abuso de autoridade previsto no art. 4º, “b” se o vexame ou


constrangimento for ilegal. Em se tratando de vexame ou constrangimento legal, não há
crime de abuso de autoridade. Exemplos de vexame ou constrangimento legais: algemar,
pública e necessariamente, em razão da resistência à prisão, prisão legal, submeter a pessoa
a identificação criminal, nos casos previstos em lei etc.

O sujeito passivo deste crime não é somente o preso ou a pessoa submetida a medida de
segurança. Pode ser qualquer pessoa. Ex.: um paciente psiquiátrico exposto a
constrangimento por enfermeiro no hospital público.

Outro exemplo de abuso de autoridade que se enquadra no art. 4º, “b”: expor a imagem de
pessoa presa na mídia, contra a vontade dela.

Vale observar, mais uma vez, que se a conduta for praticada contra criança ou adolescente,
haverá crime do art. 232 do ECA.

Art. 232. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a

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vexame ou a constrangimento:

Pena - detenção de seis meses a dois anos.

Ao crime do ECA aplica-se tudo o quanto dito acerca do art. 4º, “b”, exceto quanto ao sujeito
passivo, que tem de ser criança ou adolescente. Veja que o ECA não menciona que o vexame
ou o constrangimento tem de ser ilegal. No entanto, a ilegalidade deve estar presente, caso
contrário a autoridade estará agindo no estrito cumprimento do dever legal.

O crime do art. 4º, “b”, é material, consumando-se com a efetiva submissão da vítima ao
vexame ou constrangimento. A tentativa é perfeitamente possível.

12.3 – Crime do art. 4º, “c”

Art. 4º Constitui também abuso de autoridade: (...)

c) deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de

qualquer pessoa;

O dispositivo prevê que a comunicação ao juiz competente da prisão ou detenção de


qualquer pessoa tem de ser imediata.

Comunicação imediata significa no primeiro momento possível, considerando-se as


circunstâncias do caso concreto. Ex.: o Delegado lavra o auto de prisão em flagrante às 23
horas do sábado, numa cidade do interior. O único juiz da cidade (não há plantão) está de
férias, só volta na quarta-feira e não há substituto. Quarta-feira será, portanto, o primeiro
momento possível para a comunicação.

A demora injustificada na comunicação configura o crime de abuso de autoridade, pois


houve comunicação, mas não imediata. Além disso, a comunicação deve ser ao juiz
competente. Se a autoridade, dolosamente, comunicar o juiz incompetente para atrasar o
controle judicial sobre a prisão, há abuso de autoridade.

Se a comunicação não ocorrer ou ocorrer equivocadamente, por culpa da autoridade, não há


crime de abuso, pois não existe modalidade culposa de abuso de autoridade. Ex.: o Delegado
se esquece de comunicar o juiz ou comunica o crime a juiz federal, sendo que se tratava de
crime estadual.

Mais uma vez, vale observar que se a vítima for criança ou adolescente, incide o crime do
art. 231 do ECA:

Art. 231. Deixar a autoridade policial responsável pela apreensão de criança ou

adolescente de fazer imediata comunicação à autoridade judiciária competente e à

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família do apreendido ou à pessoa por ele indicada:

Pena - detenção de seis meses a dois anos.

O art. 5º, LXII, da CR impõe o duplo dever de comunicação da prisão, ao juiz competente e à
família do preso ou pessoa por ele indicada:

Art. 5º (...) LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão

comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele

indicada;

A Lei de Abuso de Autoridade prevê que é crime apenas deixar de comunicar a prisão ao juiz
competente. Deixar de comunicar a prisão à família do preso ou pessoa por ele indicada não
é crime, nos termos do art. 4º, “c”.

Já o art. 231 do ECA prevê que é crime deixar de comunicar a apreensão ao juiz e à família
do apreendido ou à pessoa por ele indicada. Assim, deve-se atentar para essa diferença,
principalmente em prova objetiva.

O crime do art. 4º, “c” consuma-se com a simples omissão. A tentativa não é possível, por se
tratar de crime omissivo puro (ou próprio).

12.4 – Crime do art. 4º, “d”

Art. 4º Constitui também abuso de autoridade: (...)

d) deixar o Juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja

comunicada;

Se o juiz for comunicado da prisão, constatar que ela é ilegal e não relaxá-la, comete abuso
de autoridade.

Se a vítima for criança ou adolescente, o juiz comete o crime do art. 234 do ECA. Veja que o
crime do art. 234 pode ser praticado por qualquer autoridade, não somente o juiz:

Art. 234. Deixar a autoridade competente, sem justa causa, de ordenar a imediata

liberação de criança ou adolescente, tão logo tenha conhecimento da ilegalidade da

apreensão:

Pena - detenção de seis meses a dois anos.

Caso um Desembargador ou Ministro do STF seja comunicado de uma prisão ilegal e não a
relaxe, comete o crime de abuso de autoridade. A expressão “juiz”, constante da alínea “d”,
refere-se a qualquer autoridade judicial.

15
12.5 – Crime do art. 4º, “e”

Art. 4º Constitui também abuso de autoridade: (...)

e) levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em

lei;

As regras acerca da fiança sofreram recente alteração, trazida pela Lei 12.403/2011. Se a
autoridade, ilegalmente, deixa de arbitrar fiança, ou arbitra, mas impede o preso de prestá-
la, haverá crime de abuso de autoridade. Esse crime consuma-se no momento em que o
preso é levado ou mantido ilegalmente na prisão. A tentativa é possível.

12.6 – Crime do art. 4º, incisos “f” e “g”

Art. 4º Constitui também abuso de autoridade: (...)

f) cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial carceragem, custas, emolumentos

ou qualquer outra despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer quanto à

espécie quer quanto ao seu valor;

g) recusar o carcereiro ou agente de autoridade policial recibo de importância recebida a

título de carceragem, custas, emolumentos ou de qualquer outra despesa;

Na letra “f”, a cobrança realizada pelo carcereiro não tem previsão legal (a cobrança é
ilegal). Na letra “g”, por sua vez, ela tem previsão legal, mas o carcereiro ou o agente público
recusa-se a dar recibo ilegalmente.

Ocorre que no Brasil não há nenhuma lei prevendo custas ou emolumentos carcerários.
Desse modo, a cobrança de custas ou emolumentos carcerários é sempre ilegal e, portanto,
sempre configurará crime de abuso de autoridade.

Nucci entende que, como não há lei prevendo essas custas, a cobrança configura crime de
concussão ou corrupção passiva, e a letra “g” será mero exaurimento da cobrança ilegal
(pois a letra “g” pressupõe que a cobrança seja legal).

A consumação do crime se dá com a simples cobrança, ainda que o valor não seja pago. A
tentativa é possível , na forma escrita.

12.7 – Crime do art. 4º, “h”

Art. 4º Constitui também abuso de autoridade: (...)

h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado

com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal;

16
O crime previsto na letra “h” é a prova de que pessoa jurídica pode ser vítima de abuso de
autoridade. Constitui abuso de autoridade o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa
física ou jurídica, desde que praticado: i) com abuso ou desvio de poder; ou ii) sem
competência legal para o ato.

Exemplo: fiscais da vigilância sanitária interditam o restaurante que não cumpre as normas
de higiene. Trata-se de um ato lesivo à honra (objetiva) e ao patrimônio do restaurante, mas
praticado legalmente. Portanto, legítimo exercício de poder de polícia (estrito cumprimento
do dever legal). No mesmo exemplo, se o fiscal interditar o restaurante sem qualquer motivo
justo, porque o irmão dele tem um restaurante concorrente nas proximidades, a conduta
configurará abuso de autoridade.

O crime do art. 4º, “h”, é material. Consuma-se com a efetiva lesão ao patrimônio ou à
honra da vítima. A tentativa é perfeitamente possível.

12.8 – Crime do art. 4º, “i”

Art. 4º Constitui também abuso de autoridade: (...)

i) prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança,

deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de

liberdade. (Incluído pela Lei nº 7.960, de 21/12/89)

O crime do art. 4º, “i” é de conduta mista (o tipo penal exige uma ação e uma omissão,
consubstanciadas em “prolongar” e “deixar de”).

Consiste em prolongar prisão temporária, pena ou medida de segurança. Se a autoridade


prolonga ilegalmente a prisão preventiva, comete qual crime? Ex.: o juiz revoga a preventiva,
expede o alvará de soltura e o Delegado não o cumpre, mantendo o preso no cárcere por
mais uns dias. Prolongar ilegalmente prisão preventiva configura o crime do art. 4º, “b”, pois
significa submeter o preso a constrangimento ilegal.

O crime pode ser praticado por quem deixa de mandar soltar ou por quem deixa de cumprir
a ordem de soltura.

Relativamente à consumação e à tentativa, há divergência. Para parte da doutrina, é possível


a tentativa, se a autoridade não consegue prolongar ilegalmente a prisão. Para outra
corrente, não é possível a tentativa: ou a autoridade deixa de expedir ou cumprir a ordem e
o crime já está consumado, ou expede ou cumpre a ordem, e não há crime. Não há uma
posição que prevaleça.

17
O art. 350 do CP prevê o crime de exercício arbitrário ou abuso de poder. O dispositivo prevê
a conduta criminosa no caput e as condutas equiparadas no parágrafo único:

Art. 350 - Ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as

formalidades legais ou com abuso de poder:

Pena - detenção, de um mês a um ano.

Parágrafo único - Na mesma pena incorre o funcionário que:

I - ilegalmente recebe e recolhe alguém a prisão, ou a estabelecimento destinado a

execução de pena privativa de liberdade ou de medida de segurança;

II - prolonga a execução de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em

tempo oportuno ou de executar imediatamente a ordem de liberdade;

III - submete pessoa que está sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento

não autorizado em lei;

IV - efetua, com abuso de poder, qualquer diligência.

Para o STF e o STJ, o art. 350, caput, foi revogado pelo art. 4º, “a”, da Lei de Abuso de
Autoridade. Já o parágrafo único sofreu derrogação (revogação parcial), permanecendo
vigentes apenas os incisos I e IV. Os incisos II e III foram revogados, respectivamente, pelo
art. 4º, “i” e “b”, da Lei de Abuso de Autoridade.

13 – Das penas dos crimes de abuso de autoridade (art. 6º, §§ 3º a 5º)


Art. 6º O abuso de autoridade sujeitará o seu autor à sanção administrativa civil e penal.

(...)

§ 3º A sanção penal será aplicada de acordo com as regras dos artigos 42 a 56 do Código

Penal e consistirá em:

a) multa de cem a cinco mil cruzeiros;

b) detenção por dez dias a seis meses;

c) perda do cargo e a inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por

prazo até três anos. (...)

Os artigos a que se refere o § 3º devem ser desconsiderados, pois relativos ao CP anterior.


As penas aplicáveis são:

i) multa, calculada na forma do art. 49 do CP:

Art. 49 - A pena de multa consiste no pagamento ao fundo penitenciário da quantia fixada

na sentença e calculada em dias-multa. Será, no mínimo, de 10 (dez) e, no máximo, de

360 (trezentos e sessenta) dias-multa.

§ 1º - O valor do dia-multa será fixado pelo juiz não podendo ser inferior a um trigésimo

18
do maior salário mínimo mensal vigente ao tempo do fato, nem superior a 5 (cinco) vezes

esse salário.

§ 2º - O valor da multa será atualizado, quando da execução, pelos índices de correção

monetária.

ii) detenção por dez dias a seis meses:

Pela pena, percebe-se que se trata de infração de menor potencial ofensivo. A pena de
detenção não pode ser substituída por multa vicariante, pois está cominada
cumulativamente com a multa e prevista em lei especial (Súmula 171 do STJ):

Súmula 171 - Cominadas cumulativamente, em lei especial, penas privativas de liberdade

e pecuniária, é defeso a substituição da prisão por multa.

iii) perda do cargo e a inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por
prazo de até três anos:

A perda do cargo e a inabilitação são penas principais, ou seja, não são efeitos automáticos
da condenação. Isso significa que o juiz pode ou não aplicar a perda do cargo e a
inabilitação.

Como ressaltado, trata-se de infração de menor potencial ofensivo. Por essa razão, é cabível
transação no crime de abuso de autoridade (STJ). Nucci e Cesar Roberto Bittencourt
entendem que não é cabível transação em abuso de autoridade, porque a pena de perda do
cargo e inabilitação seria incompatível com a transação.

Sílvio Maciel não concorda com eles, pois entende que na transação a pena transacionada
não é a prevista no tipo penal, mas a outra pena (uma multa ou uma pena restritiva de
direitos). O objeto da transação não é a prisão, mas pena uma diversa da prisão.

O § 4º determina que o juiz pode aplicar somente uma das penas, duas delas ou as três ao
mesmo tempo:

Art. 6º (...) § 4º As penas previstas no parágrafo anterior poderão ser aplicadas autônoma

ou cumulativamente.

Por fim, o § 5º prevê que se o condenado por abuso de autoridade for militar ou policial, o
juiz ainda pode aplicar uma quarta pena: a proibição de exercer funções policiais ou
militares no Município do crime, por prazo de um a cinco anos.

Art. 6º (...) § 5º Quando o abuso for cometido por agente de autoridade policial, civil ou

19
militar, de qualquer categoria, poderá ser cominada a pena autônoma ou acessória, de

não poder o acusado exercer funções de natureza policial ou militar no município da

culpa, por prazo de um a cinco anos.

20
LEI DE EXECUÇÃO PENAL (LEI 7.210/1984)

1 – Finalidades (art. 1º da LEP)


Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão

criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do

internado.

i) efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal:

A LEP tem por objetivo concretizar as finalidades da pena na sentença. Ela abrange sentença
condenatória e absolutória imprópria.

Há doutrina admitindo a LEP na execução das transações penais. Todavia, segundo o STF, a
transação penal não cumprida é caso de oferecimento de denúncia. Isso porque a obrigação
a que o transator se obriga não é pena, mas medida despenalizadora.

ii) reintegração do sentenciado ao convívio social (ressocialização):

As finalidades da LEP abrangem as três finalidades da pena: retribuição, prevenção e


ressocialização.

2 – Princípios gerais da LEP

2.1 – Princípio da legalidade

O princípio da legalidade na LEP não está no art. 1º do CP, que trata da legalidade no âmbito
dos crimes e das penas em abstrato.

O art. 3º da LEP enuncia o princípio da legalidade:

Art. 3º Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos

pela sentença ou pela lei. (...)

2.2 – Princípio da igualdade

O princípio da igualdade está contido no art. 3º, parágrafo único, da LEP:

Art. 3º (...) Parágrafo único. Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social,

religiosa ou política.

Veja que as distinções de naturezas sexual e etária são possíveis, como analisado adiante.

21
2.3 – Princípio da personalização da pena (art. 5º)

Art. 5º Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade,

para orientar a individualização da execução penal.

O princípio da individualização da pena está em três momentos: elaboração legislativa,


sentença e execução penal.

Quem classifica os condenados é a Comissão Técnica de Classificação - CTC (art. 6º). A


redação antiga trazia uma CTC totalmente inchada de atribuições. O dispositivo foi alterado
em 2003, para enxugar as atribuições da Comissão:

Redação antiga:

Art. 6º A classificação será feita por Comissão Técnica de Classificação que elaborará o

programa individualizador e acompanhará a execução das penas privativas de liberdade e

restritivas de direitos, devendo propor, à autoridade competente, as progressões e

regressões dos regimes, bem como as conversões.

Nova redação, dada pela Lei nº 10.792/2003:

Art. 6o A classificação será feita por Comissão Técnica de Classificação que elaborará o

programa individualizador da pena privativa de liberdade adequada ao condenado ou

preso provisório.

CTC antes da Lei 10.792/2003 CTC depois da Lei 10.792/2003


Atuava: Atua apenas nas penas privativas de liberdade.
i) nas penas privativas de liberdade;
ii) nas penas restritivas de direito;
iii) na progressão e regressão de regime
iv) nas conversões de pena.

A CTC elaborará o exame de classificação. Trata-se de um exame geral, que busca a


individualização da pena, não se confundindo com o exame criminológico:

Exame de classificação Exame criminológico


É mais amplo e genérico. É mais específico.
Envolve aspectos relacionados à personalidade Envolve aspectos psicológicos e psiquiátricos do
do condenado, seus antecedentes, sua vida condenado, atestando sua maturidade,
familiar e social, sua capacidade laborativa. disciplina, capacidade de suportar frustrações.
Visa a orientar o modo de cumprimento da pena. Visa a construir um prognóstico de
periculosidade.

22
2.4 – Princípio da jurisdicionariedade

O princípio da jurisdicionariedade, previsto no art. 194 da LEP, significa que os incidentes na


LEP serão decididos pelo Poder Judiciário, e não no âmbito administrativo:

Art. 194. O procedimento correspondente às situações previstas nesta Lei será judicial,

desenvolvendo-se perante o Juízo da execução.

A autoridade administrativa pode decidir pontos secundários da execução (ex.: dias e


horários de visita, algumas hipóteses de saída etc.) Mesmo neste caso, entretanto, é possível
o acesso ao Judiciário, em caso de discordância da decisão da autoridade administrativa.
Observe que não se trata de recurso no Judiciário, mas uma simples petição ao Juiz,
requerendo a revisão da decisão da autoridade administrativa.

2.5 – Princípio do devido processo legal

O princípio do devido processo legal, que abrange o contraditório e a ampla defesa, permeia
todos os momentos da execução penal.

2.6 – Princípio reeducativo

O princípio reeducativo visa à ressocialização do preso. Vários dispositivos da LEP preveem a


ressocialização, mas os principais instrumentos de ressocialização estão previstos no art. 11:

Art. 11. A assistência será:

I - material;

II - à saúde;

III - jurídica;

IV - educacional;

V - social;

VI - religiosa.

Quem garante assistência jurídica ao preso é a Defensoria Pública (art. 16 da LEP, alterado
pela Lei 12.313/2010):

Art. 16. As Unidades da Federação deverão ter serviços de assistência jurídica, integral e

gratuita, pela Defensoria Pública, dentro e fora dos estabelecimentos penais.

23
A nova redação, que parece óbvia, somente veio em 2010 (acerca deste tema, ver os arts.
81-A e 81-B, que trazem as atribuições da Defensoria Pública na execução penal). A DP
ganhou status de verdadeiro órgão da execução (art. 61 da LEP 1):

Art. 61. São órgãos da execução penal: (...)

VIII - a Defensoria Pública. (Incluído pela Lei nº 12.313, de 2010).

No que concerne à ressocialização, é importante atentar para o art. 6º da Resolução nº 113


do CNJ:

Art. 6º Em cumprimento ao artigo 1º da Lei nº 7.210/84, o juízo da execução deverá,

dentre as ações voltadas à integração social do condenado e do internado, e para que

tenham acesso aos serviços sociais disponíveis, diligenciar para que sejam expedidos seus

documentos pessoais, dentre os quais o CPF, que pode ser expedido de ofício, com base

no artigo 11, V, da Instrução Normativa RFB nº 864, de 25 de julho de 2008.

Obs.: uma das faces da criminologia é o estudo da vitimologia. A LEP possui dispositivo (em
um dos raros momentos) que lembra da vítima: o art. 23, VII, que garante, no âmbito da
assistência social, o amparo e a orientação da vítima:

Art. 23. Incumbe ao serviço de assistência social: (...)

VII - orientar e amparar, quando necessário, a família do preso, do internado e da vítima.

2.7 – Princípio da humanidade das penas

O princípio da humanidade das penas já foi estudado anteriormente.

3 – Partes da LEP

Além do Juiz, que é a parte imparcial e equidistante, participam da LEP o exequente e o


executado.

i) exequente:

Para perseguir a pena, há o Estado, como regra (ação penal pública) e o particular, em
situações especiais (ação penal de iniciativa privada). A execução da pena, todavia, é
monopólio do Estado. Não existe execução da pena, ainda que subsidiária, pelo particular.

1
Recomenda-se decorar o rol de órgãos de execução previsto no art. 61.

24
O perdão da vítima na fase de execução não gera qualquer efeito. Por isso que o ofendido
pode perdoar até o trânsito em julgado. Depois dele, a tarefa é do Estado, não interessando
mais a vontade da vítima (arts. 105 e 171 da LEP):

Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o

réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a

execução.

Art. 171. Transitada em julgado a sentença que aplicar medida de segurança, será

ordenada a expedição de guia para a execução.

ii) executado:

Podem figurar como executados o preso, definitivo ou provisório ou o sujeito a medida de


segurança. O adolescente infrator não é personagem da LEP, que não pode ser usada como
documento principal para a execução das medidas socioeducativas.

4 – Execução provisória

Como se sabe, o processo civil admite a execução provisória, nos casos em que o recurso
não tenha efeito suspensivo. Existe, todavia, execução provisória no processo penal?

Prevalece que no Brasil é possível a execução provisória pro reo. Ou seja, quando o acusado
está preso e aguardando a decisão definitiva. No embate da exequibilidade provisória com o
princípio da presunção de inocência, prevalece aquele, na medida em que o preso vai, desde
logo, fazendo jus a eventuais benefícios.

Preso condenado em Preso provisório Preso provisório sem Condenado provisório


definitivo condenado em 1º grau condenação solto
LEP LEP (há, aqui, a A LEP é aplicada no Não se aplica a LEP.
hipótese de execução que couber
provisória em benefício (principalmente no
do réu) assunto “direitos e
deveres do preso”).

Assim, em regra, é incabível a execução penal provisória, em virtude da existência do


princípio da presunção de inocência ou de não culpa, salvo se em benefício do réu.

Os fundamentos legal e sumular para a execução provisória em benefício do réu no Brasil


encontram-se nos seguintes enunciados:

25
i) art. 2º, parágrafo único, da LEP: trata do preso provisório.

Art. 2º (...) Parágrafo único. Esta Lei aplicar-se-á igualmente ao preso provisório e ao

condenado pela Justiça Eleitoral ou Militar, quando recolhido a estabelecimento sujeito à

jurisdição ordinária.

ii) art. 8º da Resolução nº 113 do CNJ: trata da guia de recolhimento provisória.

Art. 8º Tratando-se de réu preso por sentença condenatória recorrível, será expedida guia

de recolhimento provisória da pena privativa de liberdade, ainda que pendente recurso

sem efeito suspensivo, devendo, nesse caso, o juízo da execução definir o agendamento

dos benefícios cabíveis.

Da análise desse dispositivo, fica claro que a execução provisória deve ser sempre em
benefício do réu (“benefícios cabíveis”).

iii) Súmula 716 do STF:

Súmula 716 - ADMITE-SE A PROGRESSÃO DE REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA OU A

APLICAÇÃO IMEDIATA DE REGIME MENOS SEVERO NELA DETERMINADA, ANTES DO

TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA.

iv) art. 300 do CPP (alterado pela Lei 12.403/2011):

Art. 300. As pessoas presas provisoriamente ficarão separadas das que já estiverem

definitivamente condenadas, nos termos da lei de execução penal.

Parágrafo único. O militar preso em flagrante delito, após a lavratura dos procedimentos

legais, será recolhido a quartel da instituição a que pertencer, onde ficará preso à

disposição das autoridades competentes.

O dispositivo impede que se misturem presos provisórios de definitivos. A redação anterior


dizia que “se possível”, haveria a separação. Como o Juiz sempre fundamentava que não era
possível, a regra foi alterada para impedir peremptoriamente a mistura de presos
provisórios e definitivos.

5 – Competência do juiz de execuções

A competência do juiz de execuções inicia-se com o trânsito em julgado da sentença


condenatória e será exercida por um juízo especializado, de acordo com a Lei de
Organização Judiciária.

26
Não se deve confundir a competência do juízo das execuções, que se dá com o trânsito em
julgado, com o início da execução, que depende da prisão do sentenciado e expedição da
guia de recolhimento. Essa guia de recolhimento é a peça processual que formaliza o início
da execução.

Em alguns casos, a competência para a execução da pena será exercida, supletivamente,


pelo próprio juiz da sentença, na hipótese de existência de vara única na Comarca. Além
disso, no caso de execução provisória (sempre em benefício do réu), a competência do juiz
de execução precede o trânsito em julgado.

A competência na LEP não é ditada pelo local onde transitou em julgado o processo de
conhecimento. Acerca do tema, cumpre diferenciar quatro hipóteses:

i) sentenciado a pena privativa de liberdade:

No caso de sentenciado a pena privativa de liberdade, a competência será da VEC do local


onde ele estiver preso. Ex. Pimenta Neves foi condenado definitivamente na Comarca de
Ibiúna e está preso em Tremembé, onde corre o processo de execução dele. Transferido o
preso, a execução o acompanha.

ii) preso federal que cumpre pena em estabelecimento penitenciário estadual:

A Súmula 192 do STJ determina o seguinte:

Súmula 192 - Compete ao Juízo das Execuções Penais do Estado a execução das penas

impostas a sentenciados pela Justiça Federal, Militar ou Eleitoral, quando recolhidos a

estabelecimentos sujeitos à administração estadual.

Essa Súmula se justificava, há alguns anos, quando não havia presídios federais. Hoje, além
de haver alguns, há presos estaduais em presídios federais. A regra, neste caso, inverte-se (a
execução de preso estadual passa a ser de competência do juiz da VEC federal).

Assim, para a definição da Justiça em que correrá o processo, deve-se atentar para a
competência do juiz responsável pela fiscalização do presídio 2.

iii) sursis ou pena restritiva de direitos:

No caso de sursis ou pena restritiva de direitos, a competência é da VEC do domicílio do


sentenciado.

2
Sobre o tema, recomenda-se a leitura da Lei 11.671/2008, que trata dos presídios federais.

27
iv) sentenciado com foro por prerrogativa de função:

No caso de sentenciado com foro por prerrogativa de função, a competência para execução
da pena é do tribunal que o processou e julgou. Vale observar que essa competência existe
enquanto o condenado ainda não perdeu o cargo, emprego ou função (e, portanto, a
prerrogativa). Ex.: execução provisória do réu com foro por prerrogativa de função. Vale
lembrar que somente há perda do cargo, emprego ou função após a sentença condenatória
definitiva com trânsito em julgado.

6 – Direitos e deveres do preso

O rol de direitos e deveres do preso é também chamado de “Estatuto Jurídico do Preso” e


está previsto nos arts. 38 a 42 da LEP.

6.1 – Deveres do preso (art. 39)

Os deveres do preso são simples e óbvios:

Art. 39. Constituem deveres do condenado:

I - comportamento disciplinado e cumprimento fiel da sentença;

II - obediência ao servidor e respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se;

III - urbanidade e respeito no trato com os demais condenados;

IV - conduta oposta aos movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à

ordem ou à disciplina;

V - execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas;

VI - submissão à sanção disciplinar imposta;

VII - indenização à vitima ou aos seus sucessores;

VIII - indenização ao Estado, quando possível, das despesas realizadas com a sua

manutenção, mediante desconto proporcional da remuneração do trabalho;

IX - higiene pessoal e asseio da cela ou alojamento;

X - conservação dos objetos de uso pessoal.

Parágrafo único. Aplica-se ao preso provisório, no que couber, o disposto neste artigo.

De todos os deveres, cumpre destacar:

i) trabalho (inciso V) é dever do condenado;

ii) indenização à vítima e seus sucessores (inciso VII):

A nova lei deu à fiança feição diversa, com predicados de Justiça Restaurativa. Hoje, ela é
revertida à reparação do dano. Trata-se de execução de dever que compete ao preso.

28
Ao rol de deveres do preso, cumpre acrescentar o previsto no art. 146-C da LEP, incluído
pela Lei nº 12.258/2010. Trata-se dos deveres no trato com o aparelho de monitoração
eletrônica e as consequências do descumprimento desses deveres:

Art. 146-C. O condenado será instruído acerca dos cuidados que deverá adotar com o

equipamento eletrônico e dos seguintes deveres:

I - receber visitas do servidor responsável pela monitoração eletrônica, responder aos

seus contatos e cumprir suas orientações;

II - abster-se de remover, de violar, de modificar, de danificar de qualquer forma o

dispositivo de monitoração eletrônica ou de permitir que outrem o faça;

III - (VETADO);

Parágrafo único. A violação comprovada dos deveres previstos neste artigo poderá

acarretar, a critério do juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a defesa:

I - a regressão do regime;

II - a revogação da autorização de saída temporária;

III - (VETADO);

IV - (VETADO);

V - (VETADO);

VI - a revogação da prisão domiciliar;

VII - advertência, por escrito, para todos os casos em que o juiz da execução decida não

aplicar alguma das medidas previstas nos incisos de I a VI deste parágrafo.

O rol de deveres do preso previsto na LEP é taxativo. De fato, em se tratando de deveres, o


rol tem de ser sempre taxativo. Isso não significa que eles estejam somente no art. 39, mas
de que devem estar expressamente previstos em lei, não podendo o juiz criar outros não
constantes da lei.

6.2 – Direitos do preso (art. 41 da LEP)

Os direitos do preso constam do art. 41 da LEP. Os incisos mais importantes para fins de
concurso são os seguintes: V, X, XV e XVI.

Art. 41 - Constituem direitos do preso: (...)

V - proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação;

(...)

X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; (...)

XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de

outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.

XVI – atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da

29
autoridade judiciária competente. (Incluído pela Lei nº 10.713, de 2003) (...)

No inciso I, mais do que “alimentação suficiente”, deveria constar “alimentação digna”. O


trabalho encontra-se também no rol dos direitos do preso. No inciso X, a visita íntima é
abrangida. O dispositivo aplica-se ao RDD (há projeto do Senador Pedro Taques pretendendo
o fim da visita íntima no RDD, de constitucionalidade duvidosa). No Brasil, o preso não é
numerado. O chamamento deve ser nominal. O preso não precisa de advogado para
peticionar, em caso de discordância de uma decisão administrativa, nos termos do inciso
XIV.

A nova Lei de Remissão, como será estudado a seguir, obriga o juiz a enviar ao condenado o
atestado de cumprimento de pena, para que ele realize esse controle.

A finalidade do inciso XVI é evitar a hipertrofia da punição. O CNJ se deparou com presos
provisórios enclausurados por 14 anos, quando a pena máxima era de 20, e de 11 anos,
quando a pena era de oito anos para ao crime.

Os direitos previstos nos incisos V, X e XV (proporcionalidade na distribuição do tempo para


descanso, trabalho e recreação, visitas e contato com o mundo exterior, respectivamente)
são os únicos relativizáveis, por ato motivado do diretor do estabelecimento (art. 41,
parágrafo único, da LEP). Os demais são absolutos, não admitindo suspensão ou restrição:

Art. 41 (...) Parágrafo único. Os direitos previstos nos incisos V, X e XV poderão ser

suspensos ou restringidos mediante ato motivado do diretor do estabelecimento.

A LEP traz exemplos de direitos a serem observados. Ou seja, o rol do art. 41 é meramente
exemplificativo. Prova disso está no art. 3º da LEP:

Art. 3º Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos

pela sentença ou pela lei.

Parágrafo único. Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou

política.

Prevalece que o preso não tem direito a voto (art. 18 da Resolução 113 do CNJ):

Art. 18 O juiz do processo de conhecimento expedirá ofícios ao Tribunal Regional Eleitoral

com jurisdição sobre o domicílio eleitoral do apenado para os fins do artigo 15, inciso III,

da Constituição Federal.

Constituição Federal:

30
Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos

casos de: (...)

III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;

Existe uma minoria dizendo que se a pena for compatível com o exercício do direito, o voto
seria possível. O CNJ entende que o apenado (cumprindo pena ou não) tem seus direitos
políticos suspensos. Assim, enquanto não cumprida a pena de multa, a restritiva de direitos,
o sursis, o regime aberto ou o semiaberto, o apenado não tem direito de voto. Cumpre
ressaltar que o preso provisório vota. Somente perde os direitos políticos o preso definitivo
(com trânsito em julgado). Os Centros de Detenção Provisória têm urna.

7 – Sanção disciplinar na LEP

7.1 – Noções introdutórias

As prisões configuram agrupamentos humanos. Todo e qualquer grupo humano necessita de


ordem e disciplina. Dos arts. 44 a 60, a LEP traz normas atinentes à ordem e disciplina. Da
leitura dos dispositivos, percebe-se que a LEP busca mantê-las mediante a distribuição de
recompensas (para o mérito) e sanções disciplinares (para o demérito, a falta disciplinar).
Essa introdução é importante para se perceber que a sanção disciplinar tem a finalidade de
manter a ordem e a disciplina, que devem existir onde há grupos de seres humanos.

A falta disciplinar divide-se em três espécies: i) leve; ii) média; ou iii) grave. A LEP somente
cuida da falta grave (arts. 50 a 52). As faltas leve e média devem ser previstas pela legislação
local:

Art. 49. As faltas disciplinares classificam-se em leves, médias e graves. A legislação local

especificará as leves e médias, bem assim as respectivas sanções.

Parágrafo único. Pune-se a tentativa com a sanção correspondente à falta consumada.

Existe tentativa de falta grave. O art. 49, parágrafo único, da LEP pune a tentativa com a
sanção correspondente à falta consumada. Trata-se de “falta de atentado”: ainda que
eventualmente individualizada posteriormente pelo juiz, em tese a punição da tentativa é a
mesma da forma consumada.

Art. 50. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que:

I - incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina;

II - fugir;

III - possuir, indevidamente, instrumento capaz de ofender a integridade física de outrem;

IV - provocar acidente de trabalho;

31
V - descumprir, no regime aberto, as condições impostas;

VI - inobservar os deveres previstos nos incisos II e V, do artigo 39, desta Lei [obediência

ao servidor e respeito com as demais pessoas; e execução do trabalho, das tarefas e das

ordens recebidas, respectivamente].

VII – tiver em sua posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar, que

permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo. (Incluído pela Lei

nº 11.466, de 2007)

Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se, no que couber, ao preso provisório.

A fuga é falta grave. Há minoria dizendo que não seria falta grave a fuga sem violência ou
grave ameaça, como decorrência da inerente característica do ser humano de busca da sua
liberdade. Rogério não concorda com esse entendimento, na medida em que ele significaria
que o preso teria direito de fugir.

O inciso III abrange a posse de qualquer arma, inclusive a imprópria. Os presos chegam a
fazer arma transformando miolo de pão em espada. Esse tipo do objeto está proibido por
esse inciso III.

Provocar acidente de trabalho é falta grave. O acidente de trabalho que não tenha sido
provocado pelo preso não impede a remissão. O provocado faz com que o preso não tenha
direito à remissão e perca os dias remidos, podendo chegar até a uma regressão de regime.

O inciso VII é importantíssimo para fins de concurso. Caso o preso seja surpreendido com
“chip” de celular, sem o aparelho, incide o inciso VII? O STJ, reiteradamente, tem entendido
que sim. E o carregador de celular? O STJ acabou de decidir que sim. O mesmo com relação à
bateria. Assim, o STJ interpreta a palavra “aparelhos” como abrangendo os acessórios para a
utilização do aparelho, interpretação essa de questionável constitucionalidade.

7.2 – Espécies de sanções disciplinares no caso de falta grave (art. 53)

Art. 53. Constituem sanções disciplinares:

I - advertência verbal;

II - repreensão;

III - suspensão ou restrição de direitos (artigo 41, parágrafo único);

IV - isolamento na própria cela, ou em local adequado, nos estabelecimentos que

possuam alojamento coletivo, observado o disposto no artigo 88 desta Lei.

V - inclusão no regime disciplinar diferenciado. (Incluído pela Lei nº 10.792, de 2003)

32
A diferença entre a advertência verbal e a repreensão é que esta é feita por escrito e, por
essa razão, fica no prontuário do condenado. A mais grave delas é o RDD, que será estudado
adiante.

Sanção disciplinar (falta grave) prescreve. A LEP não trata da prescrição das sanções
disciplinares, mas o STF decidiu aplicar o art. 109 do CP a elas. O dispositivo, todavia, tem o
prazo variando conforme a pena do crime, e sanção disciplinar não é pena (não tem prazo).
Por conta disso, deve-se considerar o prazo mínimo: as sanções disciplinares prescrevem em
três anos (Informativo 745, HC 114.422):

Art. 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no §

1º do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade

cominada ao crime, verificando-se: (Redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010). (...)

VI - em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano. (Redação dada pela Lei

nº 12.234, de 2010). (...)

Nesse tema, há uma tese a ser aplicada em concurso para a Defensoria Pública. A Lei de
Drogas prevê prazo prescricional ainda menor, de dois anos (art. 30 da Lei 11.343/2006):

Art. 30. Prescrevem em 2 (dois) anos a imposição e a execução das penas, observado, no

tocante à interrupção do prazo, o disposto nos arts. 107 e seguintes do Código Penal.

Por que aplicar o prazo de três anos, se há no ordenamento prazo inferior? O raciocínio é o
seguinte: nos casos dos incisos I e II, que tratam de advertência verbal e repreensão, deve-se
aplicar o art. 30 da Lei de Drogas. Quanto aos demais, por restritivos de direitos, o prazo
prescricional seria de 3 anos.

Imagine a hipótese do preso que foge em 10 de fevereiro de 2011 (cometimento de falta


grave) e é recapturado em 8 de janeiro de 2015. Pode-se aplicar a sanção correspondente à
falta grave ou houve prescrição? Segundo o STF, a fuga é uma falta grave permanente,
aplicando-se o art. 111, III, do CP:

Art. 111 - A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr:

(...)

III - nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência

Enquanto não é recapturado, a falta grave persiste: não cessada a permanência, não inicia o
prazo prescricional, que se inicia da recaptura.

8 – Regime disciplinar Diferenciado (art. 53, V)

33
8.1 – Conceito

O RDD não é regime de cumprimento de pena, mas a mais severa sanção disciplinar.

8.1 – Características (art. 52, com redação dada pela Lei 10.792/2003)

Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando

ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou

condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as

seguintes características:

I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por

nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada;

II - recolhimento em cela individual;

III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas;

IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol. (...)

8.1.1 – duração máxima de 360 dias

Os 360 dias previstos pela lei são tempo máximo de RDD. Não há um tempo mínimo. Em
caso de reincidência, a duração máxima será de até o limite de 1/6 da pena aplicada (não da
pena a ser cumprida nem do restante da pena a cumprir). Veja que a pena aplicada pode
superar os 30 anos de pena a cumprir.

Há limite de aplicações do RDD ao preso faltoso? Há duas correntes:

1ª corrente: não há limite ao número de inclusões do preso faltoso no RDD. A cada


nova inclusão, o tempo de duração pode ser de até 1/6 da pena aplicada.

2ª corrente: não há limites ao número de inclusões do preso no RDD. Contudo, o


tempo de RDD nas várias repetições não pode suplantar 1/6 da pena aplicada. Para
esta corrente, o juiz, ao prever o RDD, deve resguardar um tempo para eventuais
novas inclusões.

Prevalece a primeira corrente.

8.1.2 – recolhimento em cela individual

Rogério discorda que o RDD seja cumprimento desumano ou degradante, na medida em que
o preso cumpre sozinho (“suíte máster”). Para ele, desumanas são as celas superlotadas.

Cela individual não é cela escura ou insalubre. É vedado o emprego de cela escura (art. 45, §
2º):

34
Art. 45 (..) § 2º É vedado o emprego de cela escura.

8.1.3 – visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas

Como visto, Pedro Taques elaborou PL buscando evitar que essa visita seja íntima.

“Sem contar as crianças” significa que elas não são computadas no número máximo de duas
pessoas ou que a presença de crianças está proibida no RDD? No RDD estão os presos mais
perigosos do Brasil. Supondo que todos estivessem nos estados de São Paulo e Rio de
Janeiro, estariam no RDD menos de 100 presos. Deixar criança visitar preso no RDD é não se
preocupar com o bem estar da criança.

Rogério reconhece que prevalece na doutrina que criança pode visitar no RDD. Todavia, ele
discorda (posição minoritária), em razão dos princípios basilares do ECA, em especial da
prevenção geral especial, do atendimento integral à criança, garantia prioritária, proteção
estatal, prevalência e indisponibilidade dos interesses da criança e do adolescente,
considerando o preceito LXXIX (“Das regras mínimas da ONU”), que dispõe a necessidade
das visitas ao preso quando convenientes para ambas as partes.

8.1.4 – banho de sol de duas horas

O banho de sol significa saída "durante o dia”. A duração máxima é de duas horas. Não há
rotina, variando as duas horas dentre as horas do dia.

8.3 – Hipóteses de cabimento do RDD

8.3.1 – prática de crime doloso, causador de subversão da ordem e disciplina internas

Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando

ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou

condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as

seguintes características: (...)

Para a inclusão de um preso no RDD, não basta a prática de crime doloso. O crime doloso
deve ocasionar a subversão da ordem ou disciplina internas. Não é necessário o trânsito em
julgado da sentença condenatória. Até porque, para a inclusão no RDD, haverá contraditório
e ampla defesa.

Esta hipótese abrange o preso condenado e o provisório. O provisório pode ir para o RDD e
lá ficar até 360 dias.

35
A inclusão no RDD não impede a sanção penal pelo crime praticado. Ou seja, o sujeito é
incluído no RDD e responde penalmente pelo crime praticado. A Defensoria Pública de São
Paulo entende que se trata de bis in idem.

8.3.2 – preso que apresenta alto risco para a ordem e segurança do estabelecimento ou da
sociedade (art. 52, § 1º, da LEP, incluído pela Lei nº 10.792/2003)

Art. 52 (...) § 1º O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos

provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a

ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.

O dispositivo fala preso “nacional ou estrangeiro”, mas deve-se considerar a expressão como
não lida. Na verdade, o estrangeiro está sujeito a todas as hipóteses de RDD, na medida em
que ele possui todos os direitos e deveres dos nacionais, com as exceções previstas na CR.

Esta hipótese é bastante criticada. Quem afere o alto risco? O que se considera alto risco?
Punição do sujeito em virtude do risco é aplicação do direito penal do inimigo (punição pelo
que se é, não pelo que se faz). Pune-se por fato praticado, não por periculosidade.

Para a manutenção da constitucionalidade do dispositivo, deve-se extrair o alto risco de fato


praticado pelo agente no sistema prisional. Caso contrário, seria aplicar o direito penal do
inimigo.

Esta hipótese também abrange o preso definitivo e o provisório.

8.3.3 – fundadas suspeitas de envolvimento em grupo criminoso (organização criminosa,


associação criminosa etc.)

Art. 53 (...) § 2º Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso

provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou

participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando. (Incluído

pela Lei nº 10.792, de 2003)

A crítica que se faz a esta hipótese está na expressão “fundadas suspeitas”. Não se punem
suspeitas. A doutrina lê o dispositivo como “prova” de envolvimento. Haverá contraditório e
ampla defesa na aplicação do RDD.

A hipótese também abrange preso definitivo ou provisório.

8.4 – Judicialização do RDD (art. 54)

36
Nos termos do art. 54, caput, da LEP, preso somente pode ser incluído no RDD através de
decisão judicial:

Art. 54. As sanções dos incisos I a IV do art. 53 serão aplicadas por ato motivado do diretor

do estabelecimento e a do inciso V, por prévio e fundamentado despacho [sentença] do

juiz competente. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 2003) (...)

Diretor de presídio não pode incluir preso no RDD. Há um equívoco redacional no


dispositivo: não se trata de “despacho”, mas verdadeira sentença, recorrível.

O art. 54, § 1º, da LEP determina que a inclusão do preso no RDD depende de provocação,
não podendo ser determinada de ofício pelo Juiz:

Art. 54 (...) § 1º A autorização para a inclusão do preso em regime disciplinar dependerá

de requerimento circunstanciado elaborado pelo diretor do estabelecimento ou outra

autoridade administrativa. (Incluído pela Lei nº 10.792, de 2003)

São duas as autoridades que podem provocar o juiz: diretor do estabelecimento ou outra
autoridade administrativa (ex.: Secretário de Segurança Pública, Governador do Estado,
Delegado que cuida de estabelecimento prisional etc.)

Promotor de Justiça e Procurador da República podem também requerer a inclusão do preso


em RDD, em virtude do disposto no art. 68, II, “a”, da LEP: o MP pode requerer tudo o
quanto necessário ao desenvolvimento do processo executivo:

Art. 68. Incumbe, ainda, ao Ministério Público: (...)

II - requerer:

a) todas as providências necessárias ao desenvolvimento do processo executivo;

O art. 54, § 2º, prevê a possibilidade de contraditório e ampla defesa na inclusão do RDD
(ainda que no rito sumaríssimo), pois na aplicação do RDD pode ser imputada a prática de
um crime pelo condenado:

Art. 52 (...) § 2º A decisão judicial sobre inclusão de preso em regime disciplinar será

precedida de manifestação do Ministério Público e da defesa e prolatada no prazo

máximo de quinze dias. (Incluído pela Lei nº 10.792, de 2003)

O art. 57, caput, da LEP prevê o princípio da individualização da sanção disciplinar:

Art. 57. Na aplicação das sanções disciplinares, levar-se-ão em conta a natureza, os

motivos, as circunstâncias e as consequências do fato, bem como a pessoa do faltoso e

37
seu tempo de prisão. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 2003) (...)

É possível a aplicação do RDD preventivamente. Em casos urgentes, antes da decisão acerca


da inclusão, o sujeito aguarda preventivamente no RDD (art. 60):

Art. 60. A autoridade administrativa poderá decretar o isolamento preventivo do faltoso

pelo prazo de até dez dias. A inclusão do preso no regime disciplinar diferenciado, no

interesse da disciplina e da averiguação do fato, dependerá de despacho do juiz

competente. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 2003)

Parágrafo único. O tempo de isolamento ou inclusão preventiva no regime disciplinar

diferenciado será computado no período de cumprimento da sanção disciplinar. (Redação

dada pela Lei nº 10.792, de 2003)

8.5 – RDD: constitucional ou inconstitucional?

Os argumentos de inconstitucionalidade devem ser utilizados pela Defensoria Pública. Os de


constitucionalidade são extraídos da jurisprudência do STJ. Ainda não há decisão do pleno
do STF acerca da matéria.

Inconstitucional Constitucional
Ofende o princípio da dignidade da pessoa O RDD não implica em agressão física ou moral e
humana (seria uma volta à masmorra, os seja, não é pena vexatória.
cumprimento de pena de forma cruel, desumana
ou degradante).
É sanção desproporcional aos fins da pena. No Existe proporcionalidade entre a gravidade da
RDD, nunca será possível trabalhar com a falta e a severidade da sanção.
principal finalidade da pena, que é a
ressocialização.
Trata-se de novo regime de cumprimento de Não é regime de cumprimento de pena.
pena, sem previsão legal, suplantando inclusive o
previsto na sentença como o mais gravoso.
Gera bis in idem (cuja vedação é prevista Cumprimento da pena no RDD e sanção penal
implicitamente na CR e expressamente no são sanções de naturezas distintas, assim como
Estatuto de Roma), pois a falta grave gerará as sanções penal e civil (reparação do dano)
cumprimento da pena no RDD e sanção penal. oriundas do mesmo fato.

38
Demóstenes Torres apresentou o PL 179/2005, que busca criar um regime mais severo de
pena, que prevê inclusive a “progressão de regime” para o RDD 3.

9 – Execução das penas privativas de liberdade

9.1 – Sistemas penitenciários básicos

Nos vários ordenamentos jurídicos, há três sistemas penitenciários básicos: Filadélfia,


Auburn e inglês.

9.1.1 – sistema Filadélfia

No sistema Filadélfia, o sentenciado cumpre a pena integralmente na cela, sem dela nunca
sair. Alguns críticos do RDD dizem que ele representaria um retorno a esse sistema.

9.1.2 – sistema Auburn (ou alburniano)

No sistema Auburn, o sentenciado, durante o dia, trabalha com os outros sentenciados, em


silêncio, recolhendo-se, no período noturno, à cela. Esse sistema é também chamado de
“silent system”. Foi nele que surgiu a comunicação por códigos e mímicas dentro do sistema
penitenciário.

9.1.3 – sistema inglês

No sistema inglês, há um período inicial de isolamento: o sujeito inicia o cumprimento da


pena sem sair da cela. Após esse estágio, o preso trabalha durante o dia e recolhe-se à cela
no período noturno.

Depois de cumprida parcela da pena, ele é posto em liberdade condicional. O sistema inglês
é chamado também do sistema progressivo.

O sistema brasileiro aproxima-se do inglês ou progressivo:

Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a

transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso

tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom

comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as

normas que vedam a progressão.

3
Informação dada antes do processo de cassação do Deputado, suposta por ligação com o
contraventor Carlinhos Cachoeira.

39
9.2 – Progressão de regime (art. 112 da LEP)

No direito brasileiro, há os seguintes regimes de cumprimento de pena: fechado, semiaberto


e aberto. A progressão ocorre nessa ordem: do fechado para o semiaberto (primeira
progressão) e do semiaberto para o aberto (segunda progressão).

9.2.1 – incidente de progressão

O incidente de progressão inicia-se mediante: i) requerimento do MP; ii) requerimento do


advogado do preso ou, não tendo um constituído, do Defensor Público; iii) requerimento do
próprio sentenciado; e iv) determinação do juiz, que pode agir de ofício neste caso.

9.2.2 – requisitos da progressão

9.2.2.1 – do regime fechado para o semiaberto

São requisitos para a progressão do regime fechado para o semiaberto:

i) sentença condenatória:

Antigamente, dizia-se que era requisito da progressão a existência de “sentença


condenatória definitiva”. Hoje, como visto, o “definitiva” não integra mais o pressuposto, na
medida em que é admitida a execução provisória em benefício do réu (Resolução 113 do CNJ
e Súmula 716 do STF).

ii) tempo de cumprimento da pena (requisito temporal):

Para progredir, o condenado tem de cumprir 1/6 da pena no regime anterior. Em se


tratando de crime hediondo ou equiparado, o tempo de cumprimento terá de ser de 2/5 da
pena, se primário, ou 3/5, se reincidente.

O juiz é ilimitado na fixação da pena. Considerando os crimes praticados e as condições


subjetivas, o juiz pode perfeitamente extrapolar o prazo de 30 anos, que é máximo de
cumprimento da pena. Pergunta-se: para fins de progressão, o tempo de cumprimento é
calculado pela pena imposta na sentença ou sobre o limite máximo de cumprimento de
pena de 30 anos imposto pelo art. 75 do Código Penal 4?

A Súmula 715 do STF determina que se deve considerar a pena imposta na sentença, e não o
limite de 30 anos do art. 75, para fins da análise da progressão:

4
Art. 75 - O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30
(trinta) anos.

40
Súmula 715 - A PENA UNIFICADA PARA ATENDER AO LIMITE DE TRINTA ANOS DE

CUMPRIMENTO, DETERMINADO PELO ART. 75 DO CÓDIGO PENAL, NÃO É CONSIDERADA

PARA A CONCESSÃO DE OUTROS BENEFÍCIOS, COMO O LIVRAMENTO CONDICIONAL OU

REGIME MAIS FAVORÁVEL DE EXECUÇÃO.

iii) bom comportamento carcerário durante a execução;

iv) oitiva do MP e, se o caso, da Defensoria Pública;

v) em se tratando de crime cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, exame


criminológico:

Como visto acima, o exame criminológico não se confunde com o exame de classificação.
Veja que a necessidade de realização do exame criminológico deve ser determinada em
decisão fundamentada pelo juiz. Ele deve ser realizado se não for possível extrair dos autos a
presença dos requisitos necessários à progressão (Súmula 439 do STJ):

Súmula 439 - Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que

em decisão motivada.

vi) em se tratando de crime contra a administração pública, deve haver a reparação do dano
(art. 33, § 4º, do CP):

Art. 33 (...) § 4º O condenado por crime contra a administração pública terá a progressão

de regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou à

devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais.

Caso o juiz esteja em dúvida quanto à possibilidade ou não da progressão (ex.: exame
criminológico apontando aspectos positivos e negativos do sentenciado; dúvida quanto ao
bom comportamento carcerário etc.), aplica-se o princípio do in dubio pro reo? Prevalece na
doutrina que vigora, nesta etapa, o princípio do in dubio pro societate.

Prevalece que se admite o incidente de progressão ao reeducando que cumpre sanção


disciplinar no RDD. Entretanto, deve o preso, primeiro, cumprir a sanção disciplinar, para
depois progredir de regime.

9.2.2.2 – do regime semiaberto para o aberto

Para a progressão do regime semiaberto para o aberto, são exigíveis os mesmos requisitos
da progressão do fechado para o semiaberto, acrescidos dos previstos nos arts. 113 a 115 da
LEP:

41
Art. 113. O ingresso do condenado em regime aberto supõe a aceitação de seu programa

e das condições impostas pelo Juiz.

Art. 114. Somente poderá ingressar no regime aberto o condenado que:

I - estiver trabalhando ou comprovar a possibilidade de fazê-lo imediatamente;

II - apresentar, pelos seus antecedentes ou pelo resultado dos exames a que foi

submetido, fundados indícios de que irá ajustar-se, com autodisciplina e senso de

responsabilidade, ao novo regime.

Parágrafo único. Poderão ser dispensadas do trabalho as pessoas referidas no artigo 117

desta Lei.

Art. 115. O Juiz poderá estabelecer condições especiais para a concessão de regime

aberto, sem prejuízo das seguintes condições gerais e obrigatórias:

I - permanecer no local que for designado, durante o repouso e nos dias de folga;

II - sair para o trabalho e retornar, nos horários fixados;

III - não se ausentar da cidade onde reside, sem autorização judicial;

IV - comparecer a Juízo, para informar e justificar as suas atividades, quando for

determinado.

Veja que o legislador quer ver o sentenciado trabalhando ou exercendo ocupação lícita.
Além disso, a progressão pressupõe a confiança do Estado no sentenciado.

9.2.3 – observações gerais acerca da progressão de regime

9.2.3.1 – prática de falta grave

Se o reeducando praticar falta grave, o tempo já cumprido de pena é zerado (ex.: o prazo de
1/6 da pena tem de ser novamente cumprido), ou é computado? Cometida falta grave pelo
condenado no curso do cumprimento da pena, inicia-se, a partir de tal data, a nova
contagem da fração de 1/6 (2/5 ou 3/5, conforme o caso, se o crime for hediondo) da pena
como requisito da progressão. Esta é a posição do STF (HC 85.141-0).

9.2.3.2 – progressão em salto

É possível progressão em salto (pulando do fechado diretamente para o aberto)? Não existe
progressão em salto, salvo se comprovada a culpa do Estado na transferência do reeducando
para regime menos rigoroso. É o caso do sujeito que permanece no fechado, quando deveria
progredir ao semiaberto, e permanece tanto tempo que, se tivesse permanecido no
semiaberto, já teria adquirido o direito de progredir ao aberto.

42
9.2.3.3 – cumprimento do regime aberto em domicílio

Conquistado o regime aberto pelo preso (o menos rigoroso existente), permite-se, em casos
excepcionais, que ele cumpra o regime em domicílio (prisão domiciliar: art. 117 da LEP).
Observe que esta prisão não se confunde com a do art. 318 do CPP. Aqui, há uma alternativa
ao regime aberto. Lá, uma cautelar alternativa à prisão preventiva.

Art. 117. Somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em

residência particular quando se tratar de:

I - condenado maior de 70 (setenta) anos;

II - condenado acometido de doença grave;

III - condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental;

IV - condenada gestante.

A hipótese do inciso I não foi alterada pelo Estatuto do Idoso. Idoso é aquele com idade igual
ou superior a 60 anos. A doutrina e a jurisprudência entendem que o legislador somente
quis beneficiar o idoso com mais de 70 anos.

O STF entendeu que o HIV, por si só, não é doença grave. Doença grave é aquela cujo
tratamento fica difícil ou impossível no sistema penitenciário.

Até o inciso II, falava-se em “condenado”, para abranger a pessoa, homem ou mulher. No
caso do inciso III, fala-se somente em “condenada”. Ou seja, abrange somente a mulher com
filho menor ou deficiente.

É correto conceder o benefício somente à mulher, nesse caso? Em face do art. 5º, I, da CR
(isonomia do homem com a mulher), o art. 117, III, da LEP também será aplicado ao
sentenciado do sexo masculino, desde que comprove a dependência do filho.

Diferentemente da prisão domiciliar alternativa à preventiva, para incidência da hipótese do


inciso IV não se exige que a gravidez seja de risco ou haja um mês específico da gravidez.

Apesar de a doutrina entender que o rol do art. 117 da LEP é taxativo, em alguns casos a
jurisprudência tem entendido que é possível a prisão domiciliar em hipóteses não
expressamente previstas na lei. De acordo com o STJ e o STF, admite-se a concessão da
prisão domiciliar quando o sentenciado se encontra cumprindo pena em estabelecimento
destinado ao regime mais rigoroso, por inexistência de vaga, situação que poderia resultar
em desvio de execução. Não havendo vagas no aberto, o sujeito não pode permanecer no
semiaberto.

43
Além disso, de acordo com o STF, é garantia dos advogados, enquanto não transitada em
julgado a sentença condenatória, a permanência em estabelecimento que possua Sala de
Estado Maior. Inexistindo tal Sala na localidade, garante-se ao advogado seu recolhimento
em prisão domiciliar. Essa posição acabou sendo o berço da criação da prisão domiciliar
cautelar alternativa à preventiva.

O condenado beneficiado pelo art. 117 da LEP pode ser obrigado ao uso de aparelho que
permita sua monitoração eletrônica (art. 146-B, IV, da LEP):

Art. 146-B. O juiz poderá definir a fiscalização por meio da monitoração eletrônica

quando: (…)

IV - determinar a prisão domiciliar;

Conforme ressaltado, a prisão domiciliar do art. 117 da LEP não se confunde com a prisão
domiciliar provisória do art. 318 do CPP, incluído pela Lei 12.403/2011 (sequer os requisitos
são os mesmos):

Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar [veja que ela é

substitutiva da prisão preventiva, não do regime aberto] quando o agente for:

I - maior de 80 (oitenta) anos [a LEP fala em 70 anos];

II - extremamente debilitado por motivo de doença grave [a LEP não fala em

“extremamente”];

III - imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade [a

LEP não fala em 6 anos] ou com deficiência;

IV - gestante a partir do 7º (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco.

Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos

estabelecidos neste artigo.

Prisão domiciliar do art. 117 da LEP Prisão domiciliar do art. 318 do CPP
Substitui regime aberto (casa do albergado). Substitui prisão preventiva.
É uma prisão-pena. É medida cautelar.
Hipóteses: Hipóteses:
i) maior de 70 anos; i) maior de 80 anos;
ii) doença grave; ii) extremamente debilitado por doença grave;
iii) filho menor ou deficiente; iii) filho menor de seis anos ou deficiente;
iv) gestante. iv) gestante, no sétimo mês ou gravidez de alto
risco.

44
9.3 – Regressão de regime (art. 118 da LEP)

A progressão ocorre do regime fechado para o semiaberto e do semiaberto ao aberto. A


regressão é o fenômeno exatamente oposto. Ela ocorre do regime aberto ao semiaberto, do
semiaberto ao fechado e, inclusive, diretamente do aberto ao fechado.

9.3.1 – hipóteses de regressão

9.3.1.1 – prática de fato definido como crime doloso ou falta grave

Art. 118. A execução da pena privativa de liberdade ficará sujeita à forma regressiva, com

a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando o condenado:

I - praticar fato definido como crime doloso ou falta grave; (...)

§ 2º Nas hipóteses do inciso I e do parágrafo anterior, deverá ser ouvido previamente o

condenado.

Na hipótese do art. 118, I, da LEP, basta o cometimento do crime, não se exigindo o trânsito
em julgado. É, entretanto, imprescindível a oitiva do reeducando, nos termos do art. 118, §
2º. Ou seja, é imprescindível que se estabeleça o contraditório.

9.3.1.2 – condenação por crime anterior que gere incompatibilidade de regime

Art. 118 (...) II - sofrer condenação, por crime anterior, cuja pena, somada ao restante da

pena em execução, torne incabível o regime (artigo 111).

Nova condenação, gerando incompatibilidade de regime, também ensejará a regressão.


Observe que, aqui, não há contraditório. O art. 118, § 2º, expressamente dispensa a oitiva
do reeducando. A questão é objetiva, matemática. O reeducando já se defendeu do crime.

9.3.1.3 – frustração dos fins da execução e não pagamento da multa cumulativamente


imposta

Art. 118 (...) § 1º O condenado será transferido do regime aberto se, além das hipóteses

referidas nos incisos anteriores, frustrar os fins da execução ou não pagar, podendo, a

multa cumulativamente imposta.

A segunda hipótese do art. 118, § 1º, da LEP (“não pagar, podendo, a multa”), foi
implicitamente revogada pela Lei 9.268/1996, que mudou o tratamento da multa no Brasil, a
qual, ainda que mantenha sua natureza penal, não é mais conversível em privativa de
liberdade, mas executada como dívida ativa. Veja que permitir a regressão de regime, nesse
caso, representaria uma conversão indireta, que não é mais admitida.

45
“Frustrar os fins da execução” é, portanto, a única hipótese de regressão prevista nesse
parágrafo. A hipótese respeita o contraditório: o reeducando tem de ser ouvido.

9.3.2 – observações gerais

É possível a regressão em saltos (o art. 118, caput, expressamente admite essa


possibilidade).

Apesar da falta de previsão legal, prevalece na jurisprudência que é possível a regressão


preventiva ou cautelar. O juiz, dentro do poder geral de cautela que lhe é inerente, não só
pode como deve determinar, de imediato, o retorno do sentenciado ao regime mais severo,
observando o fumus boni iuris e o periculum in mora.

Em prova de Defensoria Pública, deve-se questionar a existência de poder geral de cautela


no processo penal, restritivo ou privativo da liberdade. Deve-se sustentar que tal poder não
pode existir sem previsão legal (princípios da legalidade e da taxatividade).

Nos termos da lei, a prática de uma mesma falta grave gera sanção disciplinar, regressão e
perda de parte dos dias remidos (consequências cumulativas). Seria essa previsão um bis in
idem?

O STF decidiu que não há que se falar em bis in idem (ou duplo apenamento), pois a
regressão de regime decorre da própria LEP, que estabelece também a sanção disciplinar e a
perda de outros benefícios de execução penal. Ou seja, o fundamento é, em síntese, que
tudo decorre da lei. O raciocínio é o mesmo do direito penal: previsão de várias espécies de
sanção, todas decorrentes da lei (ex.: há crimes que ensejam, ao mesmo tempo, privação de
liberdade, multa e restrição de direitos).

9.4 - Autorização de saída (para o preso provisório ou definitivo)

A autorização de saída é gênero, que tem duas espécies: i) permissão de saída (arts. 120 e
121 da LEP); e ii) saída temporária (arts. 122 a 125 da LEP).

9.4.1 – permissão de saída

Art. 120. Os condenados que cumprem pena em regime fechado ou semiaberto e os

presos provisórios poderão obter permissão para sair do estabelecimento, mediante

escolta, quando ocorrer um dos seguintes fatos:

I - falecimento ou doença grave do cônjuge, companheira, ascendente, descendente ou

irmão;

II - necessidade de tratamento médico (parágrafo único do artigo 14).

46
Parágrafo único. A permissão de saída será concedida pelo diretor do estabelecimento

onde se encontra o preso.

Art. 121. A permanência do preso fora do estabelecimento terá a duração necessária à

finalidade da saída.

9.4.1.1 – beneficiários da permissão de saída

São beneficiários da permissão de saída os presos em regime fechado e semiaberto e o


preso provisório (o preso preventivamente tem direito à permissão de saída).

9.4.1.2 – hipóteses de permissão de saída

Nos termos do art. 120 da LEP, são hipóteses de permissão de saída:

i) falecimento ou doença grave do cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou


irmão (“CCADI”);

ii) tratamento médico (a jurisprudência insere nesta hipótese também o tratamento


odontológico).

9.4.1.3 – autoridade competente

Permite a saída o diretor do estabelecimento, e não o juiz. Muitos advogados formulam tal
pedido ao juiz, o que não é necessário. Todavia, havendo discordância do Diretor, o pedido
pode ser formulado ao magistrado, cuja vontade substituirá a daquele.

9.4.1.4 – características

São características da permissão de saída:

i) existência de escolta (ou seja, vigilância direta);

ii) inexistência de prazo determinado.

9.4.2 – saída temporária

9.4.2.1 – beneficiários da saída temporária

São beneficiários da saída temporária somente os presos em regime semiaberto que


obedeçam às condições do art. 123 da LEP. Além disso, é essencial que a saída seja
compatível com os objetivos da pena.

Art. 122. Os condenados que cumprem pena em regime semiaberto poderão obter

47
autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, nos

seguintes casos: (...)

Art. 123. A autorização será concedida por ato motivado do Juiz da execução, ouvidos o

Ministério Público e a administração penitenciária e dependerá da satisfação dos

seguintes requisitos:

I - comportamento adequado;

II - cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena, se o condenado for primário, e 1/4

(um quarto), se reincidente;

III - compatibilidade do benefício com os objetivos da pena.

No que se refere ao art. 123, II, deve ser observada a Súmula 40 do STJ: considera-se o
tempo de cumprimento da pena no regime fechado:

Súmula 40 - Para obtenção dos benefícios de saída temporária e trabalho externo,

considera-se o tempo de cumprimento da pena no regime fechado.

9.4.2.2 – hipóteses de saída temporária

Art. 122. Os condenados que cumprem pena em regime semiaberto poderão obter

autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, nos

seguintes casos:

I - visita à família;

II - frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou

superior, na Comarca do Juízo da Execução;

III - participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social.

Segundo o art. 122 da LEP, são hipóteses de saída temporária:

i) visita à família;

ii) estudos;

iii) atividade de ressocialização. O Belo, preso por associação ao tráfico, quando chegou ao
semiaberto, pediu para sair para a realização de shows beneficentes.

9.4.2.3 – autoridade competente

A autoridade competente para a autorização da saída temporária é o juiz da execução (e não


mais o Diretor do estabelecimento), ouvidos o MP e a autoridade penitenciária (para atestar
a presença das condições do art. 123 da LEP):

48
Art. 123. A autorização será concedida por ato motivado do Juiz da execução, ouvidos o

Ministério Público e a administração penitenciária e dependerá da satisfação dos

seguintes requisitos:

I - comportamento adequado;

II - cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena, se o condenado for primário, e 1/4

(um quarto), se reincidente;

III - compatibilidade do benefício com os objetivos da pena.

9.4.2.4 – características

São características da saída temporária:

i) observância do prazo, se o caso (art. 124, §§ 2º e 3º):

No caso de visita à família ou de atividade de ressocialização, o reeducando tem direito a 5


saídas, de no máximo 7 dias cada. Veja que, nesse caso, ele não tem direito a cinco saídas de
cada modalidade. São cinco saídas somadas (ex.: 3 para visita à família e 2 para atividade de
ressocialização). Em se tratando de estudos, o reeducando tem direito a sair pelo tempo
necessário para a atividade.

Art. 124. A autorização será concedida por prazo não superior a 7 (sete) dias, podendo ser

renovada por mais 4 (quatro) vezes durante o ano.

§ 2º Quando se tratar de frequência a curso profissionalizante, de instrução de ensino

médio ou superior, o tempo de saída será o necessário para o cumprimento das

atividades discentes.

§ 3º Nos demais casos, as autorizações de saída somente poderão ser concedidas com

prazo mínimo de 45 (quarenta e cinco) dias de intervalo entre uma e outra.

ii) inexistência de escolta, apesar de ser possível monitoração eletrônica.

Art. 122. (...) Parágrafo único. A ausência de vigilância direta não impede a utilização de

equipamento de monitoração eletrônica pelo condenado, quando assim determinar o juiz

da execução.

9.4.2.5 – revogação da saída temporária

Art. 125. O benefício será automaticamente revogado quando o condenado praticar fato

definido como crime doloso, for punido por falta grave, desatender as condições impostas

na autorização ou revelar baixo grau de aproveitamento do curso. (...)

São hipóteses de revogação da saída temporária:

49
i) prática de fato definido como crime doloso: apesar de a lei não ressaltar, o beneficiário
deve ser ouvido, estabelecendo-se o contraditório e a ampla defesa;

ii) punição por falta grave: neste caso, a oitiva do beneficiário é dispensada, na medida em
que ele já foi ouvido no processo disciplinar interno;

iii) desatendimento injustificado das condições impostas: aqui, também deve o beneficiário
ser ouvido;

iv) beneficiário revele baixo grau de aproveitamento do curso em que estuda: neste caso,
entende a maioria que o beneficiário deve ser ouvido.

Revogado o benefício, o preso recuperará o direito à saída temporária nas hipóteses do art.
125, parágrafo único, da LEP.

Art. 125 (...) Parágrafo único. A recuperação do direito à saída temporária dependerá da

absolvição no processo penal, do cancelamento da punição disciplinar ou da

demonstração do merecimento do condenado.

9.5 – Remição

“Remissão” (com “ss”) significa perdão. A remição (com “ç”) teve sua disciplina alterada pela
recente Lei 12.433/2011. Há duas formas de remição: pelo trabalho e pelo estudo.

Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá

remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena.

9.5.1 – remição pelo trabalho

O trabalho é misto de direito (art. 41) e dever (art. 39) do preso que cumpre pena em regime
fechado ou semiaberto. A cada três dias trabalhados, o preso elimina um dia de pena (art.
126, § 1º, II, da LEP).

Art. 126 (…) § 1º A contagem de tempo referida no caput será feita à razão de:

II - 1 (um) dia de pena a cada 3 (três) dias de trabalho.

9.5.2 – remição pelo estudo

Antes da Lei 12.433/2011, a remissão pelo estudo já era autorizada pela jurisprudência
(Súmula 341 do STJ)

Súmula 341 - A frequência a curso de ensino formal é causa de remição de parte do

tempo de execução de pena sob regime fechado ou semiaberto.

50
Tanto que, antes mesmo da lei nova, já tinha havido alteração do art. 83 da LEP,
determinando que os estabelecimentos prisionais passassem a ter bibliotecas e salas de
estudos:

Art. 83. O estabelecimento penal, conforme a sua natureza, deverá contar em suas

dependências com áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho,

recreação e prática esportiva.

§ 1º Haverá instalação destinada a estágio de estudantes universitários. (Renumerado

pela Lei nº 9.046, de 1995) (...)

§ 4º Serão instaladas salas de aulas destinadas a cursos do ensino básico e

profissionalizante.(Incluído pela Lei nº 12.245, de 2010)

A Lei 12.433/2011 positivou o benefício.

A jurisprudência não previa o critério de remição pelo estudo (regimes de cabimento, forma
de cálculo dos dias remidos etc.). Com o advento da nova lei, restou definido que ela cabe
nos três tipos de regime (fechado, semiaberto e aberto) e no livramento condicional:

Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá

remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena. (…)

§ 6º O condenado que cumpre pena em regime aberto ou semiaberto e o que usufrui

liberdade condicional poderão remir, pela frequência a curso de ensino regular ou de

educação profissional, parte do tempo de execução da pena ou do período de prova,

observado o disposto no inciso I do § 1º deste artigo.

Veja que o regime fechado encontra-se no caput do art. 126, sendo que o aberto, o
semiaberto e o livramento condicional foram previstos no § 6º.

A cada doze horas de frequência escolar, divididas, no mínimo, em três dias, há eliminação
de um dia da pena:

Art. 126 (...) § 1º A contagem de tempo referida no caput será feita à razão de:

I - 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar - atividade de ensino

fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação

profissional - divididas, no mínimo, em 3 (três) dias;

A atividade de estudo pode ser desenvolvida no sistema presencial ou telepresencial (a


distância), nos termos do art. 126, § 2º. Abrange, inclusive, estudo por correspondência:

Art. 126 (...) § 2º As atividades de estudo a que se refere o § 1º deste artigo poderão ser

51
desenvolvidas de forma presencial ou por metodologia de ensino a distância e deverão

ser certificadas pelas autoridades educacionais competentes dos cursos frequentados.

A conclusão de ensino fundamental, médio ou superior durante o cumprimento da pena


gera um bônus:

Art. 126 (...) § 5º O tempo a remir em função das horas de estudo será acrescido de 1/3

(um terço) no caso de conclusão do ensino fundamental, médio ou superior durante o

cumprimento da pena, desde que certificada pelo órgão competente do sistema de

educação.

9.5.3 – observações gerais relativas às duas espécies de remição

É possível que o reeducando cumule a remição pelo trabalho e pelo estudo:

Art. 126 (...) § 3º Para fins de cumulação dos casos de remição, as horas diárias de

trabalho e de estudo serão definidas de forma a se compatibilizarem.

O sujeito tem um mínimo de horas para trabalhar e para estudar. Se o preso conseguir
conciliá-las, somando-as, poderá ser beneficiar de ambas.

O preso impossibilitado, por acidente, de prosseguir no trabalho ou nos estudos continuará


a beneficiar-se com a remição:

Art. 126 (...) § 4º O preso impossibilitado, por acidente, de prosseguir no trabalho ou nos

estudos continuará a beneficiar-se com a remição.

A provocação dolosa de acidente não permite remição e configura falta grave (art. 50, IV, da
LEP).

Aplica-se o instituto da remição nas prisões cautelares: preso provisório, inclusive com
condenação, pode trabalhar e estudar.

Art. 126 (...) § 7º O disposto neste artigo aplica-se às hipóteses de prisão cautelar.

O cometimento de falta grave pelo preso durante o cumprimento da pena implica a perda
de 1/3 do tempo remido (art. 127):

Art. 127. Em caso de falta grave, o juiz poderá revogar até 1/3 (um terço) do tempo

remido, observado o disposto no art. 57, recomeçando a contagem a partir da data da

infração disciplinar. (Redação dada pela Lei nº 12.433, de 2011)

52
Antes dessa lei, a falta grave implicava na perda de todo o tempo remido, mesmo que
houvesse remição homologada pelo juiz. Esse é inclusive o texto da Súmula Vinculante 9,
que perdeu o sentido, devendo ser cancelada:

Súmula Vinculante 9 - O DISPOSTO NO ARTIGO 127 DA LEI Nº 7.210/1984 (LEI DE

EXECUÇÃO PENAL) FOI RECEBIDO PELA ORDEM CONSTITUCIONAL VIGENTE, E NÃO SE LHE

APLICA O LIMITE TEMPORAL PREVISTO NO CAPUT DO ARTIGO 58.

Repare que a Lei fala em “até 1/3”, ou seja, a perda dos dias remidos pode ser inferior a essa
fração. Para o STJ, caso o juiz aplique a perda em 1/3, será indispensável que ele
fundamente a decisão, expondo as razões pelas quais fez incidir a fração máxima
(Informativo 539, HC 282.265). No dimensionamento do quantum, o juiz deve utilizar os
critérios do art. 57 da LEP:

Art. 57. Na aplicação das sanções disciplinares, levar-se-ão em conta a natureza, os

motivos, as circunstâncias e as conseqüências do fato, bem como a pessoa do faltoso e

seu tempo de prisão. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 2003) (...)

Dessa forma, ao decretar a perda dos dias remidos, o magistrado não pode apenas repetir o
disposto no art. 57 da LEP, deixando de apontar elementos concretos do caso que,
efetivamente, evidenciem a necessidade de decretação da perda dos dias remidos na fração
máxima de 1/3.

Se o liberado pratica novo crime durante a vigência do livramento condicional, isso não
significa também o cometimento de falta grave, para fins de perda de 1/3 dos dias remidos
(Informativo 539 do STJ, HC 271.907).

O tempo de remição é considerado para todos os benefícios de execução penal (progressão


de regime, livramento condicional etc.):

Art. 128. O tempo remido será computado como pena cumprida, para todos os efeitos.

(Redação dada pela Lei nº 12.433, de 2011)

Os tribunais não têm admitido “remição ficta”, na impossibilidade de o preso trabalhar ou


estudar em face da estrutura do estabelecimento em que se encontra. Essa não é tese a ser
defendida em prova da Defensoria Pública, que entende tratar-se de direito, a ser
concretizado pelo Estado.

Não tem direito à remição o agente sujeito a medida de segurança. Já não tinha antes e
continua não tendo. A lei nova abrangeu somente o preso provisório.

53
O procedimento da remição está previsto no art. 129 da LEP, cumulado com o art. 126, § 8º,
do mesmo diploma legal:

Art. 129. A autoridade administrativa encaminhará mensalmente ao juízo da execução

cópia do registro de todos os condenados que estejam trabalhando ou estudando, com

informação dos dias de trabalho ou das horas de frequência escolar ou de atividades de

ensino de cada um deles.

§ 1º O condenado autorizado a estudar fora do estabelecimento penal deverá comprovar

mensalmente, por meio de declaração da respectiva unidade de ensino, a frequência e o

aproveitamento escolar.

§ 2º Ao condenado dar-se-á a relação de seus dias remidos.

Art. 126 (...) § 8º A remição será declarada pelo juiz da execução, ouvidos o Ministério

Público e a defesa. (Incluído pela Lei nº 12.433, de 2011)

A Lei 12.433/2011 é mais benéfica, devendo retroagir. Ela retroagirá, principalmente, no


ponto que se refere à perda dos dias remidos: todos aqueles que, antes dela, perderam
todos os dias remidos, pedirão agora recontagem.

9.6 - Livramento condicional

9.6.1 – noções introdutórias

O livramento condicional é uma liberdade antecipada. Trata-se do incidente de execução


penal que antecipa a liberdade ao condenado que cumpriu parte da pena privativa de
liberdade que lhe foi imposta, mediante a observância de certas condições.

É direito subjetivo do reeducando, não uma faculdade do juiz. Decorre do sistema


progressivo. Cuidado, todavia, pois ainda que decorra do sistema progressivo, a antecipação
da liberdade não pressupõe a passagem por todos os regimes prisionais.

9.6.2 – requisitos

9.6.2.1 – objetivos

São requisitos objetivos do livramento condicional:

i) a pena imposta na sentença deve ser privativa de liberdade (reclusão, detenção ou prisão
simples);

ii) a pena concreta a ser cumprida deve ser igual ou superior a dois anos;

54
iii) cumprimento de parcela da pena:

O condenado primário de bons antecedentes tem de cumprir mais de 1/3 da pena, o


condenado reincidente tem de cumprir mais de metade da pena e o condenado a crime
hediondo ou equiparado tem de cumprir mais de 2/3, desde que não reincidente específico.

Não há previsão na lei acerca de prazo para o condenado primário portador de maus
antecedentes, razão pela qual, no silêncio, tem de prevalecer a interpretação a favor do réu:
ele tem de ser equiparado ao de bons antecedentes.

iv) reparação do dano.

9.6.2.2 – subjetivos

São requisitos subjetivos do livramento condicional:

i) comportamento carcerário satisfatório:

Segundo a 6ª Turma do STJ (Informativo 535, REsp 1.325.182-DF), para a concessão de


livramento condicional, a avaliação da satisfatoriedade do comportamento do executado
não pode ser limitada a um período absoluto e curto de tempo (ex.: análise apenas dos
últimos 6 meses do comportamento do preso). Embora não se possa inviabilizar a concessão
do livramento condicional apenas porque durante a execução penal o condenado cometeu
uma falta grave, o comportamento de um recluso do sistema penitenciário há de ser aferido
em sua inteireza, por todo o período em que esteve cumprindo pena.

ii) bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído (hoje, deve-se considerar que o
sujeito tem de apresentar bom desempenho também nos estudos);

iii) aptidão para prover a própria subsistência mediante trabalho honesto;

iv) em se tratando de crime violento, cessação da periculosidade do agente:

Trata-se de expressão criticada pela doutrina, na medida em que a “periculosidade” seria


inerente aos inimputáveis. Significa que o juiz deve ter dados concretos demonstrando que o
sujeito não voltará a delinquir. Essa análise faz-se mediante exame criminológico.

Os requisitos são cumulativos. Faltando um deles, o agente não tem direito ao benefício.

9.6.3 – processamento do livramento condicional

55
Antes da Lei 10.792/2003 Depois da Lei 10.792/2003
O juiz, antes de decidir, ouvia o MP e o Conselho O juiz, antes de decidir, ouve o MP e a defesa.
Penitenciário. Não há mais parecer do Conselho Penitenciário.
9.6.4 – período de prova

No livramento condicional, não há período de prova previsto em lei, na medida em que ele
observará o restante da pena privativa de liberdade a ser cumprida.

O período de prova tem início com a audiência admonitória, realizada no estabelecimento


onde está sendo cumprida a pena (art. 137 da LEP), oportunidade em que será comunicado
o rol de condições para a concessão do benefício:

Art. 137. A cerimônia do livramento condicional será realizada solenemente no dia

marcado pelo Presidente do Conselho Penitenciário, no estabelecimento onde está sendo

cumprida a pena, observando-se o seguinte:

I - a sentença será lida ao liberando, na presença dos demais condenados, pelo Presidente

do Conselho Penitenciário ou membro por ele designado, ou, na falta, pelo Juiz;

II - a autoridade administrativa chamará a atenção do liberando para as condições

impostas na sentença de livramento;

III - o liberando declarará se aceita as condições.

§ 1º De tudo em livro próprio, será lavrado termo subscrito por quem presidir a cerimônia

e pelo liberando, ou alguém a seu rogo, se não souber ou não puder escrever.

§ 2º Cópia desse termo deverá ser remetida ao Juiz da execução.

9.6.5 – condições

O livramento é condicional justamente por conta da necessidade de observância dessas


condições impostas pela lei e pelo juiz ao condenado. Há condições obrigatórias e
facultativas.

9.6.5.1 – condições obrigatórias (art. 85 do CP e art. 132, § 1º, da LEP)

Art. 85 - A sentença especificará as condições a que fica subordinado o livramento.

Art. 132 (...) § 1º Serão sempre impostas ao liberado condicional as obrigações seguintes:

a) obter ocupação lícita, dentro de prazo razoável se for apto para o trabalho;

b) comunicar periodicamente ao Juiz sua ocupação;

c) não mudar do território da comarca do Juízo da execução, sem prévia autorização

deste.

56
São condições obrigatórias do livramento condicional:

i) obter ocupação lícita dentro de prazo razoável;

ii) comunicar periodicamente ao Juiz sua ocupação. Veja que a lei fala em periodicamente,
mas não existe que a periodicidade seja necessariamente mensal;

iii) não mudar da Comarca sem prévia autorização do juízo.

9.6.5.2 – condições facultativas (art. 132, § 2º, da LEP)

Art. 132 (...) § 2º Poderão ainda ser impostas ao liberado condicional, entre outras

obrigações, as seguintes:

a) não mudar de residência sem comunicação ao Juiz e à autoridade incumbida da

observação cautelar e de proteção;

b) recolher-se à habitação em hora fixada;

c) não frequentar determinados lugares.

São condições facultativas do livramento condicional:

i) não mudar de residência sem a autorização do juízo:

Esta condição não se confunde com a de não mudar de comarca, que é obrigatória.

ii) recolher-se à habitação em hora fixada;

iii) não frequentar determinados lugares:

Para saber quais os lugares, deve-se analisar o caso concreto. Alguém que tenha problemas
de alcoolismo não poderá frequentar bares e congêneres, por exemplo.

iv) outras condições, a critério do juiz:

Isso significa que, no caso das condições facultativas, diversamente das obrigatórias, o rol é
exemplificativo.

9.6.6 – revogação do livramento condicional

A revogação do livramento condicional também pode ser obrigatória e facultativa.

9.6.6.1 – revogação obrigatória

As hipóteses de revogação obrigatória do livramento condicional estão previstas no art. 86


do CP:

57
Art. 86 - Revoga-se o livramento, se o liberado vem a ser condenado a pena privativa de

liberdade, em sentença irrecorrível:

I - por crime cometido durante a vigência do benefício;

II - por crime anterior, observado o disposto no art. 84 deste Código.

9.6.6.1.1 – condenação definitiva a pena privativa de liberdade por crime cometido durante
a vigência do benefício

Esta hipótese é o caso, por exemplo, do condenado por roubo que estava no livramento
condicional é condenado por novo crime a pena privativa de liberdade.

São consequências da revogação do livramento condicional com base no inciso I do art. 86


do CP:

i) o tempo em liberdade não é computado como pena cumprida (como se o sujeito não
houvesse galgado o benefício);

ii) não cabe novo livramento condicional para o primeiro crime (no exemplo, o roubo), tendo
a pena aplicada de ser integralmente cumprida;

iii) o restante da pena cominada ao crime não pode se somar à nova pena para efeito da
concessão do novo livramento (se a pena para o novo crime for inferior a dois anos,
incabível, também com relação a esta, o benefício).

9.6.6.1.2 – condenação definitiva a pena privativa de liberdade por crime anterior ao período
de prova

Esta hipótese é o caso, por exemplo, do condenado por roubo, em livramento condicional, é
condenado por outro crime praticado antes do benefício.

As consequências desta hipótese de revogação obrigatória são exatamente opostas às da


primeira:

i) o período de prova é computado como pena cumprida;

ii) cabe novo livramento para o primeiro crime (no exemplo dado, o roubo): o sujeito, nesta
hipótese, não trai a confiança do juízo;

iii) permite-se a soma das penas (art. 84 do CP):

Art. 84 - As penas que correspondem a infrações diversas devem somar-se para efeito do

livramento.

58
9.6.6.2 – revogação facultativa

As hipóteses de revogação facultativa do livramento condicional estão previstas no art. 87


do CP:

Art. 87 - O juiz poderá, também, revogar o livramento, se o liberado deixar de cumprir

qualquer das obrigações constantes da sentença, ou for irrecorrivelmente condenado, por

crime ou contravenção, a pena que não seja privativa de liberdade.

i) descumprimento das obrigações constantes na sentença;

ii) condenação irrecorrível, a pena não privativa de liberdade, por crime praticado antes ou
durante o benefício;

iii) condenação irrecorrível, a pena não privativa de liberdade, por contravenção penal
praticada antes ou durante o benefício.

No caso de revogação facultativa, o juiz pode: i) revogar o livramento; ii) alterar suas
condições; e iii) advertir o apenado.

Infração penal Pena Consequência


(condenação
definitiva)
Crime Privativa de liberdade Revogação obrigatória
Crime Não privativa de liberdade Revogação facultativa
Contravenção penal Não privativa de liberdade Revogação facultativa
Contravenção penal Privativa de liberdade Não há consequência
(prisão simples) (não existe previsão legal)

A não previsão de consequência para o caso de condenação definitiva por contravenção


penal a prisão simples foi “cochilo” do legislador, e é isso o que cai em concurso.

9.6.7 – Súmula 441 do STJ

Súmula 441 - A falta grave não interrompe o prazo para obtenção de livramento

condicional.

A razão da existência desta súmula é a ausência de previsão legal específica. A falta grave
interfere em vários outros prazos, como o da remição etc. Mas não para fins do prazo de
livramento condicional.

9.6.8 – prorrogação do período de prova

59
Art. 89 - O juiz não poderá declarar extinta a pena, enquanto não passar em julgado a

sentença em processo a que responde o liberado, por crime cometido na vigência do

livramento.

Inicialmente, cumpre observar que somente processo prorroga o período de prova. Se o


inquérito policial não se transformar em processo até o final do período de prova, o juiz
deve declarar extinta a pena.

Somente no caso de crime cometido na vigência do livramento condicional é que estará


autorizada a prorrogação. Crime praticado antes da vigência do livramento não prorroga o
período de prova porque, neste caso, o tempo de liberdade é pena cumprida. Se, até o final,
não houver condenação definitiva, considera-se que o sujeito cumpriu a pena.

Prorroga-se o período de prova, mas não se prorrogam as condições.

Art. 90 - Se até o seu término o livramento não é revogado, considera-se extinta a pena

privativa de liberdade.

10 – Agravo em execução (art. 197 da LEP)


Art. 197. Das decisões proferidas pelo Juiz caberá recurso de agravo, sem efeito

suspensivo.

O art. 197 da LEP substitui os incisos ligados à execução penal no Recurso em Sentido Estrito
(art. 581 do CPP).

10.1 – Efeitos do agravo em execução

O agravo em execução possui efeito devolutivo e regressivo (possibilidade de juízo de


retratação). Em regra, o recurso não tem efeito suspensivo. Há, entretanto, um único caso
em que o agravo em execução possui efeito suspensivo, previsto no art. 179 da LEP:
somente depois de transitada em julgado a sentença que o juiz pode liberar o portador de
anomalia psíquica (inimputável ou semi-imputável).

Art. 179. Transitada em julgado a sentença, o Juiz expedirá ordem para a desinternação

ou a liberação.

Portanto, caso o MP agrave da decisão que desinterna o inimputável ou libera do


tratamento ambulatorial o semi-imputável, enquanto o agravo não transitar em julgado, o
doente continuará internado ou em tratamento. Essa é uma hipótese de efeito suspensivo.

10.2 – Prazo para a interposição do agravo

60
O prazo para a interposição do agravo em execução é de cinco dias (Súmula 700 do STF):

Súmula 700 - É DE CINCO DIAS O PRAZO PARA INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO CONTRA

DECISÃO DO JUIZ DA EXECUÇÃO PENAL.

10.3 – Jurisprudência dos Tribunais Superiores

Informativo 513: Não é cabível a impetração de habeas corpus em substituição à utilização


de agravo em execução na hipótese em que não há ilegalidade manifesta relativa a matéria
de direito cuja constatação seja evidente e independa de qualquer análise probatória. (HC
238.422-BA, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 6/12/2012.)

61
LEI DOS CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL (LEI
7.492/1986)

1 – Conceito de Sistema Financeiro Nacional

A Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional também é conhecida como a “Lei dos
Crimes de Colarinho Branco”.

Sistema Financeiro Nacional, em sentido estrito, significa o sistema referente às finanças


públicas, os seja, o Sistema Financeiro refere-se à gestão dos serviços públicos pelo Estado e
outras entidades públicas. Ainda o Sistema Financeiro Nacional significa “a massa de
dinheiro e crédito que o governo e os órgãos a ele subordinados movimentam num país”
(Paulo Sandroni).

A Lei 7.492/1986 não protege exclusivamente o Sistema Financeiro Nacional em sentido


estrito. De acordo com o art. 1º, ela protege também o mercado financeiro, o mercado de
capitais, os seguros, o mercado de câmbio, os consórcios, as entidades de capitalização,
qualquer outro tipo de poupança etc. (Manoel Pedro Pimentel).

2 – Conceito de Instituição Financeira (art. 1º da Lei 7.492/1986)

O art. 1º é uma norma penal explicativa, na medida em que traz o conceito de instituição
financeira para efeitos penais:

Art. 1º Considera-se instituição financeira, para efeito desta lei, a pessoa jurídica de

direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória,

cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros

(Vetado) de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão,

distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários.

Parágrafo único. Equipara-se à instituição financeira:

I - a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou

qualquer tipo de poupança, ou recursos de terceiros;

II - a pessoa natural que exerça quaisquer das atividades referidas neste artigo, ainda que

de forma eventual.

Veja que, nos termos do dispositivo, instituição financeira pode ser tanto a pessoa jurídica
quanto a natural. Para a doutrina, o conceito de instituição financeira, para os efeitos desta
lei, é mais do que amplo, é amplíssimo.

62
De acordo com a lei, são instituições financeiras as pessoas jurídicas de direito público
(Banco do Brasil, BACEN, BNDES, Conselho Financeiro Nacional) ou privado (bancos) que
tenham atividade principal ou acessória, cumulativa ou não, de captação, intermediação ou
aplicação de recursos financeiros de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira ou valores
mobiliários.

Para que seja instituição financeira, não é necessário que essa atividade envolvendo a
captação de recursos de terceiros seja a única ou a principal atividade da empresa. Se a
instituição trabalha com recursos financeiros ou valores mobiliários de terceiros, ela é uma
instituição financeira, ainda que essa atividade não seja a única ou a principal atividade dela.

Ainda são consideradas instituições financeiras por equiparação pessoas jurídicas que
captem ou administrem recursos financeiros de terceiros, como as seguradoras, as casas de
câmbio, as empresas de consórcio, as empresas de capitalização, as cadernetas de poupança
etc.

Também é instituição financeira a pessoa física que exerça qualquer uma dessas atividades
mencionadas anteriormente, ainda que de forma eventual.

A LC 105/2001 também traz um rol de instituições financeiras. Ex.: empresas de factoring,


operadoras de cartões de crédito, fundos de pensão ou entidades fechadas de previdência,
como a PREVI (caixa de previdência dos funcionários do BB) e a CAASP (Caixa de Assistência
dos Advogados de SP). Nesse sentido, o STF HC 95.515.

O Estado não pode ser considerado instituição financeira (veja que se trata do Estado, não as
pessoas jurídicas do Estado) quando, por exemplo, emite títulos da dívida pública no
mercado para obter recursos para o tesouro (STF AP 351/SC).

A Lei 7.492/1986 somente se aplica a crimes envolvendo instituições financeiras. Caso não
envolva, a norma não será aplicada.

3 – Conflito entre a Lei 7.492/1986 e o Código Penal

As instituições financeiras são sociedades anônimas (ou seja, sociedade por ações). O art.
177 do CP também prevê crimes praticados contra as sociedades por ações:

Art. 177 - Promover a fundação de sociedade por ações, fazendo, em prospecto ou em

comunicação ao público ou à assembléia, afirmação falsa sobre a constituição da

sociedade, ou ocultando fraudulentamente fato a ela relativo:

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa, se o fato não constitui crime contra a

63
economia popular. (...)

Quando se aplicará a Lei 7.492/1986 ou o art. 177 do CP? Se a sociedade por ações for uma
instituição financeira, aplica-se a Lei 7492/1986; se não for, aplica-se o art. 177 do CP. Veja
que nem toda sociedade por ações é instituição financeira, mas nem toda instituição
financeira é uma sociedade por ações.

4 – Principais crimes da Lei 7.492/1986

4.1 – Gestão fraudulenta (art. 4º, caput)

Art. 4º Gerir fraudulentamente instituição financeira:

Pena - Reclusão, de 3 (três) a 12 (doze) anos, e multa.

4.1.1 – sujeitos do crime

O sujeito ativo do crime de gestão fraudulenta é o administrador da instituição financeira


(somente as pessoas do art. 25 da Lei). Trata-se de crime próprio, que exige condição
especial do sujeito ativo:

Art. 25. São penalmente responsáveis, nos termos desta lei, o controlador e os

administradores de instituição financeira, assim considerados os diretores, gerentes

(Vetado).

§ 1º Equiparam-se aos administradores de instituição financeira (Vetado) o interventor, o

liqüidante ou o síndico. (...)

Sujeitos passivos são o Estado, a instituição financeira e as pessoas prejudicadas com a


gestão fraudulenta.

Trata-se de crime próprio ou de mão própria?

1ª corrente: trata-se de crime próprio (Delmanto), admitindo coautoria ou participação. Ex.:


dois gerentes, em conluio, praticam o crime. É a corrente majoritária.

2ª corrente: trata-se de crime de mão própria, não admitindo coautoria ou participação,


pois o verbo “gerir” é uma circunstancia personalíssima.

Maciel entende que houve confusão da corrente minoritária. Nada impede que duas ou mais
pessoas tenham poder de gestão dentro da instituição e pratiquem o crime em coautoria.

4.1.2 – objeto jurídico

64
O objeto jurídico do crime de gestão fraudulenta é a proteção do patrimônio das instituições
financeiras e dos investidores.

4.1.3 – conduta

Gerir é comandar, administrar, dirigir.

4.1.4 – elemento normativo do tipo

Gerir fraudulentamente significa que só há crime se houver fraude. Não precisa, todavia, ser
uma fraude que induza alguém em erro, como ocorre no crime de estelionato. Exemplos de
gestões fraudulentas em que ninguém é enganado: i) emprestar dinheiro a devedor sabendo
que ele não terá condição de pagar; ii) simular de empréstimo (o gerente simula empréstimo
ao cliente).

4.1.5 – exemplos de atos de gestão fraudulenta

São exemplos de atos de gestão fraudulenta:

i) empréstimos simulados, que não serão pagos (é o caso do Mensalão). Acerca deste
exemplo, ver o Inquérito 2245, no STF;

ii) caixa-dois (STJ RHC 17.369);

iii) abertura e movimentação de conta bancária em nome de pessoas fictícias ou empresas


inexistentes.

4.1.6 – objeto material do crime

Objeto material do crime é a instituição financeira, cujo conceito já foi estudado.

4.1.7 – o crime é habitual ou instantâneo?

Há três correntes sobre se o crime de gestão fraudulenta é habitual ou instantâneo:

1ª corrente: o crime é habitual, porque o verbo “gerir” exige uma reiteração de atos
fraudulentos. Para esta corrente, atos fraudulentos isolados não configuram o crime.

2ª corrente: o crime é instantâneo, configurando-se com a prática de um único ato de


gestão fraudulenta.

65
3ª corrente: (STJ HC 39.908/PR) o crime é habitual impróprio: uma só conduta configura o
crime e a reiteração de condutas não configura diversos crimes. Se o infrator praticar um ato
de gestão fraudulenta, ocorrerá um crime. Se praticar 30, haverá um só crime também.

4.1.8 – elemento subjetivo

O elemento subjetivo do crime é o dolo (gestão “fraudulenta”). Não se exige a finalidade


específica de causar prejuízo ou obter vantagem.

4.1.9 – consumação e tentativa

A consumação da gestão fraudulenta se dá com a reiteração de atos fraudulentos, para


quem entende que o é crime habitual, ou com um único ato fraudulento, para quem
entende que é crime instantâneo.

A tentativa é impossível, para quem acha se trata de crime habitual, ou possível, para quem
entende que é crime instantâneo ou habitual impróprio.

De acordo com o STF e o STJ, o crime é formal (ou de consumação antecipada), ou seja, não
exige resultado naturalístico consistente na concreta lesão ao sistema financeiro ou a
terceiros (nesse sentido, ver o STF HC 95.515/RJ e o STJ REsp 637.742).

4.2 – Gestão temerária (art. 4º, parágrafo único)

Art. 4º (...) Parágrafo único. Se a gestão é temerária:

Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.

Quanto ao objeto jurídico (proteção do patrimônio das instituições financeiras e dos


investidores), sujeitos, consumação e tentativa e classificação do crime como habitual ou
instantâneo, próprio ou de mão própria, aplica-se ao crime de gestão temerária tudo o
quanto dito acerca do crime de gestão fraudulenta.

4.2.1 – tipo penal

A conduta do crime é gerir, que significa comandar, administrar, dirigir.

4.2.2 – elemento normativo do tipo

Já o elemento normativo do tipo é a expressão “temerária”, sobre a qual quase toda a


doutrina lança severas críticas. Os autores dizem que a expressão é vaga, genérica, imprecisa
e, portanto, violadora do princípio da taxatividade.

66
4.2.3 – elemento subjetivo

Delmanto e Paulo José da Costa entendem que o elemento subjetivo do crime de gestão
temerária é o dolo eventual. Para esses autores, o infrator pratica atos de gestão arriscados,
assumindo o risco de causar prejuízo à instituição.

Nucci e Fábio Konder Comparato dizem que o elemento subjetivo pode ser o dolo direto e o
eventual.

A doutrina praticamente unânime não admite a forma culposa desse crime, embora a
expressão “temerária” indique “imprudência”, que é uma modalidade de culpa. Porém, o
STF já admitiu que esse crime admite a forma dolosa e culposa (STF HC 90.156). Em sentido
contrário, dizendo que o crime não admite a forma culposa: STJ RHC 7.982.

4.3 – Crime de contabilidade paralela ou “caixa-dois” (art. 11)

Art. 11. Manter ou movimentar recurso ou valor paralelamente à contabilidade exigida

pela legislação:

Pena - Reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa.

4.3.1 – objeto jurídico

O objeto jurídico do crime de contabilidade paralela é a proteção do Sistema Financeiro


Nacional.

4.3.2 – sujeitos

Sujeitos ativos do crime são somente as pessoas responsáveis pela contabilidade ou pela
movimentação de recursos financeiros da empresa (as pessoas do art. 25 da lei).

Trata-se de crime próprio, que exige condição especial do sujeito ativo. Assim, admite
coautoria ou participação de terceiros, que não sejam as do art. 25.

Sujeito passivo é o Estado e, secundariamente, as pessoas prejudicadas com o crime.

4.3.3 – condutas

As condutas do crime de caixa-dois são “manter ou movimentar (aplicar, emprestar) recurso


(bem de conteúdo econômico, como dinheiro) ou valor (bem que tem representação em
dinheiro, como o ouro, as ações, títulos etc.)”.

4.3.4 – o crime é habitual ou instantâneo?

67
O entendimento majoritário é de que o caixa-dois é crime habitual, na conduta de “manter”,
e instantâneo, na conduta “movimentar” (majoritário). Há entendimento minoritário de que
o crime seria habitual em ambos os verbos (Manoel Pedro Pimentel).

4.3.5 – elemento normativo do crime

O elemento normativo do crime de caixa-dois está na expressão “paralelamente à


contabilidade exigida pela legislação”. Trata-se de norma penal em branco, sendo necessária
a análise da legislação para aferir se se trata ou não de contabilização paralela.

4.3.6 – elemento subjetivo

O elemento subjetivo do crime é o dolo. Não existe a forma culposa do crime de caixa-dois.

4.3.7 – consumação e tentativa

A consumação ocorre com a efetiva manutenção ou aplicação ilegal dos recursos ou valores.
Para quem acha que na conduta “movimentar” o crime é habitual, a tentativa não é possível;
para quem acha que é instantâneo (corrente majoritária), caberá tentativa.

O crime é formal ou de consumação antecipada, ou seja, não é necessário que a conduta


cause resultado naturalístico (prejuízo).

4.3.8 – distinção de crimes

Se o caixa-dois é praticado em instituição não financeira, pode configurar o crime do art. 299
do CP:

Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar,

ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o

fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente

relevante:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um

a três anos, e multa, se o documento é particular. (...)

Se a intenção é de sonegação de tributos, haverá o crime do art. 1º, I e II, da Lei 8.137/1990;

Art. 1º Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou

contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação

68
de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; (...)

Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (...)

Por fim, utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita a


contabilidade paralela para fins de sonegação configura o crime do art. 2º, V, da Lei
8.137/1990:

Art. 2º Constitui crime da mesma natureza: (...)

V - utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito

passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei,

fornecida à Fazenda Pública.

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

4.4 – Crime de obtenção fraudulenta de financiamento (art. 19)

Art. 19. Obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira:

Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é cometido em

detrimento de instituição financeira oficial ou por ela credenciada para o repasse de

financiamento.

4.4.1 – objeto jurídico

O objeto jurídico do crime do art. 19 da Lei 7.492/1986 é a proteção do Sistema Financeiro


Nacional.

4.4.2 – sujeitos

Sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa.

Sujeitos passivos são o Estado e a instituição financeira.

4.4.3 – tipo objetivo

A conduta do crime do art. 19 é a obtenção de financiamento. Cuidado, pois financiamento


não se confunde com empréstimo. Financiamento são recursos ou valores com destinação
específica, enquanto empréstimo não tem destinação específica. A obtenção fraudulenta de
empréstimo não configura esse crime.

4.4.4 – exemplo do crime

69
Exemplo do crime do art. 19 é apresentar certidão negativa de débito para conseguir o
financiamento.

4.4.5 – elemento subjetivo

O elemento subjetivo é o dolo. A consumação se dá com a efetiva obtenção do


financiamento (trata-se de crime material, que exige resultado naturalístico). A tentativa é
possível, se o agente não consegue obter o financiamento por circunstancias alheias à sua
vontade.

Diferentemente do que ocorre no estelionato, este crime não exige que haja prejuízo
financeiro para a instituição financeira. Ex.: o indivíduo, com certidão negativa de débito
falsa, consegue o financiamento para custear a sua safra. Todavia, ele paga corretamente o
financiamento. O banco não sofreu nenhum prejuízo, mas houve o crime de obtenção do
financiamento mediante fraude.

4.5 – Crime de aplicação de recursos de financiamento em finalidade diversa (art. 20)

Art. 20. Aplicar, em finalidade diversa da prevista em lei ou contrato, recursos

provenientes de financiamento concedido por instituição financeira oficial ou por

instituição credenciada para repassá-lo:

Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

Este crime não se confunde com o do art. 19. Naquele, o infrator pratica o crime obtendo,
mediante fraude, o financiamento, e utiliza o dinheiro ou recurso para aquela finalidade
vinculada ao financiamento.

No crime do art. 20, o infrator obtém o financiamento sem fraude, mas, depois, desvia o
valor a uma finalidade diversa da prevista no financiamento.

4.5.1 – objeto jurídico

O objeto jurídico do crime do art. 20 é a proteção do Sistema Financeiro Nacional.

4.5.2 – sujeitos

Sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa. Sujeito passivo é o Estado.

4.5.3 – tipo pena objetivo

A conduta do crime do art. 20 é a aplicação do recurso do financiamento em finalidade


diversa da do financiamento.

70
Mais uma vez, cuidado, pois financiamento não se confunde com empréstimo.
Financiamento são recursos ou valores com destinação específica, enquanto o empréstimo
não tem destinação específica, finalidade vinculada. Ex.: em vez de utilizar o financiamento
para custear a sua plantação de soja, a juro baixo e ótimas condições de pagamento (por ser
um financiamento de incentivo à agricultura), o sujeito adquire uma mansão de veraneio; o
infrator obteve o dinheiro para financiamento de gado, mas o utiliza para finalidades
diversas.

Para que haja o crime, a Instituição financeira tem de ser do Estado ou credenciada para
repassar o financiamento.

4.5.4 – elemento subjetivo

O elemento subjetivo do crime é o dolo. A consumação se dá com a efetiva utilização


irregular do recurso obtido com o financiamento, ainda que não haja prejuízo para a
instituição financeira (trata-se de crime material, que exige resultado naturalístico).

A tentativa é possível, embora para Delmanto ela não seja possível, por se tratar de crime
unissubsistente.

4.6 – Crime de evasão de divisas (art. 22)

Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de

divisas do País:

Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem

autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos

não declarados à repartição federal competente.

4.6.1 – objeto jurídico

O objeto jurídico do crime de evasão de divisas é a proteção do Sistema Financeiro Nacional.

4.6.2 – sujeitos

O sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa. Sujeito passivo é o Estado.

4.6.3 – tipo objetivo

A conduta criminosa é “efetuar (realizar) operação de câmbio não autorizada”. Operação de


câmbio é a troca de moedas (ou de papéis que representem tais moedas) de um país por
outro.

71
A compra de dólares no câmbio paralelo para guardar o dinheiro no Brasil, em casa ou no
cofre, não constitui o crime do art. 22, pois não há a finalidade de evasão de divisas. Ainda
que se trate de operação ilegal de câmbio, a compra de dólares como “poupança” não
configura evasão de divisas.

O sujeito que vende o dólar sem a devida autorização (“doleiro”), operando, responde pelo
crime do art. 16 da Lei 7.492/1986, na medida em que está agindo como instituição
financeira ilegal.

4.6.4 – elemento subjetivo tipo

O tipo penal contém um elemento subjetivo do tipo (uma finalidade específica), que é
“promover a evasão de divisas no país”. Não havendo essa finalidade específica, a operação
de câmbio ilegal não configura evasão de divisas. Na verdade, não é crime praticar operação
de cambio não autorizada sem a finalidade de promover a evasão de divisas.

4.6.4 – elemento subjetivo

O elemento subjetivo do crime é o dolo de realizar a operação de câmbio ilegal, acrescido,


como dito, da finalidade específica de promover a evasão de divisas.

4.6.5 – consumação e tentativa

O crime se consuma com a operação ilegal de câmbio, ainda que a divisa não saia do país (ou
seja, o agente não consiga realizar a evasão de divisas). A tentativa é perfeitamente possível,
se o agente não consegue realizar a operação ilegal de câmbio por circunstâncias alheias à
sua vontade.

4.6.6 – competência para o julgamento do crime do art. 22

A competência para julgar o crime de evasão de divisas, segundo a jurisprudência do STJ, é a


do juízo do local onde se realizou a operação de câmbio ilegal. Assim, se a operação de
venda ilegal, para remessa ao exterior, ocorreu em São Paulo, será o juiz de São Paulo o
competente para o julgamento.

5 – Ação penal dos crimes previstos na Lei 7.492/1986 (art. 26)


Art. 26. A ação penal, nos crimes previstos nesta lei, será promovida pelo Ministério

Público Federal, perante a Justiça Federal.

Parágrafo único. Sem prejuízo do disposto no art. 268 do Código de Processo Penal,

aprovado pelo Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, será admitida a assistência

72
da Comissão de Valores Mobiliários - CVM, quando o crime tiver sido praticado no âmbito

de atividade sujeita à disciplina e à fiscalização dessa Autarquia, e do Banco Central do

Brasil quando, fora daquela hipótese, houver sido cometido na órbita de atividade sujeita

à sua disciplina e fiscalização.

Pela leitura do dispositivo, fica a impressão de que todo o crime contra o Sistema Financeiro
Nacional seria de competência da Justiça Federal. As jurisprudências do STF e do STJ,
todavia, não entendem dessa forma. Para esses Tribunais, o crime contra o Sistema
Financeiro Nacional será de competência da Justiça Federal se atingir interesse específico da
União, suas autarquias ou empresas públicas (art. 109, IV, da CR):

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (...)

IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços

ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas

as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;

Se o crime não atingir interesse da União, suas autarquias ou empresas públicas, a


competência será da justiça estadual (STJ CC 87.450 e STF RE 502.915).

6 – Análise dos arts. 30 e 31

O art. 30 prevê prisão preventiva em razão da magnitude da lesão causada ao Sistema


Financeiro Nacional:

Art. 30. Sem prejuízo do disposto no art. 312 do Código de Processo Penal, aprovado pelo

Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, a prisão preventiva do acusado da prática

de crime previsto nesta lei poderá ser decretada em razão da magnitude da lesão causada

(Vetado).

O STF já decidiu que a prisão preventiva com base tão somente na magnitude da lesão
causada é ilegal. Todavia, se presentes os requisitos do art. 312, combinados com a
magnitude da lesão causada, poderá ser decretada a prisão preventiva (HC 85.615, relativo
ao caso Daniel Dantas):

Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da

ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação

da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

(Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). (...)

O art. 31 diz uma obviedade:

73
Art. 31. Nos crimes previstos nesta lei e punidos com pena de reclusão, o réu não poderá

prestar fiança, nem apelar antes de ser recolhido à prisão, ainda que primário e de bons

antecedentes, se estiver configurada situação que autoriza a prisão preventiva.

Se presentes o requisitos da prisão preventiva, evidentemente não caberá fiança ou recurso


em liberdade, na medida em que o sujeito não poderá ser solto. Isso é válido para todos os
crimes, não somente para os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional.

74
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (LEI 8.069/1990)

1 – Conceito de criança e adolescente

O conceito de criança está previsto no art. 2º, caput, do ECA. Criança é a pessoa de até 12
anos incompletos:

Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade

incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. (...)

Ou seja, no primeiro segundo do dia de aniversário de 12 anos, a pessoa será adolescente. E


adolescente é a pessoa com 12 anos completos até 18 incompletos. No primeiro segundo do
dia de aniversario de 18 anos, a pessoa passa a ser imputável penalmente.

2 – Medidas de proteção e medidas socioeducativas

Tanto a criança quanto o adolescente praticam ato infracional. A diferença é que a criança
não pode ser responsabilizada por ele, apenas recebendo medidas de proteção, previstas no
art. 101 do ECA, as quais não têm caráter sancionador (no encaminhamento da criança aos
pais, ela será levada pra casa).

Todavia, o adolescente que pratica ato infracional é responsabilizado por ele, sofrendo
medidas socioeducativas, inclusive restritivas e privativas de liberdade (ex.: internação na
Fundação Casa). Além das socioeducativas, o adolescente infrator pode também receber
medida de proteção, na medida em que ele não deixa de necessitar de proteção.

O adolescente sofre, inclusive, processo para a apuração de ato infracional. A criança não
responde a processo na Vara da Infância e da Juventude, na medida em que não pratica ato
infracional.

3 – Aplicação do ECA a maior de dezoito anos (art. 2º, parágrafo único)

Excepcionalmente, é possível a aplicação do ECA à pessoa maior de dezoito anos, quando o


ato infracional houver sido praticado na menoridade, até que ela complete 21 anos de
idade:

Art. 2º (...) Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este

Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade.

75
Ex.: “A”, com 17 anos e 11 meses de idade, atira na vítima em 18 de junho de 2011. Em 18
de outubro do mesmo ano, a vítima morre. Como visto, o CP adota a teoria da atividade. Se
não houvesse o art. 2º, parágrafo único, não seria possível a aplicação do CP, pois, no
momento da conduta (art. 4º do CP 5), “A” era adolescente, nem o ECA, que seria somente
aplicável a menor de idade. Assim, no exemplo dado, o sujeito responderá a processo
perante a VIJ, mesmo sendo maior de dezoito anos, sofrerá medida socioeducativa e
responderá, se o caso, até os 21 anos.

Com a redução da maioridade civil absoluta para dezoito anos, o art. 2º, parágrafo único, do
ECA continua em vigor? É pacífico no STJ que o dispositivo não foi tacitamente revogado
pelo Código Civil. Nesse sentido, ver o STJ RHC 24.122, julgado em 2010.

A alteração no Código Civil não causou nenhum reflexo nas normas penais e processuais
penais que envolvam adolescente, idoso ou pessoa entre 18 e 21 anos. Assim como o
Estatuto do Idoso também não teve nenhum impacto no CP. Ex.: prescrição, aplicação da
medida cautelar de prisão domiciliar etc.

Observe que o dispositivo fala em “excepcionalmente”. Em razão disso, há doutrina dizendo


que essa expressão significaria que o juiz só poderia aplicar a medida socioeducativa de
internação ao maior de 18 anos. Todavia, o STJ já pacificou que o juiz pode aplicar quaisquer
das medidas socioeducativas ao maior de dezoito anos, na hipótese do art. 2º, parágrafo
único (HC 99.481/RJ).

4 – Conceito de ato infracional (art. 103 do ECA)


Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção

penal.

A conduta da criança ou do adolescente somente pode ser considerada ato infracional se


corresponder a um crime ou a uma contravenção. Ou seja, a conduta também está sujeita a
controle de legalidade. Se não houver tal correspondência, será atípica.

Se o ato infracional praticado corresponder a crime de ação penal pública condicionada à


representação ou de ação penal privada, não são necessárias a representação ou a queixa da
vítima ou de quem a represente (nem requisição do Ministro da Justiça, evidentemente). Na
apuração do ato infracional, a autoridade policial e o MP agem de ofício. Não é correto se

5
Art. 4º - Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o
momento do resultado. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 1984)

76
falar que o ato infracional é sempre de ação penal pública, pois esse conceito é do processo
penal, não do ECA.

É possível a aplicação do princípio da insignificância ao ato infracional (STF e STJ são pacíficos
nesse sentido). A esse respeito, ver o STF HC 98.381. Nesse julgado, o STF reconheceu de
ofício o princípio da insignificância, que sequer havia sido alegado pela defesa.

O adolescente pode sofre extradição pela prática de ato infracional? Para o Pleno do STF,
não é cabível extradição em razão de ato infracional. Isso porque o art. 77, II, do Estatuto do
Estrangeiro (Lei 6.815/1980) só permite a extradição pela prática de crime. Pelo mesmo
dispositivo, não cabe extradição pela prática de contravenção penal (ex.: estrangeiro que
mantém casa de bingo no Brasil não pode sofrer extradição):

Art. 77. Não se concederá a extradição quando: (Renumerado pela Lei nº 6.964, de

09/12/81) (...)

II - o fato que motivar o pedido não for considerado crime no Brasil ou no Estado

requerente; (...)

5 – Apuração de ato infracional

5.1 – Fase policial

5.1.1 – flagrante de ato infracional (arts. 172 a 176 do ECA)

Caso haja flagrante de ato infracional, a seguinte ordem deverá ser observada:

i) apresentação do adolescente à autoridade policial competente (art. 172, caput):

Art. 172. O adolescente apreendido em flagrante de ato infracional será, desde logo,

encaminhado à autoridade policial competente. (...)

O Delegado tem de formalizar essa apreensão em flagrante. Caso se trate de ato infracional
cometido com violência ou grave ameaça à pessoa (ex.: roubo), o art. 173, I, determina que
ele obrigatoriamente terá de lavrar auto de apreensão de adolescente (perceba a diferença
de terminologia: no CPP, seria auto de prisão em flagrante):

Art. 173. Em caso de flagrante de ato infracional cometido mediante violência ou grave

ameaça a pessoa, a autoridade policial, sem prejuízo do disposto nos arts. 106, parágrafo

único, e 107, deverá:

I - lavrar auto de apreensão, ouvidos as testemunhas e o adolescente; (...)

77
Em se tratando de ato infracional sem violência ou grave ameaça à pessoa (ex.: ato
infracional de tráfico), o art. 173, parágrafo único, determina que o Delegado pode optar por
formalizar a apreensão por auto de apreensão de adolescente ou lavrar apenas o “boletim
de ocorrência circunstanciada”:

Art. 173 (...) Parágrafo único. Nas demais hipóteses de flagrante, a lavratura do auto

poderá ser substituída por boletim de ocorrência circunstanciada.

ii) liberação do adolescente ou manutenção da apreensão:

Encerrada a apreensão do adolescente, o Delegado tem duas opções: liberar o adolescente


aos pais ou responsáveis, sob compromisso de apresentá-lo ao MP no mesmo dia ou no
primeiro dia útil seguinte (opção-regra); ou manter o adolescente apreendido (opção-
exceção). Esta segunda opção será cabível quando, pela gravidade do ato praticado e sua
repercussão social, deva o adolescente permanecer internado para sua segurança pessoal ou
para a garantia da ordem pública (em processo penal, isso se chama “prisão preventiva”).
Então, a regra é o Delegado conceder a “liberdade provisória”. A exceção é mantê-lo “preso”
(art. 174 do ECA):

Art. 174. Comparecendo qualquer dos pais ou responsável, o adolescente será

prontamente liberado pela autoridade policial, sob termo de compromisso e

responsabilidade de sua apresentação ao representante do Ministério Público, no mesmo

dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato, exceto quando, pela gravidade do

ato infracional e sua repercussão social, deva o adolescente permanecer sob internação

para garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem pública.

Caso o Delegado mantenha o adolescente apreendido, ele deve apresentá-lo imediatamente


ao MP. Caso não seja possível a apresentação imediata (ex.: apreensão às 3 horas da
manhã), o Delegado deve encaminhar o adolescente a entidade de atendimento, que
promoverá o encaminhamento dentro de 24 horas. Caso no local não haja entidade de
atendimento, o Delegado pode manter o adolescente apreendido na repartição policial,
separado dos maiores, devendo apresentá-lo ao MP em até 24 horas. Se na Delegacia a cela
for única, o Delegado deverá adaptar a repartição para albergar o adolescente, até a
apresentação. Na prática, não existe entidade de atendimento.

Houve caso de Delegado que, passadas 24 horas, não encontrou o Promotor no plantão e
liberou o adolescente. Ajuizada ação criminal contra ele por prevaricação, o STJ trancou a
ação penal.

78
5.1.2 – não flagrante de ato infracional (art. 177 do ECA)

Caso não haja situação de flagrante de ato infracional, a autoridade policial deve investigar o
fato e encaminhar o relatório de investigações ao MP, que conterá perícia, depoimento de
testemunhas, declarações da vítima etc. Esse “relatório de investigações” nada mais é que o
inquérito policial do processo penal (art. 177 do ECA):

Art. 177. Se, afastada a hipótese de flagrante, houver indícios de participação de

adolescente na prática de ato infracional, a autoridade policial encaminhará ao

representante do Ministério Público relatório das investigações e demais documentos.

5.2 – Fase da oitiva informal

Apresentado o adolescente ao representante do MP, aplica-se o disposto no art. 179 do ECA.


O Promotor deve realizar a oitiva informal do adolescente:

Art. 179. Apresentado o adolescente, o representante do Ministério Público, no mesmo

dia e à vista do auto de apreensão, boletim de ocorrência ou relatório policial,

devidamente autuados pelo cartório judicial e com informação sobre os antecedentes do

adolescente, procederá imediata e informalmente à sua oitiva e, em sendo possível, de

seus pais ou responsável, vítima e testemunhas. (...)

É uma conversa, que não precisa ser reduzida a escrito e assinada, ainda que isso possa
ocorrer.

O STJ decidiu que a oitiva informal tem natureza de procedimento administrativo


antecedente à fase judicial. Em outras palavras, é procedimento extrajudicial, que não se
submete aos princípios do contraditório e da ampla defesa (STJ HC 109.242, julgado em
2010).

Houve uma pequena mudança nessa jurisprudência do STJ. Até 2009, o tribunal entendia
que a ausência de advogado na audiência de oitiva informal feita pelo MP ensejava nulidade
relativa (HC 105.238). Hoje, para o STJ, se não há submissão aos princípios do contraditório e
da ampla defesa, não é necessária a participação do advogado.

O MP pode deixar de realizar a oitiva informal. O STJ já decidiu que o MP pode oferecer
representação contra o adolescente sem ter realizado a audiência de oitiva informal, desde
que disponha de elementos suficientes para representar.

A finalidade dessa oitiva informal, que ocorre no gabinete do Promotor, é permitir que ele
forme seu convencimento.

79
5.3 – Fase judicial

Feita ou não a audiência de oitiva informal, o MP pode tomar três providências, previstas no
art. 180 do ECA, que para efeitos didáticos serão chamadas de “fase judicial”: i)
arquivamento dos autos; ii) remissão; e iii) oferecimento de representação para a aplicação
de medida socioeducativa.

5.3.1 – arquivamento dos autos

O Promotor de Justiça não “requer” o arquivamento, como ocorre no processo penal. Ele
“promove” o arquivamento. O MP arquivará os autos se não houver elementos para a
responsabilização do adolescente.

5.3.2 – remissão

Caso não seja o caso de arquivamento, a segunda opção que tem o MP é a concessão da
remissão (mais uma vez, ele não “requer”, mas “concede” remissão), que pode ser de duas
espécies:

i) remissão-perdão:

Trata-se da remissão desacompanhada de qualquer medida socioeducativa. É um “perdão


ministerial”, cujas hipóteses de concessão estão previstas no art. 126 do ECA:

Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o

representante do Ministério Público poderá conceder a remissão [perdão], como forma

de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao

contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor

participação no ato infracional. (...)

É uma forma de exclusão do processo (ou seja, não haverá processo contra o adolescente).
O MP deverá levar em consideração todas essas situações do art. 126 e, se elas forem
favoráveis, conceder a remissão.

ii) remissão-transação (expressão criada pela doutrina):

Prevista no art. 127 do ECA, trata-se de remissão com a aplicação de qualquer medida
socioeducativa, desde que não restritiva ou privativa da liberdade (semiliberdade ou
internação):

Art. 127. A remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da

responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes, podendo incluir

80
eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação

em regime de semiliberdade e a internação.

A remissão-transação depende da aceitação do adolescente e seu defensor. Faz-se, aqui,


uma analogia com a transação penal da Lei 9.099/1995. Ela não gera maus antecedentes (STJ
HC 155.060/MG). O art. 127 é expresso nesse sentido.

Antes de iniciado o processo, a remissão é concedida pelo MP. Iniciado o processo, o juiz
pode conceder remissão ao adolescente em qualquer fase do processo, como forma de
extinção ou suspensão do processo:

Art. 126 (...) Parágrafo único. Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela

autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo.

Quando o juiz concede a remissão durante o processo, ele pode aplicar medida
socioeducativa? Prevalece no STJ e no STF que sim, desde que não se trate das medidas de
semiliberdade e internação (RE 248.018, Rel. Min. Joaquim Barbosa). Nesse julgado, foi
questionada a constitucionalidade da parte final do art. 127 (“podendo incluir
eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei”). Argumentou-se que
a aplicação de medida socioeducativa sem devido processo legal, contraditório e ampla
defesa seria inconstitucional. O STF entendeu que o dispositivo é constitucional, até porque
o adolescente e seu defensor podem recusar a medida.

Como visto, o MP arquiva ou concede remissão. Todavia, tanto o arquivamento quanto a


remissão concedida pelo MP dependem de homologação judicial para produzirem efeitos.

Se o juiz discordar da promoção de arquivamento ou da remissão concedida pelo MP, é


porque ele entende que era caso de oferecimento de representação. Nesse caso, ele não
homologa e encaminha os autos ao Procurador-Geral de Justiça, que terá as seguintes
opções: ele próprio oferece representação contra o adolescente, designa outro membro do
MP para o oferecimento de representação ou insiste no arquivamento ou na remissão, o que
o juiz estará obrigado a acatar. A hipótese é análoga à do art. 28 do CPP, mas está prevista
no art. 181, §§ 1º e 2º do ECA:

Art. 181. Promovido o arquivamento dos autos ou concedida a remissão pelo

representante do Ministério Público, mediante termo fundamentado, que conterá o

resumo dos fatos, os autos serão conclusos à autoridade judiciária para homologação.

§ 1º Homologado o arquivamento ou a remissão, a autoridade judiciária determinará,

conforme o caso, o cumprimento da medida.

§ 2º Discordando, a autoridade judiciária fará remessa dos autos ao Procurador-Geral de

81
Justiça, mediante despacho fundamentado, e este oferecerá representação, designará

outro membro do Ministério Público para apresentá-la, ou ratificará o arquivamento ou a

remissão, que só então estará a autoridade judiciária obrigada a homologar.

5.3.3 – oferecimento de representação contra o adolescente para a aplicação de medida


socioeducativa (“ação socioeducativa”)

Em processo penal, os institutos análogos são a “denúncia” e a “ação penal”. A


representação deve conter os requisitos do art. 182 do ECA (repare na similitude do ECA
com o CPP, uma vez que o dispositivo prevê os mesmos requisitos da denúncia):

Art. 182. Se, por qualquer razão, o representante do Ministério Público não promover o

arquivamento ou conceder a remissão, oferecerá representação à autoridade judiciária,

propondo a instauração de procedimento para aplicação da medida socioeducativa que se

afigurar a mais adequada.

§ 1º A representação será oferecida por petição, que conterá o breve resumo dos fatos e

a classificação do ato infracional e, quando necessário, o rol de testemunhas, podendo ser

deduzida oralmente, em sessão diária instalada pela autoridade judiciária.

§ 2º A representação independe de prova pré-constituída da autoria e materialidade.

O MP pode oferecer a representação por escrito ou oralmente, em audiência designada para


esse fim. Ela independe de prova pré-constituída de autoria e materialidade.

O ECA é omisso quanto ao número máximo de testemunhas que o MP pode arrolar. A


doutrina e a jurisprudência determinam que se deve utilizar, por analogia, o procedimento
ordinário (que é o mais amplo e permite mais testemunhas): são oito, portanto.

Assim como a denúncia, a representação pode ser rejeitada pelo juiz. Ex.: representação
rejeitada por não ter sido juntado laudo provisório (HC 153.088). Se bem que essa decisão
pode ser discutida, pelo fato de o ECA não exigir prova pré-constituída do crime.

Se a representação não for rejeitada, ela é recebida. Nesse caso, o juiz designa audiência de
apresentação do adolescente. Dela, devem ser citados e notificados o adolescente e os pais
ou responsáveis. Se na audiência de apresentação os pais ou responsáveis não estiverem
presentes, o juiz deve nomear curador especial ao adolescente.

Num caso em que os pais não estavam presentes e o juiz não tinha nomeado curador, mas
havia advogado presente, o STJ decidiu que o advogado pôde acumular as funções de
defensor e curador, não tendo havido qualquer nulidade (REsp 912.049).

82
Essa audiência de apresentação do adolescente, por óbvio, jamais se realiza sem a presença
dele. Caso não compareça e não seja localizado, o juiz suspende o processo e expede
mandado de busca e apreensão do adolescente. O processo fica parado até a sua localização
para comparecimento (art. 184, § 3º, do ECA):

Art. 184 (...) § 3º Não sendo localizado o adolescente, a autoridade judiciária expedirá

mandado de busca e apreensão, determinando o sobrestamento do feito, até a efetiva

apresentação.

Se o adolescente estiver internado provisoriamente, é requisitada a sua apresentação em


audiência.

Nessa audiência, o juiz praticará os seguintes atos: interrogar o adolescente, solicitar parecer
da equipe técnica sobre o perfil psicológico e socioeconômico e, se entender cabível,
conceder a remissão, ouvido o MP. Ainda, ouvirá os pais ou responsáveis do adolescente, se
presentes.

Se o adolescente confessa o ato infracional no interrogatório, na prática, o juiz indaga as


partes se pretendem desistir das demais provas e profere a sentença. Isso não é, todavia,
correto, em vista do disposto na Súmula 342 do STJ:

Súmula 342 - No procedimento para aplicação de medida socioeducativa, é nula a

desistência de outras provas em face da confissão do adolescente.

Assim, se no interrogatório o adolescente confessa o ato infracional, as partes não podem


desistir das demais provas no processo. Isso porque, se o processo parar na confissão, não
terá havido contraditório, ampla defesa e devido processo legal. Até porque devem ser
apuradas as razões e a veracidade da confissão.

Para o STJ, não é admissível assistente de acusação em procedimento de apuração de ato


infracional. O argumento é simples: absoluta falta de previsão legal. Pela mesma razão, o STJ
entende que não se aplica ao adolescente a atenuante da confissão espontânea (HC
101.739, julgado em fevereiro de 2010).

Caso não seja concedida a remissão pelo juiz, ele designa audiência em continuação, que
nada mais é que uma audiência de instrução e julgamento. Antes da ocorrência da audiência
de continuação, abre-se o prazo de 3 dias para a apresentação de defesa prévia, na qual
poder ser arroladas testemunhas. Esse procedimento é quase idêntico ao antigo
procedimento sumário do CPP.

83
Pela letra do art. 186, § 2º, o juiz somente seria obrigado a nomear defensor ao adolescente
se o ato infracional por ele praticado estivesse sujeito a medida socioeducativa de
semiliberdade ou internação:

Art. 186 (...) § 2º Sendo o fato grave, passível de aplicação de medida de internação ou

colocação em regime de semiliberdade, a autoridade judiciária, verificando que o

adolescente não possui advogado constituído, nomeará defensor, designando, desde

logo, audiência em continuação, podendo determinar a realização de diligências e estudo

do caso.

Apesar disso, a doutrina praticamente unânime sustenta que o juiz deve nomear defensor
em qualquer processo de apuração de ato infracional. Do ponto de vista da lógica, isso
parece bem claro. Quem fará os debates ao final do processo? O adolescente? O argumento
legal utilizado pela doutrina são os arts. 110 e 111 do ECA, que preveem garantias
processuais ao adolescente, dentre as quais o devido processo legal (que tem como
corolário a ampla defesa, que inclui defesa técnica) e a defesa técnica por advogado:

Art. 110. Nenhum adolescente será privado de sua liberdade sem o devido processo legal.

Art. 111. São asseguradas ao adolescente, entre outras, as seguintes garantias: (...)

II - igualdade na relação processual, podendo confrontar-se com vítimas e testemunhas e

produzir todas as provas necessárias à sua defesa;

III - defesa técnica por advogado;

IV - assistência judiciária gratuita e integral aos necessitados, na forma da lei; (...)

Assim, apesar da barbaridade do art. 186, § 2º, a defesa técnica do adolescente é


obrigatória. Se no processo penal essa regra é obrigatória, com muito mais razão ela deve
ser no ECA.

Apresentada a defesa prévia, é realizada a audiência em continuação, na qual serão


praticados os seguintes atos: oitiva das testemunhas de acusação e defesa (nessa ordem). A
inversão na ordem de testemunhas é nulidade relativa (STF e STJ), dependendo de
comprovação de prejuízo à parte que a arguiu.

Depois da oitiva das testemunhas, são realizados os debates (alegações finais orais), de 20
minutos para cada uma das partes, prorrogáveis por mais 10. Encerrados os debates, passa-
se à sentença. Perceba que a audiência em continuação é nada mais que uma audiência de
instrução e julgamento.

84
A sentença pode ser de procedência ou improcedência do pedido. A sentença de
improcedência equivale à sentença absolutória do CPP. Nessa hipótese, não será aplicada
nenhuma medida socioeducativa ao adolescente. A sentença de procedência do pedido
equivale, por sua vez, a uma sentença condenatória. Nesse caso, o juiz aplicará medida
socioeducativa e medida de proteção.

6 – As medidas socioeducativas previstas no ECA (arts. 112 a 123 do ECA)

As medidas socioeducativas são as aplicáveis ao adolescente infrator. O rol delas está


previsto no art. 112 do ECA:

Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar

ao adolescente as seguintes medidas:

I - advertência;

II - obrigação de reparar o dano;

III - prestação de serviços à comunidade;

IV - liberdade assistida;

V - inserção em regime de semiliberdade;

VI - internação em estabelecimento educacional;

VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI. (...)

Perceba que o juiz pode aplicar as medidas socioeducativas do art. 112, I a VI, e as de
proteção, do art. 101.

6.1 – Advertência (arts. 112, I e 115)

Art. 115. A advertência consistirá em admoestação verbal, que será reduzida a termo e

assinada.

A advertência é uma admoestação verbal, reduzida a escrito e assinada pelo adolescente. É


uma “bronca” que fica registrada.

6.2 – Obrigação de reparar o dano (arts. 112, II e 116)

Art. 116. Em se tratando de ato infracional com reflexos patrimoniais, a autoridade

poderá determinar, se for o caso, que o adolescente restitua a coisa, promova o

ressarcimento do dano, ou, por outra forma, compense o prejuízo da vítima.

Parágrafo único. Havendo manifesta impossibilidade, a medida poderá ser substituída por

outra adequada.

85
A obrigação de reparar o dano é aplicada ao ato infracional com reflexos patrimoniais. É a
restituição da coisa (ex.: devolução da bicicleta furtada), o ressarcimento do dano ou outra
forma de compensação do prejuízo.

6.3 – Prestação de serviços comunitários (art. 112, III e 117)

Art. 117. A prestação de serviços comunitários consiste na realização de tarefas gratuitas

de interesse geral, por período não excedente a seis meses, junto a entidades

assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres, bem como em

programas comunitários ou governamentais.

Parágrafo único. As tarefas serão atribuídas conforme as aptidões do adolescente,

devendo ser cumpridas durante jornada máxima de oito horas semanais, aos sábados,

domingos e feriados ou em dias úteis, de modo a não prejudicar a frequência à escola ou

à jornada normal de trabalho.

A prestação de serviços comunitários somente pode ser decretada pelo prazo máximo de 6
meses, a jornada máxima semanal deve ser de 8 horas e não pode prejudicar o trabalho ou a
escola.

6.4 – Liberdade assistida (arts. 112, IV, 118 e 119)

Art. 118. A liberdade assistida será adotada sempre que se afigurar a medida mais

adequada para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente.

§ 1º A autoridade designará pessoa capacitada para acompanhar o caso, a qual poderá ser

recomendada por entidade ou programa de atendimento.

§ 2º A liberdade assistida será fixada pelo prazo mínimo de seis meses, podendo a

qualquer tempo ser prorrogada, revogada ou substituída por outra medida, ouvido o

orientador, o Ministério Público e o defensor.

A liberdade assistida é aplicada quando o juiz verificar que o adolescente necessita de


acompanhamento e auxílio. Ela pode ser decretada pelo prazo mínimo de 6 meses, podendo
ser prorrogada, substituída ou revogada.

Atenção! Prestação de serviços à comunidade: prazo máximo de 6 meses; liberdade


assistida: prazo mínimo de 6 meses.

6.5 – Colocação em regime de semiliberdade (arts. 112, V e 120)

Art. 120. O regime de semiliberdade pode ser determinado desde o início [desde que

devidamente fundamentado pelo juiz], ou como forma de transição para o meio aberto,

possibilitada a realização de atividades externas, independentemente de autorização

86
judicial.

§ 1º São obrigatórias a escolarização e a profissionalização, devendo, sempre que

possível, ser utilizados os recursos existentes na comunidade. (...)

A colocação em regime de semiliberdade é uma medida restritiva (e não privativa) de


liberdade. O adolescente pode exercer atividades externas, independentemente de ordem
judicial. Ex.: o adolescente está numa entidade de acolhimento, cujo Diretor realiza convênio
para aulas de teatro. Nesse caso, ele não precisa de autorização para sair da entidade e
realizar as aulas, pois a semiliberdade pressupõe justamente o fato de o adolescente poder
realizar atividades externas.

O regime de semiliberdade pode ser aplicado como medida socioeducativa inicial (que em
direito penal seria chamado de “regime inicial”) ou como transição da internação para a
liberdade.

A jurisprudência do STJ entende que o regime de semiliberdade pode ser aplicado como
medida inicial, desde que devidamente fundamentado pelo juiz (princípio da
excepcionalidade). Ou seja, segundo o princípio da excepcionalidade, previsto no ECA, a
regra são as medidas socioeducativas que não restringem a liberdade, sendo as
restritivas/privativas excepcionais (HC 128.113).

O prazo da medida socioeducativa de semiliberdade não existe. O juiz pode aplicá-la por
prazo indeterminado (art. 120, § 2º):

Art. 120 (...) § 2º A medida não comporta prazo determinado aplicando-se, no que

couber, as disposições relativas à internação.

Apesar de a medida de semiliberdade ser aplicada sem prazo determinado, ela não pode
superar o prazo da internação, de três anos, em virtude da aplicação subsidiária das regras
da internação, determinada pelo art. 120, § 2º, do ECA.

6.6 – Internação (art. 112, VI, e 121 a 123)

A internação é o tema mais recorrente em concursos, no que se refere ao ato infracional. É


medida privativa (e não restritiva) de liberdade, regida pelo princípio da taxatividade. Ou
seja, ela só pode ser aplicada nas hipóteses taxativas do art. 122 do ECA:

Art. 122. A medida de internação só poderá ser aplicada quando:

I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa;

[ex.: roubo, extorsão]

87
II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves;

III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta. (...)

Para que se configure a “reiteração”, segundo conceito pacificado pelo STJ, são necessários,
no mínimo, três atos infracionais. Para o Tribunal, reiteração não se confunde com
reincidência (HC 160.224/MG). Assim, não caberá internação mesmo que o adolescente
tenha praticado um ato infracional de furto e outro de tráfico.

Se houver descumprimento injustificado e reiterado de medida socioeducativa


anteriormente imposta, também será caso de internação.

Veja que mesmo que o adolescente tenha praticado tráfico internacional de drogas,
negociando uma tonelada de cocaína, o juiz não pode aplicar a medida socioeducativa de
internação no tráfico, exceto no caso de reiteração. É a jurisprudência mais recorrente no
STJ. Todavia, contraditoriamente, no caso de uma lesão corporal, a internação será em tese
cabível, por conta da violência contra a pessoa.

Se o ato infracional é praticado com violência ou grave ameaça, o juiz é obrigado a aplicar a
medida de internação? Para o STJ, não. O juiz, verificando as circunstâncias do caso, pode
aplicar qualquer outra menos gravosa (STJ HC 110.195). Exemplo: o adolescente que pratica
lesão leve (causa escoriações no braço de alguém) não precisa ser submetido a medida de
internação. Em direito penal, esse crime ensejaria transação penal.

A internação submete-se a dois princípios: da brevidade e da excepcionalidade (somente


será aplicada se nenhuma outra medida socioeducativa for suficiente):

Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de

brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em

desenvolvimento. (...)

Nas hipóteses do art. 122, incisos I e II, a internação é decretada por prazo indeterminado,
não podendo superar três anos. O STJ decidiu que o prazo máximo de internação de três
anos é para cada ato infracional (HC 99.565). Todavia, esse entendimento não mais
prevalece, pois anterior à Lei do Sinase (Lei nº 12.594/2012), cujo art. 45 determina o
seguinte:

Art. 45. Se, no transcurso da execução, sobrevier sentença de aplicação de nova medida, a

autoridade judiciária procederá à unificação, ouvidos, previamente, o Ministério Público e

o defensor, no prazo de 3 (três) dias sucessivos, decidindo-se em igual prazo.

§ 1º É vedado à autoridade judiciária determinar reinício de cumprimento de medida

88
socioeducativa, ou deixar de considerar os prazos máximos, e de liberação compulsória

previstos na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente),

excetuada a hipótese de medida aplicada por ato infracional praticado durante a

execução.

§ 2º É vedado à autoridade judiciária aplicar nova medida de internação, por atos

infracionais praticados anteriormente, a adolescente que já tenha concluído cumprimento

de medida socioeducativa dessa natureza, ou que tenha sido transferido para

cumprimento de medida menos rigorosa, sendo tais atos absorvidos por aqueles aos

quais se impôs a medida socioeducativa extrema.

No caso do inciso III, a internação também será por prazo indeterminado, mas não pode
superar três meses:

Art. 122. (...) § 1º O prazo de internação na hipótese do inciso III deste artigo não poderá

ser superior a três meses.

Em todo caso, a liberação é compulsória aos 21 anos. Aplicada medida de internação


enquanto o adolescente tiver 20 anos, aos 21 ele deverá ser libertado. Caso o adolescente
fuja e permaneça foragido até completar 21 anos, haverá impunidade (não há o que fazer).
Assim como ocorre com o maior quando há a prescrição.

Caso o sujeito, maior de 18 anos, cumprindo medida socioeducativa, cometa outro crime,
evidentemente ele responderá como imputável e poderá ser preso, em cadeia normal.

A Súmula 108 do STJ determina que a aplicação de medida socioeducativa pela prática de
ato infracional é da competência exclusiva do juiz. Em outras palavras, o MP não pode
aplicar medida socioeducativa, como ocorria em algumas comarcas:

Súmula 108 - A aplicação de medidas socioeducativas ao adolescente, pela prática de ato

infracional, é da competência exclusiva do juiz.

7 – Execução das medidas socioeducativas

O ECA diz que as medidas socioeducativas são fungíveis, ou seja, podem ser substituídas
umas pelas outras. Assim, existe progressão e regressão de medida socioeducativa (como na
lei penal).

A progressão de medida socioeducativa é a substituição da medida mais grave para uma


mais leve. Ex.: internação para semiliberdade; semiliberdade para liberdade assistida. A
regressão, por óbvio, é a substituição de uma medida mais leve para outra mais grave.

89
Para a decretação da regressão de medida socioeducativa pelo juiz, é necessária a oitiva do
adolescente (Súmula 265 do STJ). Se ela não ocorre, a decisão é nula:

Súmula 265 - É necessária a oitiva do menor infrator antes de decretar-se a regressão da

medida socioeducativa.

Se o MP dá parecer a favor da desinternação (progressão da medida socioeducativa), o juiz


pode manter a internação? Para o STJ, sim. Pelo princípio do livre convencimento, o parecer
do MP não vincula o magistrado, podendo ele manter a internação (RHC 24.230). O mesmo
ocorre se o parecer da equipe técnica for favorável. Segundo o Tribunal, caso o juiz se
vinculasse ao parecer do MP, quem estaria decidindo seria o MP (ou o corpo técnico que
proferiu o laudo).

8 – Medidas cautelares no ECA

O adolescente investigado ou processado está sujeito a uma medida cautelar chamada


“internação provisória”.

Existem duas espécies de internação no ECA:

i) internação-sanção:

A internação-sanção já foi estudada. É medida socioeducativa aplicada na sentença (arts.


121 a 123 do ECA).

ii) internação provisória:

A internação provisória não é medida socioeducativa, mas medida cautelar, prevista no art.
108 do ECA:

Art. 108. A internação, antes da sentença [internação provisória], pode ser determinada

pelo prazo máximo de quarenta e cinco dias.

Parágrafo único. A decisão deverá ser fundamentada e basear-se em indícios suficientes

de autoria e materialidade, demonstrada a necessidade imperiosa da medida.

Corresponde à “prisão preventiva” do CPP, com algumas diferenças. O prazo máximo da


internação provisória é de 45 dias (o da preventiva é indeterminado). De acordo com o STJ,
esse prazo não pode ser extrapolado em hipótese alguma. Não importa a gravidade do ato
infracional, a complexidade do processo, de quem é a responsabilidade pela demora no
julgamento etc. Passados 45 dias, a medida cautelar deve ser extinta (HC 119.980 e
102.057). Portanto, no ECA o prazo é fatal e improrrogável.

90
Atenção! O art. 130, do ECA, alterado pela Lei 12.415/2011, determina a aplicação de
medida cautelar de afastamento do agressor da moradia comum. Trata-se de medida
cautelar diversa da prisão, prevista no ECA, mas aplicável aos imputáveis:

Art. 130. Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos

pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o

afastamento do agressor da moradia comum.

Parágrafo único. Da medida cautelar constará, ainda, a fixação provisória dos alimentos

de que necessitem a criança ou o adolescente dependentes do agressor. (Incluído pela Lei

nº 12.415, de 2011)

Assim, no caso de maus tratos ou abuso sexual contra criança ou adolescente, o juiz pode
decretar a medida cautelar de afastamento do agressor da moradia comum. Há, portanto,
além das medidas cautelares previstas no CPP, outras em leis especiais (ECA, Lei Maria da
Penha etc.)

9 – Prescrição de medida socioeducativa

Medida socioeducativa prescreve?

1ª corrente: medida socioeducativa não prescreve, por duas razões: i) o ECA não
prevê prescrição de medida socioeducativa; e ii) medida socioeducativa não é pena,
logo, não está sujeita a prescrição.

2ª corrente: medida socioeducativa prescreve, por duas razões: i) não é pena, mas
tem caráter punitivo, inclusive com restrição ou privação da liberdade do adolescente;
e ii) embora o ECA não tenha regras sobre prescrição, aplicam-se subsidiariamente as
do Código Penal.

Prevalece a segunda corrente (Súmula 338 do STJ). O STF segue o mesmo entendimento,
inclusive referindo-se à súmula do STJ:

Súmula 338 - A prescrição penal é aplicável nas medidas socioeducativas.

O STJ vem decidindo que a prescrição da pretensão punitiva é calculada com base na pena
máxima cominada para a infração correspondente ao ato infracional. Ou seja, a medida
socioeducativa prescreve no mesmo prazo em que a pena do crime correspondente. Ex.:
lesão leve: 3 anos; furto: 8 ou 12 anos.

91
A prescrição da pretensão executória é calculada com base na medida socioeducativa
aplicada. Se o juiz aplica medida socioeducativa de 6 meses, ela prescreverá em 3 anos.
Aqui, há alguns problemas:

i) há várias medidas decretáveis por prazo indeterminado:

Segundo o STJ, se a medida for aplicada por prazo indeterminado, a prescrição da pretensão
executória ocorrerá em 3 anos. Foi usado, por analogia, o prazo máximo da medida
socioeducativa de internação.

ii) há crimes que prescrevem em tempo menor:

Em se tratando de crime que prescreva em tempo menor, o prazo será o menor. Isso para
que não seja feita analogia in mallan partem. Assim, o prazo de prescrição será de 3 anos,
salvo se lei específica previr prazo menor. Ex.: o porte de drogas para consumo pessoal (art.
28 da Lei de Drogas) prescreve em 2 anos. A esse respeito, ver o STJ HC 157.262.

Observe que todos os prazos são reduzidos pela metade, em virtude da incidência do art.
115 do CP (no ECA, o infrator é sempre menor de 21 anos):

Art. 115 - São reduzidos de metade os prazos de prescrição quando o criminoso era, ao

tempo do crime, menor de 21 (vinte e um) anos, ou, na data da sentença, maior de 70

(setenta) anos.

É assim que o STJ decidiu questão de prescrição de ato infracional.

10 – Recursos no procedimento de apuração de atos infracionais

Em todos os casos até aqui estudados, foi utilizado o procedimento previsto no CPP, por
analogia, para a integração do sistema previsto no ECA para a apuração dos atos
infracionais.

Todavia, especificamente no que concerne aos recursos, aplica-se aos atos infracionais, por
analogia, o sistema recursal do CPC, e não o do CPP, com as adaptações do art. 198 do ECA.
Essa é uma pegadinha de concurso:

Art. 198. Nos procedimentos afetos à Justiça da Infância e da Juventude, inclusive os

relativos à execução das medidas socioeducativas, adotar-se-á o sistema recursal da Lei

no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil), com as seguintes

adaptações: (Redação dada pela Lei nº 12.594, de 2012)

I - os recursos serão interpostos independentemente de preparo;

92
II - em todos os recursos, salvo nos embargos de declaração, o prazo para o Ministério

Público e para a defesa será sempre de 10 (dez) dias; (Redação dada pela Lei nº 12.594, de

2012)

III - os recursos terão preferência de julgamento e dispensarão revisor; (...)

VII - antes de determinar a remessa dos autos à superior instância, no caso de apelação,

ou do instrumento, no caso de agravo, a autoridade judiciária proferirá despacho

fundamentado, mantendo ou reformando a decisão, no prazo de cinco dias;

VIII - mantida a decisão apelada ou agravada, o escrivão remeterá os autos ou o

instrumento à superior instância dentro de vinte e quatro horas, independentemente de

novo pedido do recorrente; se a reformar, a remessa dos autos dependerá de pedido

expresso da parte interessada ou do Ministério Público, no prazo de cinco dias, contados

da intimação.

Ex.: na apelação, as razões devem ser apresentadas juntamente com a petição de apelação.

Até 2009, a regra era que o recurso de apelação seria recebido apenas no efeito devolutivo.
Somente seria recebido no efeito suspensivo se houvesse perigo de dano irreparável ou de
difícil reparação:

Art. 198 (...) VI - a apelação será recebida em seu efeito devolutivo. Será também

conferido efeito suspensivo quando interposta contra sentença que deferir a adoção por

estrangeiro e, a juízo da autoridade judiciária, sempre que houver perigo de dano

irreparável ou de difícil reparação; (Revogado pela Lei nº 12.010, de 2009)

Todavia, esse dispositivo foi revogado pela Lei 12.010/2009. Como o ECA não diz mais o
efeito em que será recebida a apelação, aplica-se o sistema recursal do Processo Civil. Ou
seja, os efeitos em que será recebida a apelação são os do art. 520 do CPC:

Art. 520. A apelação será recebida em seu efeito devolutivo e suspensivo. Será, no

entanto, recebida só no efeito devolutivo, quando interposta de sentença que: (Redação

dada pela Lei nº 5.925, de 1973) (...)

O ECA não admite a aplicação do sistema recursal do CPP, mas são perfeitamente cabíveis a
impetração de HC e o ajuizamento de revisão criminal nos procedimentos do ECA. Não são
recursos, mas ações de impugnação.

11 – Dos crimes previstos no ECA

O art. 227 determina que todos os crimes previstos no ECA são de ação penal pública
incondicionada:

93
Art. 227. Os crimes definidos nesta Lei são de ação pública incondicionada

11.1 – Crime do art. 228

Art. 228. Deixar o encarregado de serviço ou o dirigente de estabelecimento de atenção à

saúde de gestante de manter registro das atividades desenvolvidas, na forma e prazo

referidos no art. 10 desta Lei, bem como de fornecer à parturiente ou a seu responsável,

por ocasião da alta médica, declaração de nascimento, onde constem as intercorrências

do parto e do desenvolvimento do neonato:

Pena - detenção de seis meses a dois anos.

Parágrafo único. Se o crime é culposo:

Pena - detenção de dois a seis meses, ou multa.

11.1.1 – sujeitos

O sujeito ativo deste crime somente pode ser o encarregado de serviço ou o dirigente de
estabelecimento de atenção à saúde da gestante. O tipo penal exige qualidade especial do
sujeito ativo, tratando-se, portanto, de crime próprio.

Sujeitos passivos são o neonato, a parturiente e o eventual responsável pelo neonato (ex.:
pai).

11.1.2 – elementos da conduta

O crime consiste em descumprir as obrigações impostas no art. 10, I e IV do ECA:

Art. 10. Os hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde de gestantes,

públicos e particulares, são obrigados a:

I - manter registro das atividades desenvolvidas, através de prontuários individuais, pelo

prazo de dezoito anos; (...)

IV - fornecer declaração de nascimento onde constem necessariamente as intercorrências

do parto e do desenvolvimento do neonato; (...)

O hospital pode ser público ou particular, razão pela qual o crime não é apenas de
funcionário público.

11.1.3 – elementos subjetivos do crime

Os elementos subjetivos do crime do art. 228 são o dolo e a culpa, pois o tipo prevê também
a conduta culposa.

11.1.4 – consumação e tentativa

94
A consumação do crime se dá com a simples conduta omissiva. A tentativa não é possível,
por se tratar de crime omissivo puro ou próprio (crime de mera conduta).

11.2 – Crime do art. 229

Art. 229. Deixar o médico, enfermeiro ou dirigente de estabelecimento de atenção à

saúde de gestante de identificar corretamente o neonato e a parturiente, por ocasião do

parto, bem como deixar de proceder aos exames referidos no art. 10 desta Lei:

Pena - detenção de seis meses a dois anos.

Parágrafo único. Se o crime é culposo:

Pena - detenção de dois a seis meses, ou multa.

11.2.1 – sujeitos

Os sujeitos ativos do crime do art. 229 são o médico, o enfermeiro ou o dirigente de


estabelecimento de atenção à saúde da gestante.

11.2.2 – elementos da conduta

O crime consiste em descumprir as obrigações constantes do art. 10, II e III do ECA:

Art. 10. Os hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde de gestantes,

públicos e particulares, são obrigados a: (...)

II - identificar o recém-nascido mediante o registro de sua impressão plantar e digital e da

impressão digital da mãe, sem prejuízo de outras formas normatizadas pela autoridade

administrativa competente;

III - proceder a exames visando ao diagnóstico e terapêutica de anormalidades no

metabolismo do recém-nascido, bem como prestar orientação aos pais; (...)

Lembre que o descumprimento das obrigações previstas no art. 10, I e IV, configura o crime
do art. 228 do ECA. O descumprimento do art. 10, V (“manter alojamento conjunto,
possibilitando ao neonato a permanência junto à mãe”), é fato atípico.

11.2.3 – elementos subjetivos do crime

Os elementos subjetivos do crime são o dolo e a culpa (o crime também admite a forma
culposa).

11.2.4 – consumação e tentativa

95
Assim como no crime anterior, a consumação do crime do art. 229 se dá com a simples
conduta omissiva. A tentativa não é possível, por se tratar de crime omissivo puro ou próprio
(crime de mera conduta).

11.3 – Crime do art. 230

Art. 230. Privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão

sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade

judiciária competente:

Pena - detenção de seis meses a dois anos.

Parágrafo único. Incide na mesma pena aquele que procede à apreensão sem observância

das formalidades legais.

O dispositivo já foi visto por ocasião do estudo da Lei de Abuso de Autoridade. Cumpre,
todavia, realizar algumas observações, as quais serão realizadas nos tópicos a seguir.

11.3.1 – sujeitos do crime

O sujeito ativo deste crime pode ser qualquer pessoa. Trata-se, portanto, de um crime
comum. O sujeito passivo é a criança ou o adolescente privado da liberdade.

11.3.2 – elementos da conduta

O crime consiste em privar a criança ou o adolescente de sua liberdade por meio de uma
apreensão ilegal. Então, se a finalidade for privar a liberdade da criança por outro motivo,
que não seja uma apreensão ilegal, haverá crime de sequestro ou cárcere privado do art.
148 do CP.

11.3.4 – elemento subjetivo do crime

O elemento subjetivo do crime do art. 230 é o dolo.

11.3.5 – consumação e tentativa

A consumação se dá com a mera apreensão ilegal, independentemente de eventual prejuízo


à criança ou ao adolescente. A tentativa é perfeitamente possível.

11.4 – Crime do art. 231

Art. 231. Deixar a autoridade policial responsável pela apreensão de criança ou

adolescente de fazer imediata comunicação à autoridade judiciária competente e à

família do apreendido ou à pessoa por ele indicada:

96
Pena - detenção de seis meses a dois anos.

O dispositivo também já foi visto por ocasião do estudo da Lei de Abuso de Autoridade,
motivo pelo qual apenas algumas observações serão tecidas.

11.4.1 – sujeitos do crime

O sujeito ativo deste crime é somente a autoridade policial. Trata-se, portanto, de um crime
próprio. Os sujeitos passivos são a criança ou o adolescente apreendido (a).

11.4.2 – elementos da conduta

A Constituição impõe um duplo dever de comunicação da prisão de alguém: ao juiz


competente e à família do preso ou a pessoa por ele indicada:

Art. 5º (...) LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão

comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele

indicada;

Por sua vez, o CPP, na nova redação do art. 306, impõe que a prisão seja comunicada ao juiz
competente, à família do preso ou pessoa por ele indicada e ao Ministério Público (Lei
12.403/2011):

Art. 306. A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados

imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa

por ele indicada. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). (...)

Como dito por ocasião do estudo da Lei de Abuso de Autoridade, deixar de comunicar a
prisão ao juiz é considerado crime. Todavia, deixar de comunicar a prisão à família do preso
ou pessoa por ele indicada, não. Com o advento da nova lei, deixar de comunicar a prisão ao
MP também não é abuso de autoridade. Conclusão: só é crime de abuso de autoridade
deixar de comunicar a prisão ao juiz.

No ECA, entretanto, são crimes: i) deixar de comunicar a apreensão do adolescente ao juiz; e


ii) deixar de comunicar a apreensão do adolescente à família ou a pessoa por ele indicada.
Todavia, deixar de comunicar ao MP não é crime, até porque o ECA não faz essa exigência.

11.4.3 – elemento subjetivo do crime

O elemento subjetivo do crime do art. 231 é o dolo. Caso o Delegado, por negligência, se
esqueça de comunicar a apreensão ao juiz, ele não comete crime, ainda que possa sofrer
processo administrativo.

97
11.4.4 – consumação e tentativa

A consumação do crime se dá com a simples omissão em comunicar. A tentativa não é


possível, por se tratar de crime omissivo puro ou próprio (crime de mera conduta).

11.5 – Crime do art. 232

Art. 232. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a

vexame ou a constrangimento:

Pena - detenção de seis meses a dois anos.

O dispositivo já foi visto por ocasião do estudo da Lei de Abuso de Autoridade.

11.6 – Crime do art. 233 (revogado)

Art. 233. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a

tortura:

Pena - reclusão de um a cinco anos.

§ 1º Se resultar lesão corporal grave:

Pena - reclusão de dois a oito anos.

§ 2º Se resultar lesão corporal gravíssima:

Pena - reclusão de quatro a doze anos.

§ 3º Se resultar morte:

Pena - reclusão de quinze a trinta anos. (Revogado pela Lei nº 9.455, de 7.4.1997:

Por haver sido o dispositivo revogado pela Lei de Tortura, a tortura praticada contra a
criança ou o adolescente configura o crime (de tortura) previsto no art. 1º da Lei 9.455/1997,
com o aumento de pena previsto no § 4º, II, do mesmo dispositivo:

Art. 1º Constitui crime de tortura: (...)

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou

grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo

pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos. (...)

§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:

II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente

ou maior de 60 (sessenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003) (...)

11.7 – Crime do art. 237

Art. 237. Subtrair criança ou adolescente ao poder de quem o tem sob sua guarda em

virtude de lei ou ordem judicial, com o fim de colocação em lar substituto:

98
Pena - reclusão de dois a seis anos, e multa.

11.7.1 – sujeitos do crime

O sujeito ativo do crime do art. 237 pode ser qualquer pessoa, inclusive o pai ou mãe
destituído (a) do poder familiar ou o tutor privado da tutela. Sujeitos passivos são a criança
ou o adolescente subtraído (a) e aquele que detém a guarda deles.

11.7.2 – conduta

A conduta punida no art. 237 consiste em subtrair (retirar) a criança ou adolescente sem a
autorização de quem detém a guarda.

11.7.3 – elemento normativo do tipo

A doutrina sustenta que só há o crime se a pessoa tem a guarda judicial ou legal. Se a pessoa
tem a guarda de fato, não há crime, na medida em que o dispositivo fala expressamente em
quem tem a guarda “em virtude de lei ou ordem judicial”.

11.7.4 – elemento subjetivo do tipo

O tipo prevê, ainda, um elemento subjetivo, consubstanciado na finalidade específica de


colocar a criança ou o adolescente em lar substituto. Não havendo essa finalidade específica,
incorrerá o agente no crime do art. 249 do CP (subtração de incapazes).

11.7.5 – elemento subjetivo do crime

O elemento subjetivo do crime é o dolo de subtrair, acrescido da finalidade específica de


colocar a criança ou o adolescente em lar substituto.

11.7.6 – consumação e tentativa

A consumação do crime do art. 237 ocorre com a subtração, ainda que a criança ou
adolescente não seja colocado (a) em lar substituto, ou seja, que a finalidade não seja
alcançada. Se ocorrer a efetiva colocação em lar substituto, haverá exaurimento do crime já
consumado.

A tentativa é perfeitamente possível e ocorrerá se o infrator não conseguir subtrair a criança


ou o adolescente.

11.7.7 – art. 237 do ECA vs. art. 249 do CP

99
O art. 249 do Código Penal prevê o crime de subtração de incapaz:

Art. 249 - Subtrair menor de dezoito anos ou interdito ao poder de quem o tem sob sua

guarda em virtude de lei ou de ordem judicial:

Pena - detenção, de dois meses a dois anos, se o fato não constitui elemento de outro

crime. (...)

Perceba que a redação é bastante parecida com a do art. 237 do ECA. Todavia, aquele
dispositivo do CP não prevê a finalidade específica de colocação da criança ou do
adolescente em lar substituto (o art. 249 não exige nenhuma finalidade específica).

Além disso, o art. 249, § 2º, prevê a possibilidade de perdão judicial no crime de subtração
de incapazes, desde que a criança ou o adolescente não tenha sofrido privação ou maus
tratos:

Art. 249 (...) § 2º - No caso de restituição do menor ou do interdito, se este não sofreu

maus-tratos ou privações, o juiz pode deixar de aplicar pena.

11.8 – Crime do art. 239 (tráfico internacional de crianças e adolescentes)

Art. 239. Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou

adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de

obter lucro:

Pena - reclusão de quatro a seis anos, e multa.

Parágrafo único. Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude: (Incluído pela Lei

nº 10.764, de 12.11.2003)

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.

Atenção! O que o tipo penal está punindo não é o envio da criança ou adolescente ao
exterior, mas a promoção ou o auxílio da efetivação de ato destinado ao envio. Desse modo,
ainda que o envio não tenha ocorrido, o crime estará consumado.

11.8.1 – sujeitos do crime

O sujeito ativo do crime do art. 239 pode ser qualquer pessoa, inclusive o pai ou mãe.
Sujeitos passivos são a criança ou o adolescente e o responsável por eles, se não for o autor
do crime.

11.8.2 – condutas

As condutas puníveis consistem em:

100
i) promover ou auxiliar a promoção:

Promover significa organizar, executar. Auxiliar significa prestar auxílio. Aquele que presta
auxílio ao ato, aqui, não é partícipe, mas autor, pois auxiliar, neste caso, é um dos núcleos
verbais do tipo penal.

ii) de ato destinado ao envio da criança ou adolescente ao exterior:

A promoção ou auxílio deve ser de ato destinado ao envio da criança ou adolescente ao


exterior. Exemplos: providenciar a elaboração do passaporte, comprar as passagens aéreas,
conseguir a autorização dos pais para levar a criança ou adolescente ao exterior. A simples
prática dessas condutas preparatórias para o envio da criança ou adolescente ao exterior já
basta para a caracterização do crime do art. 239.

iii) sem as formalidades legais:

O ato destinado ao envio da criança e do adolescente ao exterior deve se dar sem as


formalidades legais. Caso estejam presentes as formalidades legais, o fato será atípico.

Exemplos doutrinários do crime previsto no art. 239, caput: prática de atos destinados à
adoção ilegal no exterior; finalidade de lucro. Importante observar que não é necessária a
persecução de lucro para a configuração do crime. A finalidade de lucro não é qualificadora
nem causa de aumento de pena. É elementar do tipo básico (é um dos motivos do crime),
ainda que na fixação de pena base o juiz deva levar o propósito lucrativo em consideração.

Exemplos doutrinários do crime previsto no art. 239, parágrafo único: o infrator obtém uma
autorização do pai da criança ou adolescente, sob pena de matá-lo; o infrator consegue
autorização utilizando fraude, dizendo que o levaria para jogar futebol, sendo que o real
propósito era a venda.

Repare que, se houver violência, o infrator responderá pelo crime do art. 239 do ECA, mais a
pena correspondente à violência (lesão corporal, tentativa de homicídio, homicídio
consumado etc.)

11.8.3 – elemento subjetivo do crime

O elemento subjetivo do crime de tráfico internacional de crianças é o dolo.

11.8.4 – consumação e tentativa

101
A consumação se dá com a simples prática do ato destinado ao envio da criança ou
adolescente ao estrangeiro, ainda que esse envio não ocorra. Se o envio ocorrer, será mero
exaurimento do crime já consumado.

A tentativa é perfeitamente possível, e ocorrerá quando o infrator sequer conseguir praticar


o ato destinado ao envio (ex.: o sujeito é preso pela Polícia Federal tentando obter a
documentação necessária à viagem destinada ao envio).

11.8.5 – competência

O crime é de competência da Justiça Federal, por ser o Brasil signatário de convenção


relativa à proteção da criança e do adolescente da ONU (art. 109, V, CR):

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (...)

V - os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a

execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou

reciprocamente; (...)

12 – Dos crimes acrescentados ao ECA pela Lei 11.829/2008

A Lei 11.829/2008, conhecida como Lei da Pedofilia, alterou e acrescentou artigos no ECA
visando, especialmente: i) aumentar as penas anteriormente previstas; ii) punir pedófilos
que mantêm, veiculam, comercializam ou adquirem objetos com cenas pornográficas ou de
sexo explícito envolvendo crianças e adolescentes; e iii) atualizar a lei às modernidades da
tecnologia, permitindo às autoridades a punição de criminosos que utilizam rede de
computadores para a prática de crimes.

Atenção! A Lei de Pedofilia não pune exclusivamente condutas praticadas por rede de
computadores. Ainda que esse tenha sido um de seus objetivos, ela pune condutas
praticadas por qualquer meio, e não apenas as envolvendo a Internet.

12.1 – Crime do art. 240

Art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio,

cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente: (Redação

dada pela Lei nº 11.829, de 2008)

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 11.829,

de 2008) (...)

12.1.1 – sujeitos do crime

102
12.1.1.1 – sujeito ativo

O sujeito ativo deste crime pode ser qualquer pessoa (crime comum). Todavia, se ele estiver
em qualquer das situações do § 2º (com redação dada pela Lei 11.829/2008), haverá
aumento de pena:

Art. 240 (...) § 2º Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se o agente comete o crime:

I – no exercício de cargo ou função pública ou a pretexto de exercê-la;

II – prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; ou

III – prevalecendo-se de relações de parentesco consanguíneo ou afim até o terceiro grau,

ou por adoção, de tutor, curador, preceptor, empregador da vítima ou de quem, a

qualquer outro título, tenha autoridade sobre ela, ou com seu consentimento.

O dispositivo prevê três causas de aumento de pena em patamar fixo. Havendo mais de uma
causa de aumento de pena (ex.: o crime praticado pelo pai da criança poderá incidir nas
causas dos incisos II e III, por se tratar de relação doméstica e parentesco), a excedente será
utilizada como circunstância judicial desfavorável na dosimetria da pena base.

12.1.1.2 – sujeito passivo

Sujeito passivo do crime do art. 240 é a criança ou o adolescente envolvido na cena.

12.1.2 – objeto jurídico

Para Nucci, o objeto jurídico do crime é a proteção da formação moral da criança ou do


adolescente. Há quem diga (Rogério) que a proteção é a moralidade sexual pública, na
medida em que a produção de uma cena de sexo explícito e/ou a veiculação do material
contra a criança fere a moralidade de todos.

Maciel considera que ambos os doutrinadores estão corretos, pois o tipo protege os dois
bens jurídicos.

12.1.3 – condutas

Há seis núcleos verbais no tipo penal do art. 240. Trata-se de tipo misto alternativo (crime de
conduta múltipla ou variada), aquele em que a prática de várias condutas no mesmo
contexto fático configura crime único.

12.1.4 – objeto material

103
O objeto material do crime do art. 240 é a cena de sexo explícito ou pornográfica
envolvendo a criança ou o adolescente. O conceito de cena de sexo explícito ou pornográfica
está na norma penal explicativa do art. 241-E do ECA:

Art. 241-E. Para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão “cena de sexo explícito

ou pornográfica” compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em

atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas [veja que a conduta poderá ser

simulada], ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins

primordialmente sexuais.

Segundo Nucci, este conceito deixa de fora algumas situações, como a exposição da criança
ou do adolescente em roupas íntimas ou em poses sexuais sem exibição de genitália. Trata-
se de uma perigosíssima lacuna da lei, que não poderá ser preenchida por analogia ou
interpretação extensiva.

12.1.5 – elemento subjetivo do crime

O elemento subjetivo do crime do art. 240 é o dolo, não se exigindo nenhuma finalidade
específica (ex.: lucro).

12.1.6 – consumação e tentativa

Ocorre a consumação do crime com a simples prática de qualquer das condutas do tipo, não
havendo necessidade de efetivo prejuízo para a formação moral da criança ou do
adolescente.

O efetivo prejuízo, nesse caso, é o resultado naturalístico, que, como dito, não precisa
ocorrer. Conclusão: o crime do art. 240 do ECA é formal ou de consumação antecipada
(entendimento adotado pela CESPE, que considerou incorreta alternativa segundo a qual
seria crime material).

A tentativa é perfeitamente possível.

12.1.7 – condutas equiparadas: art. 240, § 1º

Art. 240 (...) § 1º Incorre nas mesmas penas quem agencia, facilita, recruta, coage, ou de

qualquer modo intermedeia a participação de criança ou adolescente nas cenas referidas

no caput deste artigo, ou ainda quem com esses contracena. (Redação dada pela Lei nº

11.829, de 2008)

O dispositivo prevê duas condutas equiparadas:

104
i) a daquele que propicia a realização das cenas sexuais ou pornográficas:

Ex.: agenciamento ou intermediação da negociação com a criança ou adolescente. Caso não


houvesse esse § 1º, o infrator de que ele trata seria partícipe do crime do caput.

ii) a daquele que contracena com a criança ou adolescente, que responderá em concurso
com o crime do CP.

Ex.: aquele que contracena com a criança responderá, também, por estupro de vulnerável.

12.2 – Crime do art. 241

Art. 241. Vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena

de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: (Redação dada pela

Lei nº 11.829, de 2008)

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 11.829,

de 2008)

Tudo quanto for dito acerca do crime do art. 241 será aproveitado aos dos arts. 241-A, 241-B
e 241-C.

12.2.1 – sujeitos do crime

O sujeito ativo deste crime pode ser qualquer pessoa (crime comum). Sujeitos passivos são a
criança ou o adolescente.

12.2.2 – objeto jurídico

Para Nucci, o objeto material do crime do art. 241 é a proteção da formação moral da
criança ou do adolescente. Para Rogério Sanches, é também a proteção é a moralidade
sexual pública, na medida em que uma cena de sexo explícito ou a veiculação do material
contra a criança fere a moralidade de todos.

12.2.3 – elemento subjetivo do crime

Elemento subjetivo do crime é o dolo, não se exigindo nenhuma finalidade específica.

Atenção! Não é necessária a finalidade de lucro, ainda que haja os verbos “vender ou expor
à venda”. Isso porque o sujeito pode vender pelo preço que ele pagou ou até inferior ao por
ele pago. Não haverá finalidade de lucro, mas ainda assim o crime ocorre.

12.2.4 – condutas

105
As condutas punidas são a venda ou a exposição à venda dos materiais previstos no
dispositivo. O comprador responderá pelo crime do art. 241-B.

12.2.5 – objeto material

O objeto material do crime do art. 241 não é a cena do sexo explícito ou pornográfica
envolvendo a criança ou o adolescente, mas a fotografia, o vídeo ou qualquer registro
contendo tal cena (ex.: pen drive, CD, DVD, álbum de fotos etc.)

Como visto, o conceito de cena de sexo explícito ou pornográfica está na norma penal
explicativa do art. 241-E do ECA, valendo lembrar a crítica de Nucci, segundo a qual ele
exclui determinadas condutas importantes.

12.2.6 – consumação e tentativa

Ocorre a consumação do crime do art. 241 com a simples prática de qualquer das condutas
do tipo, não havendo necessidade de efetivo prejuízo para a formação moral da criança ou
do adolescente.

O efetivo prejuízo, nesse caso, é o resultado naturalístico, que não precisa ocorrer.
Conclusão é que o art. 241 do ECA é crime formal ou de consumação antecipada
(entendimento adotado pela CESPE, que considerou incorreta alternativa segundo a qual
seria crime material).

Segundo Nucci, trata-se de crime de perigo abstrato.

A tentativa é perfeitamente possível.

12.3 – Crime do art. 241-A

Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por

qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia,

vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo

criança ou adolescente: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)

(...)

12.3.1 – sujeitos do crime

O sujeito ativo deste crime pode ser qualquer pessoa (crime comum). Sujeitos passivos são a
criança ou o adolescente envolvido na cena.

106
12.3.2 – objeto jurídico

Para Nucci, o objeto material do crime é a proteção da formação moral da criança ou do


adolescente. Além disso, para Rogério Sanches, é também a proteção à moralidade sexual
pública, na medida em que uma cena de sexo explícito ou a veiculação do material contra a
criança fere a moralidade de todos.

12.3.3 – elemento subjetivo do crime

O elemento subjetivo do crime do art. 241-A é o dolo, não se exigindo nenhuma finalidade
específica.

12.3.4 – objeto material

O objeto material do crime do art. 241-A não é a cena do sexo explícito ou pornográfica
envolvendo a criança ou o adolescente, mas a fotografia, o vídeo ou qualquer registro
contendo tal cena (ex.: pen drive, CD, DVD, álbum de fotos etc.)

O conceito de cena de sexo explícito ou pornográfica está na norma penal explicativa do art.
241-E do ECA. Vale lembrar a crítica de Nucci, segundo a qual ele deixa de fora determinadas
condutas importantes.

12.3.5 – consumação e tentativa

Ocorre a consumação do crime do art. 241-A com a simples prática de qualquer das
condutas do tipo, não havendo necessidade de efetivo prejuízo para a formação moral da
criança ou do adolescente.

O efetivo prejuízo, nesse caso, é o resultado naturalístico, que não precisa ocorrer.
Conclusão é que o art. 241-A do ECA é crime formal ou de consumação antecipada
(entendimento adotado pela CESPE, que considerou incorreta alternativa segundo a qual
seria crime material).

Segundo Nucci, trata-se de crime de perigo abstrato.

A tentativa é perfeitamente possível.

12.3.6 – condutas

O art. 241 pune as condutas de vender ou expor à venda. Já o art. 241-A pune as condutas
de “oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer
meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático”.

107
O que diferencia os crimes, portanto, são essas condutas. No mais, eles são idênticos.
Exemplos: disponibilização na Internet de fotos pornográficas, troca de materiais
pornográficos entre pedófilos etc.

12.3.7 – condutas equiparadas

Art. 241-A (...) § 1º Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 11.829, de

2008)

I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou

imagens de que trata o caput deste artigo; (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)

II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às fotografias, cenas

ou imagens de que trata o caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008) (...)

O inciso I pune aquele que armazena o material previsto no caput. Exemplo: o amigo, que
não tem computador, pede para o outro armazenar as imagens no computador dele. Esse
que guardou as imagens para o pedófilo responderá pelo crime do art. 241-A, § 1º, I.

O inciso II pune a conduta daqueles que permitem o acesso às cenas por rede de
computadores. Detalhe: não necessariamente precisa ser a rede mundial de computadores
(Internet). Pode ser a rede de computadores de uma empresa, por exemplo.

Como determina o § 2º do mesmo dispositivo, as condutas do § 1º somente podem ser


punidas se o responsável legal pela prestação do serviço de informática for oficialmente
notificado a desabilitar o conteúdo e não o fizer:

Art. 241-A (...) § 2º As condutas tipificadas nos incisos I e II do § 1º deste artigo são

puníveis quando o responsável legal pela prestação do serviço, oficialmente notificado,

deixa de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito de que trata o caput deste artigo.

(Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)

É necessária, portanto, uma notificação oficial ao responsável legal, para a incidência da


figura equiparada. “Notificação oficial” é aquela feita por qualquer autoridade com
competência para apurar crimes ou para tomar medidas de proteção à criança ou ao
adolescente. Ex.: Promotor de Justiça, Juiz da Vara da Infância e Juventude. Veja que a
notificação tem de ser oficial. Não são válidas notificações não oficiais (ex.: a notificação
feita por uma ONG).

Essa notificação oficial deve ser feita ao responsável legal, que é a pessoa com poder de
mando para determinar a desabilitação do conteúdo. De nada adianta notificar qualquer

108
responsável pelo provedor. Tem de ser a alguém que, dentro da empresa, tenha capacidade
para decidir.

A lei fala em “notificação oficial”, mas não menciona prazo. Portanto, essa notificação deve
indicar o prazo para a desabilitação. Somente depois que isso ocorrer e a pessoa descumprir
a determinação é que ela poderá ser punida pelos crimes.

Qual é a natureza jurídica dessa notificação oficial? Para Nucci, trata-se de uma condição
objetiva de punibilidade. Ou seja, o crime já existe, mas sem ela não é possível punir o
infrator. Todavia, em um concurso da CESPE, foi considerado que a notificação oficial seria
condição de procedibilidade (ou seja, condição para o exercício da ação penal). Silvio Maciel
concorda com a posição de Nucci.

12.4 – Crime do art. 241-B

Art. 241-B. Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra

forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo

criança ou adolescente: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.829, de

2008) (...)

12.4.1 – sujeitos do crime

O sujeito ativo deste crime pode ser qualquer pessoa (crime comum). Sujeitos passivos são a
criança ou o adolescente.

12.4.2 – objeto jurídico

Para Nucci, o objeto material do crime é a proteção da formação moral da criança ou do


adolescente. Além disso, para Rogério Sanches, a proteção é também da moralidade sexual
pública, na medida em que uma cena de sexo explícito ou a veiculação do material contra a
criança fere a moralidade de todos.

12.4.3 – elemento subjetivo do crime

O elemento subjetivo do crime é o dolo, não se exigindo nenhuma finalidade específica.

12.4.4 – objeto material

O objeto material do crime não é a cena do sexo explícito ou pornográfica envolvendo a


criança ou o adolescente, mas a fotografia, o vídeo ou qualquer registro contendo tal cena
(ex.: pen drive, CD, DVD, álbum de fotos etc.)

109
O conceito de cena de sexo explícito ou pornográfica está na norma penal explicativa do art.
241-E do ECA, com a crítica de Nucci.

12.4.5 – consumação e tentativa

Ocorre a consumação do crime com a simples prática de qualquer das condutas do tipo, não
havendo necessidade de efetivo prejuízo para a formação moral da criança ou do
adolescente.

O efetivo prejuízo, nesse caso, é o resultado naturalístico, que não precisa ocorrer.
Conclusão é que o art. 241-B do ECA é crime formal ou de consumação antecipada
(entendimento adotado pela CESPE, que considerou incorreta alternativa segundo a qual
seria crime material).

Segundo Nucci, trata-se de crime de perigo abstrato.

A tentativa é perfeitamente possível.

12.4.6 – condutas

O art. 241-B, caput, pune quem adquire, possui ou armazena o objeto material.

12.4.7 – causa de diminuição de pena

Art. 241-B (...) § 1º A pena é diminuída de 1 (um) a 2/3 (dois terços) se de pequena

quantidade o material a que se refere o caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.829, de

2008)

“Pequena quantidade” é elemento normativo do tipo, que deve ser verificada pelo juiz em
cada caso concreto.

12.4.8 – causas excludentes de ilicitude

Não há crime se a posse ou o armazenamento do material pornográfico tiver por finalidade a


comunicação às autoridades competentes da ocorrência dos crimes dos arts. 240, 241, 241-
A e 241-C, e desde que essa comunicação seja feita: i) por agente público, no exercício de
suas funções (estrito cumprimento do dever legal); ii) por membros de entidade de proteção
à criança e adolescente que tenham, dentre suas finalidades institucionais, a comunicação
de crimes contra crianças e adolescentes; ou iii) por representante legal ou funcionários de
provedores de acesso ou de serviços prestados por rede de computadores:

Art. 241-B (...) § 2º Não há crime se a posse ou o armazenamento tem a finalidade de

110
comunicar às autoridades competentes a ocorrência das condutas descritas nos arts. 240,

241, 241-A e 241-C desta Lei, quando a comunicação for feita por: (Incluído pela Lei nº

11.829, de 2008)

I – agente público no exercício de suas funções; (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)

II – membro de entidade, legalmente constituída, que inclua, entre suas finalidades

institucionais, o recebimento, o processamento e o encaminhamento de notícia dos

crimes referidos neste parágrafo; (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)

III – representante legal e funcionários responsáveis de provedor de acesso ou serviço

prestado por meio de rede de computadores, até o recebimento do material relativo à

notícia feita à autoridade policial, ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário. (Incluído

pela Lei nº 11.829, de 2008) (...)

Assim, se um policial, um membro de associação de proteção à criança ou um dono de


provedor de Internet armazenam ou possuem material com a finalidade de comunicação do
crime à autoridade, não há crime, em virtude da ausência de dolo de utilizar ilicitamente
esse material.

Há, todavia, um detalhe: se essas pessoas mencionadas no § 2º revelarem a terceiro o


conteúdo desse material, responderão pelo crime do art. 241-A, nos temos do que
determina o § 3º:

Art. 241-B (...) § 3º As pessoas referidas no § 2º deste artigo deverão manter sob sigilo o

material ilícito referido. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)

Ex.: o membro de entidade de proteção à criança está com o material armazenado em seu
computador, para apresentá-lo à policia na segunda-feira (excludente de ilicitude). Todavia,
se antes de levar o material à polícia, ele mostrar o material para amigos, cometerá o crime
do art. 241-A do ECA.

12.5 – Crime do art. 241-D

Art. 241-D. Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação,

criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso: (Incluído pela Lei nº 11.829, de

2008)

Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)

(...)

12.5.1 – sujeitos do crime

111
O sujeito ativo deste crime pode ser qualquer pessoa (crime comum). Sujeito passivo é
somente a criança. Este tipo penal não tutela o adolescente.

12.5.2 – objeto jurídico

Para Nucci, o objeto material do crime é a proteção da formação moral da criança ou do


adolescente. Além disso, para Rogério Sanches, é também a proteção é a moralidade sexual
pública.

12.5.3 – condutas

Aliciar é seduzir; assediar é perseguir, insistir; instigar é convencer; constranger é incomodar,


obrigar.

Este crime não precisa ser praticado, necessariamente, por meio de informática. Pode ser
praticado, inclusive, por telefone (qualquer meio de comunicação), ainda que o objetivo
principal da lei tenha sido alcançar aqueles que cometem o crime por meio de informática.

12.5.4 – elemento subjetivo do crime

O elemento subjetivo do crime do art. 241-D é o dolo, acrescido da finalidade específica de


manter ato libidinoso com a criança.

12.5.5 – consumação e tentativa

Consuma-se o crime do art. 241-D com a simples prática de qualquer das condutas do tipo,
sem que haja o ato libidinoso. O ato libidinoso, se houver, não será exaurimento do crime,
mas estupro de vulnerável.

A tentativa é perfeitamente possível.

12.5.6 – figuras equiparadas

Art. 241-D (...) Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº

11.829, de 2008)

I – facilita ou induz o acesso à criança de material contendo cena de sexo explícito ou

pornográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso; (Incluído pela Lei nº 11.829, de

2008)

II – pratica as condutas descritas no caput deste artigo com o fim de induzir criança a se

exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita. (Incluído pela Lei nº 11.829, de

2008)

112
O inciso I pune a conduta de dar acesso a criança a material pornográfico ou de sexo
explícito, com o fim de com ela praticar ato libidinoso. Lembrar que, se o ato libidinoso for
praticado, haverá estupro de vulnerável.

No inciso II, a finalidade não é de praticar ato libidinoso com a criança, mas fazê-la se exibir
de forma pornográfica ou sexualmente explícita.

12.6 – Crime do art. 242

Art. 242. Vender, fornecer ainda que gratuitamente ou entregar, de qualquer forma, a

criança ou adolescente arma, munição ou explosivo [apenas armas impróprias]:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos. (Redação dada pela Lei nº 10.764, de

12.11.2003)

O art. 242 do ECA foi tacitamente derrogado (revogação parcial) pelo art. 16, parágrafo
único, V, do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003):

Art. 16 (...) Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem: (...)

V – vender, entregar ou fornecer, ainda que gratuitamente, arma de fogo, acessório,

munição ou explosivo a criança ou adolescente; e (...)

Para a doutrina, o dispositivo do Estatuto do Desarmamento aplica-se nas hipóteses de


entrega a criança ou adolescente de arma de fogo, munição ou explosivo, continuando o art.
242 do ECA aplicável no que se refere às armas brancas, próprias ou impróprias. Ex.: se o
infrator vende um revólver ao adolescente, responde pelo crime do Estatuto do
Desarmamento; se vende um soco inglês, responde pelo crime do art. 242 do ECA.

12.6.1 – sujeitos

Sujeito ativo do crime do art. 242 é qualquer pessoa. Sujeitos passivos são a criança, o
adolescente e a sociedade (arma na mão de criança ou adolescente é perigo à sociedade). O
bem tutela a incolumidade pública.

12.6.2 – condutas

As condutas previstas no art. 242 do ECA dispensam comentários.

12.6.3 – objeto material

Como visto, o objeto material do crime do art. 242 é somente a arma branca.

113
12.6.7 – elemento subjetivo

O elemento subjetivo do crime do art. 242 é o dolo.

12.6.8 – consumação e tentativa

A consumação se dá com a prática de qualquer das condutas do tipo, ainda que não ocorra
nenhum prejuízo à criança, adolescente ou a terceiros. Trata-se, portanto, de crime formal
(ou de consumação antecipada).

A tentativa é perfeitamente possível.

12.7 – Crime do art. 243

Art. 243. Vender, fornecer ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer

forma, a criança ou adolescente, sem justa causa, produtos cujos componentes possam

causar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida:

Pena - detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais

grave. (Redação dada pela Lei nº 10.764, de 12.11.2003)

12.7.1 – sujeitos

Sujeito ativo do crime do art. 243 pode ser qualquer pessoa, inclusive os pais ou
responsáveis pela criança ou adolescente. Sujeitos passivos são a criança e o adolescente.

12.7.2 – objeto jurídico

O tipo penal protege a integridade física e psíquica da criança.

12.7.3 – condutas

As condutas punidas no art. 243 são: vender, fornecer (ainda que gratuitamente) ou
entregar. Trata-se de crime de conduta múltipla ou variada.

12.7.4 – objeto material

O objeto material do crime do art. 243 é “substância cujos componentes possam causar
dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida”.

Pode se tratar, portanto, de qualquer substância, exceto as da Portaria 344/1998 (drogas).


Isso porque vender, fornecer ou entregar drogas a criança ou adolescente configura tráfico
de drogas, com causa de aumento de pena. Até porque o crime do art. 243 é expressamente

114
subsidiário, pois o próprio tipo penal (o preceito sancionador) ressalva a aplicabilidade para
o caso de o fato não constituir crime mais grave.

Servir bebida alcoólica a criança ou adolescente configura o crime do ECA ou a contravenção


do art. 63, I, da Lei das Contravenções Penais?

Art. 63. Servir bebidas alcoólicas:

I – a menor de dezoito anos; (...)

É amplamente majoritário o entendimento no STJ de que a conduta configura a


contravenção penal, e não o crime do 243 do ECA. Isso porque, para o STJ, comparando-se
as normas, o art. 243 é norma geral, enquanto que o art. 63, I, da LCP, é norma especial. O
critério de especialidade é o seguinte: o art. 243 do ECA refere-se a qualquer substância,
enquanto que o art. 63, I, da LCP refere-se, especificamente, a bebida alcoólica.

Importante observar que o agente responde pelo crime do art. 243 ainda que a criança ou o
adolescente faça utilização indevida da substância. Ex.: o infrator entrega um medicamento
à criança, para que ela tome um comprimido por dia. Ao receber a medicação, ela passa a
tomar cinco comprimidos por dia e fica dependente dela. Note que a criança ficou
dependente por haver utilizado de modo equivocado o medicamento, mas o fato da
utilização indevida não afasta a aplicação do art. 243 do ECA.

12.8 – Crime do art. 244

Art. 244. Vender, fornecer ainda que gratuitamente ou entregar, de qualquer forma, a

criança ou adolescente fogos de estampido ou de artifício, exceto aqueles que, pelo seu

reduzido potencial, sejam incapazes de provocar qualquer dano físico em caso de

utilização indevida:

Pena - detenção de seis meses a dois anos, e multa.

Aplica-se ao art. 244 tudo o que foi dito sobre o art. 243, exceto o objeto material.

No crime do art. 244, o objeto material são fogos de estampido ou de artifício, exceto
aqueles totalmente incapazes de provocarem qualquer dano à criança ou ao adolescente.
Esse crime necessita, evidentemente, de exame pericial. Somente ele poderá aferir se o
objeto pode ou não causar qualquer tipo de dano.

12.9 – Crime do art. 244-A

Art. 244-A. Submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do art. 2º

desta Lei, à prostituição ou à exploração sexual: (Incluído pela Lei nº 9.975, de 23.6.2000)

115
Pena - reclusão de quatro a dez anos, e multa. (...)

§ 1º Incorrem nas mesmas penas o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em

que se verifique a submissão de criança ou adolescente às práticas referidas no caput

deste artigo. [ex.: gerente do hotel, proprietário da boate etc.] (Incluído pela Lei nº

9.975, de 23.6.2000)

§ 2º Constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de localização e de

funcionamento do estabelecimento. (Incluído pela Lei nº 9.975, de 23.6.2000)

O art. 244-A, caput, do ECA foi tacitamente revogado pelo art. 218-B, caput, do Código
Penal, alterado pela Lei 12.015/2009 (Lei dos Crimes contra a Dignidade Pessoal), pois os
dispositivos tratam da mesma figura.

O art. 244-A, § 1º, do ECA, foi tacitamente revogado pelo art. 218-B, § 2º, II, do Código
Penal. E o mesmo efeito previsto no art. 244-A, § 2º, do ECA está previsto no art. 218-B, § 3º,
do Código Penal:

Art. 218-B. Submeter [veja que se trata do mesmo verbo do art. 244-A, caput, do ECA],

induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18

(dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário

discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone:

(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009) (...)

§ 2º Incorre nas mesmas penas: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009) (...)

II - o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifiquem as práticas

referidas no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 3º Na hipótese do inciso II do § 2º, constitui efeito obrigatório da condenação a

cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento. (Incluído pela

Lei nº 12.015, de 2009)

12.10 – Crime do art. 244-B

Art. 244-B. Corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos, com ele

praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la: (Incluído pela Lei nº 12.015, de

2009)

Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 1º Incorre nas penas previstas no caput deste artigo quem pratica as condutas ali

tipificadas utilizando-se de quaisquer meios eletrônicos, inclusive salas de bate-papo da

internet. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009) (...)

116
O art. 244-B foi incluído no ECA pela Lei 12.015/2009, a mesma que alterou o capítulo dos
crimes sexuais do CP. Este art. 244-B revogou a Lei 2.252/1954 (que previa esse crime de
corrupção de menores).

12.10.1 – condutas

As condutas punidas no art. 244-B são “corromper” ou “facilitar a corrupção” de menor de


dezoito anos, praticando com ele infração penal ou induzindo-o a praticá-la.

Trata-se de crime de forma vinculada. Há várias formas de se corromper a criança ou o


adolescente, mas, para a ocorrência do crime, a corrupção tem de ocorrer de uma das duas
formas previstas no tipo.

No primeiro caso, o sujeito será coautor do crime praticado (ex.: indivíduo de 30 anos
pratica furto juntamente com menor de dezoito anos) e autor do crime de corrupção de
menores. No segundo caso, o corruptor será partícipe do crime praticado e autor do crime
do art. 244-B.

12.10.2 – elemento subjetivo do crime

O elemento subjetivo do crime do art. 244-B é o dolo. Não se pune a forma culposa.

Ex.: o maior induz o adolescente a exceder a velocidade do automóvel, que vem a causar um
homicídio culposo, por atropelamento. O maior responderá por homicídio culposo, mas não
pela corrupção de menores, pois ele não induziu dolosamente o adolescente a praticar o
fato.

12.10.3 – consumação e tentativa

Acerca da consumação e tentativa do crime do art. 244-B, há duas correntes:

1ª corrente: a consumação ocorre: i) com a simples prática da infração pelo agente


juntamente com o menor; ou ii) com o induzimento do menor à prática da infração.
Não é necessária a demonstração de que o menor ficou efetivamente corrompido ou
teve facilitada a corrupção. Ou seja, para esta corrente, trata-se de crime formal ou de
consumação antecipada.

2ª corrente: não basta que o infrator tenha praticado o crime com a criança ou o
adolescente ou o (a) induzido a praticá-la. É necessária a prova de que o menor restou
corrompido ou teve facilitada a corrupção. Ou seja, na modalidade “corromper” o
crime seria material; na modalidade “facilitar a corrupção”, seria formal.

117
O STJ adota a primeira corrente (Súmula 500):

Súmula 500 - A configuração do crime do art. 244-B do ECA independe da prova

da efetiva corrupção do menor, por se tratar de delito formal.

Nos termos do que determina o art. 244-B, § 2º, a pena do corruptor será aumentada de um
terço se ele praticar com o menor ou induzi-lo a praticar crime hediondo do art. 1º da Lei
dos Crimes Hediondos (os quais serão estudados a seguir):

Art. 244-B (...) § 2º As penas previstas no caput deste artigo são aumentadas de um terço

no caso de a infração cometida ou induzida estar incluída no rol do art. 1º da Lei no 8.072,

de 25 de julho de 1990. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Atenção! Não incide este aumento se o infrator praticar com o menor ou induzi-lo a praticar
crimes equiparados a hediondos do art. 2º daquela Lei. Foi um “cochilo” do legislador, que
certamente virará “pegadinha” de concurso.

118
LEI DOS CRIMES HEDIONDOS (LEI 8.072/1990)

1 – Noções gerais

1.1 – Definição

A definição de crime hediondo dependerá do sistema adotado em cada país.

1.1.1 – sistema legal

De acordo com o sistema legal, compete ao legislador enumerar, num rol taxativo, os crimes
hediondos. Hediondo é, portanto, o que o legislador entende como tal.

1.1.2 – sistema judicial

No sistema judicial, é o juiz quem, analisando o caso concreto, decide se o crime é ou não
hediondo.

1.1.3 – sistema misto

No sistema misto, o legislador apresenta um rol exemplificativo de crimes hediondos,


permitindo ao juiz encontrar outras hipóteses. Este sistema trabalha com interpretação
analógica (é exatamente a mesma fórmula que se usa, por exemplo, no art. 121, § 2º, I, do
CP6).

O Brasil adotou o sistema legal. Quem define crimes hediondos no Brasil, portanto, é o
legislador (art. 5º, XLIII, da CR):

Art. 5º (...) XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a

prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os

definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e

os que, podendo evitá-los, se omitirem; (...)

O sistema legal não é interessante, pois quem dá a última palavra é o legislador, não
permitindo ao juiz analisar a gravidade de cada um dos comportamentos, em abstrato. São
ignoradas, dessa forma, as circunstâncias do caso concreto, o que prejudica a

6
Art. 121 (...) § 2º Se o homicídio é cometido: I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por
outro motivo torpe; (...) Pena - reclusão, de doze a trinta anos.

119
individualização da pena, a proporcionalidade etc. (ex.: estupro é grave, mas o “estupro”
oriundo de relação sexual entre menina de 13 anos e namorado de 18 é menos grave).

O sistema judicial, por sua vez, não dá segurança jurídica. Ignora a taxatividade, o mandato
de certeza.

Por fim, o sistema misto reúne o que os outros dois têm de ruim. Depende da opinião do
legislador e o juiz continua completando a norma.

1.1.4 – sistema “mais justo”

O sistema denominado de “mais justo” é que vem sendo aplicado pelo STF. Segundo ele,
compete ao legislador enumerar, num rol taxativo, os crimes hediondos, mas o juiz deve
atestar/confirmar a hediondez na análise do caso concreto.

Este sistema não se confunde com o misto, pois o juiz não pode completar o rol de
hipóteses, que é taxativo, mas pode atestar a hediondez no caso concreto.

1.2 – Crimes militares

Os crimes militares, ainda que mera reprodução de crimes previstos no CP, não são
considerados hediondos.

1.3 – Análise crítica dos crimes hediondos

Todos os crimes previstos no art. 1º, caput, da Lei dos Crimes Hediondos estão no Código
Penal. Um crime hediondo que não está no Código Penal é o de genocídio, previsto no art.
1º, parágrafo único.

Os três crimes que começam com a letra “t” (tortura, tráfico e terrorismo) são equiparados a
hediondos (eles só sofrem as consequências de crimes hediondos, as quais serão estudadas
no tópico a seguir).

Segundo Alberto Silva Franco, a Lei dos Crimes Hediondos é oriunda de um direito penal
elitista. Rotulou como hediondos praticamente os crimes praticados pelos pobres contra os
ricos, esquecendo-se dos praticados pelos ricos contra os pobres, gerando um apartheid
social.

Ex.: concussão e peculato, crimes graves, não são considerados hediondos. Há um projeto de
lei, quase sendo votado, tipificando como hediondo o crime de porte de arma de uso
exclusivo militar. Rico pratica homicídio, mas em geral não pratica homicídio qualificado. A
análise da hediondez pelas pessoas varia de acordo com quem pratica o homicídio: o rico,

120
quando mata, estraga a própria vida (e não a do morto); o pobre, quando mata, estraga a
vida do outro (uma inconsciência de hediondez maior).

2 – Consequências do crime hediondo

A Constituição já disse que os crimes hediondos são inafiançáveis e insuscetíveis de graça e


anistia (art. 5º, XLIII). Essas são, contudo, consequências mínimas, podendo esse rol ser
aumentado pelo legislador ordinário.

O art. 2º da Lei dos Crimes Hediondos prevê outras consequências, que servem para os
crimes hediondos e os três equiparados (tortura, tráfico e terrorismo).

2.1 – Insuscetibilidade de anistia, graça e indulto

Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e

drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de:

I - anistia, graça e indulto; (...)

Perceba que o art. 5º, XLIII, da CR só proibiu a concessão de anistia e graça aos crimes
hediondos, nada falando acerca do indulto. Agiu corretamente o legislador ordinário ao
vedá-lo também?

1ª corrente: a vedação do indulto, prevista no art. 2º da Lei 8.072/1990, é


inconstitucional, suplantando o rol máximo de proibições trazido pela Carta Maior. O
argumento desta primeira corrente, adotada pela DP, é o seguinte: as hipóteses de
imprescritibilidade e de prisão civil estão em rol taxativo na CR, devendo o mesmo
raciocínio ser aplicado à Lei de Crimes Hediondos.

2ª corrente: a vedação do indulto é constitucional, pois, além de ser o indulto


modalidade de graça, o rol de proibição constitucional é mínimo, podendo ser
suplantado pelo legislador. A CR, segundo esse entendimento, deu carta branca ao
legislador, que pode ir além. Esta segunda corrente é a do STF.

Se o crime passa a ser considerado hediondo depois de praticado, é suscetível o agente de


indulto? Ex.: Guilherme de Pádua matou Daniela Perez em 1992. O homicídio qualificado, na
ocasião, não era considerado hediondo, pois o crime passou a ter essa condição em 1994.
Publicado um decreto de indulto em 2000, pode o autor do crime ser beneficiado? Em 2004,
o STF decidiu que não. Marco Aurélio de Mello, que enxergou retroatividade maléfica, ficou
vencido. No RHC 84.572/RJ, a 1º Turma do STF, por maioria, decidiu que a vedação do
indulto abrange inclusive o crime praticado quando ainda não era hediondo, pois se trata de

121
discricionariedade do Presidente da República. Rogério acha que se trata de retroatividade
maléfica, concordando com Marco Aurélio.

2.2 – Insuscetibilidade de fiança

O art. 2º, II, da Lei dos Crimes Hediondos foi alterado em 2007, para a exclusão da vedação
da liberdade provisória:

Redação antiga:

Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e

drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: (...)

II - fiança e liberdade provisória.

Redação nova:

Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e

drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: (...)

II - fiança. (Redação dada pela Lei nº 11.464, de 2007)

Portanto, cabe liberdade provisória para crime hediondo? A modificação serviu para permitir
a liberdade provisória ou a vedação está implícita na previsão da fiança?

1ª corrente: com o advento da Lei 11.464/2007, passou a ser permitida liberdade


provisória para os crimes hediondos. Para Celso de Mello, quem tem de analisar se
cabe ou não liberdade provisória não é o legislador, mas o juiz, atentando para as
circunstâncias do caso concreto, notadamente as circunstâncias pessoais do autor.
Esse entendimento relaciona-se diretamente com os argumentos daquele sistema
conceitual “mais justo”.

2ª corrente: mesmo como o advento da Lei 11.464/2007, a liberdade provisória


continua proibida aos crimes hediondos, uma vez que implícita na inafiançabilidade.
Quem inaugurou essa corrente no STF foi a Ministra Ellen Gracie. Todavia, vedação
implícita em Direito Penal é algo complicado. Essa questão está para ser analisada
pelo Pleno (Rogério acha que prevalecerá a primeira corrente, pelos mesmos
argumentos que permitiram as penas restritivas de direito para tráfico).

Para quem adota a 2ª corrente, cuidado com a Súmula 697 do STF; para quem adota a
primeira, a Súmula está superada:

Súmula 697 - A PROIBIÇÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA NOS PROCESSOS POR CRIMES

HEDIONDOS NÃO VEDA O RELAXAMENTO DA PRISÃO PROCESSUAL POR EXCESSO DE

122
PRAZO.

2.3 – Requisitos mais duros para a progressão de regime

Art. 2º, (...) § 2º A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos

neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado

for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente. (Redação dada pela Lei nº 11.464, de

2007)

Antes da Lei 11.464/2007, o art. 2º, § 2º, dizia que o cumprimento da pena nos crimes
hediondos seria em regime integral fechado, sendo proibida a progressão. Em 2006, o STF
declarou a inconstitucionalidade do regime integralmente fechado, com efeitos erga omnes
em controle difuso (controle difuso abstrativizado). Isso significa que o STF passou a admitir
a progressão de regime em crime hediondo ou equiparado, bastando o cumprimento do
prazo comum (na ocasião, de 1/6 da pena).

A lei foi então alterada pela Lei 11.464/2008, passando o dispositivo a prever o regime inicial
fechado aos crimes hediondos, condicionando a progressão ao cumprimento de 2/5 da
pena, se primário o agente, ou 3/5, se reincidente (específico ou não).

O latrocida reincidente que pratica o crime antes da lei, mas é condenado depois, progride
com o cumprimento de 1/6 ou 3/5 da pena? Nos termos da Súmula Vinculante nº 26, aplica-
se, na execução, o prazo de 1/6 para a progressão. A Súmula é interessante, pois, além de
tratar dessa matéria, admite o exame criminológico para a análise da progressão:

Súmula Vinculante 26 - PARA EFEITO DE PROGRESSÃO DE REGIME NO CUMPRIMENTO DE

PENA POR CRIME HEDIONDO, OU EQUIPARADO, O JUÍZO DA EXECUÇÃO OBSERVARÁ A

INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 2º DA LEI N. 8.072, DE 25 DE JULHO DE 1990, SEM

PREJUÍZO DE AVALIAR SE O CONDENADO PREENCHE, OU NÃO, OS REQUISITOS OBJETIVOS

E SUBJETIVOS DO BENEFÍCIO, PODENDO DETERMINAR, PARA TAL FIM, DE MODO

FUNDAMENTADO, A REALIZAÇÃO DE EXAME CRIMINOLÓGICO.

2.4 – Previsão de prisão para apelar

Art. 2º (...) § 3º Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se

o réu poderá apelar em liberdade. (Redação dada pela Lei nº 11.464, de 2007)

Da leitura do dispositivo, parece que a regra é o réu apelar preso. No entanto, a


interpretação dada pelo STF, em qualquer lei que possua dispositivo como esse é a seguinte:

Durante o processo Fase recursal

123
Preso Preso, salvo se ausentes os fundamentos da
preventiva (art. 312 do CP)
Solto Solto, salvo se presentes os fundamentos da
preventiva (art. 312 do CP)

Importante! Deve-se fundamentar o pedido de preventiva em uma hipótese dentre as


previstas no art. 312 do CP. Exemplo: se decretada a prisão somente para garantia da
instrução, encerrada a instrução, o suspeito tem de ser solto.

2.5 – Prazo maior de prisão temporária

Art. 2º (...) § 4º A prisão temporária, sobre a qual dispõe a Lei no 7.960, de 21 de

dezembro de 1989, nos crimes previstos neste artigo, terá o prazo de 30 (trinta) dias,

prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade. (Incluído

pela Lei nº 11.464, de 2007)

O dispositivo trata da prisão temporária, prevista na Lei 7.960/1989. Quando fala em “neste
artigo”, refere-se ao próprio art. 2º, que dispõe acerca dos crimes hediondos e os
equiparados.

Veja o incremento do prazo de prisão temporária: em se tratando de crimes hediondos e


equiparados, ele será de 30 dias, prorrogável por mais 30. Nos crimes comuns, o prazo de
temporária é de 5 dias, prorrogável por mais 5:

Hediondos Equiparados a hediondos Outras


30+30 30+30 5+5

Para a decretação da prisão temporária, devem estar presentes os seguintes requisitos:

i) deve ser imprescindível para a investigação (art. 1º, inciso I, da Lei 7.960/1989);

ii) indiciado sem residência fixa ou identidade certa (art. 1º, inciso II, da Lei 7.960/1989);

iii) o indiciado deve concorrer para um dos crimes previstos no art. 1º, III, “a” a “o”, da Lei
7.960/1989.

Prevalece que devem estar presentes os requisitos do inciso I mais o do inciso III, ou do
inciso II mais o do inciso III.

O problema é que nem todos os crimes hediondos ou equiparados estão no rol de crimes
que admitem a prisão temporária (ex.: falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de

124
produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, previsto no art. 273 do CP, tortura etc.
são crimes hediondos não previstos no rol do art. 1º, III, da Lei 7.960/1989)

O art. 2º, § 4º, da Lei dos Crimes Hediondos diz claramente “nos crimes previstos neste
artigo”. Assim, a lei não somente ampliou o prazo como o rol dos crimes que admitem prisão
temporária, abrangendo o art. 273 e a tortura. Essa tese não deve ser defendida em prova
para a Defensoria Pública, que entende ser taxativo o rol dos crimes que admitem prisão
temporária.

Observação: “vitriolagem” é o ato de causar lesão grave e permanente utilizando-se de ácido


sulfúrico.

2.6 – Previsão da criação de presídios federais

Art. 3º A União manterá estabelecimentos penais, de segurança máxima, destinados ao

cumprimento de penas impostas a condenados de alta periculosidade, cuja permanência

em presídios estaduais ponha em risco a ordem ou incolumidade pública.

O dispositivo foi criado com o objetivo de obrigar a União a construir presídios para presos
condenados por crime federal. Preso condenado pela Justiça Federal que cumpre pena em
presídio estadual tem pena fiscalizada pela VEC da Justiça Estadual. Na verdade, a pena é
fiscalizada pela VEC da justiça correspondente ao ente federativo que detém o presídio.

2.7 – Livramento condicional com requisitos diferenciados

O art. 5º da Lei dos Crimes Hediondos acrescentou o inciso V ao art. 83 do CP, que prevê
requisitos diferenciados para a concessão de livramento condicional (incidente de execução
penal que garante a liberdade antecipada ao condenado) aos condenados por crimes
hediondos.

Art. 83 - O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa de

liberdade igual ou superior a 2 (dois) anos, desde que: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de

11.7.1984) (...)

V - cumprido mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo,

prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o

apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza. (Incluído pela Lei nº

8.072, de 25.7.1990)

Requisito temporal para a concessão do livramento condicional:

Condenado primário com bons Condenado reincidente Condenado por crime

125
antecedentes hediondo ou equiparado
Mais de 1/3 da pena. Mais de 1/2 da pena. Mais de 2/3 da pena, se não for
reincidente específico

O reincidente específico em crime hediondo ou equiparado não tem direito ao livramento


condicional.

Há três correntes acerca do conceito de “reincidente específico”:

1ª corrente: específico é o reincidente em crimes da mesma natureza (mesmo tipo


penal): o condenado por estupro que pratica latrocínio, para essa corrente, faz jus ao
livramento condicional, pois não é considerado reincidente específico.

2ª corrente: específico é reincidente em crimes da mesma natureza (mesmo bem


jurídico protegido): o condenado por estupro que pratica latrocínio, para essa
corrente, faz jus ao livramento condicional, o que não ocorre com o que pratica
latrocínio e, depois, extorsão mediante sequestro.

3ª corrente: específico é o reincidente em crimes da mesma natureza (hediondos ou


equiparados), não importando o tipo ou o bem jurídico tutelado. Neste caso, o
estuprador que pratica latrocínio não tem direito ao livramento condicional, por
serem ambos hediondos ou equiparados. Esta é a posição que prevalece, inclusive no
STF.

2.8 – Aumento da pena do crime de associação criminosa

Art. 8º Será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no art. 288 do Código Penal,

quando se tratar de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes

e drogas afins ou terrorismo.

Parágrafo único. O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou

quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços.

De acordo com o 8º da Lei de Crimes Hediondos, a pena da associação criminosa, que é de 1


a 3 anos, passa a ser de 3 a 6 anos, se a associação tiver sido constituída para a prática de
crimes hediondos ou equiparados.

O art. 288 do CP é um delito autônomo, que tem como finalidade a prática de crimes
futuros:

Associação criminosa: penas e finalidades


Pena: 3 a 6 anos Prática de crimes hediondos.

126
Pena: 3 a 6 anos Prática de crimes equiparados, exceto o tráfico
de drogas.
Pena: 3 a 10 anos Prática de tráfico de drogas (art. 35 da Lei de
Drogas7).
Pena: 1 a 3 anos Prática de crimes comuns

2.9 – Previsão de aumento de pena em determinados crimes

Art. 9º As penas fixadas no art. 6º para os crimes capitulados nos arts. 157, § 3º, 158, § 2º,

159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º, 213, caput e sua combinação com o art. 223, caput e

parágrafo único, 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único, todos do

Código Penal, são acrescidas de metade, respeitado o limite superior de trinta anos de

reclusão, estando a vítima em qualquer das hipóteses referidas no art. 224 também do

Código Penal.

O art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos dizia que nos crimes de latrocínio, extorsão
qualificada pela morte, extorsão mediante sequestro, estupro e atentado violento ao pudor,
em se tratando de vítima não maior de 14 anos, alienada ou sem resistência (art. 224 do CP),
incidiria um aumento de metade. Se a vítima fosse comum, não haveria aumento.

Contudo, tendo a Lei 12.015/2009 revogado o art. 224, o art. 9º foi implicitamente revogado
pela mesma norma.

3 – Crimes hediondos em espécie

Os crimes hediondos estão previstos no art. 1º da Lei dos Crimes Hediondos, com redação
dada pela Lei 8.930/1994. Neste tópico, serão estudados os principais.

3.1 – Homicídio simples praticado em atividade típica de grupo de extermínio

Art. 1º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei

nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados:

I - homicídio (art. 121) [simples], quando praticado em atividade típica de grupo de

extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º,

I, II, III, IV e V); (...)

7
Art. 35. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não,
qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei: Pena - reclusão, de 3 (três) a
10 (dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil e duzentos) dias-multa. Parágrafo único.
Nas mesmas penas do caput deste artigo incorre quem se associa para a prática reiterada do crime
definido no art. 36 desta Lei.

127
O homicídio simples, quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, é crime
hediondo (art. 1º, I, 1ª parte) e se chama “homicídio condicionado” (é o homicídio que, para
ser hediondo, depende de uma condição).

Critica-se a expressão “atividade típica de grupo de extermínio”, por ser muito


vaga/ampla/porosa. Alguns entendem que ela fere o princípio da taxatividade. Outra crítica
que se faz é que é impossível que uma “chacina” seja homicídio simples. Ela sempre está
atrelada a uma qualificadora.

Questão: o dispositivo fala em “grupo, ainda que cometido por um só agente (do grupo)”. O
que seria esse grupo? Uma primeira corrente dizia que “grupo” não se confundia com “par”
ou “bando”, de modo que, para configurá-lo, deveriam estar presentes três ou mais pessoas.
Já uma segunda corrente dizia que o critério para a definição de “grupo” deveria ser o
mesmo da lei (bando, correspondente a pelo menos quatro pessoas). Com a alteração do
art. 288 do CP, que trouxe o crime de associação criminosa, provavelmente essa discussão
será esvaziada ou ganhará novos contornos (recomenda-se ficar atento a esse ponto).

Questão: o jurado deve ser quesitado sobre se o homicídio foi praticado em atividade típica
de grupo de extermínio?

O jurado responde sobre: materialidade, autoria, qualificadoras e privilégios e causas de


aumento e diminuição. O fato de o homicídio ter sido praticado em atividade típica de grupo
de extermínio não constitui circunstância elementar, não majora ou qualifica do crime,
apenas gerando as consequências de um crime hediondo. Portanto, não deve ser apreciado
pelo jurado, mas pelo juiz.

Cuidado! Há projeto de lei inserindo a atividade típica de grupo de extermínio como causa
de aumento de pena do art. 121 do CP. Se isso ocorrer, a atividade terá de ser submetida ao
Conselho de Sentença.

3.2 – Homicídio qualificado

Art. 1º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei

nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados:

I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio,

ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV e

V);

O homicídio qualificado é sempre hediondo, não importando a qualificadora.

128
No entanto, é possível que um homicídio seja qualificado e privilegiado, desde que a
qualificadora seja objetiva (lembre-se: os iguais se repelem, os opostos se atraem):

Privilégios Qualificadoras
Sempre subjetivos (ligados aos motivos ou ao Subjetivas:
estado anímico do agente): i) motivo torpe;
i) motivo social; ii) motivo fútil.
ii) motivo moral; Objetivas (meio/modo):
iii) violenta emoção. i) meio cruel;
ii) surpresa;
iii) finalidade especial.

O homicídio qualificado, quando também privilegiado, é hediondo?

1ª corrente: homicídio qualificado privilegiado permanece hediondo, pois a lei não


excepcionou esta hipótese.

2ª corrente: homicídio qualificado privilegiado deixa de ser hediondo, prevalecendo o


privilégio (subjetivo) sobre a qualificadora (objetiva). Trabalha-se com uma analogia
ao art. 67 do CP8. Esta é a corrente adotada pelo STJ e pelo STF.

3.3 – Latrocínio

Art. 1º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei

nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados: (...)

II - latrocínio (art. 157, § 3º, in fine); (…)

Inicialmente, importante atentar para o fato de somente no caso do roubo com resultado
morte (tentado ou consumado) é que se trata de latrocínio. Portanto, somente ele é crime
hediondo. Não é latrocínio, tampouco crime hediondo, o roubo com resultado lesão grave
(art. 157, § 3º, 1ª parte, do CP).

Observações quanto ao latrocínio:

i) o resultado qualificador pode ser doloso ou culposo (neste último caso, será preterdoloso).
Ambas as modalidades configuram crime hediondo;

8
Art. 67 - No concurso de agravantes e atenuantes, a pena deve aproximar-se do limite indicado pelas
circunstâncias preponderantes, entendendo-se como tais as que resultam dos motivos determinantes
do crime, da personalidade do agente e da reincidência.

129
ii) não se configura o latrocínio quando a morte resulta da grave ameaça (ex.: a vítima se
assusta com a arma e tem um infarto);

iii) é imprescindível que a violência ocorra durante (fator tempo) e em razão (fator nexo) do
assalto. Ex.: “A” pratica um assalto e, duas semanas depois, mata uma testemunha que o
reconheceu. Não se trata de latrocínio, mas de roubo qualificado, na medida em que não
presente o fator tempo.

Firmou-se jurisprudência no STF no sentido de que o coautor que participa do roubo e mata
o comparsa para ficar com o proveito do crime não pratica latrocínio. Nesse caso tratar-se-á
de roubo em concurso com homicídio qualificado pela torpeza.

No latrocínio, o agente quer o patrimônio e a morte é o meio para chegar até ele (morte
como meio e patrimônio como fim), tanto que é crime contra o patrimônio. Se a intenção
inicial é a morte, tendo o agente depois resolvido subtrair, trata-se de concurso de homicídio
e furto.

3.4 – Extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2º)

Art. 1º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei

nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados: (...)

III - extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2º); (...)

Tudo o quanto dito acerca do latrocínio aplica-se à extorsão qualificada pela morte. O 158, §
3º, do CP, foi acrescentado em 2009 e sua inserção na Lei de Crimes Hediondos foi
esquecida pelo legislador:

Art. 158 (...) § 3º Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e

essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de

reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou

morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2º e 3º, respectivamente. (Incluído

pela Lei nº 11.923, de 2009)

Antes da Lei 11.923/2009 Depois da Lei 11.923/2009


Extorsão simples: art. 158, caput. Extorsão simples: art. 158, caput.
Extorsão majorada: art. 158, § 1º. Extorsão majorada: art. 158, § 1º.
Extorsão qualificada (lesão grave ou morte): art. Extorsão qualificada (lesão grave ou morte): art.
158, § 2º. 158, § 2º.
Não havia. Extorsão qualificada (2ª forma: restrição da
liberdade, com ou sem morte): art. 158, § 3º.

130
Como se verifica, a restrição da liberdade não era majorante ou qualificadora da extorsão.
Ela servia como circunstância judicial, que o juiz considerava na fixação da pena base (art. 59
do CP).

A extorsão com restrição da liberdade e resultado morte configurava o crime do art. 158, §
2º, do CP (hediondo, portanto). Com a nova lei, o crime passou a configurar o crime do art.
158, § 3º, do CP, que, como dito, não está expressamente previsto no rol de crimes
hediondos. Há hediondez do art. 158, § 3º?

1ª corrente: adotando o sistema legal, a extorsão qualificada pelo § 3º, mesmo


quando houver morte, não é crime hediondo. É a corrente que prevalece na doutrina.

2ª corrente: o § 3º não criou delito novo, apenas explicitou uma das múltiplas
possibilidades de execução do delito de extorsão. O “sequestro relâmpago”
qualificado pela morte já era hediondo no regime anterior. Trata-se de hipótese de
interpretação extensiva. O que esta segunda corrente defende já acontece em outros
crimes: i) o art. 159 pune a extorsão mediante sequestro, mas se faz uma
interpretação extensiva para abranger o cárcere privado (como visto o sequestro
abrange o cárcere privado); ii) o art. 235 pune a bigamia, mas a poligamia está
abrangida no dispositivo, por interpretação extensiva.

A segunda é a posição de Rogério e de Luiz Flávio Gomes, em artigo recente. Mas é


minoritária. Em provas de concurso público, deve-se adotar a primeira corrente, que é
majoritária na doutrina.

3.5 – Extorsão mediante sequestro

Art. 1º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei

nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados: (...)

IV - extorsão mediante sequestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ 1º, 2º e 3º);

A extorsão mediante sequestro é crime hediondo sempre, não importando se na forma


simples ou qualificada.

3.6 – Estupro

Art. 1º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei

nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados: (...)

V - estupro (art. 213, caput e §§ 1º e 2º); (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) (...)

O estupro é crime hediondo sempre, não importando se na forma simples ou qualificada.

131
3.7 – Estupro de vulnerável

Art. 1º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei

nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados: (...)

VI - estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1º, 2º, 3º e 4º); (Redação dada pela Lei

nº 12.015, de 2009) (...)

Considera hediondo o estupro de vulnerável. Essa é uma novidade da Lei 12.015/2009:

Antes Depois
O estupro de vulnerável estava previsto no art. O estupro de vulnerável está previsto no art. 217-
213 combinado com o art. 224 do CP. A do CP.
Discutia-se se era crime hediondo. Está expressamente referido na Lei dos Crimes
Hediondos.

Atenção! Para os que entendiam que, antes da lei 12.015/2009, não se tratava de crime
hediondo, a lei não pode retroagir para gerar a hediondez.

3.8 – Epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º do CP)

Art. 1º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei

nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados: (...)

VII - epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º). (...)

Consiste o crime do art. 267, § 1º, do CP em causar epidemia, isto é, surto de uma doença
transitória que ataca número indeterminado de indivíduos em certa localidade. Germes
patogênicos são todos os elementos capazes de produzir moléstias infecciosas, não
importando se já estão biologicamente identificados:

Art. 267 - Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos:

Pena - reclusão, de dez a quinze anos. (Redação dada pela Lei nº 8.072, de 25.7.1990)

§ 1º - Se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro. (...)

3.9 – Favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de


criança ou de adolescente ou de vulnerável (art. 218-B)

A Lei 12.978/14 incluiu o crime previsto no art. 218-B no rol dos crimes hediondos.

Favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou

adolescente ou de vulnerável.   (Redação dada pela Lei nº 12.978, de 2014)

132
Art. 218-B.  Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual

alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não

tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que

a abandone: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos.  (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 1o  Se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também

multa. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 2o  Incorre nas mesmas penas:  (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

I - quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18

(dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na situação descrita no caput deste artigo; 

(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

II - o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifiquem as práticas

referidas no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 3o  Na hipótese do inciso II do § 2o, constitui efeito obrigatório da condenação a

cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento.   (Incluído

pela Lei nº 12.015, de 2009)

É importante verificar que o art. 218-B do CP pune duas condutas: a de submeter, induzir ou
atrair à prostituição e a de impedir ou dificultar que a abandone. No primeiro caso, a criança
ou adolescente ou o vulnerável não estava se submetendo à prostituição, ou seja, o agente
atraiu ou induziu a vítima ao mercado carnal para que ela comece a se prostituir.

No segundo caso, o agente impede que a vítima abandone a prostituição e o agente passa a
dificultar a cessação dessa atividade sexual.

Nas modalidades submeter, induzir, atrair e facilitar, consuma-se o delito no momento em


que a vítima passa a se dedicar à prostituição, colcoando-se, de forma constante, à
disposição dos clientes, ainda que não tenha atendido nenhum. A conclusão é que quem,
por exemplo, induz menor a se dedicar à prostituição antes da Lei 12.978/14 não pode ser
alcançado por ela. Logo, seu crime existe, mas não é hediondo, evitando-se retroatividade
maléfica.

Já na modalidade de impedir ou dificultar o abandono da prostituição, o crime consuma-se


no momento em que a vítima delibera por deixar a atividade e o agente obsta esse intento,
protraindo a consumação durante todo o período de embaraço (crime permanente). A

133
conclusão é que quem, por exemplo, impede que a vítima abandone o comércio carnal,
surgindo a nova Lei 12.978/14 antes de cessar a permanência, será autor do crime do art.
218-B do CP hediondo. Aplica-se a Súmula 711 do STF: se no crime permanente sobrevier lei
nova, ainda que mais grave, aplica-se a lei nova.

Cuidado, pois a Lei 12.978/14 é irretroativa, mas é preciso ter em conta as modalidades
permanentes do crime.

4 – Crimes equiparados a hediondos

São crimes equiparados a hediondos: i) tráfico de drogas; ii) tortura; e iii) terrorismo.

4.1 – Tráfico de drogas

O tráfico de drogas será objeto de estudo separado. Por ora, vale indagar: o crime está
previsto na Lei de Drogas, mas onde, especificamente?

Na antiga Lei de Drogas (Lei 6.368/1976), a maioria da doutrina e a jurisprudência entendiam


que o tráfico estava previsto nos arts. 12 e 13. Entendia-se que o art. 14 não podia ser
chamado de tráfico, mas de associação para o tráfico, e o art. 16 não era tido como tráfico
de drogas, mas como uso.

A atual Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) não especifica quais são os crimes de tráfico. O art.
33 é, sem dúvida, tráfico. A doutrina tem entendido que se pode usar como parâmetro de
interpretação o art. 44 da mesma lei, que fala nos arts. 33, caput, e § 1º e 34 a 37:

Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis

e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão

de suas penas em restritivas de direitos. (...)

Portanto, a partir da interpretação da lei, pode-se entender que são tráfico os crimes
previstos nos dispositivos citados acima.

No REsp 1.329.088-RS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 13/3/2013 (Informativo
519 - Recurso repetitivo), a Terceira Seção do STJ definiu que mesmo o tráfico privilegiado é
equiparado a crime hediondo: “a partir da vigência da Lei 11.464/2007, que modificou o art.
2º, § 2º, da Lei 8.072/1990, exige-se o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o
apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente, para a progressão de regime no

134
caso de condenação por tráfico de drogas, ainda que aplicada a causa de diminuição
prevista no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006”.

O questionamento fica por conta do art. 35 (associação para fins de tráfico). De acordo com
os tribunais, na lei antiga, esse artigo não era considerado tráfico.

4.2 – Tortura

A tortura e suas implicações serão estudadas por ocasião da análise da Lei de Tortura.

4.3 – Terrorismo

O Brasil tipifica o terrorismo? O STF está discutindo isso justamente por conta da Copa do
Mundo e Olimpíada.

Para Scarance e uma parcela minoritária da doutrina, o terrorismo está previsto no art. 20 da
Lei 7.170/1983 (Lei dos Crimes conta a Segurança Nacional), que faz menção a “atos de
terrorismo”:

Art. 20 - Devastar, saquear, extorquir, roubar, sequestrar, manter em cárcere privado,

incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo,

por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de

organizações políticas clandestinas ou subversivas.

Pena: reclusão, de 3 a 10 anos. [regime aberto]

Parágrafo único - Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até o dobro;

se resulta morte, aumenta-se até o triplo.

O dispositivo cita “terrorismo”, mas não explica o seu significado. Atacar um ovo ou uma fita
na cabeça do candidato à presidência ou depredar o Congresso Nacional por inconformismo
político são atos de terrorismo?

Veja, portanto, que essa não é a melhor interpretação. A expressão “terrorismo” é chamada
de elemento normativo do tipo penal (aquele constante do tipo penal cuja compreensão
demanda um juízo de valor, como “funcionário público”, “mulher honesta”). Elementos
normativos são comumente usados pelo legislador. O problema é que a sua utilização
exagerada acaba por violar o princípio da legalidade, mais especificamente no que concerne
à taxatividade, uma vez que a amplitude e indeterminação do tipo acabam por dificultar a
compreensão dessas expressões.

Ex.: o art. 233 do ECA, que já foi revogado, falava em “tortura”, mas não especificava o que
ela significava. Em alguns casos, a tortura é evidente; noutros não. A constitucionalidade do

135
art. 233 foi levada ao STF, em caso de tortura na FEBEM, tendo o Supremo entendido que a
redação não era das melhores, mas o conceito de tortura poderia ser extraído de tratados
internacionais dos quais o Brasil era signatário (HC 70.389).

Prevalece na doutrina (Alberto Silva Franco, Luiz Flávio Gomes e a maioria) que, no
ordenamento jurídico brasileiro, não existe tipificação do crime de terrorismo, pois o art. 20
da Lei 7.170/1983 fere o princípio da taxatividade. Para esta corrente, mesmo no caso do
delito de terrorismo praticado no exterior, não poderia haver responsabilização do agente
no Brasil, pois deve ser respeitado o princípio da dupla incriminação (e o país não tipifica o
terrorismo).

5 – Penas restritivas de direitos, sursis e remição em crimes hediondos

Apesar de haver minoria em sentido contrário, prevalece ser possível a aplicação de pena
restritiva de direito e de sursis para condenados por crimes hediondos, devendo o juiz
analisar o caso concreto. É o raciocínio que se faz na questão atinente à liberdade provisória,
feito pelo STF para permitir progressão de regime na Lei de Drogas. Em prova para o MP/SP,
não se deve sustentar essa tese.

Cabe remição para crime hediondo? Remição é o resgate de pena por tempo trabalhado ou
pelo estudo, que não se confunde com “remissão”, que é perdão. A lei não veda. Portanto,
cabe.

136
DOS CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA (LEI 8.137/1990)

1 – Teoria geral dos crimes contra a ordem tributária

1.1 – Crimes tributários e prisão civil por dívida

O tema “crimes tributários e prisão civil por dívida” está hoje superado. Quando foram
criados os crimes tributários (Lei 8.137/1990), alguns doutrinadores (com viés mais para o
lado da defesa) começaram a dizer que o legislador não poderia tipificar crimes contra a
ordem tributária cominando pena privativa de liberdade, pois se trataria de prisão por
dívida, vedada pela Constituição fora das hipóteses ali previstas (hoje, somente o
descumprimento de obrigação alimentar).

Entretanto, não se trata de prisão civil por dívida, pois a conduta de suprimir ou reduzir
tributos foi tipificada como infração penal. Logo, não há qualquer violação à CR. Na verdade,
o sujeito não está sendo preso por dever tributos, mas por praticar um fato definido como
crime em decorrência de conduta fraudulenta.

É como a fraude no pagamento por meio de cheque: o sujeito não está sendo preso por
dever, mas por praticar um fato da vida que se encaixa na tipificação penal prevista pelo
legislador.

O legislador, por uma questão de política criminal, opta por alçar a conduta à condição de
um delito.

1.2 – Sujeitos do crime tributário

1.2.1 – noções gerais

A Lei 8.137/1990, em seu art. 1º, traz crimes contra a ordem tributária praticados por
particulares. Trata-se, claramente, de crimes de natureza comum, podendo ser praticados
por qualquer pessoa. Além disso, são crimes de natureza material, exigindo a ocorrência do
resultado naturalístico (ex.: art. 1º, I):

Art. 1º Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou

contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; [ex.: o

sujeito recebe determinado rendimento e não declara essa informação à Receita] (...)

Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (...)

137
Atenção! É o caput do art. 1º que exige o resultado naturalístico. A própria pena é maior que
a do art. 2º (dois a cinco anos e multa), na medida em que está ocorrendo uma lesão aos
cofres do Estado.

O art. 2º, caput, fala em “crime da mesma natureza”. Mas o dispositivo está se referindo aos
crimes praticados por particular. Não quer dizer que o crime ali previsto seja de natureza
material. Veja que o dispositivo legal não exige a ocorrência de resultado naturalístico (não
fala nada em “redução ou supressão de tributo”). Para a doutrina, são crimes comuns, de
natureza formal (ex.: art. 2º, I):

Art. 2º Constitui crime da mesma natureza:

I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar

outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo; [veja que

essa redação “para o fim de” é a típica redação de crime de natureza formal] (...)

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Além de formal, o crime do art. 2º é de natureza subsidiária. Basta olhar para a pena para
perceber que se trata de crime de menor importância, uma infração de menor potencial
ofensivo, julgada pelo JECRIM.

Portanto, na Lei 8.137/1990, tanto o art. 1º como o 2º preveem crimes de natureza comum,
podendo ser praticados por qualquer pessoa. O crime do art. 1º é de natureza material, ao
passo que o do art. 2º é de natureza formal.

O delito previsto no art. 3º, todavia, ao contrário dos dois anteriores, é crime próprio, ou
seja, que somente pode ser praticado por determinada pessoa (o funcionário público).

Exemplos:

i) art. 3º, II:

Art. 3º Constitui crime funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no Decreto-

Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal (Título XI, Capítulo I): (...)

II - exigir, solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que

fora da função ou antes de iniciar seu exercício, mas em razão dela, vantagem indevida;

ou aceitar promessa de tal vantagem, para deixar de lançar ou cobrar tributo ou

contribuição social, ou cobrá-los parcialmente.

Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.

138
No Código Penal, a concussão está prevista no art. 316 e a corrupção passiva no art. 317.
Veja que, aqui, o legislador foi pragmático/objetivo, tendo vedado todas as condutas no
mesmo dispositivo legal.

Os crimes do art. 3º não são praticados por qualquer funcionário público, mas somente por
aquele que tem dentro de suas atribuições lançar ou cobrar tributo ou contribuição social. A
exigência, solicitação ou o recebimento de vantagem deve ter ligação com as funções do
funcionário público. Ex.: um Promotor de Justiça não pratica tal crime se exigir R$ 1.000,00
para não cobrar um tributo de alguém, pois não tem essa atribuição nem está ela dentro de
suas funções. Seria um crime de extorsão (que sequer está entre os crimes contra a
administração pública).

ii) art. 3º, III:

Art. 3º (...) III - patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a

administração fazendária, valendo-se da qualidade de funcionário público.

Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

O crime de advocacia administrativa ligada a fins tributários é muito comum Brasil afora. São
os “favores” públicos. Mais uma vez: trata-se de crime próprio do funcionário público que
tenha como uma de suas atribuições as condutas previstas no dispositivo.

1.2.2 – responsabilidade penal da pessoa jurídica nos crimes tributários

É possível que uma pessoa jurídica seja responsabilizada penalmente pela prática de um
crime contra a ordem tributária?

A CR, segundo alguns doutrinadores, teria alguns dispositivos que autorizariam tal
responsabilização:

i) art. 173, § 5º (relacionado à ordem tributária):

Art. 173 (…) § 5º - A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da

pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições

compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e

financeira e contra a economia popular.

ii) art. 225, § 3º (relacionado aos crimes de natureza ambiental):

Art. 225 (…) § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente

sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,

139
independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

Não se trata de algo unânime, mas há doutrinadores que entendem que, pelo menos em
tese, a CR estaria, nesses dois dispositivos, a autorizar a responsabilização penal da pessoa
jurídica, seja em relação a crimes ambientais, seja em relação aos crimes contra a ordem
econômica e financeira ou contra a economia popular.

Todavia, cuidado: apesar desse entendimento, e mesmo que se concorde com essa posição,
será que o legislador ordinário previu expressamente a responsabilização da pessoa jurídica
nessas hipóteses?

Em relação aos crimes ambientais, a responsabilidade penal da pessoa jurídica prevista na


CR foi regulamentada pelo art. 3º da Lei 9.605/1998. O dispositivo que está na CR foi
reproduzido na lei:

Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente

conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de

seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou

benefício da sua entidade.

Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas,

autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato.

No entanto, no tocante aos crimes contra a ordem econômica e financeira, o legislador


infraconstitucional não regulamentou a responsabilidade penal da pessoa jurídica, o que,
todavia, não impede sua responsabilização no plano administrativo, sendo possível a
aplicação de multa ou interdição de direitos.

Nessa linha, aliás, basta analisar o art. 11 da Lei 8.137/1990:

Art. 11. Quem, de qualquer modo, inclusive por meio de pessoa jurídica, concorre para os

crimes definidos nesta lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida de sua

culpabilidade. [Culpabilidade é própria da pessoa física, razão pela qual é difícil cogitar

de responsabilização penal da pessoa jurídica, neste caso.] (...)

1.2.3 – dos agentes políticos

É possível a responsabilidade penal de agentes políticos (Prefeitos, Governadores etc.) por


crimes contra a ordem tributária?

Demonstrada a culpabilidade do agente político, ou seja, ficando evidenciado seu


conhecimento acerca da prática do crime, é perfeitamente possível sua responsabilização

140
pela prática de crimes contra a ordem tributária (REsp 299.830). Todavia, deve-se
demonstrar que o agente tinha ciência da sonegação praticada (ou seja, de que a eventual
Prefeitura estava, por exemplo, sonegando a contribuição previdenciária), sob pena de se
incorrer em responsabilização objetiva.

Cumpre, aqui, destacar a ocorrência de uma anistia concedida aos agentes políticos (um
caso concreto, de uma lei que entrou em vigor e gerou muita controvérsia): Lei 9.639/1998.
O art. 11 dessa lei é inusitado: ele determina a anistia aos agentes políticos que, sem
atribuição legal, tenham sido responsabilizados pela prática dos crimes previstos na alínea
“d” do art. 95 da Lei 8.212/1991 e no art. 86 da Lei 3.807/1960 (antes do advento da Lei
9.883/2000, os crimes previdenciários estavam espalhados nessas leis):

Art. 11. São anistiados os agentes políticos que tenham sido responsabilizados, sem que

fosse atribuição legal sua, pela prática dos crimes previstos na alínea "d" do art. 95 da Lei

no 8.212, de 1991, e no art. 86 da Lei no 3.807, de 26 de agosto de 1960.

Parágrafo único. São igualmente anistiados os demais responsabilizados pela prática dos

crimes previstos na alínea d do art. 95 da Lei nº 8.212, de 1991, e no art. 86 da Lei nº

3.807 , de 1960.

O detalhe engraçado é o parágrafo único: são igualmente anistiados os demais


responsabilizados pela prática dos crimes previstos na alínea “d” do art. 95 da Lei
8.212/1991 e no art. 86 da Lei 3.807/1960.

Veja que o dispositivo está riscado e teve sua execução suspensa. No art. 11, caput, o
legislador resolveu conceder anistia (uma causa extintiva da punibilidade) aos agentes
políticos. Isso demonstra que a lei não é feita de maneira impessoal. Mais abaixo, o mesmo
dispositivo, em seu parágrafo único, também concede anistia aos demais agentes
responsabilizados. Veja que, a rigor, sequer seria necessário o caput, podendo o parágrafo
único ter sido diretamente inserido no caput.

Apesar de se tratar de uma lei antiga, o assunto é interessante, pois não há precedentes
iguais: o parágrafo único, que aparece riscado, jamais foi aprovado pelo Congresso
Nacional. Até mesmo a leitura do dispositivo não faz o menor sentido. Ele não constava dos
autógrafos do projeto de lei, mas, na verdade, por algum “erro”, foi inserido, publicado (em
26 de maio de 1998) e sancionado. Verificado então o erro, a lei foi republicada no dia
seguinte, corrigindo a lei e tirando o parágrafo único (no site do Planalto ele sequer
aparece).

141
O dispositivo foi publicado e entrou em vigor. Ele tem validade? Pode ser utilizado para
anistiar os demais agentes políticos? Não. O STF foi chamado a decidir sobre isso e entendeu
que esse parágrafo único, pelo fato de não ter sido aprovado pelo Congresso Nacional, seria
dotado de uma inconstitucionalidade formal. O dispositivo não foi aplicado, de modo que
essas demais pessoas não foram anistiadas pelos crimes ali previstos (HC 77.734 e HC
82.045).

Considerando, então, que esse parágrafo único não foi aprovado, pergunta-se: a anistia do
caput (aprovada e válida), na medida em que somente dada aos agentes políticos, pode ser
ampliada a outras pessoas a título de isonomia? É dado ao Poder Judiciário fazê-lo, na
medida em que não se verifica nenhum critério razoável para a desigualdade?

Muitos juízes concederam, à época, a anistia a outros agentes. Todavia, não é essa a
orientação que prevalece nos Tribunais Superiores, para os quais a anistia é uma
manifestação de indulgência soberana. Na verdade, se o Estado, por meio do Congresso
Nacional, resolve conceder anistia a um determinado grupo de pessoas, não é dado ao
Poder Judiciário ingressar nessa análise e estendê-la a outras pessoas. Caso contrário,
haveria uma violação à divisão de poderes e usurpação de uma atribuição do Congresso
Nacional.

1.3 – Princípio da insignificância em crimes contra a ordem tributária

É possível a aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra a ordem tributária?


Em caso afirmativo, qual seria o critério (o valor) a ser utilizado? Trata-se de questões
comumente submetidas aos Tribunais Superiores.

Como visto anteriormente, a insignificância é considerada uma causa excludente da


tipicidade material. Em outras palavras, hoje não basta apenas realizar o juízo de tipicidade
formal: por mais que a conduta seja adequada ao tipo legal, deve-se analisar se há efetiva
lesão ao bem jurídico tutelado. Segundo o STF, a insignificância deve ser analisada não
somente no que se refere ao desvalor da ação, como em relação ao desvalor do resultado. O
Supremo tem estabelecido quatro requisitos para a aplicação do princípio da insignificância
(HC 92.628):

i) ausência de periculosidade social da ação;

ii) mínima ofensividade da conduta do agente:

Essa é a razão por que dificilmente se encontra julgado reconhecendo a insignificância em


furto qualificado (a qualificadora denota maior desvalor da conduta).

142
iii) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento;

iv) inexpressividade da lesão ao bem jurídico tutelado.

Há uma séria controvérsia quanto à necessidade ou não da análise da pessoa autora do


delito. Renato considera que tem prevalecido a necessidade de se levar em consideração o
sujeito ativo do delito, sob pena, inclusive, de vulgarização da aplicação da insignificância (o
criminoso poderia praticar diversas condutas tidas como insignificantes, sem que nada
pudesse ser feito contra ele).

A grande discussão diz respeito ao parâmetro a ser utilizado nos crimes contra a ordem
tributária. Há um critério mínimo a ser utilizado para a aferição da insignificância, nesse
caso? Deve-se analisar a Fazenda, ou seja, o prejuízo causado ao Erário. Mas qual seria o
valor?

A Lei 10.522/2002 merece ser analisada, pois regulamenta a possibilidade de ajuizamento de


execuções fiscais pela Fazenda e a extinção de determinados créditos inseridos como dívida
ativa. O questionamento era o seguinte: é possível a utilização desses parâmetros para aferir
a insignificância? O art. 18, § 1º trouxe um parâmetro de cancelamento do débito tributário,
no valor de R$ 100,00:

Art. 18 (...) § 1º Ficam cancelados os débitos inscritos em Dívida Ativa da União, de valor

consolidado igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais).

Na medida em que o dispositivo determina o cancelamento do débito inscrito em dívida


ativa da União, está dizendo que o valor de R$ 100,00 é para ele insignificante.

Assim, durante um primeiro momento, o art. 18, § 1º, da Lei 10.522/2002 foi utilizado como
parâmetro para fins de aplicação do princípio da insignificância. Há vários julgados do STJ
nesse sentido. É um raciocínio bem lógico (REsp 685.135 e REsp 495.872).

Não é esse, entretanto, o valor que deve ser utilizado hoje como parâmetro.

A matéria foi sendo questionada ao longo dos anos e chegou ao STF, que acabou deixando-o
de lado, passando a utilizar o previsto no art. 20 da mesma lei:

Art. 20. Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do

Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como

Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados,

de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais). (Redação dada pela

Lei nº 11.033, de 2004) (...)

143
Veja que, de R$ 100,00, chegou-se a R$ 10.000,00. Renato considera um absurdo a utilização
de um valor tão alto como parâmetro de insignificância, notadamente em se tratando de um
país de miseráveis. Na verdade, as execuções são arquivadas se cobrando até R$ 10.000,00,
pois o próprio custo do processo para o Estado acaba não pagando o valor que se persegue.
Agora, uma coisa é não valer a pena a persecução do valor via execução. Outra é dizer que
seja insignificante e não merecer a chancela do Direito Penal. Para Renato, a provável
justificativa para tal entendimento é de que se trata de uma forma de tentar desafogar o
Poder Judiciário.

O STJ acabou acatando essa orientação do STF, prevalecendo a utilização do parâmetro


trazido no art. 20 da Lei 10.522/2002 (“a farra do boi”). O sujeito, na hora de sonegar, já
sabe quanto deve ser o valor da sonegação. Ver, a esse respeito, o REsp 1.113.039.

A moda cresceu, e o parâmetro de R$ 10.000,00 passou a ser utilizado não apenas em


relação aos crimes tributários da Lei 8.137/1990, mas também ao crime de descaminho.

O crime de descaminho (introdução de mercadoria no país sem a nota fiscal), previsto no


art. 334 do CP, topograficamente falando, seria um crime contra a administração pública
praticado por particular:

Art. 334 Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o

pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de

mercadoria:

Pena - reclusão, de um a quatro anos. (...)

Todavia, os tribunais têm emprestado a ele uma natureza de crime contra a ordem
tributária. Isso porque, introduzida a mercadoria sem a nota fiscal, estariam sendo lesados
os interesses arrecadatórios do Fisco. Em se tratando de crime contra a ordem tributária,
todo esse raciocínio desenvolvido, inclusive quanto ao princípio da insignificância, deveria
ser também utilizado no crime de descaminho.

Ocorre que foi publicada a Portaria MF nº 75, de 29/03/2012, na qual o Ministro da Fazenda
determinou, em seu art. 1º, inciso II, “o não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com
a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil
reais).” Desse modo, o Poder Executivo “atualizou” o valor previsto no art. 20 da Lei
10.522/2002 e passou a dizer que não mais deveriam ser executadas as dívidas de até 20 mil
reais. Em outras palavras, a Portaria MF 75/2012 “aumentou” o valor considerado
insignificante para fins de execução fiscal. Agora, abaixo de 20 mil reais, não interessa à
Fazenda Nacional executar (antes esse valor era 10 mil reais).

144
Diante desse aumento produzido pela Portaria, começou a ser defendida a tese de que o
novo parâmetro para análise da insignificância penal nos crimes tributários passou de 10 mil
reais (de acordo com o art. 20 da Lei 10.522/2002) para 20 mil reais (com base na Portaria
MF 75).

O STJ tem decidido que o valor de 20 mil reais, estabelecido pela Portaria MF 75/12 como
limite mínimo para a execução de débitos contra a União, não pode ser considerado para
efeitos penais (não deve ser utilizado como novo patamar de insignificância). Nesse sentido,
ver o AgRg no AREsp 331.852/PR, j. em 11/02/2014 e o AgRg no AREsp 303.906/RS, j. em
06/02/2014.

Para o STF, o fato de as Portarias 75 e 130/2012 do Ministério da Fazenda terem aumentado


o patamar de 10 mil reais para 20 mil reais produz efeitos penais. Nesse sentido, ver o HC
120617, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 04/02/2014.

Todavia, cuidado: deve ser aplicado o princípio da insignificância ao crime de descaminho


quando o débito tributário não ultrapassar o limite de R$ 10.000,00 (ou R$ 20.000,00, para o
STF). Ou seja, não se deve considerar, para a aferição da insignificância, o valor da coisa (da
mercadoria), mas do débito tributário sobre ela incidente (REsp 1.112.748).

Ao crime de contrabando não se aplica o princípio da insignificância (STJ AgRg no AREsp


342.598, julgado em 5 de novembro de 2013).

1.4 – Dificuldades financeiras e inexigibilidade de conduta diversa

Este tópico trata de uma questão bastante interessante e recorrente na prática, nos
processos em que se discutem crimes contra a ordem tributária.

Geralmente, as teses de defesa mais comuns são: i) o fato de que o agente não era o
administrador da empresa; e ii) as dificuldades financeiras por que estava a empresa ou o
empresário passando seriam tão graves que justificariam o inadimplemento do tributo.

Não é, entretanto, qualquer dificuldade financeira que pode servir como causa excludente
da culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa. Na verdade, os tribunais têm
admitido essa tese apenas em situações excepcionais e desde que comprovadas as
dificuldades por meio de prova documental (ex.: títulos protestados, falência decretada,
execuções fiscais e reclamações trabalhistas em andamento, desativação de filiais da
empresa etc.)

145
Não adianta que o acusado apresente, por exemplo, uma prova testemunhal para tentar se
eximir da punição com base na inexigibilidade de conduta diversa. Geralmente, consegue-se
demonstrar a alegação provando que até a vida pessoal do sócio fora abalada pela crise
financeira, de modo que ele não teria se apropriado dos valores, mas se utilizado deles para
o pagamento de dívidas.

1.5 – Ação penal e competência

Qual é a espécie de ação penal em crimes contra a ordem tributária e de quem é a


competência para processar e julgar esses delitos?

No tocante à ação penal, evidentemente, trata-se de ação penal pública incondicionada.


Relativamente à competência, deve-se lembrar que diante de vítima INSS (uma autarquia
federal), caberá à Justiça Federal processar e julgar crimes contra o interesse arrecadatório
da autarquia.

Relativamente aos crimes tributários (previstos na Lei 8.137/1990), a competência está


diretamente relacionada à natureza do tributo. Em se tratando de crime relativo a tributo de
natureza estadual ou municipal, a competência será da justiça estadual. Em São Paulo,
exemplo mais comum de crime dessa natureza é o de sonegação de IPVA (é muito comum
haver veículos com placa do Paraná, estado em que o tributo é menor). Diante de um tributo
de natureza federal (ex.: sonegação de IR), há interesse da União, de modo que a
competência é da Justiça Federal.

1.6 – Revogação do art. 325, § 2º, do CPP pela Lei 12.403/2011

A Lei 12.403/2011 provocou alteração importante. O art. 325, § 2º, do CPP, em sua redação
antiga (incluída pela Lei 8.035/1990), previa uma restrição à liberdade provisória sem fiança
nos crimes contra a ordem tributária. Dizia que não era aplicável, dentre outros, aos crimes
de sonegação fiscal, o dispositivo que previa a possibilidade de concessão de liberdade
provisória sem fiança quando o juiz verificasse a inocorrência das hipóteses que autorizavam
a preventiva:

Art. 325 (...) § 2º Nos casos de prisão em flagrante pela prática de crime contra a

economia popular ou de crime de sonegação fiscal, não se aplica o disposto no art. 310 e

parágrafo único deste Código, devendo ser observados os seguintes procedimentos:

I - a liberdade provisória somente poderá ser concedida mediante fiança, por decisão do

juiz competente e após a lavratura do auto de prisão em flagrante;

Il - o valor de fiança será fixado pelo juiz que a conceder, nos limites de dez mil a cem mil

146
vezes o valor do Bônus do Tesouro Nacional - BTN, da data da prática do crime;

III - se assim o recomendar a situação econômica do réu, o limite mínimo ou máximo do

valor da fiança poderá ser reduzido em até nove décimos ou aumentado até o décuplo.

Na verdade, seria possível somente a concessão de liberdade provisória com fiança, cujo
valor era mais elevado.

A nova redação do CPP foi alterada, tendo o dispositivo sido revogado. A uma porque a
liberdade provisória sem fiança do antigo art. 310, parágrafo único, já não existe mais. Hoje,
o art. 310, parágrafo único fala da liberdade provisória sem fiança, mas na hipótese em que
o juiz verificar a prática do fato acobertada por uma excludente de ilicitude (não tem mais
nada a ver com a regra anterior).

Hoje, portanto, caberá liberdade provisória para autor de crime tributário. Evidentemente, é
difícil imaginar um crime contra a ordem tributária em que o sujeito seja preso em flagrante
(exceto, talvez, em algum caso envolvendo comerciante). Em se tratando de crime
tributário, o ideal é a concessão de liberdade provisória com fiança pesada, não somente
para dissuadir o agente de manter a sua conduta delituosa como para eventual perdimento,
no caso de fuga, por exemplo.

1.7 – Decisão final do procedimento administrativo nos crimes materiais contra a


ordem tributária

A decisão final do procedimento administrativo nos crimes materiais contra a ordem


tributária é um assunto interessante e recorrente em provas de concurso público
(principalmente os federais).

A discussão que se verifica relaciona-se à independência ou não das instâncias: é preciso


aguardar o resultado de um processo administrativo discutindo o lançamento do tributo
para o ajuizamento da ação penal?

Geralmente, quando a pessoa é flagrada cometendo crime tributário, ela discute a questão
no âmbito administrativo. Muito se discute se, enquanto pendente o processo
administrativo, ela poderia ser processada criminalmente.

Essa controvérsia surge, inicialmente, por conta da antiga redação do art. 83 da Lei
9.430/1996. O dispositivo dizia que representação fiscal somente seria encaminhada ao
Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência
fiscal do crédito tributário correspondente:

147
Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem

tributária definidos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, será

encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera

administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.

Nessa época, a posição sustentada pelos advogados atuantes na área era no sentido de que
o dispositivo teria criado uma condição da ação penal em crimes contra a ordem tributária.
Não foi essa a posição que prevaleceu. Contra esse dispositivo, o MPF se apressou em ajuizar
a ADI 1.571. O STF se pronunciou em relação ao assunto, tendo concluído o seguinte:

i) o art. 83 não criou condição específica da ação penal em relação a crimes contra a ordem
tributária;

ii) o art. 83 rege atos da administração fazendária, prevendo o momento em que as


autoridades competentes devem encaminhar ao MP a notitia criminis acerca de delitos
contra a ordem tributária;

iii) o MP pode, independentemente da chamada “representação tributária”, tomar


conhecimento do lançamento definitivo e, assim, oferecer denúncia, já que se trata de crime
de ação penal pública incondicionada.

Se a decisão final do procedimento administrativo não é uma condição específica da ação


penal nos crimes materiais contra a ordem tributária, qual é então a sua natureza jurídica?

1ª corrente: trata-se de questão prejudicial heterogênea, acarretando a suspensão do


processo e da prescrição com base no art. 93 do CPP 9. Essa corrente agrada ao MPF,
pois permite o oferecimento da denúncia e a suspensão o processo criminal,
enquanto resolvida a questão em juízo extrapenal. Esta corrente, defendida há
tempos por membros do MPF, é bem minoritária.

2ª corrente: tratando-se de crime material contra a ordem tributária, ou seja, crime


tributário que depende da produção de um resultado naturalístico, a decisão final do
procedimento administrativo funciona como elementar do próprio delito, estando
ligada à tipicidade da conduta delituosa. Ou seja, o resultado somente estaria

9
Art. 93. Se o reconhecimento da existência da infração penal depender de decisão sobre questão
diversa da prevista no artigo anterior, da competência do juízo cível, e se neste houver sido proposta
ação para resolvê-la, o juiz criminal poderá, desde que essa questão seja de difícil solução e não verse
sobre direito cuja prova a lei civil limite, suspender o curso do processo, após a inquirição das
testemunhas e realização das outras provas de natureza urgente.

148
presente quando houvesse a decisão final no processo administrativo de lançamento.
Esta é a posição de Luiz Flávio Gomes. Da análise da redação da Súmula Vinculante 24,
fica parecendo que esta seria a posição do STF:

Súmula Vinculante 24 - NÃO SE TIPIFICA CRIME MATERIAL CONTRA A ORDEM

TRIBUTÁRIA, PREVISTO NO ART. 1º, INCISOS I A IV, DA LEI Nº 8.137/90, ANTES DO

LANÇAMENTO DEFINITIVO DO TRIBUTO.

3ª corrente: trata-se de condição objetiva de punibilidade (STJ HC 54.248; STJ APN 449
e STF HC 86.032). Esta corrente é a que prevalece, apesar da redação da Súmula
Vinculante 24. Portanto, enquanto não houver a decisão definitiva do procedimento
administrativo de lançamento, não é possível a instauração de persecução penal
contra o autor do delito, seja na fase pré-processual (inquérito), seja na fase
processual.

O que mais se encontra nos Tribunais Superiores acerca deste tema é o pedido de
trancamento de inquéritos instaurados sem que tenha havido a decisão final de lançamento.
Os tribunais mandam trancar.

Cumpre destacar, entretanto, que em situações excepcionais e a depender das


peculiaridades do caso concreto, o STF entende possível a instauração de inquérito policial
mesmo antes da decisão final do procedimento administrativo de lançamento (ex.: HC
95.443). Nesse julgado, a empresa estava se recusando a fornecer documentos para a
fiscalização, tendo a Ministra Ellen Gracie entendido que seria possível a instauração de
inquérito policial para instrumentalizar o pedido de quebra de sigilo bancário e apurar o
débito tributário.

Importante salientar que a decisão final do procedimento administrativo de lançamento só


funciona como condição objetiva de punibilidade em relação aos crimes materiais contra a
ordem tributária, podendo também abranger eventual delito que tenha funcionado como
meio para a sua prática. Eventuais crimes conexos (ex.: evasão de divisas) não dependem da
decisão final do procedimento administrativo de lançamento (STJ HC 133.274)

Por isso que, ao longo desta exposição, tem sido ressaltada a diferença entre os crimes de
natureza material e formal: em se tratando de crime de natureza formal, não é necessário
aguardar o implemento desta condição. Os Procuradores da República estavam, por
exemplo, processando não pelo crime tributário, mas somente pela falsidade praticada
como meio para praticá-lo.

149
O quadro a seguir busca diferenciar os conceitos de condição objetiva de punibilidade e de
condição da ação:

Condição objetiva de punibilidade Condição da ação


Trata-se de condição estabelecida pelo legislador Trata-se de condição necessária para o exercício
para que o fato se torne punível, que está fora do regular do direito de ação. Apesar de autônomo e
injusto penal. Chama-se condição “objetiva” abstrato, essas condições têm de estar presentes
porque funciona como acontecimento futuro e para o exercício do direito de ação. Podem ser
incerto, que independe do dolo ou da culpa do genéricas ou específicas.
agente. Está localizada entre os preceitos
primário e secundário da norma penal
incriminadora, condicionando a existência da
pretensão punitiva do Estado.
Relaciona-se ao direito penal. Relaciona-se ao direito processual penal.
Verificada sua ausência, o Estado não pode dar Se a ausência de uma condição da ação for
início à persecução penal. Porém, se o processo verificada pelo juiz de início, haverá a rejeição da
estiver em andamento, haverá decisão de mérito, peça acusatória (art. 395, I, do CPP); se a
formando-se coisa julgada formal e material. São ausência da condição da ação for constatada pelo
exemplos de condições objetivas de punibilidade: juiz durante o processo, há doutrinadores que
i) decisão final do procedimento administrativo entendem que, neste caso, o juiz deveria
de lançamento nos crimes materiais contra a decretar a extinção do processo sem apreciação
ordem tributária; do mérito (aplicação subsidiária do CPC). Veja
ii) sentença declaratória da falência: que, em ambas as situações, essa decisão do
Na antiga lei, tratava-se de uma condição da magistrado somente produzirá coisa julgada
ação. Agora, o art. 180 da Lei 11.101/2005 10 é formal. Ou seja, corrigido o processo, poderá ser
expresso nesse sentido. ajuizada nova ação contra o autor do fato.
Observação: em se tratando do reconhecimento
da ilegitimidade de parte, haverá declaração de
nulidade (art. 564, II, do CPP).

1.8 – Pagamento do débito tributário e extinção da punibilidade

Acerca da relação entre o pagamento do débito tributário e a extinção da punibilidade,


houve interessante e recente alteração legislativa. Como visto, muitas vezes o legislador

10
Art. 180. A sentença que decreta a falência, concede a recuperação judicial ou concede a
recuperação extrajudicial de que trata o art. 163 desta Lei é condição objetiva de punibilidade das
infrações penais descritas nesta Lei.

150
utiliza o direito penal de forma meramente simbólica. São tantos os benefícios que a
punição acaba esvaziada. Adiante, será feita uma breve explanação da evolução do assunto
ao longo do tempo.

A Lei 8.137/1990, na redação original do seu art. 14, previa a extinção da punibilidade nos
crimes tributários se o pagamento fosse efetuado até o recebimento da denúncia:

Art. 14. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos nos arts. 1º a 3º quando o agente

promover o pagamento de tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do

recebimento da denúncia. (Revogado pela Lei nº 8.383, de 30.12.1991)

Posteriormente, o dispositivo foi revogado pela Lei 8.383/1991. Esteve em vigor por
aproximadamente dois anos e, apesar de haver sido revogado, acabou aplicável aos crimes
praticados durante a sua vigência (mesmo depois da revogação), por ser prejudicial ao
acusado (porque teria acabado com uma causa extintiva da punibilidade).

Entra então em vigor a Lei 9.249/1995, prevendo, em seu art. 34, a extinção da punibilidade
se o pagamento fosse realizado até o recebimento da denúncia:

Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de

dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover

o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento

da denúncia. (...)

Claramente, essa lei é novatio legis in mellius.

Observações:

i) apesar de o art. 34 referir-se apenas aos crimes das Leis 8.137/1990 e 4.729/1995, os
tribunais passaram a entender que esta causa extintiva da punibilidade também seria
aplicável aos crimes contra a ordem tributária praticados em detrimento do INSS;

ii) apesar de o art. 34 referir-se apenas ao pagamento do débito tributário, os tribunais


passaram a entender que o parcelamento também seria causa extintiva da punibilidade,
precisamente por consistir em uma das hipóteses de pagamento (Resp 1.026.214);

iii) os tribunais passam a entender que a causa extintiva de punibilidade do art. 34 não seria
aplicável ao crime de estelionato, ao qual somente se aplica o arrependimento posterior
previsto no art. 16 do CP (STJ HC 61.928), por ser crime contra o patrimônio e não contra a
ordem tributária (logicamente que, em se tratando da fraude com o pagamento de cheque,
incidiria a ressalva da Súmula 554 do STF):

151
Súmula 554 - O PAGAMENTO DE CHEQUE EMITIDO SEM PROVISÃO DE FUNDOS, APÓS O

RECEBIMENTO DA DENÚNCIA, NÃO OBSTA AO PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO PENAL [a

contrário sensu: o pagamento realizado até o recebimento da denúncia obsta o

prosseguimento da ação penal].

Vem então a Lei 10.684/2003 (a chamada Lei do Refis, do Paes ou do Parcelamento


Especial), cujo art. 9º diz que o parcelamento suspenderia a pretensão punitiva e a
prescrição, a partir do momento da adesão:

Art. 9º É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts.

1º e 2º da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do

Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em

que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no

regime de parcelamento.

§ 1o A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão

punitiva.

§ 2o Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica

relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos

e contribuições sociais, inclusive acessórios.

Veja que o dispositivo é mais amplo, abrangendo mais leis. O § 2º prevê a extinção da
punibilidade naqueles crimes, caso verificado o pagamento do tributo. Vale observar que,
como esse § 2º não estabeleceu qualquer limite temporal para o pagamento, os tribunais
passaram a entender que, efetuado o pagamento, haveria a extinção da punibilidade, ainda
que após o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória. Para Renato, foi “a farra
do boi legalizada”: pago a qualquer momento o tributo, haveria a extinção da punibilidade.
Nesse sentido, ver o STF HC 81.929 e a STJ APN 367. O STJ, acredite, também passou a
aplicar o dispositivo em relação ao crime de descaminho, que como visto é tido como
tributário lato sensu.

Veja que o pagamento extingue a punibilidade não somente dos crimes tributários como dos
crimes-meios (ex.: falsidade ideológica praticada para a sonegação). Ver a esse respeito o
REsp 996.711.

Entra então em vigor a Lei 11.941/2009 (conhecida como Lei do Refis da crise), bem
semelhante à anterior, não citada normalmente pelos manuais. Em seus arts. 68 e 69, prevê
que: i) o parcelamento suspende a pretensão punitiva; e ii) o pagamento, efetuado a
qualquer momento, extingue a punibilidade:

152
Art. 68. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos

arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do

Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, limitada a suspensão aos

débitos que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento, enquanto não forem

rescindidos os parcelamentos de que tratam os arts. 1º a 3º desta Lei, observado o

disposto no art. 69 desta Lei.

Parágrafo único. A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da

pretensão punitiva.

Art. 69. Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no art. 68 quando a pessoa

jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de

tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de

concessão de parcelamento.

Parágrafo único. Na hipótese de pagamento efetuado pela pessoa física prevista no § 15

do art. 1º desta Lei, a extinção da punibilidade ocorrerá com o pagamento integral dos

valores correspondentes à ação penal.

A observação quanto à extensão dos benefícios ao crime de descaminho, feita pelo STJ, é a
mesma. A lei é mais clara, dizendo que somente haverá a suspensão da pretensão punitiva
no que se referir à parte parcelada da dívida.

Assim, de modo semelhante à anterior, a Lei 11.941/2009 também prevê a extinção da


punibilidade com base no pagamento e nada fala quanto ao momento, razão pela qual os
tribunais passaram a entender que a extinção ocorreria mesmo após o trânsito em julgado.
A lei só é mais clara que a anterior, na medida em que se refere ao pagamento realizado por
pessoa física, mas já era o que ocorria antes: se a pessoa física efetuasse o pagamento
também haveria a extinção da punibilidade.

Depois de todas estas leis (veja que houve outras antes da última), foi editada a Lei
12.382/2011, que conferiu nova redação ao art. 83 da Lei 9.430/1996. É aqui, na verdade,
que surge o grande problema. Esta Lei 12.382/2011 dispõe sobre o salário mínimo. Todavia,
não é novidade que o legislador utilize práticas escusas: na lei que trata de matéria
absolutamente diversa, foi inserido assunto relacionado ao pagamento do débito tributário
(art. 6º):

Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem

tributária previstos nos arts. 1º e 2º da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos

crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei no

153
2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público

depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do

crédito tributário correspondente. (Redação dada pela Lei nº 12.350, de 2010) (...)

§ 2º É suspensa a pretensão punitiva do Estado referente aos crimes previstos no caput,

durante o período em que a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente

dos aludidos crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de

parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal.

(Incluído pela Lei nº 12.382, de 2011). (...)

§ 4º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no caput quando a pessoa física ou a

pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos

oriundos de tributos, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de

parcelamento. (Incluído pela Lei nº 12.382, de 2011). (...)

§ 6º As disposições contidas no caput do art. 34 da Lei no 9.249, de 26 de dezembro de

1995, aplicam-se aos processos administrativos e aos inquéritos e processos em curso,

desde que não recebida a denúncia pelo juiz. (Renumerado do Parágrafo único pela Lei nº

12.382, de 2011).

Veja que foram inseridos mais crimes no caput do art. 83. O cerne da controvérsia localiza-se
no novo § 2º do art. 83: o dispositivo, ao contrário das leis anteriores, que não previam um
momento para o parcelamento (que poderia ocorrer a qualquer momento), passa a exigir
que o pedido deve ser formalizado antes do recebimento da denúncia criminal para a
suspensão da pretensão punitiva e a extinção da punibilidade.

Assim, o pagamento a que se refere o § 4º deve ser lido em conjunto com o § 2º, que prevê
que o parcelamento seja feito até o recebimento da denúncia. O § 6º deixa claro o
estabelecimento de um novo limite temporal.

Assim, atenção para a nova redação do art. 83 da Lei 9.430/96, dada pela Lei 12.382/11:

i) ao contrário das leis anteriores, o art. 83, §§ 2º e 4º, passou a condicionar que o
parcelamento somente acarretará a suspensão da pretensão punitiva se feito até o
recebimento da denúncia. Portanto, se o parcelamento for feito após o recebimento da
denúncia, não somente será inviável a suspensão da pretensão punitiva como também o
pagamento não mais acarretará a extinção da punibilidade.

Veja que esse assunto é muito novo, não havendo muita coisa escrita a respeito. Há quem
diga, em artigo da Internet, que os dispositivos anteriores continuariam valendo (Hugo de
Brigo Machado). Renato considera que é uma posição de defesa. Todavia pode até não ter

154
havido revogação expressa, mas claramente houve revogação tácita. O ideal é defender em
concurso que hoje há o limite temporal.

ii) esta mudança tem natureza gravosa. Logo, somente pode ser aplicada aos créditos
tributários constituídos a partir do dia 1º de março de 2011 (data em que entrou em vigor a
lei). Deve-se atentar para não cair em pegadinha de prova.

2 – Dos crimes contra a ordem tributária em espécie

O tema não foi tratado no curso.

155
JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS (LEI 9.099/1995)

1 – Previsão constitucional

Os Juizados Especiais Criminais estão previstos no art. 98, I, da CR:

Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:

I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a

conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e

infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e

sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de

recursos por turmas de juízes de primeiro grau; (...)

2 – Jurisdição consensual vs. jurisdição conflitiva

Enquanto na jurisdição consensual há a busca de um consenso (ex.: transação penal), na


conflitiva há um litígio, em polos distintos, entre acusação e defesa. A jurisdição conflitiva
ainda é a principal forma de solução de conflitos no Brasil. Ela, entretanto, vem sofrendo
mitigação. Exemplo disso é justamente a delação premiada.

É muito difícil falar na busca de consenso em se tratando de transação envolvendo penas


privativas de liberdade. Por essa razão, a jurisdição consensual caracteriza-se pela imposição
de pena de multa ou restritiva de direitos. Na jurisdição conflitiva, em geral, as penas
previstas são privativas de liberdade (ainda que possam ser substituídas por restritiva ou
cumuladas com multa).

Na jurisdição conflitiva, os princípios que basicamente orientam o MP são os da


obrigatoriedade e da indisponibilidade. Na consensual, esses dois princípios acabam
sofrendo mitigação/relativização.

Diante de uma infração de menor potencial ofensivo, o Promotor não é obrigado a oferecer
denúncia. Pode oferecer transação penal. E, mesmo oferecendo denúncia, pode ser
concedida ao réu a suspensão condicional do processo. Trata-se de um novo paradigma,
uma nova ideia de processo penal, muitas vezes não absorvida pela doutrina clássica.

Nos EUA, as transações (plea bargain) respondem por 90% das soluções processuais penais.
No Brasil, essa modalidade de solução de conflitos penais ainda é incipiente.

156
A jurisdição consensual é plenamente válida e está de acordo com a CR, ao menos no que
concerne ao julgamento das infrações de menor potencial ofensivo (art. 98, I, da CR).

3 – Conceito de infração de menor potencial ofensivo

O conceito de infração de menor potencial ofensivo vem se alterando ao longo do tempo.


Na redação original do art. 61 da Lei 9.099/95, o conceito era bem diverso: contravenções
penais e crimes com pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei
previsse procedimento especial:

Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos

desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não

superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.

Desse próprio conceito, como se percebe, ficavam excetuados os crimes sujeitos a


procedimentos especiais, como é o caso do abuso de autoridade.

Quando a Lei entra em vigor, a par das questões envolvendo a jurisdição consensual, o
objetivo por trás da criação do Juizado foi buscar evitar a prescrição em relação a esses
delitos, que ocorria com frequência, até porque na época ainda havia a prescrição da
pretensão punitiva com base na pena em concreto entre a data do fato e a do recebimento
da denúncia.

Com o surgimento da Lei 10.259/2001, que previu os Juizados Especiais no âmbito da Justiça
Federal, as infrações de menor potencial ofensivo passaram a ser os crimes a que a lei
cominasse pena máxima não superior a dois anos ou multa:

Art. 2º Compete ao Juizado Especial Federal Criminal processar e julgar os feitos de

competência da Justiça Federal relativos às infrações de menor potencial ofensivo.

Parágrafo único. Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos

desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa.

O dispositivo restou também alterado. A redação original de 2001 não previa contravenções,
pois a Justiça Federal não julga contravenções.

Com a Lei 10.259/2001, surge uma controvérsia com relação ao conceito de infração de
menor potencial ofensivo. Surgem as teorias unitária e dualista:

i) teoria unitária:

157
A teoria unitária preconizava que haveria apenas um conceito de infração de menor
potencial ofensivo, válido tanto para a Justiça Estadual quanto para a Federal. Esse conceito
seria exatamente o constante da redação original do art. 2º, parágrafo único, da Lei
10.259/2001.

ii) teoria dualista:

A teoria dualista dizia que o conceito da Lei 10.259/2001 seria restrito ao âmbito da Justiça
Federal. Haveria um conceito de infração de menor potencial ofensivo no âmbito da Justiça
Federal e outro aplicável à Justiça Estadual (o previsto na redação do art. 61 da Lei
9.099/1995). Era uma ideia meio esquisita, pois sustentava a existência de dois conceitos
diversos, em virtude da existência da expressão: “para os efeitos dessa lei”.

Todavia, a interpretação meramente gramatical nem sempre é a melhor. A doutrina


exemplificava o problema que surgia em crimes como o desacato (pena de 6 meses a 2
anos). Desacatar policial rodoviário federal ensejaria a aplicação dos benefícios da Lei dos
Juizados, mas desacatar policial rodoviário estadual não seria considerado infração de
menor potencial ofensivo. À luz da isonomia, a teoria dualista foi desconsiderada, tendo a
doutrina acatado a unitária.

Em razão disso, o conceito de infração de menor potencial ofensivo passa a ser entendido
como o trazido pela Lei 10.259/2001.

Para resolver esse problema definitivamente, a Lei 11.313/2006 conferiu nova redação aos
arts. 61, da Lei 9.099/95 e 2º, da Lei 10.259/2001:

Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos

desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não

superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa. (Redação dada pela Lei nº 11.313,

de 2006)

Art. 2º Compete ao Juizado Especial Federal Criminal processar e julgar os feitos de

competência da Justiça Federal relativos às infrações de menor potencial ofensivo,

respeitadas as regras de conexão e continência. (Redação dada pela Lei nº 11.313, de

2006)

Parágrafo único. Na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri,

decorrente da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os institutos

da transação penal e da composição dos danos civis. (Redação dada pela Lei nº 11.313, de

2006)

158
Assim, diante dessa modificação, consideram-se hoje infrações de menor potencial ofensivo
i) todas as contravenções penais; e ii) os crimes a que a lei comine pena máxima não
superior a dois anos, cumulada ou não com multa, submetidos ou não a procedimento
especial.

Não importa se o crime vem cumulado ou não com multa: deve-se olhar a pena máxima. A
lei excetuava os casos submetidos a procedimento especial, mas com a nova redação
aqueles crimes também passaram a ser considerados de menor potencial ofensivo.

A lei fala da necessidade de se levar em conta a “pena máxima”. Por essa razão,
qualificadoras, causas de aumento e de diminuição de pena e as hipóteses de concurso de
crimes serão levadas em consideração para a definição da menor ofensividade da infração.
Agravantes e atenuantes não são levadas em consideração.

Assim, diante de causas de aumento e de diminuição de pena, para a análise do conceito de


infração de menor potencial ofensivo, o aumento tem de ser feito no máximo possível e a
diminuição tem de ser feita no quantum que menos diminua a pena. Ex.: na diminuição de
1/3 a 2/3, a diminuição deverá ser a de 1/3.

Confirmam esse raciocínio as Súmulas 723 do STF e 243 do STJ:

Súmula 723 - NÃO SE ADMITE A SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO POR CRIME

CONTINUADO, SE A SOMA DA PENA MÍNIMA DA INFRAÇÃO MAIS GRAVE COM O

AUMENTO MÍNIMO DE UM SEXTO FOR SUPERIOR A UM ANO.

Súmula 243 - O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às

infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade

delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da

majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano.

A Súmula 723 deixa claro que, na hora de analisar o cabimento dos benefícios
despenalizadores, não se pode deixar de considerar os aumentos e diminuições de pena.
Atenção somente para o fato de que, no caso da suspensão condicional do processo, a pena
a ser considerada é a mínima (de 1 ano).

4 – Excesso da acusação

Exemplo bastante comum de excesso de acusação é o da denúncia de criminoso pela prática


de tráfico em caso típico de porte de drogas para consumo pessoal. Enquanto aquele não

159
admite, dependendo da Turma, sequer liberdade provisória, este admite a aplicação das
medidas despenalizadoras.

Parte majoritária da doutrina entende que o juiz não pode modificar a classificação do fato
delituoso por ocasião do recebimento da denúncia ou queixa. O problema dessa doutrina é
o exemplo acima, em que se visualiza de cara que não se trata do crime atribuído: estar-se-ia
privando o acusado das medidas despenalizadoras.

Assim, hoje há doutrinadores que defendem que, se houver excesso da acusação privando o
acusado do gozo de liberdades públicas, como a liberdade provisória e os institutos
despenalizadores da Lei 9.099/1995, é possível uma desclassificação incidental e provisória.

5 – Aplicação da Lei 9.099/95

A aplicação da Lei 9.099/1995 sofre algumas restrições, por determinadas leis que serão
analisadas a seguir.

5.1 – Lei Maria da Penha

Antes do advento da Lei Maria da Penha, a violência contra a mulher era mensurada em
cestas básicas: quanto mais o sujeito pagasse, maior tinha sido a violência.

Por conta disso, o art. 41 da Lei 11.340/2006 exclui a aplicação da Lei 9.099/1995 aos crimes
praticados com violência doméstica ou familiar:

Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher,

independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de

1995.

O STF, recentemente, posicionou-se favoravelmente à constitucionalidade do dispositivo,


afastando questionamentos da doutrina acerca da possibilidade de afastamento da Lei
Maria da Penha (HC 106.212).

5.2 – Aplicação da Lei 9.099/1995 no âmbito da Justiça Militar

Em 1995, o STF entendeu aplicável a Lei 9.099/1995 no âmbito da Justiça Militar. Todavia,
por pressão daquela própria Justiça, que era reticente quanto a essa aplicação, foi editada a
Lei 9.839/1999, acrescentando o art. 90-A à Lei dos Juizados:

Art. 90-A. As disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar. (Artigo

incluído pela Lei nº 9.839, de 27.9.1999)

160
De maneira peremptória, o dispositivo determina que a Lei dos Juizados não se aplica à
Justiça Militar. Veja que o art. 90-A foi acrescentado em 1999. Em razão disso, pergunta-se:
o dispositivo tem natureza benéfica ou gravosa? Tem natureza processual ou material?

A não aplicação da Lei 9.099/1995 priva o sujeito de institutos despenalizadores,


diretamente ligados ao direito de punir do Estado. Assim, o art. 90-A é norma processual
material. Portanto, é cabível a aplicação da Lei 9.099/1995 aos crimes militares cometidos
antes da vigência da Lei 9.839/1999.

Cumpre observar, ainda, que parte minoritária da doutrina considera esse dispositivo
inconstitucional em relação aos crimes impropriamente militares. Todavia, em se tratando
de crimes sujeitos à Justiça Militar, a realidade é diferente. Uma lesão corporal praticada por
uma pessoa contra a outra não tem a mesma dimensão que a praticada por soldado contra
seu comandante, em virtude da força da hierarquia. Todavia, prevalece que o dispositivo é
plenamente constitucional, seja com os propriamente, seja com os impropriamente
militares. Há casos de aplicação da Lei 9.099/1995 aos crimes militares sujeitos à jurisdição
militar estadual.

5.3 – Estatuto do Idoso

O art. 94 do Estatuto do Idoso prevê hipótese contraditória:

Art. 94. Aos crimes previstos nesta Lei, cuja pena máxima privativa de liberdade não

ultrapasse 4 (quatro) anos, aplica-se o procedimento previsto na Lei no 9.099, de 26 de

setembro de 1995, e, subsidiariamente, no que couber, as disposições do Código Penal e

do Código de Processo Penal. (Vide ADI 3.096-5 - STF)

Isso porque, ainda que a Lei tenha sido criada para a proteção do idoso, ela aumenta a
proteção daqueles autores de crimes praticados contra idoso (ex.: bater em velhinho seria
menos gravoso que em um jovem). O Estatuto do Idoso foi editado depois da Lei
10.259/2001, razão pela qual houve quem dissesse que ele teria modificado o conceito de
infração de menor potencial ofensivo, em virtude da teoria unitária.

O dispositivo foi objeto da ADI 3096, em que restou decidido pelo STF que os infratores não
poderão ter acesso aos benefícios despenalizadores de direito material da Lei 9.099/1995,
como a transação penal, a composição civil dos danos ou a conversão da pena. Somente se
aplicam as normas estritamente procedimentais, para que o processo termine mais
rapidamente, em benefício do idoso. Essa decisão é de setembro de 2010.

161
Cuidado, entretanto, pois em se tratando de crime praticado contra idoso que se encaixe no
conceito normal de infração de menor potencial ofensivo, aplica-se a Lei 9.099/1995.

5.4 – Competência originária dos tribunais

É possível a aplicação da Lei 9.099/1995 nos casos de competência originária? É


perfeitamente possível a incidência dos institutos despenalizadores, a serem aplicados
perante o respectivo tribunal.

5.5 – Justiça Eleitoral

É possível a incidência dos institutos despenalizadores na Justiça Eleitoral, salvo em relação


aos delitos que contam com um sistema punitivo especial, como a cassação de registro,
prevista, por exemplo, no art. 334 do Código Eleitoral:

Art. 334. Utilizar organização comercial de vendas, distribuição de mercadorias, prêmios e

sorteios para propaganda ou aliciamento de eleitores:

Pena - detenção de seis meses a um ano e cassação do registro se o responsável for

candidato.

6 – Natureza da competência do JECRIM: absoluta ou relativa?

A principal característica da competência de natureza absoluta é o fato de ela não admitir


modificações (ex.: em razão da matéria, da função). Por outro lado, a relativa é a que admite
modificações (ex.: territorial).

A Lei dos Juizados prevê várias causas modificativas da competência do JECRIM:

i) impossibilidade de citação por edital:

Não há como fazer citação por edital nos Juizados Especiais Criminais. A regra é a citação
pessoal. O art. 66, parágrafo único, da Lei 9.099/1995 é exatamente nesse sentido. Não
sendo possível a citação pessoal, o juiz encaminha os autos ao Juízo Comum:

Art. 66. A citação será pessoal e far-se-á no próprio Juizado, sempre que possível, ou por

mandado.

Parágrafo único. Não encontrado o acusado para ser citado, o Juiz encaminhará as peças

existentes ao Juízo comum para adoção do procedimento previsto em lei.

Todavia, essa remessa não impede a aplicação dos institutos despenalizadores, os quais,
cumpre observar, dependem da presença do acusado.

162
Questão importante diz respeito à nova citação com hora certa, que passou a ser prevista a
partir de 2008. Pergunta-se: cabe essa modalidade de citação no JECRIM? Atenção para o
Enunciado 110 do XXV FONAJE (Fórum Nacional dos Juizados Especiais, São Luís, 27 a 29 de
maio de 2009):

Enunciado nº 110 – No Juizado Especial Criminal é cabível a citação com hora certa.

ii) complexidade da causa:

Os melhores exemplos de complexidade da causa relacionam-se à pluralidade de acusados


ou à dificuldade probatória por conta da necessidade de perícias complexas. Ex.: crime de
dano praticado por muitos acusados ou que demande uma perícia complexa. Não se
trabalha com esses crimes no Juizado, por incompatível com a celeridade que o caracteriza.
Repita-se: ainda que remetido o processo ao juízo comum, admite-se, nesses casos, a
aplicação das medidas despenalizadoras no próprio juízo comum.

iii) conexão e continência:

Imagine que um cidadão tenha praticado um homicídio e, na hora da prisão em flagrante,


pratica o crime de resistência (pena de 2 meses a 2 anos). Há um caso típico de conexão
teleológica.

Durante um bom tempo, houve controvérsia quanto a isso. Hoje, pacificou-se a questão com
o art. 60, parágrafo único, da Lei 9.099/1995, incluído pela Lei 11.313/2006:

Art. 60. O Juizado Especial Criminal, provido por juízes togados ou togados e leigos, tem

competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor

potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência. (Redação dada pela

Lei nº 11.313, de 2006)

Parágrafo único. Na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri,

decorrentes da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os

institutos da transação penal e da composição dos danos civis. (Incluído pela Lei nº

11.313, de 2006)

O dispositivo diz claramente que, havendo conexão ou continência, ocorrerá a reunião de


processos, que serão encaminhados ao Tribunal do Júri. Isso não significa que as medidas
despenalizadoras não serão aplicadas pelo juízo competente. Uma vez praticada infração
penal em conexão com outro delito da competência do juízo comum ou do Tribunal do Júri,
haverá a reunião dos processos, sem prejuízo da aplicação dos institutos despenalizadores
em relação à infração de menor potencial ofensivo.

163
Portanto, em vista dessas hipóteses de modificabilidade, prevalece o entendimento de que a
competência do JECRIM é relativa. Segundo Pacelli, o que interessa não é o Juízo
competente (onde o sujeito está sendo julgado), mas a aplicação dos institutos
despenalizadores previstos na Lei 9.099/1995. Isso, todavia, não é posição unânime na
doutrina. Gustavo Badaró entende que a competência do JECRIM é de natureza absoluta.

7 – Competência territorial do JECRIM

No Código de Processo Penal, por força do art. 70, a competência territorial é determinada,
pelo menos em regra, pelo local da consumação do delito:

Art. 70. A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a

infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de

execução. (...)

A Lei 9.099/1995, entretanto, ao tratar da competência territorial em seu art. 63, diz que ela
será determinada pelo local em que foi praticada a infração penal:

Art. 63. A competência do Juizado será determinada pelo lugar em que foi praticada a

infração penal.

O problema é que o “praticada” a que se refere a lei não é algo muito claro, havendo os mais
diversos entendimentos. Há quem diga que a expressão significaria a conduta (local da ação
ou omissão), a consumação etc. Prevalece, entretanto, a ideia que a competência territorial
do JECRIM pode ser fixada com base tanto no local da conduta quanto no do resultado. Ou
seja, para a fixação da competência do JECRIM aplica-se a teoria da ubiquidade.

8 – Lavratura de Termo Circunstanciado

A Lei 9.099/1995 surge para simplificar o processo e o julgamento das infrações de menor
potencial ofensivo. Da mesma forma, ela busca simplificar o instrumento de investigação,
para torná-lo também menos moroso.

Termo circunstanciado é um relatório sumário da infração, que contém a identificação das


partes envolvidas, a menção ao delito praticado e a indicação de provas e testemunhas. Na
prática, acaba sendo um boletim de ocorrência, com outro nome.

A grande discussão diz respeito a quem pode lavrar o termo circunstanciado. Em tese,
somente a autoridade policial, no exercício de funções de polícia judiciária, é que pode fazê-
lo. O termo circunstanciado é um ato de investigação, não podendo ser elaborado pela
chamada “polícia ostensiva”, mas somente pela judiciária. Na prática, todavia, em vários

164
estados da federação admite-se a lavratura de TC pela Polícia Militar (ex.: o Provimento nº
758 do CSM/SP determina que “o termo circunstanciado também pode ser lavrado pela
Polícia Militar”)

Em prova para Delegado de Polícia, deve-se sustentar a impossibilidade de que outras


pessoas possam lavrar o termo circunstanciado. Todavia, considerando-se a própria natureza
do procedimento do JECRIM, que veio para simplificar, seria possível que outras polícias
lavrassem o TC, até para desafogar o trabalho do Delegado, para que ele possa se preocupar
com outros crimes mais importantes.

Atenção para a ADI 2862, ajuizada contra esse Provimento. O STF entendeu que ele seria um
ato secundário, daí porque não seria possível sua impugnação por meio de ADI.

É cabível prisão em flagrante em relação à infração de menor potencial ofensivo? O art. 69,
parágrafo único, da Lei 9.099/1995 determina o seguinte:

Art. 69. (...) Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for

imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer,

não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica,

o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou

local de convivência com a vítima. (Redação dada pela Lei nº 10.455, de 13.5.2002)

Grande parte da doutrina entende que a parte final do dispositivo não tem mais aplicação,
em virtude do dispositivo que veda a aplicação da Lei 9.099/1995 aos crimes praticados com
violência doméstica.

O disposto no parágrafo único do art. 69 não significa que o crime será praticado e nada será
feito contra o autor do crime.

A prisão em flagrante é um procedimento complexo, que começa com a captura do agente.


Nesse momento, surge a questão da utilização das algemas. Capturado o agente, é realizada
a condução coercitiva a uma Delegacia de Polícia. É então lavrado o auto de prisão em
flagrante. Por fim, o sujeito é recolhido à prisão.

Em se tratando de infração de menor potencial ofensivo, o sujeito poderá ser capturado e


conduzido coercitivamente. Todavia, ao invés de ser lavrado um auto de prisão em flagrante,
será lavrado um termo circunstanciado. Tal lavratura, entretanto, está condicionada ao
comparecimento imediato ao Juizado ou à assunção do compromisso de a ele comparecer.

165
Caso o autor não compareça imediatamente ou não assuma o compromisso de comparecer
ao Juizado, deve ser desconsiderada a hipótese de realização de termo circunstanciado,
lavrando-se o auto de prisão em flagrante e recolhendo-se o sujeito à prisão.

Preso em flagrante, a prisão será comunicada ao juiz, que deverá decidir quanto: i) ao
possível relaxamento da prisão ilegal; ii) à concessão da liberdade provisória, com ou sem
fiança, cumulada ou não com mediadas cautelares diversas da prisão; e iii) à conversão da
prisão em flagrante em prisão preventiva, desde que presentes os pressupostos do art. 312
do CPP (em sua nova redação).

9 – Composição civil dos danos (arts. 70 e seguintes da Lei 9.099/1995)

No procedimento do JECRIM, há duas fases distintas: uma preliminar, caracterizada pela


composição civil dos danos e pela transação penal, e outra, a do processo propriamente
dito.

O crime de dano, por exemplo, por ser infração de menor potencial ofensivo, comporta
composição civil de danos (acordo). A homologação desse acordo civil acarreta a renúncia ao
direito de queixa ou de representação (o crime de dano é de ação penal privada). A vítima
negocia com o autor do crime. A vantagem que leva o autor do crime ao realizar a
composição é o fato de não ser processado pelo crime.

Surge a dúvida: cabe composição civil dos danos em crime de ação penal pública
incondicionada? O parágrafo único do art. 74 da Lei 9.099/1995 pode levar a pensar em
solução diversa, mas é perfeitamente possível a composição dos danos civis em crime de
ação penal pública incondicionada:

Art. 74 (...) Parágrafo único. Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação

penal pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao

direito de queixa ou representação.

Todavia, não ocorrerá a extinção da punibilidade. Por isso que essa hipótese é de ocorrência
mais restrita: o autor não tem a punibilidade extinta. Todavia, o fato de haver feito acordo
poderá influir no ânimo do Promotor, notadamente na hora de oferecer transação penal.

Diversamente do disposto no art. 74, parágrafo único, da Lei 9.099/1995, o Código Penal
determina que o recebimento de indenização não importa renúncia tácita ao direito de
queixa.

10 – Oferecimento da representação

166
Relativamente ao oferecimento da representação, o art. 75 da Lei 9.099/1995 complicou
algo que seria aparentemente simples. Não obtida a composição dos danos civis, a lei
determina que a representação deverá ser feita na própria audiência:

Art. 75. Não obtida a composição dos danos civis, será dada imediatamente ao ofendido a

oportunidade de exercer o direito de representação verbal, que será reduzida a termo.

Parágrafo único. O não oferecimento da representação na audiência preliminar não

implica decadência do direito, que poderá ser exercido no prazo previsto em lei.

Daí surgem os problemas: qual a consequência do não comparecimento da vítima a essa


audiência? O não comparecimento à audiência seria uma espécie de renúncia? É válida
representação feita da ocasião da lavratura do termo circunstanciado?

Apesar de o art. 75 dizer que a representação deve ser feita em audiência, tem prevalecido o
entendimento de que eventual representação anteriormente feita perante a autoridade
policial deve ser considerada válida. Não faz sentido que se exija mais formalismo à
representação no JECRIM que o faz o CPP.

O prazo de representação é de 6 meses. Se a representação válida somente pudesse ser


feita em audiência, na maioria dos casos haveria decadência, por conta do abarrotamento
do JECRIM, que marca audiências muito tempo depois da prática do fato.

Caso a vítima não compareça à audiência, essa ausência não importa renúncia ao direito de
representação.

11 – Transação penal (art. 76 da Lei 9.099/1995)

11.1 – Conceito

A transação penal consiste em um acordo celebrado entre o titular da ação penal e o


suposto autor do fato delituoso, por meio do qual é proposta a aplicação imediata de pena
restritiva de direitos ou multa, evitando-se a instauração do processo. É um dos principais
institutos despenalizadores previstos pela Lei 9.099/1995, um grande benefício ao cidadão
que teve na infração penal uma situação episódica de sua vida.

11.2 – Cabimento

A transação penal é cabível a todas as espécies de ação penal? Da leitura do caput do art. 76,
poder-se concluir que ela somente seria cabível em crimes de ação penal pública
incondicionada ou nos crimes de ação penal pública condicionada a representação:

167
Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública

incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a

aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na

proposta. (...)

A discussão diz respeito ao cabimento da transação nos casos de crimes de ação penal
privada. A despeito da letra do caput, os Tribunais Superiores e a doutrina vêm admitindo a
transação nos casos de crimes de ação penal privada. Há doutrinadores que entendem que o
acordo deveria ser realizado pelo MP. Todavia, para Renato, isso é absurdo, pois ele estaria
negociando com algo que não lhe pertence (a ação penal privada).

Por isso, prevalece que a proposta de transação penal deve ser, no caso da ação penal
privada, oferecida pelo querelante/ofendido.

A transação penal é exemplo de mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal


pública. Como visto, em virtude do princípio, presentes prova do crime e indícios de autoria,
o Promotor é obrigado a oferecer denúncia. Essa determinação não se aplica, todavia, no
caso dos Juizados. Isso não significa, entretanto, que o Promotor tenha completa liberdade
para o oferecimento ou não da transação.

Diz-se que, no caso da transação, vige o princípio da discricionariedade regrada: o MP não


tem liberdade para oferecê-la ou não. Presentes os requisitos da lei, ele deve fazê-lo.

Havendo recusa injustificada do MP em oferecer a proposta de transação, o que ocorre?


Com o advento da Lei 9.099/1995, surgiu uma corrente que entendia que a transação seria
um direito subjetivo do acusado, de modo que o juiz deveria aplicar o instituto à revelia do
MP. Esse entendimento não prevaleceu, pois seria uma usurpação da titularidade da ação
penal, que é do MP11. Todavia, a questão não pode ficar ao arbítrio do MP (o acusado não
pode se submeter a eventual excesso/abuso do MP), razão pela qual hoje se entende que
deve ser aplicado, por analogia, o art. 28 do CPP. A Súmula 696 do STF trata desse assunto:

Súmula 696 - REUNIDOS OS PRESSUPOSTOS LEGAIS PERMISSIVOS DA SUSPENSÃO

CONDICIONAL DO PROCESSO, MAS SE RECUSANDO O PROMOTOR DE JUSTIÇA A PROPÔ-

LA, O JUIZ, DISSENTINDO, REMETERÁ A QUESTÃO AO PROCURADOR-GERAL, APLICANDO-

SE POR ANALOGIA O ART. 28 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.

11.3 – Requisitos para a aplicação da transação penal

11
Esse entendimento ainda encontra respaldo na Quinta Turma do STJ (Informativo 513).

168
Para a aplicação da transação penal, devem estar presentes os seguintes requisitos:

i) formulação de proposta pelo titular da ação penal (o juiz não pode concedê-la de ofício);

ii) contravenção penal ou crime com pena máxima não superior a dois anos, cumulada ou
não com multa;

iii) não ter sido o agente beneficiado por outra transação penal no prazo de 5 anos:

Quem realiza transação continua sendo considerado primário. Todavia, pelos próximos 5
anos, o sujeito não pode receber o mesmo benefício.

iv) não ter sido o autor condenado pela prática de crime (cuidado com a pegadinha de
concurso: trata-se de crime, não contravenção) a pena privativa de liberdade (cuidado
também: não vale a regra em se tratando de multa ou restritiva de direitos) por sentença
com trânsito em julgado;

v) não ser caso de arquivamento do termo circunstanciado (art. 76, caput, da Lei
9.099/1995):

Somente é possível se cogitar de aceitar transação penal se se visualiza a possibilidade de


oferecimento de denúncia. O problema prático que ocorre no JECRIM é a “linha de
produção”. Muitas vezes, ocorre a formulação de proposta de transação em casos que
sequer era possível o oferecimento de denúncia. Na prática, a pessoa se vê intimidada a
aceitar a transação pelo fato de poder responder pelo processo, mesmo não tendo praticado
o crime.

vi) antecedentes, conduta social, personalidade e circunstâncias favoráveis:

O MP afere esses requisitos autorizadores no caso concreto.

vii) aceitação da proposta pelo autor do fato delituoso e por seu advogado (art. 76, § 3º):

Art. 76 (...) § 3º Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será submetida à

apreciação do Juiz.

Em se tratando de advogado dativo ou Defensor Público, havendo discordância entre a


aceitação do suposto autor e o patrono do réu, deve prevalecer a vontade do autor do fato
delituoso. Não é o mesmo raciocínio aplicável aos recursos, em que prevalece a vontade de
quem quiser recorrer (em virtude do princípio da non reformatio in pejus).

169
Como, no caso do Juizado, pode haver a sujeição do autor do fato a um processo penal, deve
prevalecer a vontade dele. E mais: o art. art. 89, § 7º, da Lei 9.099/1995, que trata da
suspensão condicional do processo, determina expressamente que o processo seguirá, se o
acusado não aceitar a proposta feita pelo MP:

Art. 89 (...) § 7º Se o acusado não aceitar a proposta prevista neste artigo, o processo

prosseguirá em seus ulteriores termos.

Claro que essa discussão não vale ao advogado constituído, pela própria natureza negocial
do mandato outorgado (que pode ser desconstituído a qualquer tempo).

11.4 – Descumprimento injustificado da transação penal

O que ocorre se o sujeito descumpre injustificadamente as imposições da transação penal?

Em se tratando de pena de multa, é possível que ela seja inscrita como dívida ativa e
regularmente cobrada (arts. 84 e 85 da Lei 9.099/1995):

Art. 84. Aplicada exclusivamente pena de multa, seu cumprimento far-se-á mediante

pagamento na Secretaria do Juizado.

Parágrafo único. Efetuado o pagamento, o Juiz declarará extinta a punibilidade,

determinando que a condenação não fique constando dos registros criminais, exceto para

fins de requisição judicial.

Art. 85. Não efetuado o pagamento de multa, será feita a conversão em pena privativa da

liberdade, ou restritiva de direitos, nos termos previstos em lei.

Atenção! Para a doutrina, o não pagamento da multa não autoriza a conversão em pena
privativa de liberdade, sendo que o art. 85 da Lei dos Juizados foi tacitamente revogado pela
nova redação do art. 51 do Código Penal, dada pela Lei 9.268/1996:

Art. 51 - Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será considerada dívida

de valor, aplicando-se-lhes as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda

Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição.

(Redação dada pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996)

No caso de descumprimento de transação penal em que tenha sido acordada pena restritiva
de direito, há duas correntes:

1ª corrente: não é possível o oferecimento de denúncia, pois, havendo a


homologação da proposta de transação penal, essa decisão faria coisa julgada formal

170
e material. Esse é o motivo pelo qual muitos juízes não homologavam o acordo até o
cumprimento total das condições fixadas. A solução que essa corrente dá é a imediata
conversão da pena para privativa de liberdade. Todavia, essa solução é descabida, pois
prevê, por via reflexa, a imediata conversão da condição prevista na transação para
prisão, sem o oferecimento de denúncia.

2ª corrente: é possível o oferecimento de denúncia quando descumpridas as cláusulas


da transação penal, pois a homologação do acordo não faz coisa julgada material (STF
RE 602.072). Esta é a posição majoritária.

11.5 – Transação penal e prescrição

Ao contrário da suspensão condicional do processo, que é causa de suspensão da prescrição


(art. 89, § 6º), a celebração da transação penal não interrompe nem suspende a prescrição.

12 – Procedimento sumaríssimo

Procedimento sumaríssimo é o previsto na Lei 9.099/1995. Quando foi criado (em 1995) era
realmente bem célere. Hoje, com o procedimento comum, as celeridades se equivaleram
(ou deveriam, pelo menos).

12.1 – Oferecimento da peça acusatória

O oferecimento da peça acusatória não é a única opção que tem o MP. Antes de chegar a
esse ponto, o Promotor/Procurador tem outras três opções:

i) promoção de arquivamento:

Ocorrerá a promoção de arquivamento, por exemplo, no caso de o MP entender que a


conduta é atípica.

ii) devolução dos autos à polícia, com requisição de diligências complementares, para o
esclarecimento de fatos importantes;

iii) solicitação do encaminhamento dos autos ao juízo comum, em virtude da complexidade


da causa, que, como visto, é um motivo de afastamento da competência do JECRIM.

A última opção que tem o MP é o oferecimento da peça acusatória. No JECRIM, ela tem uma
peculiaridade: pode ser apresentada por petição escrita ou oralmente. A peça oral será, por
óbvio, reduzida a termo pelo escrivão (art. 77 da Lei 9.099/1995):

Art. 77. Na ação penal de iniciativa pública, quando não houver aplicação de pena, pela

171
ausência do autor do fato, ou pela não ocorrência da hipótese prevista no art. 76 desta

Lei, o Ministério Público oferecerá ao Juiz, de imediato, denúncia oral, se não houver

necessidade de diligências imprescindíveis. (...)

Renato, entretanto, nunca viu denúncia apresentada oralmente.

O art. 77, § 1º, dispensa o inquérito policial para o oferecimento da denúncia (haverá uma
investigação mais célere):

Art. 77 (...) § 1º Para o oferecimento da denúncia, que será elaborada com base no termo

de ocorrência referido no art. 69 desta Lei, com dispensa do inquérito policial, prescindir-

se-á do exame do corpo de delito quando a materialidade do crime estiver aferida por

boletim médico ou prova equivalente. (...)

Além disso, o dispositivo determina que para o oferecimento da denúncia, prescindir-se-á do


exame de corpo de delito, desde que a materialidade do crime esteja aferida por boletim
médico ou prova equivalente. Surge a dúvida: a dispensa do exame de corpo de delito é
válida só para o oferecimento da denúncia ou também para a prolação da sentença?

A leitura que a maioria faz é que, para o oferecimento da denúncia, não há necessidade de
exame de corpo de delito, caso a prova da materialidade esteja comprovada por boletim
médico ou equivalente (a rigor, no procedimento comum, a ideia é exatamente a mesma).
No entanto, ainda que haja entendimento diverso, prevalece na doutrina que no momento
da sentença deve ser juntado o exame de corpo de delito.

Renato sustenta a dispensabilidade do exame de corpo de delito, admitindo que a sentença


reconheça a comprovação da materialidade por boletim médico, em consonância com a
celeridade e simplificação que se espera desse procedimento sumaríssimo.

12.2 – Citação do acusado

Da mesma forma que ocorre com o procedimento comum, a citação nos Juizados deve ser
pessoal (pelo menos em regra), desde que o acusado esteja presente (tenha comparecido à
audiência preliminar) no próprio JECRIM. Caso não esteja presente, o acusado será citado
por mandado. O art. 78, caput, como se percebe, parte do pressuposto que o acusado estará
presente:

Art. 78. Oferecida a denúncia ou queixa, será reduzida a termo, entregando-se cópia ao

acusado, que com ela ficará citado e imediatamente cientificado da designação de dia e

hora para a audiência de instrução e julgamento, da qual também tomarão ciência o

172
Ministério Público, o ofendido, o responsável civil e seus advogados.

§ 1º Se o acusado não estiver presente, será citado na forma dos arts. 66 e 68 desta Lei e

cientificado da data da audiência de instrução e julgamento, devendo a ela trazer suas

testemunhas ou apresentar requerimento para intimação, no mínimo cinco dias antes de

sua realização. (...)

Cuidado, pois nos Juizados não há a possibilidade de citação por edital. Por conta disso, se o
acusado não for encontrado, os autos serão encaminhados ao juízo comum.

Cabe citação com hora certa nos Juizados? Como visto, a orientação do FONAJE (Fórum
Nacional dos Juizados Especiais Criminais) é de que ela é possível. Ocorre quando o acusado
se oculta para não ser citado.

Ainda que se sejam hipóteses excepcionais, a doutrina também admite a citação por
precatória e por carta rogatória. No caso de necessidade de expedição de rogatória, o prazo
prescricional fica suspenso até o seu cumprimento, como determina o art. 368 do CPP:

Art. 368. Estando o acusado no estrangeiro, em lugar sabido, será citado mediante carta

rogatória, suspendendo-se o curso do prazo de prescrição até o seu cumprimento.

(Redação dada pela Lei nº 9.271, de 17.4.1996)

12.3 – Apresentação de defesa preliminar

O acusado é citado para apresentação de defesa preliminar. Trata-se de peça apresentada


pela defesa antes do recebimento da peça acusatória, ou seja, antes de o magistrado decidir
se receberá ou não a denúncia (arts. 79 e 81 da Lei 9.099/1995):

Art. 79. No dia e hora designados para a audiência de instrução e julgamento, se na fase

preliminar não tiver havido possibilidade de tentativa de conciliação e de oferecimento de

proposta pelo Ministério Público, proceder-se-á nos termos dos arts. 72, 73, 74 e 75 desta

Lei.

A razão pela qual a lei prevê que a denúncia não deve ter ainda sido recebida, é possibilitar
uma nova tentativa de conciliação (transação penal). Aberta a audiência, tem o advogado a
possibilidade de tentar convencer o juiz de que não é o caso de recebimento:

Art. 81. Aberta a audiência, será dada a palavra ao defensor para responder à acusação,

após o que o Juiz receberá, ou não, a denúncia ou queixa; havendo recebimento, serão

ouvidas a vítima e as testemunhas de acusação e defesa, interrogando-se a seguir o

acusado, se presente, passando-se imediatamente aos debates orais e à prolação da

173
sentença. (...)

O grande problema aqui surge quando se analisa o disposto no art. 394, § 4º, do CPP. Ele
determina que as disposições dos arts. 395 a 398 (que dispõem sobre a rejeição da denúncia
e a absolvição sumária) se aplicam a todos os procedimentos penais de primeiro grau,
mesmo que não regulados pelo CPP:

Art. 394 (...) § 4º As disposições dos arts. 395 a 398 deste Código aplicam-se a todos os

procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste Código. (Incluído

pela Lei nº 11.719, de 2008).

Hoje, o CPP passou a prever a possibilidade de absolvição sumária. Não há critério razoável
que justifique a não aplicação do dispositivo nos Juizados. Na verdade, a grande discussão
diz respeito ao cabimento da absolvição sumária no procedimento previsto na Lei de Drogas,
que não é o foco aqui.

No âmbito dos juizados, portanto, a defesa preliminar será mista: tentará, em primeiro lugar
a rejeição da peça acusatória (art. 395 do CPP). Subsidiariamente, buscará uma possível
absolvição sumária (art. 397 do CPP).

Uma vez apresentada a defesa preliminar abrem-se ao magistrado duas possibilidades:

i) rejeição da peça acusatória;

ii) recebimento da peça acusatória:

Se o juiz entender que a peça acusatória preenche seus requisitos, ele proferirá o
recebimento da peça acusatória.

Recebida a peça acusatória, abrem-se outras duas possibilidades: absolvição sumária, com
base em um dos motivos do art. 397, ou início da instrução e julgamento do processo.

12.3 – Sistema recursal

No JECRIM, quem faz as vezes de juízo ad quem é a chamada Turma Recursal, composta por
três juízes que atuam na primeira instância. Se não houver Turma Recursal devidamente
instalada, quem apreciará o recurso contra decisão proferida no JECRIM será o respectivo
tribunal (estadual ou federal, conforme o caso).

12.3.1 – apelação

174
No procedimento comum, o recurso contra a rejeição da peça acusatória é o RESE (art. 581,
I, do CPP):

Art. 581. Caberá recurso, no sentido estrito, da decisão, despacho ou sentença:

I - que não receber a denúncia ou a queixa; (...)

Entretanto, a Lei 9.099/1995 prevê que o recurso, nesse caso, é a apelação. No CPP, a
interposição de apelação tem prazo de 5 dias, podendo as razões ser apresentadas em 8
dias. No JECRIM, o prazo para o oferecimento da apelação é de 10 dias, sendo que a petição
de interposição já deve estar acompanhada das razões recursais. Trata-se de pequena
peculiaridade do JECRIM, que justifica o prazo maior de 10 dias em procedimento mais
célere.

Se o advogado deixa de apresentar as razões (algo que ocorre muito), prevalece o


entendimento segundo o qual se trata de uma mera irregularidade, que pode ser suprida
pela parte (STF HC 85.344). Cuidado, pois há, no próprio STF, julgados mais antigos segundo
os quais a não apresentação das razões seria causa de não recebimento do recurso.

Nos Juizados, as hipóteses de cabimento da apelação são as seguintes:

i) contra rejeição da peça acusatória;

ii) contra sentença homologatória da transação penal;

iii) contra sentença de mérito.

12.3.2 – embargos de declaração

Acerca dos embargos de declaração no JECRIM, deve-se atentar para as diferenças entre os
procedimentos previstos no art. 83 da Lei 9.099/1995 e no art. 382 do CPP (procedimento
comum):

Art. 382 do CPP Art. 83 da Lei 9.099/1995


O prazo para interposição é de 2 dias. O prazo para interposição é de 5 dias.
Não há previsão de forma de interposição. Poderão ser opostos por petição escrita ou
oralmente.
São cabíveis nas hipóteses de obscuridade, São cabíveis quando ficar caracterizada
ambiguidade, contradição ou omissão. obscuridade, contradição, omissão ou dúvida.
A interposição interrompe o prazo para outros Quando opostos contra sentença, há suspensão
recursos (o prazo zera), salvo no caso de do prazo para outros recursos (observe que o
embargos manifestamente procrastinatórios. prazo não é zerado). Quando opostos contra

175
acórdão de Turma Recursal, eles interrompem o
prazo para outros recursos, na medida em que a
Lei 9.099/1995 fala somente em “sentença”.

Renato já viu prova de concurso cobrar essa diferença: “ambiguidade”, no CPP, e “dúvida”.
Trata-se da mesma coisa, pois a ambiguidade é geradora de dúvida.

12.3.3 – recursos extraordinários

Cabe Recurso Especial ou Extraordinário no JECRIM?

O art. 102, III, da CR fala em “causas decididas em única ou última instância”, não fazendo
menção à natureza do órgão jurisdicional de onde provém a decisão:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da

Constituição, cabendo-lhe: (...)

III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última

instância, quando a decisão recorrida: (...)

Por sua vez, o art. 105, III, da CR, fala especificamente em decisões proferidas pelo TRF ou
pelos tribunais dos estados e do DF:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: (...)

III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos

Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e

Territórios, quando a decisão recorrida:

Lembre que, no caso dos Juizados, as decisões são proferidas por uma Turma Recursal (pelo
menos em tese). Assim, o recurso extraordinário é plenamente cabível no âmbito do
JECRIM, pois a CR refere-se somente a única ou última instância. O REsp, por sua vez, não é
cabível, por pressupor decisão proferida por TRF ou TJ.

Se a decisão, todavia, tiver sido proferida por tribunal (onde não haja Turma Recursal),
poder-se-á cogitar, ao menos em tese, de Recurso Especial. Hoje, essa hipótese é de difícil
verificação, em virtude da proliferação de Turmas Recursais pelo país.

12.3.4 – habeas corpus

Se o HC é impetrado contra decisão proferida por juiz do juizado, será competente a Turma
Recursal. Entretanto, quem decide eventual HC contra decisão de Turma Recursal?

176
A Súmula 690 do STF diz que o julgamento cabe ao próprio STF, que por muito tempo teve
como característica a concentração de competência:

Súmula 690 - COMPETE ORIGINARIAMENTE AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL O

JULGAMENTO DE "HABEAS CORPUS" CONTRA DECISÃO DE TURMA RECURSAL DE

JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS.

Essa exigência da Súmula, entretanto, é desarrazoada. Deve-se tomar cuidado com ela, em
especial em concurso elaborado pela UNB, pois ela está ultrapassada. O STF mudou a sua
orientação a partir do HC 86.834. Hoje, eventual HC contra a decisão da Turma Recursal será
julgado pelo TJ ou TRF, a depender da justiça competente.

12.4 – Revisão criminal

Cabe revisão criminal contra as decisões proferidas no JECRIM?

A Lei 9.099/1995 não fala, em momento algum, em revisão criminal. No entanto, o seu art.
92 permite a aplicação subsidiária de dispositivos do CPP não incompatíveis com ela:

Art. 92. Aplicam-se subsidiariamente as disposições dos Códigos Penal e de Processo

Penal, no que não forem incompatíveis com esta Lei.

Em razão disso, entende-se que cabe revisão criminal no procedimento sumaríssimo. É


errado concluir que não seria cabível a revisão por não caber ação rescisória nos Juizados
(art. 59):

Art. 59. Não se admitirá ação rescisória nas causas sujeitas ao procedimento instituído por

esta Lei.

Quem julga a revisão criminal é a própria Turma Recursal (STJ CC 47.718).

13 – Suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/1995)

13.1 – Conceito

A suspensão condicional do processo é um instituto despenalizador por meio do qual se


permite a suspensão do processo por um período de prova, que varia de 2 a 4 anos, desde
que o acusado preencha certas condições objetivas e subjetivas.

Na prática, em muitos casos, ela acaba sendo melhor que a transação penal. Na transação,
faz-se um acordo com o MP que envolve o cumprimento de pena (multa ou restrição de
direitos). A suspensão é melhor, pois a lei não prevê o cumprimento de pena, somente a

177
imposição de restrições (proibição de frequentar determinados lugares, comparecimento ao
juízo, reparação do dano).

13.2 – Cabimento

Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano,

abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá

propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja

sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais

requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).

(...)

Para ser cabível a suspensão condicional do processo, devem estar presentes os seguintes
requisitos, previstos no art. 89, caput:

i) pena mínima igual ou inferior a um ano:

Para ser possível a suspensão condicional do processo, a pena mínima cominada ao delito
deve ser igual ou inferior a um ano. Esses crimes são chamados, por alguns doutrinadores,
“infrações de médio potencial ofensivo”.

O fato de a suspensão estar prevista na Lei dos Juizados não significa que ela seja cabível só
nos crimes de competência dos Juizados. Na verdade, ela é cabível a qualquer infração em
que a pena cominada seja igual ou inferior a um ano (ex.: furto, em que a proposta de
suspensão condicional do processo é feita no juízo comum). Lembre que, como visto, não
cabe o instituto despenalizador nos casos de crimes praticados com violência doméstica ou
familiar contra a mulher.

O STF entende que quando a pena de multa estiver cominada de maneira alternativa (algo
muito raro, pois em geral ela vem de maneira cumulativa), será cabível a suspensão, mesmo
que a pena mínima seja superior a um ano. O caso concreto decidido pelo STF foi o do art. 5º
da Lei 8.137/1990 (pena de detenção de 2 a 5 anos ou multa), o qual, inclusive, foi revogado:

Art. 5º Constitui crime da mesma natureza: (Revogado pela Lei nº 12.529, de 2011).

I - exigir exclusividade de propaganda, transmissão ou difusão de publicidade, em

detrimento de concorrência; (...)

Pena - detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.

ii) não estar o beneficiado sendo processado nem ter sido condenado por outro crime:

178
A Lei 9.099/1995 fala em “outro crime”. Cuidado, entretanto, pois os examinadores
substituem pela palavra “contravenção” penal. Alguns doutrinadores entendem que vedar o
benefício por estar o sujeito sendo processado violaria o princípio da presunção de
inocência. Essa posição, todavia, é minoritária. Por ser a suspensão condicional do processo
um grande benefício, não pode também o sujeito estar sendo processado pela prática de
outro crime.

Quanto à condenação anterior por outro crime, ainda que não esteja expresso em lei, deve-
se levar em consideração o lapso temporal de cinco anos da reincidência. Assim, se o sujeito
já tiver sido condenado por outro crime, mas já houver transcorrido o lapso da reincidência,
é cabível a suspensão condicional do processo.

iii) aferição pelo MP da presença dos demais requisitos que autorizam a suspensão
condicional da pena (art. 77 do Código Penal):

Art. 77 - A execução da pena privativa de liberdade, não superior a 2 (dois) anos, poderá

ser suspensa, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que:

I - o condenado não seja reincidente em crime doloso;

II - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem

como os motivos e as circunstâncias autorizem a concessão do benefício;

III - Não seja indicada ou cabível a substituição prevista no art. 44 deste Código. (...)

13.3 – Iniciativa para a suspensão condicional do processo

Como visto, entendia-se, num primeiro momento, que o juiz poderia conceder de ofício a
transação e a suspensão condicional do processo. Sustentou-se, quando do advento da lei,
que se tratava de direito subjetivo do acusado. Esse entendimento, entretanto, está
superado, apesar de ainda se verificar na Quinta Turma do STJ (Informativo 513). Hoje é
pacífico que o benefício não pode ser concedido de ofício pelo juiz (Súmula 696 do STF):

Súmula 696 - REUNIDOS OS PRESSUPOSTOS LEGAIS PERMISSIVOS DA SUSPENSÃO

CONDICIONAL DO PROCESSO, MAS SE RECUSANDO O PROMOTOR DE JUSTIÇA A PROPÔ-

LA, O JUIZ, DISSENTINDO, REMETERÁ A QUESTÃO AO PROCURADOR-GERAL, APLICANDO-

SE POR ANALOGIA O ART. 28 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.

Se o juiz não concordar com o fato de o MP não oferecer a proposta, ele aplica o princípio da
devolução (art. 28 do CPP, por analogia).

13.4 – Cabimento da suspensão condicional do processo em crimes de ação penal


privada

179
O art. 89 da Lei 9.099/1995, quando trata da proposta de suspensão, fala apenas no MP. Em
razão disso, teoricamente, pela letra da lei, somente seria cabível o benefício nos casos de
ação penal de natureza pública.

Aqui, vale a mesma observação feita a respeito da transação. A doutrina começou a apontar
que não faz sentido excluir a possibilidade de suspensão condicional do processo dos crimes
de ação penal privada. A primeira condição do benefício é a reparação do dano (art. 89, § 1º,
I), e, muitas vezes, o que mais interessa à vítima do crime de ação penal privada é
justamente a reparação do dano:

Art. 89 (...) § 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este,

recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período

de prova, sob as seguintes condições:

I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo; (...)

Assim, apesar de a redação do art. 89, fazer menção apenas à ação penal pública, tem-se
admitido a suspensão em crimes de ação penal privada, desde que a proposta seja
formulada pelo querelante. Cuidado, pois há doutrinador que diz que a proposta poderia ser
formulada pelo MP, o que Renato considera um absurdo, pois o MP estaria transigindo com
algo que não é dele (STF HC 81.720).

13.5 – Prévio recebimento da peça acusatória

Para a suspensão condicional do processo, deve a denúncia ter sido recebida, pois antes dela
não há que se cogitar de processo. Na ocasião do oferecimento da denúncia, verificando o
preenchimento dos requisitos, o MP oferece também a proposta de suspensão condicional
do processo.

O juiz pode rejeitar ou receber a denúncia. Em virtude das recentes alterações do CPP,
recebida a denúncia, ele deve, antes de qualquer coisa, verificar a hipótese de possível
absolvição sumária. O fato de o benefício ser possível não pode, de modo algum, inviabilizá-
la. Se não for caso de absolvição sumária, o juiz marca audiência para tratar da proposta de
suspensão condicional.

13.6 – Condições da suspensão condicional do processo

A lei não fala no cumprimento de pena como condição para a suspensão condicional do
processo, de modo que, em princípio, não poderia ser negociado tal cumprimento. Todavia,
na prática, na grande maioria dos casos, sabendo o enorme poder de barganha que tem em

180
virtude do benefício, o MP negocia o cumprimento de penas, seja de multa, seja de restritiva
de direitos. O réu acaba aceitando o cumprimento como condição, para evitar o processo.

As condições estão previstas no art. 89, §§ 1º e 2º:

Art. 89 (...) § 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este,

recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período

de prova, sob as seguintes condições:

I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo;

II - proibição de frequentar determinados lugares;

III - proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz;

IV - comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar

suas atividades. (...)

O § 2º determina que o juiz pode especificar outras condições a que fica subordinada a
suspensão:

Art. 89 (...) § 2º O Juiz poderá especificar outras condições a que fica subordinada a

suspensão, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado. (...)

Analisando-se casos concretos, percebem-se verdadeiras monstruosidades praticadas. O


acusado “de bem”, que nunca foi processado, muitas vezes acaba topando qualquer coisa.
Ex.: em casos de crime culposo, imposição de proposta de doação de sangue; submissão de
médico ou advogado a varrer o fórum ou hospital, em casos em que eles poderiam atuar de
maneira que mais se coadunasse com suas formações.

A Quinta Turma do STJ permite a imposição de prestação de serviços à comunidade ou de


prestação pecuniária como condição especial para a concessão do benefício da suspensão
condicional do processo, desde que observados os princípios da adequação e da
proporcionalidade. (RHC 31.283-ES, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 11/12/2012,
Informativo 512).

13.7 – Causas de revogação da suspensão

Há causas de revogação da suspensão de natureza obrigatória e facultativa:

i) causas de revogação de natureza obrigatória (art. 89, § 3º):

Art. 89 (...) § 3º A suspensão será revogada se, no curso do prazo, o beneficiário vier a ser

processado por outro crime ou não efetuar, sem motivo justificado, a reparação do dano.

181
O dispositivo, ao prever a obrigatoriedade da revogação se o beneficiário vier a ser
processado por novo crime, suscita a mesma discussão acerca da eventual violação ao
princípio da presunção de inocência. Todavia, prevalece que o grande benefício da
suspensão justifica o estreitamento das hipóteses de cabimento e a obrigatoriedade da
revogação.

ii) causas de revogação de natureza facultativa (art. 89, § 4º):

Art. 89 (...) § 4º A suspensão poderá ser revogada se o acusado vier a ser processado, no

curso do prazo, por contravenção, ou descumprir qualquer outra condição imposta.

13.8 – Extinção da punibilidade

Findo o período de prova (que pode variar de 2 a 4 anos, como visto), o juiz declarará a
extinção da punibilidade.

Para os tribunais, é possível a revogação da suspensão mesmo após o fim do período de


prova. O caso mais comum é o daquele em que se percebe que o acusado está sendo
processado pela prática de outro crime durante o período (STF HC 97.527 e Informativo
513).

Isso porque, na prática, durante o período de prova, exceto no caso de comparecimento


periódico, não há controle do cumprimento das condições impostas. Antes da extinção da
punibilidade, o juiz e o MP costumam pedir a folha de antecedentes e, nessa hipótese, pode
ocorrer de ser verificada a prática de crime durante o período de prova.

Assim, a extinção da punibilidade não ocorre automaticamente com o decurso do período de


prova.

13.9 – Suspensão da prescrição

Nos processos penais, a sequência temporal é a seguinte: num primeiro momento haverá o
recebimento da denúncia, o qual interrompe a prescrição, zerando o prazo. Depois, há a
aceitação da proposta de suspensão. Uma vez aceita a proposta, ocorre a suspensão da
prescrição (art. 86, § 6º):

Art. 89 (...) § 6º Não correrá a prescrição durante o prazo de suspensão do processo.

13.10 – Recurso contra a decisão que homologa a suspensão condicional do processo

182
O recurso contra a decisão que homologa a suspensão condicional do processo ocorre,
muitas vezes, em casos em que o acusado é mal orientado. Ex.: aceitação de proposta de
suspensão em hipótese de fato atípico.

O art. 581, XI, do CPP, prevê o cabimento de RESE contra a decisão que homologa a
suspensão condicional da pena, e não do processo:

Art. 581. Caberá recurso, no sentido estrito, da decisão, despacho ou sentença: (...)

XI - que conceder, negar ou revogar a suspensão condicional da pena; (...)

Como o dispositivo é anterior à Lei 9.099/1995, surge a discussão: ele pode ser interpretado
no sentido de se permitir a ampliação da hipótese, para abarcar a suspensão condicional do
processo?

Doutrinadores antigos entendem que o recurso cabível deveria ser a apelação. Os tribunais,
todavia, entendem que o caso é de RESE, com base no art. 581, XI. A melhor orientação
quanto ao RESE é no sentido de que o rol do art. 581 admite interpretação extensiva (STJ
RMS 23.516).

13.11 – Cabimento de HC durante o período de suspensão condicional do processo

Durante o período em que o processo está suspenso, é possível a impetração do HC. Como é
sabido, o HC é cabível em casos de perigo de prejuízo à liberdade de locomoção, podendo
ele ser liberatório (caso o sujeito esteja preso) ou preventivo (neste caso, se verifica risco
potencial à liberdade de locomoção).

Durante a suspensão do processo, há causas que podem ensejar a revogação da suspensão,


de modo que, para os tribunais, a aceitação da suspensão condicional do processo não
implica renúncia ao interesse de agir para a impetração de HC.

Esse HC pode ser impetrado, por exemplo, em casos de atipicidade, absolvição sumária,
aplicação do princípio da insignificância etc. (RHC 82.365).

13.12 – Desclassificação do delito e suspensão condicional do processo

Imagine a seguinte situação: um sujeito é denunciado por furto qualificado, que tem pena de
2 a 8 anos. Veja que não cabe suspensão condicional do processo, de modo que não houve a
proposta. Oferecida a denúncia, o juiz entende que não ficou provada a prática do furto pela
escalada (qualificadora). Ainda é possível a concessão da suspensão condicional do processo
ao acusado, no final do processo?

183
A jurisprudência entende que a suspensão pode ser concedida diante da desclassificação da
imputação. O juiz, na hora de proferir a decisão, se deparará com a seguinte situação: ele
exclui a qualificadora, desclassificando o crime, mas não pode prosseguir sentenciando,
justamente em virtude da possibilidade de oferecimento do benefício. Por conta disso, ele
tem de fazer uma “pausa”, pois ele não pode conceder a suspensão de ofício (e não faz
sentido condenar). O juiz tem de proferir, desse modo, decisão interlocutória,
desclassificando o delito e abrir vista ao MP, para que, se o caso, concorde com a
desclassificação e formule proposta de suspensão.

Acerca desse tema, ver a Súmulas 337 do STJ e o art. 383, § 1º, do CPP:

Súmula 337 - É cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e

na procedência parcial da pretensão punitiva.

Art. 383 (...) § 1º Se, em consequência de definição jurídica diversa, houver possibilidade

de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o

disposto na lei. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

13.13 – Suspensão condicional do processo em crimes ambientais e nos casos de


violência doméstica e familiar contra a mulher

O art. 28 da Lei 9.605/1998 prevê a aplicação da suspensão condicional do processo, mas


com algumas peculiaridades:

Art. 28. As disposições do art. 89 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, aplicam-se

aos crimes de menor potencial ofensivo definidos nesta Lei, com as seguintes

modificações:

I - a declaração de extinção de punibilidade, de que trata o § 5º do artigo referido no

caput, dependerá de laudo de constatação de reparação do dano ambiental, ressalvada a

impossibilidade prevista no inciso I do § 1º do mesmo artigo;

II - na hipótese de o laudo de constatação comprovar não ter sido completa a reparação,

o prazo de suspensão do processo será prorrogado, até o período máximo previsto no

artigo referido no caput, acrescido de mais um ano, com suspensão do prazo da

prescrição;

III - no período de prorrogação, não se aplicarão as condições dos incisos II, III e IV do § 1º

do artigo mencionado no caput;

IV - findo o prazo de prorrogação, proceder-se-á à lavratura de novo laudo de constatação

de reparação do dano ambiental, podendo, conforme seu resultado, ser novamente

prorrogado o período de suspensão, até o máximo previsto no inciso II deste artigo,

184
observado o disposto no inciso III;

V - esgotado o prazo máximo de prorrogação, a declaração de extinção de punibilidade

dependerá de laudo de constatação que comprove ter o acusado tomado as providências

necessárias à reparação integral do dano.

Quando for declarar a extinção da punibilidade, o juiz deve aferir se houve a completa
reparação do dano ambiental (inciso I). Não tendo havido a reparação completa, o juiz
prorroga o período de prova por até 4 anos (período máximo), acrescido de mais um ano (ou
seja, 5 anos, no total), com suspensão do prazo de prescrição (inciso II).

Com base no inciso IV, o prazo pode ser prorrogado, em tese, por mais 5 anos: o prazo de
prorrogação máximo pode ser, portanto, de até 10 anos.

Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, como visto, não se aplica a lei
9.099/1995, por força do art. 41 da Lei Maria da Penha. A suspensão condicional do
processo vinha sendo aplicada, nesses casos, mas o STF, julgando caso concreto, entendeu
que o art. 41 é constitucional.

185
LEI DE INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA (LEI 9.296/1996)

1 – Requisitos constitucionais para a interceptação telefônica

A Lei 9.296/1996 regulamenta o art. 5º, XII, da CR. A Constituição autoriza a interceptação
telefônica e de dados, mas desde que presentes três requisitos, cumulativamente,
cumpridos os quais ela será legal: i) lei regulamentadora; ii) finalidade de investigação
criminal ou instrução processual penal; e iii) ordem judicial:

Art. 5º (...) XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas,

de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas

hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução

processual penal;

1.1 – Lei regulamentadora

1.1.1 – interceptação telefônica antes da Lei 9.296/1996

A lei regulamentadora deve estabelecer as hipóteses e a forma das interceptações. Trata-se


da Lei 9.296/1996. Veja que a CR é de 1988, mas a lei regulamentadora somente surgiu em
1996. Como se fazia a interceptação telefônica antes de 1996?

Os juízes autorizavam a interceptação com base no art. 57 do Código Brasileiro de


Telecomunicações. O STF e o STJ consideraram todas as interceptações realizadas dessa
forma ilegais (pacífico). Assim, antes da Lei 9.296/1996, todas as interceptações realizadas
são consideradas provas ilícitas. O STF e o STJ decidiram que o art. 5º, XII, da CR, dependia
de regulamentação posterior (ou seja, era uma norma não autoaplicável).

Com o surgimento da lei, restou satisfeito o primeiro requisito constitucional.

1.1.2 – interceptação telefônica de qualquer natureza

O art. 1º da Lei 9.296/1996 regulamenta a “interceptação telefônica de qualquer natureza”:

Art. 1º A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova

em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei

e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça.

Parágrafo único. O disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de comunicações

em sistemas de informática e telemática.

186
Importante, neste ponto, trabalhar seis diferentes conceitos:

i) interceptação telefônica (ou interceptação telefônica em sentido estrito):

Trata-se da captação da conversa telefônica feita por um terceiro, sem o conhecimento de


ambos os interlocutores. Ex.: a Polícia Federal realizando a interceptação da conversa de
dois criminosos.

ii) escuta telefônica:

É a captação da conversa telefônica, feita por um terceiro, com o conhecimento de um dos


interlocutores. A diferença entre a escuta e a interceptação é que, nesta, nenhum dos dois
sabe da interceptação.

iii) gravação telefônica (ou clandestina):

Trata-se da captação da conversa telefônica, feita por um dos interlocutores da conversa,


sem o conhecimento do outro.

iv) interceptação ambiental:

A interceptação ambiental é o mesmo conceito de interceptação telefônica, aplicada à


conversa ambiente, ou seja, é a captação da conversa ambiente feita por um terceiro sem o
conhecimento dos interlocutores.

v) escuta ambiental:

Escuta ambiental é o mesmo conceito da escuta telefônica, aplicada à conversa ambiente,


ou seja, é a captação da conversa ambiente feita por um terceiro, sem o conhecimento de
um, mas com o conhecimento do outro interlocutor.

vi) gravação ambiental (ou clandestina):

Gravação ambiental é o mesmo conceito da gravação telefônica, aplicado à conversa


ambiente. Ou seja, é a captação da conversa ambiente feita por um dos interlocutores da
conversa.

A regra de jurisprudência do STF e STJ é a seguinte: a Lei 9.296/1996 somente se aplica às


situações “i” e “ii” (interceptação telefônica em sentido estrito e escuta telefônica), pois
somente nelas existe uma comunicação telefônica e um terceiro interceptador.

A lei não se aplica às situações “iii”, “iv”, “v” e “vi”. Na gravação telefônica, não há o terceiro
interceptador, ou seja, a conversa é gravada por um dos próprios interlocutores; na

187
interceptação, gravação e escuta ambientais, como o próprio nome já diz, não há
comunicação telefônica, mas somente uma conversa ambiente.

Essa regra de jurisprudência, vez ou outra, admite exceções. Os julgados têm sido muito
casuísticos. Ex.: na operação “Castelo de Areia”, a prova foi considerada ilícita, mas há vários
julgados dizendo que, em situações iguais, a prova seria lícita.

Para o STF, nas hipóteses “iii”, “iv”, “v” e “vi” a prova é lícita, mesmo se captada sem ordem
judicial, salvo se se tratar de conversa íntima (assunto exclusivo da vida privada da pessoa).

Casuística:

i) Ação Penal 447:

Neste caso, o Secretário Municipal de Transportes gravou conversa telefônica com o


Prefeito, cuja defesa alegou que a prova seria ilegal, pois a gravação telefônica teria sido
feita sem ordem judicial. O Pleno do STF decidiu que a gravação telefônica é clandestina,
porque feita sem o conhecimento do Prefeito, mas é um prova lícita, porque não se submete
aos requisitos da Lei 9.296/1996.

ii) um marido traído gravou a conversa da esposa para provar determinada traição. Na
conversa, ela confessou a prática de crimes. O STJ declarou a prova ilícita, por violação à
intimidade (art. 5º, X, da CR).

iii) gravação ambiental feita pela polícia para obter confissão:

Um Delegado chamou o criminoso, pediu a ele que esclarecesse o crime, apontasse os


culpados etc. e informou que ele poderia ir embora, sem assinar nada. O Delegado estava
gravando a conversa (gravação ambiental para obter a confissão) e o MP fez a denúncia. O
STF decidiu que, nesse caso, a prova era ilícita, por se tratar de forma de interrogatório
clandestino, realizado sem as formalidades e garantias legais e constitucionais. Ou seja, o
infrator nem sabe que está se incriminando.

iv) interceptação das comunicações telefônicas do advogado:

As conversas entre o advogado e o indiciado ou acusado jamais podem ser utilizadas como
prova. Estão protegidas pelo direito de não se autoincriminar e pelo sigilo profissional do
advogado.

Num caso concreto, a polícia pediu a interceptação de determinado traficante. Foram


gravadas 15 conversas, 10 das quais eram com outros traficantes e 5 com o advogado. A

188
defesa pediu a nulidade de toda a prova. Se, entre as conversas interceptadas do criminoso,
há algumas em que ele falou com o advogado, a interceptação não é inteiramente ilícita.
Nesse caso, são excluídas as conversas com o advogado e as demais são mantidas como
prova válida (STJ). Esse julgado do STJ já caiu em concurso (PR).

As conversas telefônicas do advogado podem ser interceptadas quanto ele for o próprio
indiciado ou acusado. Nesse caso, não há sigilo profissional, pois o advogado não está sendo
interceptado como profissional da advocacia, mas na condição de suspeito ou acusado de
crime. Assim, o STJ e o STF permitem a interceptação telefônica de advogado suspeito ou
criminoso.

1.1.3 – quebra de sigilo telefônico

A quebra de sigilo telefônico significa apenas o acesso às ligações efetuadas e recebidas por
determinada linha telefônica. Ela não permite o acesso ao conteúdo da conversa. Nada mais
é que uma segunda via da conta telefônica detalhada: fornece informações acerca de para
quais números o sujeito ligou, quais as ligações recebidas e os respectivos horários.

É necessária ordem judicial para a quebra do sigilo telefônico, pois envolve direito à
intimidade (art. 5º, X, da CR):

Art. 5º (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das

pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de

sua violação;

1.1.4 – ligações registradas na memória do telefone apreendido

Muitas vezes, a polícia prende o suspeito e apreende o aparelho celular dele. Todo celular
tem o registro das ligações recebidas. A polícia pode utilizar esses números registrados no
aparelho sem ordem judicial? O STJ decidiu que a polícia (ou quem estiver realizando a
investigação, como o MP) pode utilizar nas investigações os números de telefones
registrados na memória do telefone apreendido, sem necessidade de ordem judicial.
Entendeu o Tribunal que a utilização não configura nem interceptação telefônica, nem
quebra de sigilo telefônico, pois não dá acesso a todas as ligações efetuadas e recebidas por
aquela linha.

1.2 – Finalidade de investigação criminal ou instrução processual penal (art. 1º)

Segundo determinam o art. 5º, XII, da CR e o art. 1º da Lei 9.296/1996, a interceptação


telefônica somente pode ter finalidade criminal:

189
Art. 5º (...) XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas,

de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas

hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução

processual penal;

Art. 1º A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova

em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei

e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça. (...)

Segundo a jurisprudência pacífica do STF e do STJ, o juiz pode autorizar a interceptação


antes de formalmente instaurado o inquérito policial. Isso porque tanto a CR quanto a lei
utilizam a expressão “investigação criminal”, que já existe antes de um inquérito policial
instaurado.

Também de acordo com a jurisprudência pacífica do STF e do STJ, a interceptação telefônica


feita na investigação criminal ou na instrução processual penal pode ser utilizada como
prova emprestada em outro processo. Exemplos:

i) interceptação utilizada como prova emprestada em processo administrativo disciplinar


para a demissão de servidor público. Aqui, a interceptação pode ser usada inclusive contra
servidores que não figuraram na investigação ou no processo criminal;

ii) interceptação utilizada como prova emprestada em procedimento para a apuração de


quebra de decoro parlamentar. O Conselho de Ética da Câmara dos Deputados já utilizou
interceptações como prova emprestada.

Todavia, o juiz que recebe a interceptação como prova emprestada pode considerá-la ilícita
(STJ HC 60.229).

1.3 – Ordem judicial

O art. 1º da Lei de Interceptação Telefônica exige mais que o art. 5º, XII, da CR:

Art. 5º, XII, CR Art. 1º da Lei 9.296/1996


Ordem judicial. Ordem do Juiz competente para julgar a ação
principal.

Assim, não é qualquer juiz que pode autorizar a interceptação. Somente o competente para
o julgamento da ação penal que será proposta ou que já está em andamento.

190
A lei fala em “ação principal” porque a interceptação telefônica é uma medida cautelar,
antecipatória ou incidental, conforme decretada respectivamente na investigação ou no
curso da ação principal.

Portanto, o juiz da Vara Cível não pode autorizar a interceptação telefônica. Além disso, o
Juiz Federal não pode autorizar interceptação telefônica em processo da competência da
Justiça Estadual, ou vice versa.

Houve um caso em que um Juiz estadual autorizou a interceptação telefônica para apuração
de crime de competência da Justiça Militar. O STJ decidiu que a prova era ilícita, na medida
em não autorizada pelo juiz competente para a ação principal (HC 49.179/RS).

E se houver modificação de competência? Ex.: A Polícia Civil pede ao Juiz estadual


interceptação para apurar tráfico estadual. Durante as investigações, descobre-se que o
tráfico era transnacional. O Juiz estadual remete os autos ao Juiz Federal. A interceptação
será válida? Se houver modificação de competência, a interceptação autorizada pelo Juiz
anterior será válida no novo juízo ou na nova Justiça (entendimento pacífico no STJ e no
STF).

Em algumas cidades grandes, existe o chamado “juiz da fase do inquérito”, ou seja, juízes
que, de acordo com Leis de Organização Judiciária locais, somente têm competência para
atuar na fase do inquérito (na Capital de São Paulo, são os juízes do DIPO), e não para julgar
o processo principal. São eles que dentre outras coisas, acabam decidindo acerca da
interceptação telefônica. Isso é possível?

O STF e O STJ já pacificaram que esses juízes podem autorizar interceptações telefônicas,
mesmo não tendo competência para julgar a ação principal. O fundamento é o seguinte:
quando a interceptação é decretada na fase das investigações, a regra que exige que ela seja
autorizada pelo juiz da ação principal deve ser interpretada com temperamento (mitigada),
sob pena de se inviabilizar a aplicação da lei.

O Juiz que recebe a interceptação fica prevento. Exemplo real: o juiz de São Bernardo do
Campo, SP, autorizou a interceptação. O traficante foi preso em flagrante em Santos. A
denúncia foi oferecida perante o Juiz de Santos. O STF e o STJ (o processo passou pelos dois)
declararam a incompetência do Juiz de Santos para julgar a ação penal, pois o de São
Bernardo estava prevento. Cuidado com uma questão dessas em situação hipotética de
prova de concurso.

CPI pode autorizar interceptação telefônica? Como visto, o art. 58, § 3º, da CR, diz que elas
terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais. A expressão é equívoca, na

191
medida em que juiz não investiga. De qualquer forma, o STF decidiu o seguinte: poderes
“próprios” não significam poderes “idênticos” de juízes. Conclusão: nos casos em que a CR
expressamente exige ordem judicial, o ato só pode ser autorizado por juiz (ou tribunal,
claro). O ato está reservado ao Poder Judiciário, com exclusividade (princípio da reserva de
jurisdição). Exemplos: a CR exige expressamente ordem judicial para buscas domiciliares. CPI
não pode determiná-la, portanto. CPI também não pode decretar prisão temporária ou
preventiva.

Assim, uma vez que a CR exige ordem judicial para a interceptação telefônica, a CPI não
pode determiná-la. Cuidado, entretanto, pois CPI pode quebrar sigilo telefônico sem ordem
judicial (veja que a quebra de sigilo telefônico está dentro dos poderes próprios de juiz). CPI
também pode quebrar sigilos bancário, fiscal e eleitoral.

A CPI pode requisitar, diretamente, para a operadora de telefonia, documentos referentes à


interceptação telefônica, como cópia de conversas gravadas? O STF decidiu que a CPI não
pode requisitar diretamente à operadora de telefonia documentos referentes à
interceptação telefônica, pois eles estão sob sigilo judicial.

O advogado pode ter acesso às interceptações telefônicas durante a fase do inquérito? O


advogado tem acesso às interceptações que já foram transcritas e documentadas. E não tem
acesso às que ainda estão em andamento e não foram documentadas (Súmula Vinculante
14). Aliás, o que originou a Súmula foram casos envolvendo interceptação telefônica:

Súmula Vinculante 14 - É DIREITO DO DEFENSOR, NO INTERESSE DO REPRESENTADO, TER

ACESSO AMPLO AOS ELEMENTOS DE PROVA QUE, JÁ DOCUMENTADOS EM

PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO REALIZADO POR ÓRGÃO COM COMPETÊNCIA DE

POLÍCIA JUDICIÁRIA, DIGAM RESPEITO AO EXERCÍCIO DO DIREITO DE DEFESA.

2 – Interceptações de comunicações telemáticas e de informática

Apesar de se tratar de uma Lei de Interceptações Telefônicas, o art. 1º, parágrafo único, da
Lei 9.296/1996 também permite as interceptações de comunicações telemáticas e de
informática:

Art. 1º (...) Parágrafo único. O disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de

comunicações em sistemas de informática e telemática.

Telemática é telefonia acrescida de informática. Quanto a elas, não há problema, pois as


interceptações telemáticas envolvem telefonia.

192
O problema diz respeito à constitucionalidade da interceptação das comunicações de
informática. Veja que o art. 5º, XII, da CR utiliza a expressão “salvo no último caso”, mas não
fica claro se ela se refere apenas ao sigilo das comunicações telefônicas ou ao sigilo das
comunicações telegráficas, de dados e telefônicas:

Art. 5º (...) XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas,

de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas

hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução

processual penal;

Sob o ponto de vista gramatical, ambas as hipóteses são possíveis. Não há, portanto, como a
língua portuguesa ajudar na interpretação do dispositivo. Surgiram, em razão disso, três
correntes:

1ª corrente: o art. 5º, XII, da CR prevê quatro sigilos: i) das correspondências; ii) das
comunicações telegráficas; iii) das comunicações de dados; e iv) das comunicações
telefônicas. A expressão “salvo no último caso” só se refere às comunicações
telefônicas. Logo, o art. 1º, parágrafo único, da Lei 9.296/1996 é inconstitucional no
ponto em que permite interceptação de comunicações de informática. Nesse sentido,
Vicente Greco Filho, Antonio Magalhães Gomes Filho e Roberto Delmanto.

2ª corrente: a expressão “salvo no último caso” refere-se às comunicações telefônicas


e de dados. Logo, o art. 1º, parágrafo único, da Lei 9.296/1996 é constitucional.

3ª corrente: independentemente do alcance da expressão “salvo no último caso”, o


art. 1º, parágrafo único, da Lei 9.296/1996 é constitucional, em razão da relatividade
dos direitos fundamentais. Nesse sentido, Alexandre de Morais, Lenio Streck, Luiz
Flávio Gomes e Silvio Maciel.

O STF e o STJ admitem a interceptação de comunicações de informática tranquilamente. A


inconstitucionalidade dela nunca foi declarada por aqueles tribunais, sequer em controle
difuso.

Perceba que o sigilo é das comunicações de dados, e não dos dados em si mesmos. O STF já
decidiu que a apreensão de dados armazenados na base física do computador não se
confunde com a interceptação das comunicações de dados (STF RE 418.416/SC, julgado pelo
Pleno). Todavia, é necessária ordem judicial para a apreensão dos dados armazenados no
computador, porque envolve direito à intimidade. Não se tratando de interceptação de
comunicação, essa apreensão pode ocorrer no processo civil, por exemplo.

193
Além disso, o STJ decidiu que a identificação do número do “internet protocol” (IP) do
computador não está protegida pelo sigilo das comunicações, pois ele somente permite a
identificação da propriedade e do endereço onde está instalado o computador. Ou seja, não
dá acesso às comunicações telefônicas (STJ HC 83.338).

Por fim, o STJ decidiu que informações obtidas em conversas realizadas em salas de bate-
papo não estão protegidas pelo sigilo das comunicações, porque as salas de bate-papo são
ambientes públicos e destinados a conversas informais.

3 – Requisitos legais para o cabimento da interceptação telefônica

Os requisitos legais para o cabimento da interceptação telefônica estão previstos no art. 2º, I
a III, da Lei de Interceptação Telefônica:

Art. 2º Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer

qualquer das seguintes hipóteses:

I - não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal;

II - a prova puder ser feita por outros meios disponíveis;

III - o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de

detenção. (...)

Veja que o dispositivo determina quando não é cabível a interceptação. Evidentemente,


para se saber os requisitos de cabimento da interceptação, ele tem de ser interpretado a
contrario sensu:

i) indícios razoáveis de autoria e participação em infração penal:

Para que seja autorizada a interceptação, bastam indícios, na medida em que a prova será
colhida na investigação ou instrução penal. Não havendo esses indícios, a prova é ilícita.
Nesse sentido: STJ HC 128.087.

ii) imprescindibilidade da interceptação:

A interceptação só é cabível quanto não houver outro meio de se captar a prova. Se a


interceptação não for feita, a prova se perderá. Se a prova puder ser obtida de outra forma,
a interceptação será ilegal (STJ HC 128.087).

iii) crime punido com reclusão:

Não é cabível interceptação em contravenções penais e crimes punidos com detenção (ex.:
ameaça). No entanto, importante observar que a interceptação pode ser utilizada como

194
prova de crime punido com detenção, desde que ele seja conexo ao crime punido com
reclusão para o qual foi autorizada a interceptação. O mesmo raciocínio se aplica às
contravenções.

Presentes os três requisitos acima, a interceptação é válida. Ausente um deles, a prova é


ilícita.

4 – Descoberta fortuita de novo crime e/ou novo criminoso

A descoberta fortuita de novo crime e/ou novo criminoso está prevista no art. 2º, parágrafo
único, da Lei de Interceptação Telefônica:

Art. 2º (...) Parágrafo único. Em qualquer hipótese deve ser descrita com clareza a

situação objeto da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos investigados,

salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada.

No pedido de interceptação, a autoridade deve indicar qual o fato criminoso que está sendo
investigado, ou seja, a “situação objeto de investigação” (ex.: tráfico, latrocínio, homicídio,
roubo), e as pessoas que estão sendo investigadas (“indicação e qualificação dos
investigados”), salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada.

Se durante as interceptações for descoberto novo crime e/ou novos criminosos não
indicados no pedido de interceptação, a prova decorrente da interceptação será válida em
relação a eles? Prevalece na doutrina que a prova será válida desde que o novo crime ou o
novo criminoso tenha relação com o crime objeto do pedido de interceptação. Caso não haja
essa relação, a interceptação só valerá como notitia criminis em relação ao novo crime ou
novo criminoso descoberto fortuitamente.

Exemplos:

i) é determinada a interceptação para a apuração de tráfico cometido por “A” e “B”. Durante
as interceptações, a polícia descobre o tráfico praticado, mas acaba descobrindo também
que eles também mataram um traficante rival, por brigas envolvendo pontos de tráfico,
homicídio esse executado pelos traficantes “A”, “B” e “C”. As interceptações revelaram
fortuitamente um homicídio e um novo criminoso. A interceptação será válida em relação ao
homicídio e ao traficante “C”, pois eles têm relação com o crime indicado no pedido.

ii) é determinada a interceptação para apurar tráfico praticado por “A” e “B”. Durante as
interceptações, a polícia descobre que “A” matou sua amante, por problemas pessoais. Esse

195
homicídio não tem nenhuma relação com o tráfico. Assim, em relação ao homicídio, a
interceptação valerá apenas como notitia criminis.

Atenção! Há um julgado do STJ (HC 69.552) e um do STF (Ag. Rg. 761.706) nos quais as cortes
decidiram que a interceptação é válida em relação ao crime descoberto fortuitamente,
mesmo que ele não tenha relação com o crime indicado no pedido de interceptação. O STJ e
o STF estão indo, nesses casos, no sentido inverso da doutrina majoritária.

5 – Decretação da interceptação
Art. 3º A interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo juiz,

de ofício ou a requerimento:

I - da autoridade policial, na investigação criminal;

II - do representante do Ministério Público, na investigação criminal e na instrução

processual penal.

Segundo o art. 3º da Lei 9.269/1996, quem decreta a interceptação telefônica é o órgão


jurisdicional (juiz ou tribunal):

i) de ofício, na fase das investigações ou da ação penal:

Para a maioria, o art. 3º é inconstitucional no ponto em que autoriza o juiz a decretar, de


ofício, a interceptação na fase das investigações, por violação ao sistema acusatório do
processo penal, ao princípio da imparcialidade e ao princípio da inércia de jurisdição. Nesse
sentido: Paulo Rangel, Silvio Maciel, e Luiz Flávio Gomes e a Procuradoria-Geral da
República, que propôs a ADI 3450, requerendo a declaração de inconstitucionalidade do
dispositivo, nesse ponto.

ii) a requerimento da autoridade policial, na fase das investigações:

A autoridade policial somente pode requerer a interceptação na fase das investigações.

iii) a requerimento do MP, na fase das investigações ou da ação penal:

O MP pode requerer interceptação na fase das investigações ou da ação penal.

Contra a decisão do juiz que indefere o pedido do MP, é cabível mandado de segurança.
Contra a decisão que defere a interceptação telefônica (ex.: decretação da interceptação
para a apuração de crime de ameaça ou o juiz estadual que decreta para apuração de crime
federal), cabe habeas corpus.

iv) a requerimento do querelante:

196
O querelante também pode requerer interceptação, pois, se ele é o titular da ação, a ele
compete o ônus da prova.

A interceptação somente é cabível quanto for o único meio de prova. Isso significa que o
querelante somente poderá pedi-la nesse caso. Assim, se não pudesse, como ele provaria o
fato? A interpretação do art. 3º, portanto, não pode ser literal, pois, em última análise,
proibir o querelante de requerer interceptação significa violar o seu direito de ação e ao
contraditório.

v) a requerimento do assistente da acusação:

O assistente da acusação pode também requerer a interceptação telefônica. Isso porque o


CPP diz que ele pode propor meios de prova.

6 – Ausência de questionamento da ilegalidade da interceptação no momento


oportuno

A interceptação ilegal é uma prova ilícita (proibida por determinação constitucional). Caso o
juiz autorize interceptação ilegal e a defesa não alegue tal ilicitude em primeira instância
(deixando para fazê-lo no tribunal, ou pior, no STJ ou STF, visando a eventual prescrição), ela
não mais poderá fazê-lo.

Segundo o STF e o STJ, se a ilegalidade da interceptação telefônica não foi alegada na


instância anterior, não poderá ser apreciada na posterior, sob pena de supressão de
instância. Esse entendimento é pacífico nos Tribunais Superiores (STF HC 97.542/PB, julgado
em 24 de novembro de 2009).

7 – Forma do pedido de interceptação


Art. 4º O pedido de interceptação de comunicação telefônica conterá a demonstração de

que a sua realização é necessária à apuração de infração penal, com indicação dos meios a

serem empregados.

§ 1º Excepcionalmente, o juiz poderá admitir que o pedido seja formulado verbalmente,

desde que estejam presentes os pressupostos que autorizem a interceptação, caso em

que a concessão será condicionada à sua redução a termo.

§ 2º O juiz, no prazo máximo de vinte e quatro horas, decidirá sobre o pedido.

Em regra, o pedido de interceptação deve ser feito por escrito. Excepcionalmente, poderá
ser feito verbalmente, mas, nesse caso, a interceptação só pode ser autorizada se o pedido
verbal for reduzido a escrito.

197
8 – Prazo de duração da interceptação

O art. 5º, caput, da Lei 9.296/1996 dispõe que a interceptação deve durar 15 dias, podendo
ser renovada por igual período. Obviamente, a falta de fundamentação gera nulidade da
decisão:

Art. 5º A decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma

de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por

igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova.

A interpretação literal do dispositivo leva à conclusão de que o prazo máximo da


interceptação seria de 30 dias. Na prática, entretanto, há interceptações que chegam a durar
até dois anos. Isso é possível, pois o STF e o STJ entendem que a renovação por 15 dias pode
ocorrer quantas vezes forem necessárias, desde que fundamentada a necessidade de cada
uma delas.

Há um julgado isolado no STJ (HC 76.686/PR), a ser explorado em prova de Defensoria


Pública, no qual a Sexta Turma considerou prova ilícita uma interceptação que durou dois
anos, pelos seguintes motivos:

i) o art. 5º permite a renovação “por igual tempo” no singular. Isso significa que a renovação
somente pode ocorrer uma vez. Por se tratar de norma restritiva de direitos fundamentais,
ela deve ser interpretada restritivamente;

ii) o art. 136, § 1º, “c” e § 2º, da CR, permite restrições ao sigilo das comunicações
telefônicas por, no máximo, 60 dias. O dispositivo é o que trata do Estado de Defesa. Se
durante o Estado de Defesa a restrição não pode perdurar mais de 60 dias, não é razoável
que, em uma situação de normalidade, ela perdure por dois anos:

Art. 136 (...) § 1º - O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua

duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei,

as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:

I - restrições aos direitos de: (...)

c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica; (...)

§ 2º - O tempo de duração do estado de defesa não será superior a trinta dias, podendo

ser prorrogado uma vez, por igual período, se persistirem as razões que justificaram a sua

decretação. (...)

Por essas razões, entendeu o STJ que, no caso, houve violação ao princípio da razoabilidade.
Não é, como visto, o que prevalece no próprio Tribunal. Trata-se de um julgado isolado.

198
9 – Condução dos procedimentos de interceptação

Conforme o art. 6º, caput, da Lei 9.269/1996, quem preside as interceptações telefônicas é a
autoridade policial, com ciência ao MP:

Art. 6º Deferido o pedido, a autoridade policial conduzirá os procedimentos de

interceptação, dando ciência ao Ministério Público, que poderá acompanhar a sua

realização. (...)

Observações:

i) o STJ decidiu ser possível a condução das interceptações pela Polícia Rodoviária Federal,
com base no art. 1º, X, do Decreto 1.655/1995, que foi declarado constitucional pelo STF, na
ADI 1413:

Art. 1º À Polícia Rodoviária Federal, órgão permanente, integrante da estrutura

regimental do Ministério da Justiça, no âmbito das rodovias federais, compete: (...)

X - colaborar e atuar na prevenção e repressão aos crimes contra a vida, os costumes, o

patrimônio, a ecologia, o meio ambiente, os furtos e roubos de veículos e bens, o tráfico

de entorpecentes e drogas afins, o contrabando, o descaminho e os demais crimes

previstos em leis.

ii) o STJ também decidiu que o MP pode conduzir as interceptações nos procedimentos
investigatórios que ele próprio realiza. Se o MP pode investigar, ele pode conduzir a
diligência investigatória da interceptação. Seria um contrassenso decidir que o MP pode
investigar, mas não pode conduzir a interceptação.

iii) a falta de ciência ao MP, como determina do caput do dispositivo, é mera irregularidade.

10 – Transcrição das conversas gravadas

Segundo o art. 6º, § 1º, se a conversa foi gravada, ela deve ser transcrita:

Art. 6º (...) § 1º No caso de a diligência possibilitar a gravação da comunicação

interceptada, será determinada a sua transcrição.

A discussão é a seguinte: é necessária a transcrição de toda a gravação ou pode ser feita a


transcrição de trechos? Imagine uma conversa de 15 horas. O STF e o STJ já pacificaram que
não é necessária a transcrição de toda a conversa gravada. Basta que sejam transcritos os
trechos necessários ao oferecimento da denúncia ou queixa. Nesse sentido: STF Ag. Rg.
685.878/RJ e STJ MS 10.128.

199
O STJ também já decidiu que a transcrição não precisa ser feita por peritos oficiais.

As interceptações tramitam em autos apartados. O inquérito é encerrado com o relatório


final. O art. 6º, § 2º, dispõe que o procedimento das interceptações telefônicas deve ser
encerrado com um auto circunstanciado da autoridade policial, contendo um resumo das
operações realizadas:

Art. 6º (...) § 2º Cumprida a diligência, a autoridade policial encaminhará o resultado da

interceptação ao juiz, acompanhado de auto circunstanciado, que deverá conter o resumo

das operações realizadas.

O STF decidiu que esse auto circunstanciado é formalidade essencial para a validade da
prova. Porém, a falta dele enseja apenas nulidade relativa (HC 87.859).

11 – Crimes
Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de

informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com

objetivos não autorizados em lei.

Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.

As condutas previstas como crimes no art. 10 da Lei 9.296/1996 são: i) realizar interceptação
ilegal; ou ii) quebrar segredo de justiça. Ambas estão relacionadas a um elemento normativo
do tipo, que é “sem autorização judicial ou com objetivos não previstos em lei”.

Na conduta “realizar interceptação ilegal”, o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (crime
comum). A consumação ocorre quando o agente toma conhecimento da conversa
ilegalmente receptada. A tentativa é possível quando o agente não consegue tomar
conhecimento da conversa interceptada.

Na conduta “quebrar segredo de justiça”, o crime é próprio, somente podendo ser praticado
por pessoa envolvida no processo ou no procedimento de interceptação ou investigação
(Delegado, MP, advogado, cartorário, funcionário da empresa de telefonia etc.) A
consumação ocorre quando é quebrado o segredo. Basta que uma só pessoa tenha
conhecimento do conteúdo interceptado. A tentativa é possível, na forma escrita.

O STJ decidiu que a competência para julgar esse crime é da Justiça Estadual, salvo interesse
da União (CC 40113).

200
LEI DE TORTURA (LEI 9.455/1997)

1 – Introdução

Após a Segunda Guerra Mundial, nasce um movimento de repúdio à tortura, o qual acaba
originando inúmeros tratados internacionais de combate a esse tipo de comportamento,
como a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e
Degradantes, de 1984, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, de
1985, etc.

Obviamente, esse movimento, nascido após a Segunda Guerra, e esses tratados


internacionais fizeram com que, no Brasil, a CR/88 reprimisse também a tortura e os
tratamentos desumanos ou degradantes (art. 5º, III):

Art. 5º (...) III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou

degradante;

Isso é importante, pois normalmente se diz que nenhuma garantia constitucional seria
absoluta, que as garantias seriam relativas, sempre que em choque com outras garantias de
igual estatura. Ocorre que, para a maioria, este inciso III é sim uma hipótese excepcional de
garantia absoluta, ou seja, que não pode ser afastada quando em choque com outra garantia
de status constitucional.

Naqueles tratados internacionais, a tortura é tratada como crime próprio, praticado por
agente do Estado. A CR/88 fez nascer a Lei 9.455/1997, que prevê um crime comum de
tortura, que pode ser praticado por qualquer pessoa, não necessariamente por agente do
Estado.

No Brasil, o bem jurídico tutelado na Lei 9.455/1997 tem caráter bifronte, pois busca
proteger o cidadão não apenas em relação aos agravos praticados por funcionários públicos,
mas também no que tange aos abusos praticados por qualquer pessoa. Ou seja, pretende
garantir que o cidadão não seja submetido a nenhum tipo de tortura, seja do Estado, seja do
particular.

2 – Prescritibilidade do crime de tortura

O crime de tortura prescreve? A Lei 9.455/1997 nada dispõe sobre o assunto. Os tratados
internacionais de direitos humanos dizem que a tortura é imprescritível. A CR/88 entende
que o crime é prescritível:

201
Art. 5º (…) XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à

pena de reclusão, nos termos da lei; (…)

XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou

militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;

De acordo com a CR, somente o racismo e a ação de grupos armados são crimes
imprescritíveis, o que faz presumir que não haveria outros crimes imprescritíveis. Há três
correntes acerca do tema:

1ª corrente: considerando que a CR/88 rotulou a tortura como crime prescritível, os


tratados internacionais qualificaram a tortura como delito imprescritível e os tratados
internacionais são infraconstitucionais, pois não ratificados com quórum de emenda
(anteriores, aliás, à EC 45/2004), a tortura prescreve. Trata-se de posição baseada na
hierarquia das normas. Esta é a posição do STF, que inclusive decidiu assim no
julgamento da Lei de Anistia.

2ª corrente: considerando que no conflito entre a CR/88 e os tratados de direitos


humanos deve prevalecer a norma que melhor atende às garantias fundamentais do
cidadão (princípio pro homine), a tortura é imprescritível. Trata-se de corrente
baseada não na hierarquia, mas na norma que melhor protege direitos humanos. Esta
corrente foi adotada pelo STJ, no julgamento de uma causa extrapenal (reparação de
danos), mas o raciocínio é o mesmo (Ag 970.753/MG).

3ª corrente: a imprescritibilidade trazida pelos tratados é incompatível com o direito


penal moderno e o Estado Democrático de Direito, razão pela qual a tortura
prescreve.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos critica o STF e adota a segunda corrente. Ela
entende que a Lei de Anistia brasileira não deve prevalecer.

3 – Crimes da Lei de Tortura

A Lei de Tortura não define a tortura, mas diz os comportamentos que constituem tortura.
São coisas diferentes.

3.1 – Crime do art. 1º, I

Art. 1º Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe

sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira

202
pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa; (...)

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (crime comum). Quanto ao sujeito passivo,
também se trata de crime comum: qualquer pessoa pode ser vítima. Ainda que se trate de
criança ou adolescente, será aplicável a Lei de Tortura, pois o art. 233 do ECA foi
expressamente revogado pelo art. 4º da Lei 9.455/1997:

Art. 4º Revoga-se o art. 233 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e

do Adolescente.

O comportamento típico é “constranger alguém com o emprego de violência ou grave


ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental”:

i) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa:

Pratica este crime, portanto, tanto o policial que tortura para a confissão do crime quanto o
credor que tortura o devedor para confessar uma dívida. Como visto, não é necessário que
se esteja diante de um agente estatal.

O crime se consuma com o sofrimento da vítima, dispensando a obtenção da informação,


declaração ou confissão, que será mero exaurimento. O crime admite tentativa: trata-se de
crime plurissubsistente (sua execução pode ser fracionada em vários atos).

ii) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa:

Neste caso, o agente busca do torturado a prática de infração penal.

“Provocar conduta de natureza criminosa” abrange contravenção penal? Aquele que


“tortura” para que o torturado pratique, por exemplo, jogo do bicho, pratica o crime?
Prevalece que não abrange contravenção penal: natureza criminosa remete somente a
crime.

Este crime se consuma com o sofrimento do torturado ou somente no momento em que o


torturado realiza o crime visado pelo torturador? Ex.: Rogério tortura Priscila para que ela
mate Carol. Priscila, torturada, mata Carol. Rogério ao torturar Priscila, praticou o crime do
art. 1º, I, “b”. Como a Priscila, torturada, efetivamente matou Carol, Rogério responderá
pelo crime do art. 121 do CP, na condição de autor mediato, em concurso material com o
crime anterior. A Priscila, no caso, não comete crime, por se trata de uma coação irresistível.

203
iii) em razão de discriminação racial ou religiosa:

Ao contrário do que ocorre nas letras anteriores, nesta o agente não tortura a vítima
esperando dela alguma conduta. Tortura, apenas, por preconceito à sua raça ou religião.

Cuidado: este crime não abrange o preconceito econômico, social ou sexual. A homofobia
não pode estar aqui incluída, sob pena de analogia in malam partem (o TJPR considerou
correta questão que dizia estar a homofobia incluída nesta hipótese).

Este crime se consuma com o sofrimento da vítima. Admite-se a tentativa.

3.2 – Crime do art. 1º, II

Art. 1º Constitui crime de tortura: (...)

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou

grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo

pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

Relativamente ao sujeito ativo, trata-se de crime próprio, que só pode ser praticado por
quem tem a guarda, poder ou autoridade sobre a vítima. O sujeito passivo também é
próprio: só pode ser vítima quem está sob a guarda, poder ou autoridade do agente.

Veja que o inciso II não fala mais em “constranger”, mas em “submeter”, na medida em que
se trata de pessoa sob o poder ou autoridade de alguém. O comportamento típico é,
portanto, submeter a vítima, mediante violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento
físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Exemplos deste crime: i) a Procuradora aposentada torturou criança em processo de


adaptação para a concessão de guarda, a intenso sofrimento físico e mental, pois ela não
estava comendo direito; ii) tortura praticada por policiais na Favela Naval, em Diadema.

A expressão “intenso” não foi prevista sem razão. Trata-se de elementar do tipo, que deve
ser colocada na denúncia e submetida a prova. A intensidade do sofrimento da vítima é o
que diferencia a tortura do crime de maus tratos, previsto no art. 136 do CP.

Art. 136 - Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou

vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de

alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou

inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:

Pena - detenção, de dois meses a um ano, ou multa.

204
Se intenso o sofrimento, será tortura; se não houver tal intensidade, tratar-se-á de maus
tratos.

O crime se consuma com o sofrimento da vítima, sendo perfeitamente possível a tentativa.

3.3 – Crime do art. 1º, § 1º

Art. 1º (...) § 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida

de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto

em lei ou não resultante de medida legal.

O crime será punido com a mesma pena, de 2 a 8 anos.

O dispositivo nada mais é que uma expressão da garantia prevista no art. 5º, XLIX, da CR:

Art. 5º (...) XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

É normal pensar neste crime sendo praticado por agente penitenciário. Todavia, o crime é
comum quanto ao sujeito ativo. Ex.: o linchamento de estuprador preso em flagrante, por
populares.

Quanto ao sujeito passivo, por sua vez, a lei exige qualidade especial da vítima (crime
próprio): deve se tratar de pessoa presa. A expressão abrange preso provisório ou definitivo,
adolescentes infratores, pessoas presas civilmente (no caso de devedor de alimentos) e
pessoa sujeita a medida de segurança (internação ou tratamento ambulatorial).

Comportamento típico é submeter a vítima a sofrimento físico ou mental, por intermédio da


prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.

Trata-se de crime de execução livre, não pressupondo, necessariamente, que o sofrimento


seja causado mediante violência ou grave ameaça. Exemplo: no Pará, apreenderam uma
adolescente infratora e a colocaram para cumprir a medida socioeducativa na mesma cela
masculina, com presos perigosos. Ela foi diuturnamente violentada, sofrendo física e
mentalmente. Quem colocou essa menina lá a torturou.

Este crime também se consuma com o sofrimento da vítima e admite a tentativa.

Quadro comparativo dos crimes de tortura:

Art. 1º, I Art. 1º, II Art. 1º, § 1º


Sujeito ativo: comum. Sujeito ativo: próprio. Sujeito ativo: comum.
Sujeitos
Sujeito passivo: comum. Sujeito passivo: próprio. Sujeito passivo: próprio.
Conduta Constranger, mediante Submeter, mediante Submeter, contrariando a

205
violência ou grave violência ou grave
lei (execução livre).
ameaça. ameaça.
Sofrimento físico ou Intenso sofrimento físico Sofrimento físico ou
Resultado
mental. ou mental mental.
i) obter informações;
O agente não tem
Finalidade ii) provocar conduta Aplicar castigo ou medida
finalidade especial
especial criminosa; de caráter preventivo
(tortura por torturar).
iii) discriminação.

No Jornal Nacional, foi noticiado que, em São Paulo, Oficiais do Exército torturavam recrutas
que estavam se promovendo. Todavia, eram cenas de chineladas, oficiais jogando água nos
outros etc. Este “trote” no Exército é tortura? Trote não se encaixa em nenhuma das
hipóteses do quadro acima. É brincadeira de mau gosto.

3.4 – Crime do art. 1º, § 2º

Art. 1º (...) § 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de

evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.

Os crimes previstos no art. 1º, I, II e § 1º são equiparados a hediondos, com pena de reclusão
de 2 a 8 anos.

Já o crime do art. 1º, § 2º pune duas omissões: imprópria (o omitente tem o dever de evitar
a tortura) e própria (o omitente tem o dever de apurar a tortura).

3.4.1 – omissão imprópria (dever de evitar)

O crime praticado mediante omissão imprópria possui pena de detenção de 1 a 4 anos e não
é equiparado a hediondo. Ou seja, o torturador responde com reclusão de 2 a 8 anos e o
crime é equiparado a hediondo, enquanto que aquele que tinha o dever de evitar a tortura
(ex.: o Delegado que sabia que alguém seria torturado e nada fez) tem pena detenção de 1 a
4 anos e ausência de hediondez.

O legislador, absurdamente, contrariou o art. 5º, XLIII, da CR:

Art. 5º (...) XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a

prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os

definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e

os que, podendo evitá-los, se omitirem;

206
O que queria o poder constituinte era equiparar quem pratica a tortura àquele que tinha o
poder de evitá-la e se omitiu. Ou seja, queria que a pena de 2 a 8 anos também se aplicasse
à omissão imprópria, assim como que o crime fosse hediondo. Não foi o que ocorreu. A lei
puniu com metade da pena e não equiparou a hediondo. Tanto não é crime hediondo que é
punido com detenção.

Fabio Bechara, Promotor de Justiça, entende que no art. 1º, § 2º, estaria sendo punida a
omissão culposa (negligência), de modo que a dolosa seria punida nas penas dos crimes
anteriormente estudados. Esse “contorcionismo”, criado para sanar o problema legislativo, é
corrente minoritária. Prevalece que houve “cochilo” do legislador.

3.4.2 – omissão própria (dever de apurar)

A omissão própria pressupõe tortura já praticada. Trata-se da conduta daquele que tinha o
dever de apurar e não o fez. Esta hipótese de omissão não é, obviamente, aquela prevista na
CR. Por essa razão, não há maiores problemas na punição com detenção de 1 a 4 anos e a
não hediondez do crime. Trata-se de uma “prevaricação” especial.

O juiz ou promotor que toma conhecimento de tortura em audiência tem o dever de


requisitar apuração do crime, sob pena de responder por tortura, nesta modalidade
omissiva.

4 – Qualificadoras do crime de tortura (art. 1º, § 3º)


Art. 1º (...) § 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de

reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.

Na qualificadora do art. 1º, § 3º, há a previsão de um comportamento antecedente e um


resultado subsequente. No antecedente, há a tortura. No subsequente, a lesão grave ou
gravíssima, punida com pena de 4 a 10 anos, ou a morte, punida com pena de 8 a 16 anos.

Para a incidência da qualificadora, esses resultados (lesão grave ou morte) somente são
culposos ou podem ser dolosos? Prevalece que os resultados qualificadores devem ser fruto
de culpa. Ou seja, trata-se de uma figura preterdolosa (ou preterintencional): dolo no
antecedente e culpa no consequente.

Nucci discorda dessa posição, argumentando que o resultado mais grave pode ser tanto
doloso quanto culposo, pois, se o legislador desejasse uma figura preterdolosa, procederia
como no art. 129, § 3º, do CP:

Art. 129 (...) § 3º Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o

207
resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo:

Pena - reclusão, de quatro a doze anos.

Todavia, não se pode confundir o art. 1º, § 3º, da Lei 9.455/1997 (tortura qualificada pela
morte) com o art. 121, § 2º, III, do CP (morte qualificada pela tortura):

Art 121. (...) § 2º Se o homicídio é cometido: (...)

III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou

cruel, ou de que possa resultar perigo comum;

Adotando-se a posição de Nucci, não há como diferenciar ambas as situações. Na verdade,


no art. 1º da Lei de Tortura, o fim é a tortura (a morte é um resultado culposo, involuntário).
No art. 121, § 2º, III, o fim é a morte (a morte é um resultado voluntário), sendo a tortura o
meio escolhido para atingir o fim almejado.

Sem dúvida, o art. 1º, § 3º, qualifica as torturas do art. 1º, I, II e § 1º da Lei 9.455/1997. A
dúvida diz respeito ao art. 1º, § 2º. Rogério entende que o § 3º aplica-se à omissão
imprópria, mas não à própria, caso em que a tortura já ocorreu. Prevalece na doutrina,
todavia, que o § 3º incide sobre a omissão ativa, nunca à passiva (do § 2º). Ou seja, somente
o torturador por ação é que poderá responder pela forma qualificada do crime. Jamais o
omitente próprio ou impróprio.

5 – Causas de aumento de pena (majorantes) da tortura (art. 1º, § 4º)


Art. 1º (...) § 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:

I - se o crime é cometido por agente público;

II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente

ou maior de 60 (sessenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)

III - se o crime é cometido mediante sequestro. (...)

5.1 – Crime cometido por agente público

Para a doutrina, prevalece que a expressão “agente público” deve ser interpretada nos
termos do art. 327 do CP. Ou seja, equipara-se a figura do agente público à do funcionário
público.

Art. 327 - Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora

transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

§ 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em

entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou

conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. (...)

208
Importante destacar que, para ocorrer o aumento, é necessário que o agente público atue
nessa qualidade ou em razão dela. Não basta simplesmente ser agente público.

Incide a causa de aumento no crime do art. 1º, II, caso o sujeito ativo seja funcionário
público? Ex.: um Conselheiro Tutelar submete criança sob sua guarda a intenso sofrimento
físico ou mental. Haveria aí bis in idem? Há divergência:

1ª corrente: nas situações em que o crime é próprio (exigindo qualidade funcional do


agente), não se aplica a causa de aumento, assim se evitando o bis in idem (Alberto
Silva Franco). O equívoco desta primeira corrente é que nenhum crime de tortura
exige qualidade especial de funcionário público do agente. Como visto, todas as
modalidades de tortura podem ser praticadas por particulares.

2ª corrente: a qualidade funcional do agente não constitui elementar da tortura por


ação, que pode ser praticada por particulares (credor que tortura devedor, pai que
tortura filho, populares que torturam preso etc.) Assim, não há bis in idem na
aplicação da causa de aumento quando o torturador for agente público (Nucci). A
Rogério, esta segunda corrente parece a mais correta.

5.2 – Crime cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente


ou maior de sessenta anos

Incide a majorante do art. 1º, § 4º, se o crime é cometido contra: i) criança (menor de doze
anos, nos termos do ECA); ii) gestante; iii) portador de deficiência, física ou mental; iv)
adolescente (menor de dezoito anos, nos termos do ECA); e v) idoso maior de sessenta anos
(cuidado, pois a lei se esqueceu do idoso com idade igual a sessenta anos).

Em todos esses casos, para a incidência da causa de aumento a condição da vítima tem de
ser conhecida do agente (deve fazer parte do dolo dele), para evitar responsabilidade penal
objetiva.

5.3 – Crime cometido mediante sequestro

Apesar de a lei falar somente em sequestro, obviamente o art. 1º, § 4º, III abrange o cárcere
privado, que nada mais é que uma espécie de sequestro (privação da liberdade com
confinamento).

5.4 – Aplicação da majorante

A doutrina também discute se as causas de aumento deste § 4º se aplicam à tortura


praticada por omissão (art. 1º, § 2º). A discussão é a mesma anteriormente estudada.

209
É pacífico que se pode aplicar a majorante sobre a forma qualificada.

6 – Efeito extrapenal da condenação (art. 1º, § 5º)


Art. 1º (...) § 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a

interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.

A perda do cargo, função ou emprego público é automática ou necessita de decisão


motivada do juiz?

O art. 92 do CP prevê algo parecido, mas com este efeito não se confunde, pois, nos termos
do parágrafo único do dispositivo, o efeito não é automático, devendo ser motivadamente
declarado na sentença:

Art. 92, parágrafo único, do CP Art. 1º, § 5º, da Lei de Tortura


“Os efeitos de que trata este artigo não são “A condenação acarretará a perda do cargo,
automáticos, devendo ser motivadamente função ou emprego público e a interdição para
declarados na sentença.” seu exercício pelo dobro do prazo da pena
aplicada.”

Essa diferença de redação induz a qual conclusão?

1ª corrente: o artigo traz um efeito automático da condenação, diferente do art. 92


do CP (corrente adotada pelo STJ).

2ª corrente: por analogia ao art. 92, o efeito também não é automático (corrente
minoritária).

A parte final do dispositivo, que prevê interdição temporária do direito está de acordo com a
CR, que veda sanções de caráter perpétuo. Decorrido o prazo, o condenado poderá assumir
novo cargo, emprego ou função, porém jamais reintegrar-se na situação anterior.
Obviamente, ele terá de conseguir novo cargo, função ou emprego.

7 – Vedação da concessão de fiança, graça e anistia (art. 1º, § 6º)


Art. 1º (...) § 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

7.1 – Inafiançável

O crime de tortura admite a concessão de liberdade provisória?

1ª corrente: a vedação da liberdade provisória está implícita na inafiançabilidade, ou


seja, se é inafiançável é porque não admite liberdade provisória.

210
2ª corrente: não existem vedações implícitas. Fiança não se confunde com liberdade
provisória. Quem decide se cabe ou não liberdade provisória não é o legislador, mas o
juiz. Essa discussão já foi vista quando do estudo da Lei dos Crimes Hediondos. Como
visto, o STF caminha para a segunda corrente.

7.2 – Insuscetível de graça e anistia

O art. 5º, XLIII, da CR proíbe a concessão de graça e anistia ao torturador:

Art. 5º (...) XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a

prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os

definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e

os que, podendo evitá-los, se omitirem;

A Lei 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos) proíbe a concessão graça, anistia e indulto.
Quando do estudo daquela lei, foi tratada a eventual inconstitucionalidade do dispositivo
que veda o indulto. Diferentemente, a Lei 9.455/1997, assim como a CR/88, não fala
absolutamente nada acerca do indulto.

Assim, tortura pode ser objeto de indulto?

1ª corrente: a Lei de Tortura, posterior e especial, vedou apenas a concessão de graça


e anistia, silenciando a respeito do indulto, o que revela a vontade do legislador de
permitir tal benefício (Alberto Silva Franco). Posição a ser adotada em provas de
Defensoria.

2ª corrente: onde se lê “graça”, deve-se ler, igualmente, “indulto”, pois ele nada mais
é do que uma graça coletiva (Nucci). Ou seja, não cabe indulto para a tortura. Parece
ser esta a corrente que prepondera na doutrina e na jurisprudência.

8 – Regime inicial fechado (art. 1º, § 7º)

Nos casos dos crimes previstos no art. 1º, I, II e § 1º (reclusão de 2 a 8 anos), a lei determina
que o regime inicial de cumprimento da pena será o fechado. Nas hipóteses do art. 1º, § 2º,
o regime inicial será o semiaberto ou aberto, jamais o fechado (até porque o crime é punido
com detenção).

Em qualquer hipótese, todavia, admite-se a progressão de regime. Progride-se depois de


cumprido quanto da pena?

211
A redação original do art. 2º, § 1º, da Lei dos Crimes Hediondos, de 1990, vedava a
progressão de regime no caso da tortura (observe que a não havia ainda o crime de tortura,
que somente foi criado com a Lei 9.455/1997):

Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e

drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: (...)

§ 1º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime

fechado. (...)

A Lei de Tortura, de 1997, revogou tacitamente esse dispositivo, relativamente à tortura,


passando a admitir a progressão de regime, depois de cumprido 1/6 da pena (art. 1º, § 7º):

Art. 1º (...) § 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º,

iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.

Em 2006, o STF julgou inconstitucional o regime integralmente fechado. Por essa razão, foi
editada a Lei 11.464/2007. Relativamente à tortura, foi alterado o art. 2º, da Lei dos Crimes
Hediondos, cuja nova redação passou a admitir um regime diferenciado de progressão para
os crimes hediondos e equiparados (dentre os quais a “prática da tortura”):

Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e

drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: (...)

§ 1º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime

fechado. (Redação dada pela Lei nº 11.464, de 2007)

§ 2º A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo,

dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e

de 3/5 (três quintos), se reincidente. (Redação dada pela Lei nº 11.464, de 2007)

Assim, hoje, a tortura não segue mais a progressão de 1/6, caindo justamente na regra dos
hediondos ou equiparados:

Antes da Lei 11.464/2007 Depois da Lei 11.464/2007


Havia dois grupos: Crime hediondo ou equiparado: regime inicial
i) crime hediondo ou equiparado: regime integral fechado, com progressão, se cumpridos 2/5 da
fechado (sem progressão); pena, se primário, ou 3/5, se reincidente.
ii) tortura: regime inicial fechado (com
progressão, depois de cumprido 1/6 da pena).

Cuidado na prova: se a tortura for praticada antes da Lei 11.464/2007, a progressão será
com 1/6. Praticada após a lei, a progressão será conforme a nova previsão (2/5 ou 3/5).

212
9 – Hipóteses de extraterritorialidade (art. 2º)
Art. 2º O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando o crime não tenha sido cometido em

território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local sob

jurisdição brasileira.

No art. 2º da Lei de Tortura, há as seguintes hipóteses de extraterritorialidade (aplicação da


lei brasileira fora dos limites territoriais do Estado brasileiro):

i) crime contra vítima brasileira;

ii) torturador encontrado em local sob jurisdição brasileira.

Em qualquer outro crime, essas duas hipóteses gerariam extraterritorialidade condicionada


(a lei precisa preencher requisitos para alcançar este fato, nos termos do art. 7º do CP). Em
se tratando de tortura, a lei quer tratamento diferenciado: elas configuram hipóteses de
extraterritorialidade incondicionada.

213
CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO (LEI 9.503/1997)

O CTB tem uma parte criminal, que se subdivide em duas: i) disposições gerais (arts. 291 a
301); e ii) dos crimes em espécie (arts. 302 a 312).

1 – Aplicação da Lei 9.099/1995 aos crimes do CTB (art. 291)


Art. 291. Aos crimes cometidos na direção de veículos automotores, previstos neste

Código, aplicam-se as normas gerais do Código Penal e do Código de Processo Penal, se

este Capítulo não dispuser de modo diverso, bem como a Lei nº 9.099, de 26 de setembro

de 1995, no que couber. (...)

1.1 – Dos crimes em que é aplicável a Lei dos Juizados

Dos onze crimes de trânsito previstos no CTB, os dos arts. 304, 305, 307, 308, 309, 310, 311
e 312 são infrações de menor potencial ofensivo (as penas máximas previstas não superam
dois anos). A eles, portanto, aplica-se integralmente a Lei 9.099/1995.

Quanto ao crime do art. 303 (lesão corporal culposa), a Lei 9.099/1995 poderá ou não ser
aplicada, conforme o caso, como será analisado no tópico a seguir.

1.2 – Dos crimes em que não é aplicável a Lei dos Juizados

Relativamente aos outros três crimes do CTB (arts. 302, 303 e 306), cumpre asseverar o que
segue.

1.2.1 – homicídio culposo

O homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302: pena de 2 a 4 anos de


detenção) não é infração de menor potencial ofensivo, de modo que não se aplica a Lei
9.099/1995. Não se aplica sequer a suspensão condicional do processo do art. 89, na medida
em que a pena mínima supera 1 ano.

1.2.2 – embriaguez ao volante

A embriaguez ao volante (art. 306: pena de 6 meses a 3 anos de detenção) também não é
infração de menor potencial ofensivo (pena máxima não superior a 2 anos), não se lhe
aplicando a Lei 9.099/1995, exceto quanto à suspensão condicional do processo (art. 89, que
prevê pena mínima igual ou inferior a 1 ano).

214
Antes da Lei 11.705/2008, era cabível transação penal para o crime, embora ele não fosse de
menor potencial ofensivo:

Redação anterior:

Art. 291 (...) Parágrafo único. Aplicam-se aos crimes de trânsito de lesão corporal culposa,

de embriaguez ao volante, e de participação em competição não autorizada o disposto

nos arts. 74, 76 e 88 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.

A lei, todavia, proibiu a transação, sendo tal alteração irretroativa. A proibição permaneceu
após a Lei 12.760/12, que deu nova redação ao art. 306 do CTB, conforme será analisado
adiante.

1.2.3 – lesão corporal culposa

A aplicação da Lei 9.099/1995 ao crime de lesão corporal culposa (art. 303: pena de 6 meses
a 2 anos de detenção) tem de ser analisada conforme ele tenha sido ou não praticado numa
das circunstâncias do art. 291, § 1º, I a III, do CTB, com redação dada pela Lei 11.705/2008:

Art. 291 (...) § 1o Aplica-se aos crimes de trânsito de lesão corporal culposa o disposto nos

arts. 74, 76 e 88 da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, exceto se o agente estiver:

I - sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine

dependência;

II - participando, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística, de

exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada

pela autoridade competente;

III - transitando em velocidade superior à máxima permitida para a via em 50 km/h

(cinquenta quilômetros por hora).

i) lesão corporal culposa praticada fora das circunstâncias do art. 291, § 1º, I a III:

Neste caso, é cabível composição civil de danos (art. 74 da Lei 9.099/1995), transação penal
(art. 76 da Lei 9.099/1995), o crime é apurado por ação pública condicionada a
representação (art. 88 da Lei 9.099/1995) e a medida de polícia judiciária é o termo
circunstanciado.

ii) lesão corporal culposa praticada em uma das circunstâncias do art. 291, § 1º, I a III:

Neste caso, não é cabível composição civil de danos ou transação penal, a ação penal é
pública incondicionada e a medida de polícia judiciária é o inquérito policial (art. 291, § 2º,
do CTB, incluído pela Lei 11.705/2008). É cabível suspensão condicional do processo:

215
Art. 291 (...) § 2º Nas hipóteses previstas no § 1º deste artigo, deverá ser instaurado

inquérito policial para a investigação da infração penal.

Observação (tese de defesa): na medida em que o próprio CTB admite a existência de lesão
culposa em situação de embriaguez e de racha, não se pode falar que, nessas situações, haja
necessariamente dolo eventual. Pode ser dolo eventual ou culpa, conforme o caso. O
mesmo raciocínio vale para o homicídio.

A lesão corporal culposa é, em regra, infração de menor potencial ofensivo, porque a pena
máxima prevista não supera dois anos. Há, todavia, exceções. Não será de menor potencial
ofensivo:

i) quando a lesão tiver sido praticada em uma das situações do art. 291, § 1º, I a III do CTB:

Embora a pena não passe de dois anos, prevalece que, nesses casos, a lesão culposa de
trânsito deixa de ser infração de menor potencial ofensivo.

ii) quando incidir alguma causa de aumento de pena do art. 303, parágrafo único:

Art. 303. (...) Parágrafo único. Aumenta-se a pena de um terço à metade, se ocorrer

qualquer das hipóteses do parágrafo único do artigo anterior [ex.: motorista que, no

exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de

passageiros].

Neste caso, a pena máxima cominada será superior a dois anos, deixando a infração de ser
de menor potencial ofensivo.

2 – Suspensão e proibição do direito de dirigir

A suspensão do direito de dirigir é aplicada ao condutor que já tem permissão ou habilitação


para dirigir. Já a proibição é aplicada ao condutor que não tem permissão ou habilitação
para dirigir (ele fica proibido de obtê-las).

A suspensão e a proibição do direito de dirigir possuem dupla natureza no CTB: i) pena


aplicada na sentença penal condenatória; ou ii) medida cautelar, aplicada na fase das
investigações ou da ação (art. 294 do CTB).

2.1 – Pena de suspensão ou proibição do direito de dirigir (arts. 292 a 296 do CTB)

Nos crimes previstos nos arts. 302, 303, 306, 307 e 308 do CTB, a suspensão e proibição do
direito de dirigir já estão cominadas no tipo penal, cumulativamente com a prisão e com a
multa, em alguns casos.

216
Isso significa que, se o juiz condenar alguém por um desses crimes, ele tem de aplicar a pena
de prisão, a suspensão ou proibição do direito de dirigir e a multa, se houver previsão.

Para os demais crimes (arts. 304, 305, 309, 310, 311 e 312), a suspensão do direito de dirigir
não está cominada no tipo penal, mas deve ser aplicada se o condenado for reincidente
específico em crimes do CTB, sem prejuízo da pena de prisão e, eventualmente, da pena de
multa. Ou seja, também cumulativamente.

O art. 296 fala em “aplicará” a sanção “sem prejuízo das demais sanções cabíveis”. Note que
a redação anterior do dispositivo falava em “poderá aplicar”. Desse modo, com a alteração,
o juiz deverá sempre aplicar a pena:

Redação antiga:

Art. 296. Se o réu for reincidente na prática de crime previsto neste Código, o juiz poderá

aplicar a penalidade de suspensão da permissão ou habilitação para dirigir veículo

automotor, sem prejuízo das demais sanções penais cabíveis.

Redação atual:

Art. 296. Se o réu for reincidente na prática de crime previsto neste Código, o juiz aplicará

a penalidade de suspensão da permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor,

sem prejuízo das demais sanções penais cabíveis. (Redação dada pela Lei nº 11.705, de

2008)

Assim, em todos os crimes do CTB, a pena de suspensão do direito de dirigir será aplicada.
Todavia, no primeiro rol de crimes, ela será sempre aplicada, cumulativamente com prisão e
multa; no segundo, ela será aplicada desde que o réu seja reincidente específico, também
cumulativamente com prisão e multa.

No CTB, a suspensão ou proibição do direito de dirigir são penas restritivas de direitos


principais. Não são substitutivas da pena de prisão (art. 292), mas principais, e aplicadas
cumulativamente com a prisão:

Art. 292. A suspensão ou a proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir

veículo automotor pode ser imposta como penalidade principal, isolada ou

cumulativamente com outras penalidades.

O problema é o seguinte: o art. 292 fala em aplicação “isolada”. Todavia, apesar de o art.
292 dizer que as penas podem ser aplicadas isoladamente, não há possibilidade dessa
aplicação. Elas serão aplicadas sempre cumulativamente com a pena de prisão ou com a
multa.

217
O prazo da pena de suspensão ou proibição varia de dois meses a cinco anos, para todos os
crimes (art. 293):

Art. 293. A penalidade de suspensão ou de proibição de se obter a permissão ou a

habilitação, para dirigir veículo automotor, tem a duração de dois meses a cinco anos.

Exceto no crime do art. 307 do CTB, em que a pena será aplicada pelo mesmo prazo da
suspensão ou proibição violada:

Art. 307. Violar a suspensão ou a proibição de se obter a permissão ou a habilitação para

dirigir veículo automotor imposta com fundamento neste Código:

Penas - detenção, de seis meses a um ano e multa, com nova imposição adicional de

idêntico prazo de suspensão ou de proibição. (...)

Ex.: o juiz condena a pessoa pelo crime de embriaguez ao volante, aplicando pena de prisão
acrescida de um ano de suspensão ou proibição do direito de dirigir. Se o condenado dirigir
durante esse ano, ele está cometendo outro crime de trânsito, previsto no art. 307. Neste
caso, o juiz aplicará detenção, multa e nova suspensão do direito de dirigir por mais um ano.

O STJ entende que a pena de suspensão ou proibição deve guardar proporcionalidade com a
pena de prisão aplicada. Ex.: utilizando o critério trifásico, o juiz chegou à pena mínima de
prisão. Nesse caso, a pena de suspensão também deve ser fixada no mínimo. O que o STJ
não quer é que o juiz aplique, por exemplo, para o crime de embriaguez ao volante (6 meses
a 3 anos), pena de detenção de 6 meses e 5 anos de proibição ou suspensão (pena mínima
num caso e máxima no outro). O STJ entende que essa disparidade viola os princípios da
proporcionalidade e da individualização da pena: se o juiz, individualizando a pena, aplicou
pena mínima de prisão, como pode ter chegado à pena máxima de suspensão ou proibição
do direito de dirigir?

A pena de suspensão ou proibição do direito de dirigir não se inicia enquanto o condenado


estiver preso cumprindo a pena de detenção (art. 293, § 2º), uma vez que preso ele
evidentemente não poderá dirigir:

Art. 293 (...) § 2º A penalidade de suspensão ou de proibição de se obter a permissão ou a

habilitação para dirigir veículo automotor não se inicia enquanto o sentenciado, por efeito

de condenação penal, estiver recolhido a estabelecimento prisional.

Transitada em julgado a sentença condenatória, o condenado será intimado a entregar ao


juiz a permissão ou habilitação para dirigir, no prazo máximo de 48 horas (art. 293, § 1º).
Note que ele entrega ao magistrado, não à Delegacia de Trânsito:

218
Art. 293 (...) § 1º Transitada em julgado a sentença condenatória, o réu será intimado a

entregar à autoridade judiciária, em quarenta e oito horas, a Permissão para Dirigir ou a

Carteira de Habilitação.

O que ocorre, todavia, se o condenado descumprir essa obrigação? Ele não comete crime de
desobediência, mas o previsto no art. 307, parágrafo único, do CTB (pergunta de primeira
fase de concurso):

Art. 307 (...) Parágrafo único. Nas mesmas penas [6 meses a 1 ano de detenção, multa e

nova imposição adicional de idêntico prazo de suspensão ou proibição] incorre o

condenado que deixa de entregar, no prazo estabelecido no § 1º do art. 293, a Permissão

para Dirigir ou a Carteira de Habilitação.

O STJ entende que é possível que o juiz substitua a pena de prisão por duas restritivas de
direitos e as cumule com a suspensão ou proibição do direito de dirigir. Ex.: o juiz condena o
réu no homicídio culposo, aplicando pena de dois anos de detenção acrescida de dois anos
de suspensão do direito de dirigir. O juiz substitui a detenção por duas penas restritivas de
direitos (ex.: prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária). No final, o réu
acaba sofrendo três penas restritivas de direitos (além daquelas duas, a suspensão ou
proibição do direito de dirigir), duas substitutivas da prisão e uma principal (STJ REsp
628.730).

A suspensão ou proibição do direito de dirigir pode ser aplicada ao motorista profissional?


Imagine o caso de um motorista de ônibus, que trabalha há 20 anos nessa profissão. Em 20
anos, ele nunca havia causado nenhum acidente, mas se envolveu em um e machucou uma
pessoa. Ele não sabe fazer outra coisa e tem de sustentar a família. E fatalmente, se
condenado, perderá o emprego. O que fazer?

1ª corrente: não é possível suspender o direito de dirigir, sob pena de violação ao


princípio da dignidade da pessoa humana (já que o motorista ficará privado de
trabalhar, sustentar a família e a si próprio) e por violação ao direito ao trabalho,
garantido constitucionalmente.

2ª corrente: é possível a suspensão, porque a pena está cominada e prevista na lei,


que não faz nenhuma exceção quanto ao motorista profissional. Esta segunda
corrente é pacífica no STJ.

Por fim, importante observar que se a suspensão ou proibição do direito de dirigir é pena
principal, a prescrição segue as regras do Código Penal.

219
2.2 – Medida cautelar de suspensão ou proibição do direito de dirigir

Art. 294. Em qualquer fase da investigação ou da ação penal, havendo necessidade para a

garantia da ordem pública, poderá o juiz, como medida cautelar, de ofício, ou a

requerimento do Ministério Público ou ainda mediante representação da autoridade

policial, decretar, em decisão motivada, a suspensão da permissão ou da habilitação para

dirigir veículo automotor, ou a proibição de sua obtenção.

Parágrafo único. Da decisão que decretar a suspensão ou a medida cautelar, ou da que

indeferir o requerimento do Ministério Público, caberá recurso em sentido estrito, sem

efeito suspensivo.

A medida cautelar de suspensão ou proibição do direito de dirigir, prevista no art. 294 do


CTB, é cabível na fase das investigações ou da ação penal. Ela pode ser decretada de ofício,
por representação do Delegado ou por requerimento do MP. Serve para a garantia da ordem
pública, entendida aqui no sentido de “ordem no trânsito” (ou seja, deve ser decretada se
ficar comprovado que o infrator continua praticando infração de trânsito).

O recurso cabível contra a decisão que decreta ou indefere essa medida cautelar é o Recurso
em Sentido Estrito, do art. 581 do CPP.

Veja que apesar de a Lei 12.403/2011 ter criado outras medidas cautelares diversas da
prisão no Código Penal, já havia outras no ordenamento, no CTB e na Lei Maria da Penha.

3 – Multa reparatória (art. 297 do CTB)


Art. 297. A penalidade de multa reparatória consiste no pagamento, mediante depósito

judicial em favor da vítima, ou seus sucessores, de quantia calculada com base no

disposto no § 1º do art. 49 do Código Penal, sempre que houver prejuízo material

resultante do crime. (...)

Art. 49 - A pena de multa consiste no pagamento ao fundo penitenciário da quantia fixada

na sentença e calculada em dias-multa. Será, no mínimo, de 10 (dez) e, no máximo, de

360 (trezentos e sessenta) dias-multa.

§ 1º - O valor do dia-multa será fixado pelo juiz não podendo ser inferior a um trigésimo

do maior salário mínimo mensal vigente ao tempo do fato, nem superior a 5 (cinco) vezes

esse salário.

§ 2º - O valor da multa será atualizado, quando da execução, pelos índices de correção

monetária.

3.1 – Natureza jurídica

220
Há três correntes acerca da natureza jurídica da multa reparatória do art. 297 do CTB:

1ª corrente: é pena criminal (sanção penal), pois é calculada e executada da mesma


forma que a multa penal.

2ª corrente: é efeito extrapenal da sentença condenatória, e não pena (Fernando


Capez).

3ª corrente: é sanção civil, aplicada pelo juiz criminal, pelos seguintes motivos: i)
destina-se à vítima e seus sucessores, e não ao Estado; ii) não pode ser superior ao
valor do prejuízo da vítima demonstrado no processo; iii) será descontada de eventual
indenização civil; e iv) destina-se a satisfazer prejuízos materiais.

Assim, a multa reparatória não pode ser fixada para a indenização de danos morais, mas
somente para os danos materiais comprovados no processo. A terceira corrente é
amplamente majoritária (praticamente unânime).

3.2 – Execução da multa reparatória

Se a multa reparatória não for paga, deverá ser executada nos termos do art. 51 do CP,
conforme dispõe o art. 297, § 2º do CTB:

Art. 297 (...) § 2º Aplica-se à multa reparatória o disposto nos arts. 50 a 52 do Código

Penal.

Art. 51 - Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será considerada dívida

de valor, aplicando-se-lhes as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda

Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição.

(Redação dada pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996) (...)

Ou seja, deverá ser executada como dívida ativa da Fazenda Púbica. Como se trata de
indenização para a vítima, a doutrina diz que execução deve ser feita pela própria vítima ou
seus sucessores, na Vara Cível.

3.3 – Possibilidade de cumulação com a pena de prestação pecuniária

É possível que o juiz substitua a pena de prisão por prestação pecuniária e aplique
cumulativamente a pena reparatória? Lembre que ambas vão para a vítima ou seus
sucessores. O STJ decidiu que isso é possível, no REsp 736.784.

4 – Prisão em flagrante e fiança em crimes de trânsito (art. 301)

221
Art. 301. Ao condutor de veículo, nos casos de acidentes de trânsito de que resulte vítima,

não se imporá a prisão em flagrante, nem se exigirá fiança, se prestar pronto e integral

socorro àquela.

Só há dois crimes no CTB para cuja consumação exige-se a ocorrência de acidente: homicídio
culposo (art. 302) e lesão culposa (art. 303). Todos os demais são crimes de perigo.

Se o infrator prestar pronto e integral socorro à vítima, não são cabíveis autuação em
flagrante e exigência de fiança. Também não incide a causa de aumento de pena pela
omissão de socorro (art. 302, parágrafo único, III). Por outro lado, se o infrator não prestar
pronto e integral socorro à vítima, são cabíveis autuação em flagrante e fiança e incide a
causa de aumento de pena do art. 302, parágrafo único, III.

O infrator pode socorrer pessoalmente a vítima ou solicitar o socorro de terceiro, como os


Bombeiros ou a ambulância. “Prestar socorro”, nesses casos, pode ser ligar para solicitar
socorro.

Mas cuidado: o socorro tem de ser pronto e integral. A demora injustificada no socorro
autoriza o flagrante e o aumento de pena. E o socorro tem de ser integral, não apenas
parcial.

Se o condutor não socorreu porque estava impossibilitado de fazê-lo, não haverá autuação
em flagrante nem aumento de pena pela omissão. Ex.: o condutor se feriu e desmaiou ou foi
ameaçado de linchamento.

Se o Delegado entender que houve dolo eventual (ou direto, evidentemente), o infrator será
preso em flagrante, mesmo que tenha prestado pronto e integral socorro à vítima. Isso
porque, neste caso, a autuação ocorrerá pelo homicídio doloso do Código Penal, não se
aplicando o art. 301 do CTB.

5 – Principais crimes do CTB em espécie

5.1 – Homicídio culposo (art. 302)

5.1.1 – veículo automotor

Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:

Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a

permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. (...)

222
Só se aplica o art. 302 do CTB se o homicídio for praticado na direção de veículo automotor.
Para qualquer outra hipótese de homicídio culposo, aplica-se o Código Penal.

O conceito de veículo automotor está no anexo I do CTB:

VEÍCULO AUTOMOTOR - todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios

meios, e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a

tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O termo

compreende os veículos conectados a uma linha elétrica e que não circulam sobre trilhos

(ônibus elétrico).

Não se aplica o art. 302 do CTB se o homicídio culposo for praticado na condução de: i)
veículo de tração humana (ex.: bicicleta); ii) veículo de tração animal (ex.: carroça); iii)
veículo automotor aquático (ex.: lancha); iv) veículo automotor aéreo (ex.: avião); e v)
ciclomotor (conceito que também está no anexo I):

CICLOMOTOR - veículo de duas ou três rodas, provido de um motor de combustão

interna, cuja cilindrada não exceda a cinquenta centímetros cúbicos (3,05 polegadas

cúbicas) e cuja velocidade máxima de fabricação não exceda a cinquenta quilômetros por

hora.

Se o homicídio culposo for praticado numa dessas situações, aplica-se o Código Penal. Há
diferença, pois no CP a pena é de 1 a 3 anos de detenção, enquanto que no CTB a pena é de
2 a 4 anos de detenção, mais suspensão ou proibição do direito de dirigir.

Cominar penas diferentes para crimes idênticos de homicídio culposo viola o princípio
constitucional da proporcionalidade? Para o STF não, pois os altos índices de acidentes no
trânsito justificam a discricionariedade do legislador democrático em cominar penas
diferentes para o homicídio culposo no CP e no CTB (RE 428.864 e STJ HC 63.284). Em
março/abril de 2011, o STF reafirmou a constitucionalidade do art. 302 do CTB.

5.1.2 – causas de aumento de pena no homicídio culposo (art. 302, parágrafo único)

Art. 302 (...) Parágrafo único. No homicídio culposo cometido na direção de veículo

automotor, a pena é aumentada de um terço à metade, se o agente:

I - não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação;

II - praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada;

III - deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do

acidente;

IV - no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte

223
de passageiros.

V - (Revogado pela Lei nº 11.705, de 2008)

O condutor sem habilitação ou permissão que mata culposamente não responderá pelo
homicídio culposo mais o de direção sem habilitação, mas pelo crime de homicídio culposo,
com pena aumentada de 1/3 à metade.

Essa causa de aumento de pena não se aplica se se tratar de veículo de transporte de cargas.
Assim, se o caminhoneiro matar culposamente, não incide o aumento.

No entanto, incide o aumento mesmo que, no momento do acidente, o veículo de


transporte de pessoas esteja vazio. O que se quer é maior cuidado por parte de motoristas
profissionais que transportam pessoas (Informativo 537, Ag Rg no REsp 1.255.562).

O art. 302, parágrafo único, V, do CTB foi incluído pela Lei 11.275/2006 e revogado pela Lei
Seca.

Redação original Alteração pela Lei 11.275/2006 Alteração pela Lei 11.705/2008
Não previa a causa de Acrescentou a causa de Revogou a causa de aumento de
aumento de pena da aumento de pena da pena da embriaguez ao
embriaguez, no homicídio embriaguez ao homicídio homicídio culposo.
culposo. culposo.

Na redação original, quando o condutor embriagado matasse alguém culposamente, havia


duas correntes:

1ª corrente: o condutor respondia apenas pelo homicídio culposo de trânsito, ficando


absorvido o crime de embriaguez ao volante. Isso porque o crime de embriaguez ao
volante é crime de perigo e menos grave que o homicídio culposo, que é crime de
resultado. Ou seja, o crime menos grave de perigo ficava absorvido pelo crime mais
grave de resultado.

2ª corrente: o infrator respondia por ambos os crimes (homicídio culposo e


embriaguez ao volante), em concurso material, por terem os crimes momentos
consumativos e protegerem bens jurídicos diferentes.

Com a alteração da Lei 11.275/2006, caiu por terra a discussão. O sujeito que praticasse o
crime respondia pelo crime de homicídio culposo, aumentado pela embriaguez.

Revogado o inciso V pela Lei 11.705/2008, foi retomada a discussão anterior, valendo
ressaltar que não há corrente majoritária.

224
O STJ e o STF já pacificaram que o crime em estado de embriaguez não é necessariamente
culposo ou doloso (com dolo eventual). Poderá ser de uma ou outra natureza, dependendo
das circunstâncias do caso concreto. Nesse sentido: REsp 719.477, REsp 249.604 e REsp
225.338.

É cabível perdão judicial para os crimes de homicídio culposo e de lesão culposa do CTB? O
art. 107, IX, do CP diz que o perdão judicial só é cabível nos casos previstos em lei. O CTB não
prevê o perdão judicial (o art. 300, que previa, foi vetado pelo então presidente Fernando
Henrique Cardoso). Mesmo assim, é cabível o perdão judicial, aplicando-se, por analogia, o
perdão judicial previsto para o homicídio culposo e para a lesão culposa no Código Penal.

5.1.3 – Alterações inseridas pela Lei 12.971/14

A Lei 12.971/14 alterou os arts. 173, 174, 175, 191, 202, 203, 292, 302, 303, 306 e 308 do
Código de Trânsito Brasileiro.

Rogério Sanches chama a atenção para as alterações dos arts. 302 e 308.

No art. 302, o CTB pune o homicídio culposo na direção de veículo automotor, com pena de
detenção de 2 a 4 anos, majorada pelo parágrafo único.

A nova lei, com vigente prevista para novembro de 2014, resolveu dar nova topografia para
o art. 302, transformando o parágrafo único em parágrafo 1º e incluiu um novo parágrafo, o
parágrafo 2º, qualificando o crime quando a morte resulta de racha ou embriaguez ao
volante.

Antes Depois
Art. 302, caput, CTB (homicídio culposo n direção Art. 302, caput, CTB (homicídio culposo n direção
de veículo automotor) de veículo automotor)
Parágrafo único (majorantes) Parágrafo 1º (majorantes)
Parágrafo 2º (qualificadora quando a morte
advém de embriaguez ao volante ou racha)
“Art. 302. 

§ 1o  No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é

aumentada de 1/3 (um terço) à metade, se o agente:

I - não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação;

II - praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada;

III - deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do

acidente;

225
IV - no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte

de passageiros.

§ 2o  Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em

razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine

dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou

ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não

autorizada pela autoridade competente:

Penas - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a

permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.” (NR)

Apesar de ter a mesma pena do caput (2 a 4 anos), é punido com reclusão (e não detenção),
admitindo, portanto, regime inicial fechado. O legislador quis, em tese, autorizar o juiz a
aplicar, nessas hipóteses, regime inicial fechado.

Veja que em nenhum momento isso impede que na análise do caso concreto se conclua que
o agente não agiu com culpa, mas que aceitou a morte do pedestre, seja na embriaguez ou
no racha. Nesse caso, haverá aplicação do CP.

Na visão de Rogério Sanches, o legislador, num momento de extrema infelicidade, alterou


também o art. 308 do CTB (crime de racha), qualificando sua pena quando ocorrer lesão
grave (3 a 6 anos) ou morte (5 a 10 anos) culposas.

O art. 308 do CTB pune o racha. A Lei acrescentou duas qualificadoras.

“Art. 308.  Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa

ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando

situação de risco à incolumidade pública ou privada:

Penas - detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se

obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

§ 1o  Se da prática do crime previsto no caput resultar lesão corporal de natureza grave, e

as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco

de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, sem

prejuízo das outras penas previstas neste artigo.

§ 2o  Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias

demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a

pena privativa de liberdade é de reclusão de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das

226
outras penas previstas neste artigo.” (NR)

Ficou a dúvida: quando de um racha ocorrer morte culposa, deve o condutor responder pelo
art. 302 qualificado (pena de 2 a 4 anos) ou art. 308 qualificado (5 a 10 anos)? Os
parlamentares qualificaram ambos os crimes em razão da morte culposa. Pune-se o mesmo
comportamento de duas formas diferentes: o art. 302 pune homicídio culposo qualificado
pelo racha (pena de 2 a 4 anos) e o art. 308 pune o racha qualificado pelo homicídio culposo
(pena de 5 a 10 anos).

Já existem duas correntes:

1ª corrente: deve-se aplicar o art. 302 do CTB, por ser a norma mais favorável. Posição a ser
defendida em provas de Defensoria Pública.

2ª corrente: deve-se aplicar o art. 308 do CTB, em razão do princípio da especialidade.


Primeiro se consuma o art. 308 (racha) para somente depois ocorrer a morte culposa.

Não há posicionamento majoritário na jurisprudência, tendo em vista que a lei sequer


entrou em vigor. Espera-se que o legislador corrija esse problema.

5.2 – Lesão corporal culposa (art. 303)

Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor:

Penas - detenção, de seis meses a dois anos e suspensão ou proibição de se obter a

permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Parágrafo único. Aumenta-se a pena de um terço à metade, se ocorrer qualquer das

hipóteses do parágrafo único do artigo anterior.

Aplica-se ao crime de lesão corporal culposa tudo o quanto dito acerca do homicídio
culposo, inclusive as causas de aumento de pena.

Relativamente à causa de aumento de pena do art. 302, parágrafo único, I, do CTB (não
possuir o motorista Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação), o sujeito que pratica
lesão culposa no trânsito responderá pelo crime do art. 303, aumentado de 1/3 à metade, e
não pelos crimes de lesão corporal e de direção sem habilitação.

Todavia, se a vítima não oferecer representação, o agente não será processado pelo crime
de lesão corporal culposa com a pena aumentada pela falta de habilitação. Neste caso, o
condutor poderá responder pelo crime de falta de habilitação do art. 309? Para o STJ e o
STF, não (pacíficos). Isso porque, quando ocorre a lesão, o crime de falta de habilitação

227
perde a sua autonomia e passa a funcionar como causa de aumento de pena. Ou seja, como
circunstância acessória, que segue o principal.

5.3 – Omissão de socorro (art. 304)

Art. 304. Deixar o condutor do veículo, na ocasião do acidente, de prestar imediato

socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar

auxílio da autoridade pública:

Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa, se o fato não constituir elemento de

crime mais grave. (...)

5.3.1 – sujeito ativo

O crime de omissão de socorro somente pode ser praticado pelo condutor do veículo que,
na ocasião do acidente, omite socorro à vítima. Ocorre que a omissão do condutor já é causa
de aumento de pena no homicídio e na lesão corporal culposos. Não é possível que o juiz
condene por homicídio ou lesão corporal culposos aumentados, mais omissão de socorro,
sob pena de bis in idem. Assim, a quem se aplica o art. 304 do CTB?

No homicídio e lesão culposos de trânsito, se houver omissão de socorro da vítima, haverá


três situações:

i) o condutor culpado que omitiu socorro responde por homicídio ou lesão culposa, com a
pena aumentada pela omissão;

ii) o condutor envolvido no acidente, não culpado, que omitiu socorro, responde pelo art.
304 do CTB. Isso porque ele não responderá pelo homicídio culposo ou pela lesão culposa,
pois não teve culpa;

iii) o condutor não envolvido no acidente (que vinha atrás) que omitiu socorro responde por
omissão de socorro do Código Penal, pois, se não está envolvido no acidente, não podem ser
a ele aplicadas as disposições do CTB.

Portanto, o art. 304 do CTB tem somente um destinatário: o condutor envolvido no


acidente, não culpado, que omitiu socorro.

5.3.2 – observações quanto ao art. 304, parágrafo único, do CTB

Art. 304 (...) Parágrafo único. Incide nas penas previstas neste artigo o condutor do

veículo, ainda que a sua omissão seja suprida por terceiros ou que se trate de vítima com

morte instantânea ou com ferimentos leves.

228
Se os terceiros se adiantaram no socorro, o condutor não responderá pela omissão. Ex.:
ocorrido o acidente, havia ao lado uma ambulância, cujos médicos e enfermeiros realizaram
o socorro. Não há omissão de socorro, mas prestação prévia de socorro por terceiros.

No caso de morte instantânea evidente (ex. vítima esmagada por caminhão) o art. 304 do
CTB criou hipótese de crime impossível por absoluta impropriedade do objeto, na medida
em que cadáver não pode ser vítima de omissão de socorro. Contudo, havendo dúvidas
sobre o estado da vítima, ela deve ser socorrida.

Além disso, só há o crime se o “ferimento leve” a que se refere o dispositivo reclamar


socorro. Um pequeno corte no dedo, com mero estancamento de sangue por pressão, não
enseja a incidência do crime de omissão de socorro.

5.4 – Embriaguez ao volante (art. 306)

O art. 306 do CTB foi alterado pela Lei 11.705/2008 e, posteriormente, pela Lei 12.760/2012:

Redação original:

Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou

substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem: (...)

Redação dada pela Lei 11.705/2008:

Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool

por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer

outra substância psicoativa que determine dependência: (...)

Redação atual:

Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da

influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a

permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

§ 1º As condutas previstas no caput serão constatadas por:

I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou

superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou

II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade

psicomotora. (...)

Redação original Lei 11.705/2007 Lei 12.760/2012

229
O art. 306 mencionava a O art. 306 mencionava a O art. 306 passou a mencionar
expressão: “sob a influência de expressão: “com concentração a expressão “com capacidade
álcool”. Por conta disso, o de álcool igual ou superior a 6 psicomotora alterada em razão
crime podia ser comprovado decigramas por litro de da influência de álcool”. Agora,
por exame de sangue, sangue”. A partir de então, o de acordo com regra expressa,
etilômetro (bafômetro, que crime só poderia ser o crime pode ser comprovado
mede a quantidade de álcool comprovado por exame de por “teste de alcoolemia
no ar dos pulmões e faz a sangue ou por etilômetro. (exame de sangue ou
conversão para aferir a etilômetro), exame clínico
quantidade no sangue), exame (visual do médico), perícia,
clínico visual do médico e prova vídeo, prova testemunhal ou
testemunhal. outros meios de prova em
direito admitidos”.

Com o advento da Lei 11.705/2007, surgiu uma celeuma na jurisprudência do STJ. A 5ª


Turma do STJ decidia que, se não fosse possível a realização do exame de sangue ou
etilômetro por falta de aparelho ou por recusa do condutor, seria admissível o exame clínico
ou a prova testemunhal (HC 164.653/MS, julgado em 1º de março de 2011). A 6ª Turma, por
sua vez, decidia que, se não fosse realizado o exame de sangue ou etilômetro, o fato seria
atípico e a ação penal ou o inquérito policial deveriam ser trancados (HC 166.377/SP, julgado
em 10 de junho de 2010). A 6ª Turma baseava seu entendimento em artigo publicado por
Silvio Maciel e Luiz Flávio Gomes, para os quais o exame visual não é capaz de aferir a
quantidade de álcool no sangue do agente, razão pela qual seria impossível a comprovação
da embriaguez sem exame de sangue ou bafômetro. Em 28 de março de 2012, a 3ª Seção do
STJ pacificou o tema. Por 5 a 4, os Ministros acataram o entendimento da 6ª Turma, no
sentido de que o depoimento de testemunhas ou o exame clínico não poderiam ser usados
para aferir a embriaguez (REsp 1.111.566).

Em razão desse entendimento jurisprudencial, foi necessário novamente alterar a redação


do art. 306 do CTB, que ficou mais próxima da original, pois para se livrar do crime bastava a
recusa ao teste de alcoolemia.

Redação original Lei 11.705/2007 Lei 12.760/2012


O art. 306 exigia perigo à O art. 306 passou a não mais Com a Lei 12.760/2012, o crime
incolumidade de outrem. Ou exigir o perigo à incolumidade continua sendo de perigo
seja, era crime de perigo de outrem. Passou a ser crime abstrato.
concreto. de perigo abstrato (5ª Turma
do STJ).

230
Atenção! A 5ª Turma vem decidindo que a embriaguez ao volante é crime de perigo
abstrato. Entretanto, especificamente no julgamento do HC 158.311, a própria 5ª Turma
decidiu diversamente, no sentido de que se trata de crime de perigo concreto
indeterminado (aquele para cuja existência é necessária a comprovação do perigo, ainda
que para um número indeterminado de pessoas).

O art. 306 (nas duas primeiras redações) mencionava que o crime ocorreria somente se o
fato ocorresse “na via pública”. Se uma pessoa dirigisse embriagada em clube particular,
haveria o crime de perigo à vida ou à saúde de outrem, previsto no art. 132 do CP 12, mas não
o de embriaguez ao volante. Com a atual redação do art. 306, é possível cometer o crime
ainda que não se trate de via pública, pois a expressão não foi reproduzida.

Vale observar que se o homicídio culposo ou a lesão culposa ocorrer em via particular,
também se aplica o CTB (e não o CP), pois os arts. 302 e 303 também não contêm a
elementar “via pública”. Ex.: homicídio culposo por atropelamento dentro de uma fazenda.

5.5 – Falta de habilitação ou permissão para dirigir (art. 309)

Art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou

Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano:

Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.

A conduta punida no art. 309 é “dirigir veículo automotor”. “Dirigir” significa colocar o
veículo em movimento, no tráfego. A conduta tem de ser realizada em via pública. Se a
pessoa dirigir sem habilitação em via particular (um clube, uma fazenda), não existe crime.
Consideram-se vias públicas as ruas internas de um condomínio fechado (art. 2º, parágrafo
único, do CTB):

Art. 2º (...) Parágrafo único. Para os efeitos deste Código, são consideradas vias terrestres

as praias abertas à circulação pública e as vias internas pertencentes aos condomínios

constituídos por unidades autônomas.

O crime ocorre se o agente estiver sem a devida habilitação ou como o direito de dirigir
cassado.

O crime do art. 309 é de perigo concreto (veja a parte final: “gerando perigo de dano”). A
acusação tem de provar a conduta prevista no caput e o fato de ela ter gerado um perigo

12
Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente: Pena - detenção, de três
meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave. (...)

231
real a alguém ou ao patrimônio de alguém. Caso do fato não decorra perigo de dano, ele é
considerado atípico.

Quando o CTB entrou em vigor, surgiram duas correntes:

1ª corrente: dirigir sem habilitação, gerando perigo de dano, configuraria o crime do


art. 309 do CTB; dirigir sem habilitação, sem gerar perigo de dano configuraria a
contravenção do art. 32 da LCP.

Art. 32. Dirigir, sem a devida habilitação, veículo na via pública, ou embarcação a motor

em aguas públicas:

Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

2ª corrente: dirigir sem habilitação, gerando perigo de dano, configuraria o crime do


art. 309 do CTB; dirigir sem habilitação, sem gerar perigo de dano seria fato atípico
(mera infração administrativa). Ou seja, para esta segunda corrente, o art. 32 da LCP
teria sido derrogado pelo CTB.

A segunda corrente foi a que prevaleceu no STF (Súmula 720):

Súmula 720 - O ART. 309 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO, QUE RECLAMA DECORRA

DO FATO PERIGO DE DANO, DERROGOU O ART. 32 DA LEI DAS CONTRAVENÇÕES PENAIS

NO TOCANTE À DIREÇÃO SEM HABILITAÇÃO EM VIAS TERRESTRES.

Lembre que derrogação é revogação parcial, de modo que o dispositivo continua aplicável
no que se refere à condução inabilitada de embarcações.

Dirigir com habilitação vencida é mera infração administrativa. Não configura o crime do art.
309. Dirigir sem portar o documento de habilitação ou permissão também. Dirigir o veículo
com habilitação de categoria diversa da exigida pelo veículo que se está conduzindo,
entretanto, é considerado crime. Isso porque o caput do art. 309 fala expressamente em
“habilitação devida”. Ex.: o infrator tem habilitação para conduzir motocicleta e está
conduzindo automóvel.

Se o infrator apresentar documento falso de habilitação ou permissão, responde por uso de


documento falso mais o crime do art. 309 (se estiver gerando perigo de dano), em concurso
material.

O caput do art. 309 fala no direito de dirigir “cassado”. Se a pessoa dirige com o direito de
dirigir suspenso ou proibido, pratica o crime do art. 307 do CTB, e não o do art. 309,
conforme já estudado.

232
5.6 – Crime do art. 310 do CTB

O art. 310 do CTB pune a conduta de dar a direção do veículo a pessoa não habilitada, com
habilitação cassada, com o direito de dirigir suspenso, sem condições físicas ou mentais de
dirigir com segurança ou embriagada:

Art. 310. Permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa não

habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou, ainda, a

quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em

condições de conduzi-lo com segurança:

Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.

Trata-se de exceções pluralísticas à teoria monista. Aquele que entrega o veículo a pessoa
em uma das condições do caput responde pelo crime do art. 310. O condutor não responde
como partícipe, mas:

i) em se tratando de pessoa não habilitada ou com habilitação cassada, como autor do crime
do art. 309, se gerar perigo de dano;

ii) em se tratando de pessoa com direito de dirigir suspenso, como autor do crime do art.
307;

iii) em se tratando de pessoa em estado de embriaguez, como autor do crime do art. 306.

Todavia, se o infrator entregar o veículo a quem não tenha permissão ou esteja proibido de
dirigir, será partícipe, respectivamente, dos crimes dos arts. 307 e 309.

Só há o crime do art. 310 se o agente conhece as condições do caput. Caso ele não saiba
daquelas condições, não responderá pelo crime, por erro de tipo.

233
LEI DOS CRIMES AMBIENTAIS (LEI 9.605/1998)

1 – Proteção ambiental na Constituição de 1988

A Constituição dispensa um tratamento especial à proteção do meio-ambiente. É a primeira


que dedica um capítulo inteiro ao tema, além de possuir em seu texto diversas normas de
proteção ambiental.

José Afonso da Silva diz que o capítulo de proteção ao meio-ambiente é um dos mais
importantes e avançados da CR. Edis Milaré diz que se trata do texto constitucional mais
avançado do mundo, nessa área.

Dentre todas essas medidas, a CR prevê a proteção penal do meio-ambiente. É o que Luiz
Regis Prado chama de “mandado expresso de criminalização das condutas lesivas ao meio-
ambiente”. Ou seja, há uma ordem constitucional para criminalizar as condutas lesivas ao
meio-ambiente.

Não há duvida, portanto, de que o meio ambiente é um bem jurídico passível de tutela
penal. Havia uma discussão na doutrina sobre se o meio-ambiente precisaria de tutela penal.
Alguns sustentam que bastaria a edição de normas administrativas. Todavia, de acordo com
o sistema constitucional brasileiro, o meio-ambiente deve ser penalmente tutelado, por
expressa determinação da Constituição.

2 – Lei penal ambiental (Lei 9.605/1998)

Cumprindo o comando constitucional, foi editada a Lei 9.605/1998, com uma parte geral
(arts. 2º a 28) e uma parte especial (arts. 29 a 69-A). A parte geral contém regras próprias e
específicas sobre concurso de pessoas, teoria da pena, sentença penal, confisco, transação
penal, suspensão condicional do processo etc. A parte especial define os crimes ambientais
em espécie.

No que a parte geral for omissa, aplicam-se subsidiariamente as normas do Código Penal, do
Código de Processo Penal (art. 79) e das leis dos Juizados Especiais Criminais (pois a maioria
dos crimes ambientais é de menor potencial ofensivo):

Art. 79. Aplicam-se subsidiariamente a esta Lei as disposições do Código Penal e do

Código de Processo Penal.

234
Um dos objetivos principais da Lei Ambiental é a reparação ou a compensação dos danos
ambientais. Aliás, essa é uma determinação da própria CR (art. 225, § 3º), que prevê o
princípio do poluidor-pagador:

Art. 225 (...) § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente

sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,

independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

Como será estudado a seguir, decorrência disso é que a maioria dos institutos da parte geral
está relacionada à reparação ou compensação do dano ambiental. O objetivo da lei
ambiental, portanto, é punir, mas também buscar a compensação ou reparação dos danos
ambientais.

3 – Concurso de pessoas nos crimes ambientais

O art. 2º, primeira parte, da Lei dos Crimes contra o Meio-Ambiente apenas diz que é
possível concurso de pessoas nos crimes ambientais. Adota a teoria unitária ou monista do
concurso de pessoas, a mesma do art. 29, caput, do CP:

Art. 2º Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei,

incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor,

o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o

preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de

outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la.

Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este

cominadas, na medida de sua culpabilidade. (...)

4 – Omissão penalmente relevante

O art. 2º, segunda parte, da Lei Ambiental dispõe que diretores, administradores,
conselheiros, auditores, gerentes, prepostos e mandatários de pessoas jurídicas respondem
por omissão nos crimes ambientais. Essas pessoas podem cometer crimes ambientais,
portanto, tanto por ação como por omissão.

O dispositivo criou, para essas pessoas, o dever jurídico de agir e evitar crimes ambientais, o
que torna a omissão dessas pessoas penalmente relevante, nos termos do art. 13, § 2º, a, do
Código Penal. Ou seja, a Lei Ambiental criou a obrigação dessas pessoas de cuidar, proteger
o meio-ambiente:

235
Art. 13 (...) § 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir

para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; (...)

Essas pessoas respondem por omissão desde que presentes dois requisitos: i) ciência da
existência do crime; e ii) poder de evitá-lo. Os dois requisitos impedem a responsabilização
penal objetiva (a responsabilidade penal sem dolo e sem culpa).

5 – Denúncia genérica

Para evitar a responsabilidade penal objetiva, o STF e o STJ não admitem denúncia genérica,
que é aquela que não estabelece um mínimo vínculo entre o fato criminoso narrado e o
denunciado. Em outras palavras, denúncia genérica é aquela que inclui a pessoa no polo
passivo da ação apenas em razão da sua condição de diretor, gerente, preposto, mandatário
etc. da pessoa jurídica.

A denúncia genérica é inepta, pois impede o contraditório e a ampla defesa. Na medida em


que não é mencionada no fato criminoso narrado, a pessoa não sabe por que foi incluída na
ação penal.

No STJ HC 147.541/RS, julgado em 16 de dezembro de 2010, o gerente da empresa TIM


celulares foi denunciado por crime ambiental. O STJ entendeu que a denúncia não trazia
descrição individualizada da conduta, não constando sequer singelamente a imputação dos
fatos criminosos ao acusado.

No mesmo sentido, ver o STF HC 86.879. Nesse julgado, o Ministro Joaquim Barbosa
demonstra uma mudança de orientação do STF, que admitia a denúncia genérica.

Importante observar que a proibição de denúncia genérica aplica-se a todos os crimes


societários (crimes praticados no âmbito da empresa). Ex.: crimes contra a ordem tributária,
contra o sistema financeiro, contra o consumidor etc.

Eugênio Pacelli, que participa da reforma do CPP, faz uma distinção entre denúncia genérica
e denúncia geral.

A denúncia geral narra o fato criminoso, com todas as suas circunstâncias e o imputa,
indistintamente, a todos os acusados. Para Pacelli, ela é apta/válida, devendo ser recebida.
Isso porque saber se todos os denunciados cometeram o crime é matéria de prova, não
pressuposto para a validade do processo. Ex.: a denúncia narra que todos os sócios

236
determinaram o corte ilegal de árvores em área de preservação permanente (APP). Saber se
todos realmente praticaram a conduta é questão de prova, de mérito.

Já a denúncia genérica é a que narra vários fatos típicos ou vários núcleos verbais no mesmo
tipo e os imputa genericamente aos acusados, sem que se possa saber quem agiu de qual
maneira. Ela é inepta, porque inviabiliza o contraditório e a ampla defesa, devendo ser
rejeitada.

Essa diferença entre denúncia geral e genérica também é feita em alguns julgados do STJ, os
quais concluem que a geral é apta, não inepta (RHC 24.515 e HC 117.306).

6 – Responsabilidade penal da pessoa jurídica

A responsabilidade penal da pessoa jurídica está prevista no art. 225, § 3º, da CR e no art. 3º
da Lei Ambiental. É o grande tema do direito penal ambiental.

Art. 225 (...) § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente

sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,

independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente

conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de

seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou

benefício da sua entidade.

Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas,

autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato.

6.1 – Correntes sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica

Apesar da previsão constitucional e legal, há basicamente três correntes acerca da


responsabilidade penal da pessoa jurídica, que serão estudadas a seguir.

6.1.1 – a CR/88 não prevê responsabilidade penal da pessoa jurídica

O primeiro argumento da corrente que defende que a CR/88 não prevê responsabilidade
penal da pessoa jurídica parte da interpretação do art. 225, § 3º, da CR. Segundo essa
corrente, o dispositivo não prevê a responsabilidade penal da pessoa jurídica, pois
“condutas” são praticadas por pessoas físicas, que sofrem sanções penais (condutas/pessoas
físicas/sanções penais), enquanto que “atividades” são exercidas por pessoas jurídicas que,

237
sofrem sanções administrativas (atividades/pessoas jurídicas/sanções administrativas). E
ambas estão sujeitas a responsabilidade civil.

Além disso, para essa primeira corrente, o art. 5º, XLV, da CR proíbe que a responsabilidade
penal passe da pessoa dos infratores (principio da impessoalidade, da incomunicabilidade ou
da intranscendência da pena):

Art. 5º (...) XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação

de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei,

estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio

transferido;

Ou seja, a responsabilidade penal da pessoa física, que é quem pratica o crime, não pode ser
transferida à pessoa jurídica.

Sob a ótica dessa primeira corrente, portanto, o art. 3º da Lei Ambiental é inconstitucional,
pois ofende materialmente o art. 225, § 3º e o art. 5º, XLV, da CR que, interpretados
sistematicamente, proíbem a responsabilidade penal da pessoa jurídica.

Autores dessa primeira corrente: Luiz Regis Prado, Miguel Reale Júnior, René Ariel Dotti,
Cezar Roberto Bittencourt etc.

6.1.2 – pessoa jurídica não comete crime

Para esta segunda corrente, pessoa jurídica não pode ser sujeito ativo de crime, ou seja,
societas delinquere non potest (“pessoa jurídica não pode delinquir”).

Esta corrente tem como pressuposto a “teoria da ficção jurídica”, de Savigny e Feuerbach,
para a qual as pessoas jurídicas não são entes reais, mas puras ficções jurídicas, meras
abstrações legais. Ou seja, são entes fictícios, irreais, desprovidos de vontade, consciência,
finalidade.

Partindo do pressuposto de que a pessoa jurídica é uma ficção jurídica, os argumentos da


segunda corrente são três:

i) pessoa jurídica não tem capacidade de conduta penal, pois se ela não tem vontade ou
consciência, não atua com dolo nem culpa. Logo, não pratica conduta penal. Punir a pessoa
jurídica significa responsabilidade penal objetiva (responsabilidade penal sem dolo e sem
culpa);

238
ii) pessoa jurídica não tem culpabilidade, pois é desprovida dos elementos que a
caracterizam: não tem imputabilidade (capacidade mental de entender), potencial
consciência da ilicitude (possibilidade de saber que a conduta é proibida) e não se pode
exigir da pessoa jurídica conduta diversa, pois ele não pratica conduta penal.

Se não tem culpabilidade, pessoa jurídica não tem capacidade de pena (se não age com
culpabilidade, a pessoa jurídica não pode sofrer pena). Isso porque a culpabilidade é
pressuposto da pena (unânime).

Argumento de Luiz Regis Prado: as penas são inúteis à pessoa jurídica, pois como são entes
fictícios, elas são incapazes de assimilar as finalidades da pena (preventiva e
ressocializadora: prevenção geral e especial). Portanto, aplicar pena à pessoa jurídica viola o
princípio da necessidade da pena (a pena é inútil a ela).

Adota esta corrente a maioria da doutrina: Zaffaroni, Delmanto, Mirabete, Rogério Greco,
Luiz Flávio Gomes e todos os autores da primeira corrente. Os autores da primeira corrente
também fazem parte da segunda corrente. Eles dizem que a CR não prevê responsabilidade
da pessoa jurídica, mas, ainda que tivesse previsto, pessoa jurídica não comete crime.

Já que pessoa jurídica não comete crime, o que fazer com o art. 225, § 3º, da CR e o art. 3º
da Lei Ambiental? Os autores desta segunda corrente posicionam-se em dois sentidos,
diante desses dispositivos:

i) o art. 225, § 3º da CR é norma de eficácia limitada:

Ou seja, é norma que depende de regulamentação infraconstitucional. Essa regulamentação


é a criação de uma teoria do crime e de institutos processuais próprios para a pessoa
jurídica. Isso porque a teoria que existe hoje é exclusiva para as pessoas físicas, uma vez que
baseada em pressupostos exclusivamente humanos (vontade, consciência, finalidade,
consciência da ilicitude). Rogério Greco diz que para haver tal responsabilização, é
necessária toda uma reformulação da teoria do crime.

ii) o art. 3º da Lei Ambiental não diz que a pessoa jurídica é sujeito ativo de crime. Diz apenas
que pessoa jurídica é responsável pelo crime (“serão responsabilizadas”):

Fernando Galvão diz isso no livro dele. Segundo o autor, o art. 3º prevê a chamada
“responsabilidade penal indireta da pessoa jurídica”, ou seja, responsabilidade por fato de
terceiro. Maciel pensa que Fernando Galvão está equivocado. Isso porque o art. 3º diz que
as pessoas jurídicas serão responsabilizadas, mas acima do art. 3º está a CR, que diz que
“sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas”. A CR diz claramente que pessoa

239
jurídica é infratora. A expressão “pessoas físicas ou jurídicas” é aposto do sujeito infratores.
Portanto, o argumento de Galvão é frágil.

6.1.3 – pessoa jurídica comete crime (societas delinquere potest).

Para esta terceira corrente, pessoa jurídica é sujeito ativo de crime. A corrente tem a sua
base na teoria da realidade (ou da personalidade real), de Otto Gierke, que rebate a de
Savigny, dizendo que pessoas jurídicas são entes reais, não meras ficções
jurídicas/abstrações legais. Ou seja, têm capacidade e vontade próprias e independentes
daquelas das pessoas físicas que as compõem. São realidades independentes.

Com base na teoria da realidade, os argumentos da terceira corrente são os seguintes:

i) pessoa jurídica tem capacidade de conduta, pois tem vontade própria:

“Vontade”, aqui, não no sentido humano, mas no sentido pragmático-sociológico (“ação


delituosa institucional”, termo utilizado por Sérgio Salomão Shecaira).

ii) pessoa jurídica tem capacidade de culpabilidade:

A pessoa jurídica tem culpabilidade social (termo utilizado pelo STJ): a empresa é um centro
autônomo de emanação de decisões. Ela não tem a culpabilidade individual clássica do
finalismo.

iii) pessoa jurídica tem capacidade de pena:

Pessoa jurídica pode sofrer pena criminal de multa e restritiva de direitos. A pena de prisão
deixou de ser o objetivo principal do direito penal (Nucci).

iv) o art. 225, § 3º, da CR, que é norma do poder constituinte originário, e o art. 3º da Lei
Ambiental inegavelmente preveem responsabilidade penal da pessoa jurídica. Portanto, não
há como deixar de responsabilizar pessoa jurídica criminalmente.

Autores desta corrente: Capez, Nucci, Shecaira, Édis MIlaré, Herman Benjamin (STJ) etc.

O STJ adota esta última corrente: pessoa jurídica pode ser sujeito ativo de crime. Lá, o
entendimento é pacífico. O tribunal, todavia, entende que pessoa jurídica não pode ser
denunciada sozinha por crime ambiental, mas apenas juntamente com a pessoa física
responsável pela decisão ou a execução da infração (RE 800.817 e HC 147.541/RS, de 16 de
dezembro de 2010).

240
No HC 147.541/RS, foram denunciados por crime ambiental o gerente da TIM e a TIM. O
gerente impetrou HC e a ordem foi concedida, para trancar a ação contra ele, pois a
denúncia era genérica. Trancada a ação, restou somente no polo passivo a TIM celulares. O
STJ trancou de ofício a ação contra a TIM, pois para o tribunal a pessoa jurídica não pode
figurar isoladamente no polo passivo da ação.

O STF ainda não havia enfrentado diretamente o tema, prevalecendo, portanto, até então, a
posição do STJ. No HC 92.921/BA, os Ministros do Supremo, em seus votos, sustentaram
obter dicta (de passagem) que pessoa jurídica tem responsabilidade penal, podendo ser
denunciada por crime ambiental. No AgR no RE 593.729/SP, a 2ª Turma do STF manteve
uma ação penal em que os réus eram a CETESB e o gerente da CETESB.

Mas, em julgado recente (1ª Turma. RE 548181/PR, rel. Min. Rosa Weber, julgado em
6/8/2013, Informativo 714), a 1ª Turma do STF adotou a 3ª corrente. O STF entendeu que é
admissível a condenação de pessoa jurídica pela prática de crime ambiental, ainda que
absolvidas as pessoas físicas ocupantes de cargo de presidência ou de direção do órgão
responsável pela prática criminosa.

6.2 – Sistema da dupla imputação ou de imputações paralelas

O sistema da dupla imputação ou de imputações paralelas está previsto no art. 3º, parágrafo
único, da Lei Ambiental. O dispositivo diz o seguinte: “pelo mesmo crime, é possível
responsabilizar somente as pessoas físicas ou as pessoas físicas e a pessoa jurídica”.

Para o STJ, a pessoa jurídica, sozinha, não pode ser denunciada, por conta do sistema da
responsabilidade penal por ricochete.

Ocorre que essa tese não prevaleceu no STF, como visto, porque o art. 225, § 3º, da CR/88
não condiciona a responsabilização da pessoa jurídica a uma identificação, e manutenção na
relação jurídico-processual, da pessoa física ou natural.

Em outras palavras, a Constituição não faz a exigência de que a pessoa jurídica seja,
obrigatoriamente, denunciada em conjunto com pessoas físicas.

Para o STF, ao se condicionar a imputabilidade da pessoa jurídica à da pessoa humana, estar-


se-ia quase que a subordinar a responsabilização jurídico-criminal do ente moral à efetiva
condenação da pessoa física, o que não foi o objetivo do § 3º do art. 225 da CF/88.

241
O sistema da dupla imputação (denunciar pessoa física e jurídica pelo mesmo fato) gera bis
in idem? Para o STJ, não. Bis in idem significa punir duplamente pelo mesmo fato a mesma
pessoa, e o sistema da dupla imputação está punindo pelo mesmo fato pessoas distintas.

6.3 – Requisitos para a responsabilidade penal da pessoa jurídica

Até o julgado do STF que admitiu a responsabilização isolada da pessoa jurídica, a doutrina
dizia serem necessários dois requisitos para a responsabilidade penal da pessoa jurídica,
previstos no art. 3º da Lei Ambiental:

i) decisão do crime por representante legal ou contratual, ou órgão colegiado da pessoa


jurídica:

Trata-se da chamada “responsabilidade penal por ricochete” (por procuração, de


empréstimo ou subsequente). É o sistema francês. Segundo Luiz Regis Prado, no sistema
francês, a responsabilidade penal da pessoa jurídica exige uma intervenção humana. Ou
seja, a responsabilidade da pessoa jurídica pressupõe a da pessoa física. Por isso que o STJ
não admitia denúncia isolada contra pessoa jurídica.

Exemplo: o funcionário que opera a motosserra, por sua conta e risco, resolve cortar árvores
ilegalmente, em Área de Proteção Permanente. Nesse exemplo, não há responsabilidade
penal da pessoa jurídica, pois o funcionário da motosserra não é representante legal,
contratual ou órgão colegiado da pessoa jurídica.

Com a nova postura do STF, não mais se exige este requisito.

Para Sílvio Maciel, “A responsabilização penal dos entes morais já exige um ‘contorcionismo
jurídico’ imenso, tendo em vista que a teoria do crime existente em nosso ordenamento
penal é totalmente incompatível com a natureza não humana das pessoas coletivas
(vontade, consciência, imputabilidade, exigibilidade de conduta diversa etc. são pressupostos
exclusivamente humanos, incompossíveis, pois, com a natureza das pessoas jurídicas). O
Brasil não seguiu os passos da França que lá criou uma Lei de Adaptação para viabilizar a
responsabilidade criminal das pessoas jurídicas. Agora com essa decisão do STF o
‘contorcionismo’ deverá ser ainda maior, porque será necessário ‘driblar’ (leia-se: ignorar)
até mesmo o art. 3º da Lei 9.605/98 que claramente impede responsabilização isolada do
ente moral”.

ii) infração praticada no interesse ou benefício da pessoa jurídica:

242
Se a infração não for praticada no interesse ou benefício da pessoa jurídica, não há
responsabilidade penal da pessoa jurídica. Ex.: num desastre ambiental com vazamento de
petróleo, a empresa não tem nenhum interesse ou benefício no fato. Pelo contrário, o
vazamento gera prejuízo à empresa (à imagem, econômico, multa etc.)

Caso se entenda que ambos os requisitos são exigíveis, a denúncia deve indicar ambos (de
quem partiu a decisão do crime e qual o interesse ou benefício para empresa, dele
decorrente), sob pena de inépcia.

6.4 – Responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público

É possível condenar, por exemplo, um município ou uma autarquia por crime ambiental? A
CR e a Lei Ambiental somente mencionam “pessoas jurídicas”, sem especificá-las. Daí surge a
discussão:

1ª corrente: pessoas jurídicas de direito público podem ser responsabilizadas


penalmente por crimes ambientais. Argumentos: i) as pessoas jurídicas têm
autonomia e personalidade distinta daquelas das pessoas físicas que a compõem, tal
como ocorre com as pessoas jurídicas de direito privado. Este é o argumento do
Procurador da República Valter Claudius Rothenburg; ii) se a CR e a Lei Ambiental não
fazem nenhuma distinção, não cabe ao intérprete distinguir pessoas jurídicas de
direito público de pessoas jurídicas de direito privado na responsabilidade penal
(Nucci e Paulo Afonso Leme Machado).

2ª corrente: pessoa jurídica de direito público não pode ser responsabilizada


penalmente por crimes ambientais. Argumentos: i) sendo o Estado o titular exclusivo
do direito de punir, ele não pode punir a si mesmo; ii) os entes públicos somente
podem perseguir fins lícitos, que alcancem o interesse público. Logo, se houver desvio,
ele é sempre da pessoa física; iii) as penas são inúteis nas pessoas jurídicas de direito
público, pois a pena de multa recairá sobre a própria população, uma vez que será
paga com dinheiro público (ou seja, a pena de multa será paga pelos próprios
cidadãos), e as penas restritivas de direitos são inviáveis para as pessoas jurídicas de
direito público, pois elas já têm como finalidade realizar serviços sociais. Nesse
sentido, Édis Milaré, Vladmir e Gilberto Passos de Freitas.

Não há decisão do STF e do STJ sobre a possibilidade ou não de responsabilização penal das
pessoas jurídicas de direito público.

6.5 – Crime culposo

243
É possível punir pessoa jurídica por crime culposo? Édis Milaré diz que pessoa jurídica não
pode ser responsabilizada por crime culposo. O argumento dele é o seguinte: o domínio do
fato está com as pessoas físicas, e não há esse domínio sem dolo. Ou seja, o autor adota,
aqui, a teoria do domínio final do fato.

Para Maciel e Luiz Flávio Gomes, é possível punir a pessoa jurídica por crime culposo, se
houver uma decisão culposa do representante legal, contratual ou órgão colegiado da
empresa e essa decisão tenha nexo de causalidade com o resultado involuntário.

Exemplo: o gerente de uma empresa, de forma imprudente, utiliza materiais de segunda


linha (de baixo custo) na instalação do sistema de escoamento de resíduos. O material cede,
por ser de baixa qualidade, causando poluição hídrica. Trata-se de um crime culposo por
uma decisão culposa do gerente. É possível a punição da pessoa jurídica, para Maciel. Nesse
caso, o interesse da empresa foi economizar gastos na construção dos dutos, colocando
material de baixa qualidade.

Isso não é dolo eventual, mas culpa consciente: o gerente prevê a possibilidade, mas acha
que o dano não acontecerá.

7 – Desconsideração da pessoa jurídica

O artigo 4º da Lei Ambiental não fala em desconsideração da pessoa jurídica para punição,
mas para o ressarcimento de prejuízos causados ao meio-ambiente (responsabilidade civil
ou administrativa):

Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for

obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

A desconsideração da pessoa jurídica, portanto, só permite transferir responsabilidade civil e


administrativa para a pessoa física. Não permite a transferência da responsabilidade penal,
em razão do princípio da intranscendência da pena, previsto no art. 5º, XLV da CR.

Portanto, o art. 4º da Lei Ambiental é um instituto de transferência de responsabilidade civil


ou administrativa da pessoa jurídica para a física, mas não de transferência da
responsabilidade penal. O art. 4º não é instituto penal.

Ex.: uma pessoa jurídica pratica um ilícito ambiental e sofre multa administrativa ambiental
no valor de R$ 100.000,00, uma condenação civil de indenização de mais R$ 100.000,00 e
uma condenação criminal de R$ 100.000,00 (multa penal). A pessoa jurídica pode ser

244
desconsiderada para a transferência à pessoa física da multa administrativa e da indenização
civil, mas não da multa penal sofrida.

8 – Teoria da pena nos crimes ambientais

8.1 – Introdução

A Lei Ambiental tem um capítulo específico para a aplicação da pena no caso de crime
ambiental, com regras próprias, diferentes das do Código Penal.

Para aplicar a pena com base no CP, o juiz persegue três etapas:

1ª etapa: fixação da quantidade de pena com base no critério trifásico do art. 68 do CP (pena
base, agravantes e atenuantes genéricas e causas gerais e especiais de aumento ou
diminuição da pena).

2ª etapa: fixação do regime inicial de cumprimento da pena de prisão.

3ª etapa: verificação da possibilidade de substituição da prisão por restritiva de direitos ou


multa. Não sendo possível a substituição, o juiz verifica a possibilidade de concessão de
sursis, suspendendo a execução da prisão.

Adiante, será analisada a aplicação da pena com as especificidades da Lei Ambiental.

Nos crimes ambientais, o condenado pode ser pessoa física ou jurídica. Em se tratando de
pessoa física, o juiz percorre as três etapas. Caso se trate de pessoa jurídica, o juiz somente
percorre a primeira etapa. Isso porque não há regime inicial de pena de prisão ou
substituição de prisão.

8.2 – Aplicação da pena ao condenado pessoa física

8.2.1 – 1ª etapa: fixação da quantidade de pena, através do critério trifásico do art. 68 do CP

Na primeira etapa de aplicação da pena ao condenado pessoa física, primeiro o juiz fixa a
pena base. Depois, aplica as atenuantes e as agravantes. Por fim, aplica as causas gerais e
especiais de aumento e diminuição de pena. Esse é o critério trifásico do art. 68 do CP:

Art. 68 - A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em

seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as

causas de diminuição e de aumento. (...)

8.2.1.1 – fixação da pena base

245
Em se tratando de crimes ambientais, na fixação da pena, o juiz deve se basear nas
circunstâncias judiciais previstas no art. 6º da Lei Ambiental. O art. 59 do CP somente é
utilizado supletivamente:

Art. 6º Para imposição e gradação da penalidade, a autoridade competente observará:

I - a gravidade do fato, tendo em vista os motivos da infração e suas consequências para a

saúde pública e para o meio ambiente;

II - os antecedentes do infrator quanto ao cumprimento da legislação de interesse

ambiental;

III - a situação econômica do infrator, no caso de multa.

São circunstâncias judiciais previstas no art. 6º:

i) consequências do crime para a saúde pública e para o meio ambiente:

No art. 59 do CP, o juiz leva em conta as consequências da infração penal para a vítima.

ii) maus ou bons antecedentes ambientais:

Os antecedentes ambientais não se referem apenas à prática de crimes ambientais, mas à


observância da legislação ambiental em geral (ex.: o réu que já pagou dez multas
administrativas ambientais, mas nunca sofreu uma condenação por crime ambiental, tem
maus antecedentes ambientais, uma circunstância judicial desfavorável).

Acerca do tema, importante lembrar o teor da Súmula 444 do STJ:

Súmula 444 - É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para

agravar a pena-base.

iii) situação econômica do infrator, no caso de multa:

A multa é calculada com base na situação econômica do infrator (art. 6º, III) e nos prejuízos
causados pelo crime (art. 19). A interpretação do art. 6º tem de ser realizada
sistematicamente com o art. 19 da Lei Ambiental, aplicado supletivamente:

Art. 19. A perícia de constatação do dano ambiental, sempre que possível, fixará o

montante do prejuízo causado para efeitos de prestação de fiança e cálculo de multa. (...)

8.2.1.2 – aplicação das atenuantes e agravantes

Estabelecida a pena base, o juiz então aplica as agravantes e atenuantes. Os arts. 14 e 15 da


Lei Ambiental preveem atenuantes a agravantes próprias.

246
8.2.1.2.1 – atenuantes (art. 14)

Art. 14. São circunstâncias que atenuam a pena:

I - baixo grau de instrução ou escolaridade do agente;

II - arrependimento do infrator, manifestado pela espontânea reparação do dano, ou

limitação significativa da degradação ambiental causada;

III - comunicação prévia pelo agente do perigo iminente de degradação ambiental;

IV - colaboração com os agentes encarregados da vigilância e do controle ambiental.

São atenuantes previstas na Lei Ambiental:

i) baixo grau de instrução ou escolaridade do agente:

Muitos crimes ambientais são praticados em áreas rurais, onde as pessoas não têm acesso a
escola.

Importante observar, todavia, que se esse baixo grau de escolaridade do agente retirar a
potencial consciência da ilicitude do fato, haverá erro de proibição, e não atenuante. Ex.: o
morador rural cresceu cortando uma árvore para fazer remédio que previne doenças. Os
bisavôs já o faziam. Um dia, dizem para ele que cortar a árvore era crime ambiental. Nesse
caso, há erro de proibição.

ii) arrependimento do infrator, manifestado pela espontânea reparação do dano:

Aqui, há um problema. No Código Penal, em se tratando de crime sem violência ou grave


ameaça contra a pessoa, a reparação do dano antes do recebimento da denúncia ou queixa
pode configurar arrependimento posterior (art. 16). Já a reparação do dano após o
recebimento da denúncia ou queixa configura mera atenuante de pena (art. 65).

Segundo Delmanto, na Lei Ambiental a regra é diferente: a reparação do dano, antes ou


após o recebimento da denúncia é mera atenuante (art. 14, II). Adotado esse entendimento,
conclui-se que não se aplica o arrependimento posterior nos crimes ambientais, pois a
reparação será sempre atenuante genérica de pena.

iii) comunicação prévia do agente do perigo iminente de degradação ambiental;

iv) colaboração do infrator com os agentes encarregados da vigilância e do controle


ambiental:

Esta atenuante é apelidada pela doutrina de “delação premiada ambiental”.

8.2.1.2.2 – agravantes (art. 15)

247
O extenso rol de agravantes está previsto no art. 15 da Lei Ambiental, cuja leitura se
recomenda.

Neste estudo, é importante destacar a agravante da reincidência nos crimes de natureza


ambiental. Segundo a Lei Ambiental, o juiz somente pode reconhecer a agravante da
reincidência caso se trate de reincidência específica em crime ambiental.

Portanto, é reincidente ambiental o sujeito que tenha condenação definitiva por crime
ambiental e pratica novo crime ambiental. Não é reincidente, por exemplo, o sujeito com
condenação definitiva por furto que pratica crime ambiental. Neste caso, ele será primário
com maus antecedentes, pois se a condenação definitiva por furto não pode gerar
reincidência, ela pode funcionar como maus antecedentes.

A solução será idêntica caso o sujeito com condenação definitiva por contravenção penal
ambiental pratique crime ambiental: ele será primário com maus antecedentes, pois
contravenção não gera reincidência.

8.2.1.3 – aplicação das causas gerais e especiais de aumento e diminuição de pena

Fixada a pena base e aplicadas as agravantes e atenuantes, o juiz então aplica as causas
gerais e especiais de aumento e diminuição de pena, previstas na Lei Ambiental e no Código
Penal, estas aplicáveis subsidiariamente (ex.: tentativa, continuidade delitiva).

8.2.2 – 2ª etapa: fixação do regime inicial de cumprimento da pena

A Lei Ambiental não tem nenhuma regra sobre regime inicial de cumprimento de pena,
razão pela qual se aplicam as regras do Código Penal, subsidiariamente.

8.2.3 – 3ª etapa: substituição por restritivas de direito ou multa ou concessão de sursis

A terceira etapa da aplicação da pena ao condenado pessoa física por crime ambiental é a
análise da possibilidade de substituição por restritivas de direito ou multa, ou da
possibilidade de concessão de sursis. Há especificidades na Lei dos Crimes Ambientais
quanto a esses institutos, que serão analisadas a seguir.

8.2.3.1 – penas restritivas de direitos para as pessoas físicas

8.2.3.1.1 – características das penas restritivas de direitos previstas na Lei Ambiental

Art. 7º As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de

liberdade quando:

I - tratar-se de crime culposo ou for aplicada a pena privativa de liberdade inferior a

248
quatro anos;

II - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado,

bem como os motivos e as circunstâncias do crime indicarem que a substituição seja

suficiente para efeitos de reprovação e prevenção do crime. (...)

Nos termos do art. 7º, caput, da Lei Ambiental, as penas restritivas de direitos previstas na
Lei 9.605/1998 possuem as seguintes características:

i) autonomia (não são penas acessórias);

ii) substitutividade.

No Código Penal, as penas restritivas de direito têm mais uma característica, a


conversibilidade em prisão: se sobrevier nova pena ou se forem injustificadamente
descumpridas, as restritivas de direito são convertidas em pena privativa de liberdade. Essa
característica também se aplica às restritivas de direito da Lei Ambiental, por aplicação
subsidiária do CP.

8.2.3.1.2 – duração das penas restritivas de direitos previstas na Lei Ambiental

Art. 7º (...) Parágrafo único. As penas restritivas de direitos a que se refere este artigo

terão a mesma duração da pena privativa de liberdade substituída.

Nos termos do art. 7º, parágrafo único, da Lei Ambiental, as penas restritivas de direitos ali
previstas têm a mesma duração da pena de prisão substituída. É a mesma regra do art. 55 do
CP:

Art. 55. As penas restritivas de direitos referidas nos incisos III, IV, V e VI do art. 43 terão a

mesma duração da pena privativa de liberdade substituída, ressalvado o disposto no § 4º

do art. 46. (Redação dada pela Lei nº 9.714, de 1998)

Há, entretanto, uma exceção, prevista no art. 10 da Lei Ambiental:

Art. 10. As penas de interdição temporária de direito são a proibição de o condenado

contratar com o Poder Público, de receber incentivos fiscais ou quaisquer outros

benefícios, bem como de participar de licitações, pelo prazo de cinco anos, no caso de

crimes dolosos, e de três anos, no de crimes culposos.

O dispositivo trata das penas de interdição temporária de direito. A pena restritiva de


direitos, nesse caso, terá prazo de cinco anos, para crimes dolosos, e de três anos, para
crimes culposos. Importante observar que não há, na Lei Ambiental, crime doloso com pena

249
até 5 anos, nem crime culposo com pena de 3 anos. Assim, a pena restritiva será sempre
maior que a pena de prisão substituída.

8.2.3.1.3 – espécies de penas restritivas de direitos previstas na Lei Ambiental

As espécies de penas restritivas de direitos estão previstas nos arts. 8º a 13 da Lei Ambiental.
O art. 8º traz o rol das restritivas de direitos; os arts. 9º a 13 definem cada uma delas:

Art. 8º As penas restritivas de direito são:

I - prestação de serviços à comunidade;

II - interdição temporária de direitos;

III - suspensão parcial ou total de atividades;

IV - prestação pecuniária;

V - recolhimento domiciliar.

Aqui, será realizado um estudo comparativo entre as modalidades de restritivas de direitos


previstas na Lei Ambiental e no Código Penal:

i) prestação de serviços à comunidade (art. 9º):

Art. 9º A prestação de serviços à comunidade consiste na atribuição ao condenado de

tarefas gratuitas junto a parques e jardins públicos e unidades de conservação, e, no caso

de dano da coisa particular, pública ou tombada, na restauração desta, se possível.

A prestação de serviços à comunidade prevista na Lei Ambiental relaciona-se ao meio


ambiente, uma vez que prestada em locais diversos (parques etc.) No Código Penal, ela está
prevista no art. 46, cujo § 2º prevê que os serviços sejam prestados “em entidades
assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em
programas comunitários ou estatais”.

Importante observar que o art. 46, § 4º, do CP aplica-se subsidiariamente à prestação de


serviços à comunidade da Lei Ambiental:

Art. 46 (...) § 4º Se a pena substituída for superior a um ano, é facultado ao condenado

cumprir a pena substitutiva em menor tempo (art. 55), nunca inferior à metade da pena

privativa de liberdade fixada. (Incluído pela Lei nº 9.714, de 1998)

ii) interdição temporária de direitos (art. 10):

Art. 10. As penas de interdição temporária de direito são a proibição de o condenado

contratar com o Poder Público, de receber incentivos fiscais ou quaisquer outros

250
benefícios, bem como de participar de licitações, pelo prazo de cinco anos, no caso de

crimes dolosos, e de três anos, no de crimes culposos.

Como visto, a interdição temporária de direitos deste art. 10 não tem a mesma duração da
prisão substituída. Portanto, é uma exceção à regra do art. 7º, parágrafo único, que diz que a
pena restritiva terá o mesmo prazo da pena de prisão substituída.

Segundo Delmanto, o prazo da pena do art. 10 está em contradição lógica com a regra do
art. 7º, parágrafo único. Logo, esses prazos do art. 10 devem ser desconsiderados. Ou seja,
para o autor, a duração da pena do art. 10 será a mesma da pena de prisão substituída.
Maciel recomenda não adotar esse posicionamento em prova preambular (1ª fase).

No Código Penal, a interdição temporária de direitos está prevista no art. 47.

iii) suspensão parcial ou total de atividades (art. 11):

Art. 11. A suspensão de atividades será aplicada quando estas não estiverem obedecendo

às prescrições legais.

Esta modalidade de pena restritiva de direitos não tem correspondência no Código Penal.

iv) prestação pecuniária (art. 12):

Art. 12. A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima ou à entidade

pública ou privada com fim social, de importância, fixada pelo juiz, não inferior a um

salário mínimo nem superior a trezentos e sessenta salários mínimos. O valor pago será

deduzido do montante de eventual reparação civil a que for condenado o infrator.

A prestação pecuniária, na Lei Ambiental, é fixada de 1 a 360 salários mínimos. O pagamento


deve ser em dinheiro, “à vítima ou à entidade pública ou privada com fim social”. No Código
Penal, a prestação pecuniária está prevista no art. 45, § 1º. Ela é fixada de 1 a 360 salários
mínimos e o pagamento é feito “à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou
privada com destinação social”:

Art. 45 (...) § 1º A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a

seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância

fixada pelo juiz, não inferior a 1 (um) salário mínimo nem superior a 360 (trezentos e

sessenta) salários mínimos. O valor pago será deduzido do montante de eventual

condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários. (Incluído pela Lei

nº 9.714, de 1998)

251
À exceção dessa diferença (“dependentes”), as penas de prestação pecuniária da Lei
Ambiental e do CP são iguais.

O art. 45, § 2º, do CP aplica-se subsidiariamente à Lei Ambiental. Ele permite substituir a
prestação pecuniária por prestação de outra natureza (a chamada “prestação inominada”):

Art. 45 (...) § 2º No caso do parágrafo anterior, se houver aceitação do beneficiário, a

prestação pecuniária pode consistir em prestação de outra natureza. (Incluído pela Lei nº

9.714, de 1998)

No mais, aplica-se à pena ambiental todo o regramento da prestação pecuniária previsto no


CP. Vale lembrar que não cabe HC para discutir pena pecuniária (multa), mas cabe para
discutir pena de prestação pecuniária (restritiva de direitos).

v) recolhimento domiciliar (art. 13):

Art. 13. O recolhimento domiciliar baseia-se na autodisciplina e senso de responsabilidade

do condenado, que deverá, sem vigilância, trabalhar, frequentar curso ou exercer

atividade autorizada, permanecendo recolhido nos dias e horários de folga em residência

ou em qualquer local destinado a sua moradia habitual, conforme estabelecido na

sentença condenatória.

A pena de recolhimento domiciliar é risível. Ela espera autodisciplina e senso de


responsabilidade de uma pessoa que delinquiu. É uma pena sem vigilância, consistente em
trabalhar, frequentar curso ou exercer atividade autorizada e se recolher para casa. Ou seja,
o que todo mundo faz todos os dias. Seu correspondente (próximo) no CP é a limitação de
final de semana (art. 48):

Art. 48 - A limitação de fim de semana consiste na obrigação de permanecer, aos sábados

e domingos, por 5 (cinco) horas diárias, em casa de albergado ou outro estabelecimento

adequado.

Parágrafo único - Durante a permanência poderão ser ministrados ao condenado cursos e

palestras ou atribuídas atividades educativas.

8.2.3.1.4 – requisitos para a substituição da pena de prisão por restritiva de direitos

Os requisitos para a substituição da pena de prisão por restritiva de direitos estão previstos
no art. 7º, I e II, da Lei Ambiental:

Art. 7º As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de

liberdade quando:

252
I - tratar-se de crime culposo ou for aplicada a pena privativa de liberdade inferior a

quatro anos;

II - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado,

bem como os motivos e as circunstâncias do crime indicarem que a substituição seja

suficiente para efeitos de reprovação e prevenção do crime. (...)

Código Penal Lei Ambiental


Crime culposo: qualquer que seja a pena aplicada. Crime culposo: qualquer que seja apena aplicada.
Crime doloso: a pena deve ser igual ou inferior a Crime doloso: a pena deve ser inferior a quatro
quatro anos. anos. Repare que a Lei Ambiental é mais rigorosa
que o CP neste requisito.
Circunstâncias judiciais favoráveis. Circunstâncias judiciais favoráveis.
Crime cometido sem violência ou grave ameaça à Na Lei Ambiental, não se exige esse requisito,
pessoa. pois os crimes são direcionados contra a fauna,
flora, patrimônio cultural ou paisagístico, e não
contra a pessoa.
Não reincidência em crime doloso. Também não é exigido este requisito na Lei
Ambiental: cabe sempre a substituição ao
condenado reincidente em crime doloso.

8.2.3.2 – pena de multa na Lei Ambiental

Inicialmente, importante lembrar que, neste tópico, está sendo analisada a pena de multa
substitutiva da privativa de liberdade (3ª etapa do procedimento trifásico da aplicação da
pena), no caso de pessoa natural condenada pela prática de crime ambiental.

De acordo com o art. 44, § 2º, do CP, a prisão não superior a um ano pode ser substituída
por multa:

Art. 44 (...) § 2º Na condenação igual ou inferior a um ano, a substituição pode ser feita

por multa ou por uma pena restritiva de direitos; se superior a um ano, a pena privativa

de liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas

restritivas de direitos. (Incluído pela Lei nº 9.714, de 1998)

O dispositivo aplica-se subsidiariamente à Lei Ambiental, que não tem nenhuma regra de
substituição de prisão por multa.

253
A multa é calculada na forma do art. 18 da Lei 9.605/1998, ou seja, de acordo com os
critérios do Código Penal (de 10 a 360 dias-multa, cada dia-multa valendo de 1/30 a 360
salários mínimos):

Art. 18. A multa será calculada segundo os critérios do Código Penal; se revelar-se

ineficaz, ainda que aplicada no valor máximo, poderá ser aumentada até três vezes, tendo

em vista o valor da vantagem econômica auferida.

A novidade é que, revelada ineficaz a pena de multa, ainda que aplicada no máximo, a pena
poderá ser aumentada de até três vezes, tendo em vista o valor da vantagem econômica
auferida. No CP a multa também poderá ser aumentada em três vezes, mas de acordo com a
capacidade econômica do agente.

Lei Ambiental Código Penal


A multa aplicada no máximo pode ser triplicada, A multa aplicada no máximo pode ser triplicada,
tendo em vista o valor da vantagem obtida com o tendo em vista a situação econômica do
crime, pouco importando a situação econômica condenado, pouco importando o valor da
do infrator. vantagem obtida com o crime.

8.2.3.3 – análise da possibilidade de concessão de sursis

Caso não seja possível a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos
ou multa, o juiz verifica a possibilidade de concessão de sursis (suspensão condicional da
pena).

No Código Penal, há três espécies de sursis:

i) sursis simples (art. 77, caput):

Art. 77 - A execução da pena privativa de liberdade, não superior a 2 (dois) anos, poderá

ser suspensa, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que:

I - o condenado não seja reincidente em crime doloso;

II - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem

como os motivos e as circunstâncias autorizem a concessão do benefício;

III - Não seja indicada ou cabível a substituição prevista no art. 44 deste Código.

O sursis simples é cabível nas condenações de até dois anos. Na Lei Ambiental, o sursis
simples é cabível nas condenações até três anos (art. 16). Cuidado com essa diferença em
prova de primeira fase:

Art. 16. Nos crimes previstos nesta Lei, a suspensão condicional da pena pode ser aplicada

254
nos casos de condenação a pena privativa de liberdade não superior a três anos.

ii) sursis especial:

No Código Penal, o sursis especial é cabível nas condenações de até dois anos. É concedido
ao condenado que reparou o dano, salvo impossibilidade de fazê-lo e tenha as circunstâncias
judiciais totalmente favoráveis. Aquele que recebe o sursis especial fica sujeito às condições
especiais do art. 78, § 2º, “a”, “b” e “c”:

Art. 78 (...) § 2º Se o condenado houver reparado o dano, salvo impossibilidade de fazê-lo,

e se as circunstâncias do art. 59 deste Código lhe forem inteiramente favoráveis, o juiz

poderá substituir a exigência do parágrafo anterior pelas seguintes condições, aplicadas

cumulativamente: (Redação dada pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996)

a) proibição de frequentar determinados lugares;

b) proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do juiz;

c) comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar

suas atividades.

Na Lei Ambiental, o sursis especial é cabível nas condenações de até três anos (art. 16). É
concedido ao condenado que reparou o dano, salvo impossibilidade de fazê-lo e tenha as
circunstâncias judiciais totalmente favoráveis. Aqui, entretanto, a comprovação da
reparação do dano deve ser feita por meio de “laudo de reparação do dano ambiental”, não
se admitindo outro meio de prova. Aquele que recebe o sursis especial fica sujeito a
condições referentes à proteção do meio-ambiente fixadas pelo juiz (art. 17):

Art. 17. A verificação da reparação a que se refere o § 2º do art. 78 do Código Penal será

feita mediante laudo de reparação do dano ambiental, e as condições a serem impostas

pelo juiz deverão relacionar-se com a proteção ao meio ambiente.

iii) sursis etário e humanitário (art. 77, § 2º, do CP):

O sursis etário e humanitário é cabível nas condenações de até quatro anos. A Lei Ambiental
nada dispõe acerca dessa modalidade, mas ela é cabível aos crimes ambientais, por
aplicação subsidiária do CP.

8.3 – Aplicação da pena ao condenado pessoa jurídica

8.3.1 – noções gerais

255
Em se tratando de condenado pessoa jurídica, o juiz somente fixa a quantidade e a espécie
de pena, utilizando o critério trifásico previsto no art. 68 do CP, uma vez que a pena tem de
ser individualizada também no caso de pessoa jurídica.

8.3.2 – penas aplicáveis às pessoas jurídicas (art. 21 da Lei Ambiental)

Art. 21. As penas aplicáveis isolada, cumulativa ou alternativamente às pessoas jurídicas,

de acordo com o disposto no art. 3º, são:

I - multa;

II - restritivas de direitos;

III - prestação de serviços à comunidade.

Não há pena de prisão cominada para a pessoa jurídica, por razões óbvias. As penas são
multa, restritiva de direitos e prestação de serviços à comunidade. No CP, prestação de
serviços à comunidade é espécie de restritiva de direitos. Na Lei Ambiental, diversamente,
ela está cominada separadamente das penas restritivas de direitos.

As penas aplicadas à pessoa jurídica podem ser impostas isolada ou cumulativamente. Ou


seja, o juiz pode aplicar: i) só a multa; ii) multa e restritiva de direitos; ou iii) multa, restritiva
e prestação de serviços. Pode aplicar uma, duas ou as três, cumulativamente.

Apesar de o art. 21 prever que essas penas podem ser aplicadas alternativamente, não
existe nenhuma regra na Lei Ambiental ou no CP que disponha sobre a substituição de multa
por restritiva de direitos ou vice-versa.

As penas restritivas de direitos da pessoa jurídica e a prestação de serviços à comunidade


são penas principais. Não são substitutivas da prisão. Isso porque, mais uma vez, não existe
pena de prisão para a pessoa jurídica.

A multa aplicada à pessoa jurídica segue as regras do art. 18 da Lei Ambiental, já estudado.
Para parte da doutrina (Luiz Regis Prado, por exemplo), as penas restritivas de direitos e de
prestação de serviços à comunidade das pessoas jurídicas (arts. 21 a 23 da Lei Ambiental)
são inconstitucionais, com exceção da prevista no art. 22, III, combinado com o § 3º do
mesmo dispositivo, que tem prazo máximo de dez anos:

Art. 22. As penas restritivas de direitos da pessoa jurídica são: (...)

III - proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios,

subvenções ou doações. (...)

§ 3º A proibição de contratar com o Poder Público e dele obter subsídios, subvenções ou

doações não poderá exceder o prazo de dez anos.

256
Esse é o entendimento de Maciel e Luiz Flávio Gomes, no livro escrito por ambos. Isso
porque, com exceção da pena acima, as demais não têm seus limites mínimo e máximo
cominados. As penas, em razão disso, seriam inconstitucionais por ofensa à legalidade. Elas
não substituem a pena de prisão. São autônomas, como visto.

O art. 10 costuma ser comparado, nos concursos, com o art. 22, III e § 3º da Lei Ambiental:

Art. 10. As penas de interdição temporária de direito são a proibição de o condenado

contratar com o Poder Público, de receber incentivos fiscais ou quaisquer outros

benefícios, bem como de participar de licitações, pelo prazo de cinco anos, no caso de

crimes dolosos, e de três anos, no de crimes culposos.

Não se deve confundir os dispositivos. O art. 10 prevê a pena de proibição de contratar com
o Poder Público e dele receber subsídios. O art. 22 também. Todavia, a pena do art. 10 é
aplicável à pessoa física e a do art. 22, III à pessoa jurídica. No art. 10, a pena tem o prazo de
3 anos, em se tratando de crime culposo, e 5 anos, no caso de crime doloso. No caso do art.
22, III, a pena é de até 10 anos, seja o crime culposo ou doloso.

8.4 – Liquidação forçada da pessoa jurídica

Além das sanções previstas nos arts. 21 a 23, a pessoa jurídica ainda pode sofrer a sanção de
liquidação forçada (art. 24):

Art. 24. A pessoa jurídica constituída ou utilizada, preponderantemente, com o fim de

permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime definido nesta Lei terá decretada sua

liquidação forçada, seu patrimônio será considerado instrumento do crime e como tal

perdido em favor do Fundo Penitenciário Nacional.

A liquidação forçada somente pode ser aplicada se a pessoa jurídica tiver como atividade
preponderante a prática de crime ambiental. Ela não pode ser aplicada, portanto, a qualquer
pessoa jurídica, que eventualmente tenha delinquido. Para que ocorra, a atividade principal
da pessoa jurídica tem de ser cometer crime ambiental. Ex.: madeireira que somente
comercializa madeiras ilegais.

A liquidação forçada acarreta a extinção da pessoa jurídica. É a verdadeira “pena de morte”


dela. Todo o patrimônio da pessoa jurídica é considerado instrumento de crime e, como tal,
confiscado, em favor do Fundo Penitenciário Nacional (e não em favor de órgão ambiental).

Quanto à forma de aplicação da liquidação forçada, há divergência na doutrina:

257
1ª corrente (Delmanto): se a liquidação forçada pressupõe a prática de crime
ambiental, ela somente pode ser aplicada em ação penal, como efeito
fundamentado/motivado da condenação.

2ª corrente (Vladmir e Gilberto Passos de Freitas): a liquidação forçada pode ser


aplicada em ação penal, se houver pedido expresso do MP, ou pode ser aplicada em
ação própria de liquidação, ajuizada no cível pelo MP.

9 – Perícia de dano ambiental

A perícia criminal ambiental, além de constatar a materialidade delitiva, deve calcular o valor
do prejuízo causado pelo crime, se possível (art. 19, caput, da Lei Ambiental):

Art. 19. A perícia de constatação do dano ambiental, sempre que possível, fixará o

montante do prejuízo causado para efeitos de prestação de fiança e cálculo de multa. (...)

Esse valor indicado na perícia serve como parâmetro para a fixação de fiança e o cálculo da
multa penal.

10 – Prova emprestada (art. 19, parágrafo único, da LA)

A perícia ambiental feita no inquérito civil ou na ação civil pode ser emprestada para o
processo penal, instaurando-se o contraditório (art. 19, parágrafo único, da Lei Ambiental):

Art. 19 (...) Parágrafo único. A perícia produzida no inquérito civil ou no juízo cível poderá

ser aproveitada no processo penal, instaurando-se o contraditório.

É o chamado contraditório diferido/posterior, uma vez que não ocorre na produção da


prova, mas após a juntada dela no processo.

Contudo, há entendimento segundo o qual a perícia realizada no inquérito civil só pode ser
emprestada para o processo penal se for uma prova não repetível, cautelar ou antecipada.
Isso porque, nos termos do art. 155, caput, do CPP, o juiz não pode utilizar na sentença
elementos colhidos na investigação, salvo se forem elementos de prova não repetíveis,
cautelares ou antecipados:

Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em

contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos

elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não

repetíveis e antecipadas. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008) (...)

258
Segundo essa posição, o dispositivo refere-se ao inquérito policial, mas pode ser aplicado
por analogia ao inquérito civil.

Além disso, há quem entenda que a perícia realizada na ação civil só pode ser utilizada no
processo penal: i) se as partes forem as mesmas em ambos os processos; ou ii) se a parte
contra a qual a perícia será utilizada no processo penal tenha também sido parte no
processo civil.

Não há corrente que prevaleça. Há muito pouca coisa escrita sobre direito penal ambiental.

11 – Sentença penal ambiental

11.1 – Fixação de valor mínimo de indenização civil

O art. 20, caput, da Lei Ambiental impõe que a sentença penal deve fixar o valor mínimo de
indenização civil para a reparação dos danos causados pelo crime:

Art. 20. A sentença penal condenatória, sempre que possível, fixará o valor mínimo para

reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo

ofendido ou pelo meio ambiente. (...)

Trata-se de juiz penal fixando valor de indenização civil. Quanto ao valor mínimo, a sentença
penal ambiental é um título certo, exigível e líquido, já podendo ser executada pelo valor
nela indicado.

Todavia, a execução do valor mínimo fixado na sentença penal não impede a liquidação da
sentença no cível para a apuração do valor total do prejuízo.

Essa previsão de fixação de valor de indenização civil na sentença penal virou regra geral
(art. 387, IV, do CPP), mas já existia desde 1998 na Lei dos Crimes Ambientais:

Art. 387. O juiz, ao proferir sentença condenatória: (...)

IV - fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando

os prejuízos sofridos pelo ofendido; (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008). (...)

O art. 387, IV, do CPP diz “fixará”, de modo que há quem sustente o dever do juiz de fazê-lo.
O art. 20 da Lei Ambiental, todavia, diz “sempre que possível”. Portanto, a Lei Ambiental é
bem clara no sentido de que o juiz somente fixará indenização civil mínima se for o caso. O
magistrado, ao se deparar com crime ambiental, fixará a indenização com base no art. 20 da
Lei Ambiental, e não no art. 387, IV, do CPP.

259
Caso não haja pedido expresso da acusação ou do assistente da acusação, o juiz pode fixar a
indenização de ofício na sentença? Há divergência, mas o entendimento de Maciel e de Luiz
Flávio Gomes é de que é irrelevante a existência ou não de pedido expresso, mas deve
necessariamente ter havido contraditório e ampla defesa acerca do tema, sob pena de
violação do devido processo legal. O acusado, segundo Maciel, não pode ser surpreendido
com uma condenação civil sem ter tido a oportunidade de discutir a questão no processo.

11.2 – Transporte in utilibus da sentença penal condenatória

O transporte in utilibus da sentença penal condenatória está previsto nos arts. 103, §§ 3º e
4º, do CDC:

Art. 103 (...) § 3º Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art.

13 da Lei º 7.347, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por

danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste

código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que

poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99.

§ 4º Aplica-se o disposto no parágrafo anterior à sentença penal condenatória.

Nas ações coletivas, julgado procedente o pedido, a coisa julgada (ou seja, a sentença) pode
ser utilizada em ações individuais de execução (art. 103, § 3º, do CDC). Esse transporte in
utilibus aplica-se também à sentença penal (art. 103, § 4º, do CDC). Ex.: uma pessoa jurídica
é condenada pelo crime de poluição de um rio. A sentença penal contra ela proferida pode
ser utilizada em ações individuais pelos pescadores ou moradores prejudicados com a
poluição do rio.

Ou seja, as pessoas prejudicadas podem executar, em ações individuais, a sentença penal


condenatória contra a pessoa jurídica. O nome inteiro dessa figura é tranporte in utilibus
secundum eventum litis.

12 – Confisco dos instrumentos do crime ambiental

No Código Penal, não é qualquer instrumento de crime que pode ser confiscado. Só é
permitido o confisco se ele constituir, por si só, objeto ilícito (art. 91, II, “a”):

Art. 91 - São efeitos da condenação: (...)

II - a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé:

a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso,

porte ou detenção constitua fato ilícito; (...)

260
Ex.: pode ser confiscada uma arma com a numeração raspada. Todavia, um automóvel
utilizado num furto não pode ser confiscado.

Por sua vez, a Lei Ambiental permite o confisco do instrumento do crime ambiental, sem
especificar se lícito ou ilícito (art. 25, § 4º):

Art. 25 (...) § 4º Os instrumentos utilizados na prática da infração serão vendidos,

garantida a sua descaracterização por meio da reciclagem.

Para Capez, nos crimes ambientais, o instrumento do crime pode sempre ser confiscado,
seja lícito ou ilícito. Ex.: pode ser confiscado o barco do pescador que pescou em local
proibido.

A jurisprudência (principalmente dos TRF’s) entende que esse art. 25, § 4º, da Lei Ambiental
deve ser interpretado à luz do princípio da razoabilidade. Segundo esse posicionamento, o
instrumento só deve ser confiscado se utilizado usualmente em crimes ambientais. Ex.:
devem ser confiscados motosserras e caminhões de madeireira clandestina. Se o objeto foi
utilizado eventualmente no crime ambiental e não é ilícito, não deve ser confiscado. Ex.: o
barco do pescador que, eventualmente, pescou acima da quantidade permitida, não deve
ser confiscado.

Portanto, pela letra seca da lei, o instrumento do crime deve sempre ser confiscado (Capez),
mas, para a jurisprudência, o confisco do objeto lícito deve ser realizado à luz da
razoabilidade, permitindo-se o confisco somente em se tratando de objeto usualmente
utilizado para a prática de crime ambiental.

13 – Questões processuais

13.1 – Interrogatório da pessoa jurídica

Até 2003, Ada Pellegrini Grinover sustentava que o interrogatório da pessoa jurídica deveria
ser feito na pessoa do preposto ou do gerente da empresa, que tivesse conhecimento do
fato, aplicando-se, por analogia, o art. 843, § 1º, da CLT:

Art. 843 (...) § 1º - É facultado ao empregador fazer-se substituir pelo gerente, ou

qualquer outro preposto que tenha conhecimento do fato, e cujas declarações obrigarão

o proponente.

A autora entendia que o interrogatório era meio de prova e, portanto, deveria ser
interrogado quem tivesse condições de levar ao juiz informações sobre o fato.

261
Ocorre que a Lei 10.792/2003 alterou as normas do interrogatório. Para Ada, o
interrogatório passou a ser exclusivamente um meio de defesa, razão pela qual ela mudou
seu entendimento. Atualmente, ela defende que o interrogatório da pessoa jurídica deve ser
feito na pessoa do gestor da empresa, que tiver condições de realizar a defesa da pessoa
jurídica.

Nucci continua defendendo a aplicação analógica do art. 843, § 1º, da CLT.

13.2 – Habeas Corpus em favor de pessoa jurídica

Para o STF e o STJ, o HC protege a liberdade de locomoção, algo que pessoa jurídica não
tem. Logo, não é cabível o remédio constitucional em favor de pessoa jurídica. Para trancar
uma ação penal sem justa causa proposta contra a pessoa jurídica, deve ser impetrado
mandado de segurança (STF HC 92.921/BA e STJ RHC 28.811/SP, julgado em 2 de dezembro
de 2010).

A leitura da ementa do julgado citado sugere que o STF teria admitido o HC. Entretanto, a
ementa está redigida errado. O Min. Relator Lewandovski admitiu o HC, sob o fundamento
de que, se a pessoa jurídica somente pode ser denunciada juntamente com a pessoa física, o
HC ajuizado contra ela terá reflexos na liberdade da pessoa física. Houve erro na redação da
ementa.

Como visto, esse entendimento de que seria necessário processar também a pessoa física,
para possibilitar a responsabilização da pessoa jurídica, não prevaleceu na 1ª Turma do STF.

13.3 – Competência em crimes ambientais

13.3.1 – regra dos Tribunais Superiores

A regra da jurisprudência do STF e do STJ acerca da competência para o julgamento dos


crimes ambientais é a seguinte:

i) a proteção do meio-ambiente é de competência comum da União, Estados, DF e


Municípios;

ii) não há nenhuma regra específica sobre competência penal ambiental.

Conclusão: se o dever de proteger o meio-ambiente é de todos e não há nenhuma regra a


respeito, a competência somente será da Justiça Federal se o crime atingir interesse direto e
específico da União. Será da Justiça Estadual se o crime atingir interesse apenas genérico e

262
indireto da União. Essas expressões são as utilizadas na jurisprudência dos Tribunais
Superiores.

13.3.2 – questões específicas sobre competência

13.3.2.1 – crimes contra a fauna

A competência para o julgamento dos crimes contra a fauna (arts. 29 a 36 da Lei Ambiental)
segue a regra geral de competência, pois a Súmula 91 do STJ, que dispunha serem os crimes
contra a fauna de competência da Justiça Federal, foi cancelada.

13.3.2.2 – contravenções penais ambientais

A competência para o julgamento das contravenções penais ambientais será sempre da


Justiça Estadual, ainda que atinjam interesse direto e específico da União, pois a Justiça
Federal não julga contravenções (art. 109, IV, CR):

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (...)

IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços

ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas

as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;

Há somente uma hipótese em que Justiça Federal julga contravenção: se o contraventor tem
foro por prerrogativa de função na Justiça Federal, previsto na Constituição Federal (o
critério em razão da pessoa do acusado sobrepõe-se ao da matéria).

13.3.2.3 – modificação de competência

O STJ já decidiu que, se durante a ação, surgir interesse da União que não havia no início,
desloca-se a competência da Justiça Estadual para a Federal. O Tribunal já decidiu também
que, se durante a ação desaparecer o interesse da União que havia no começo do processo,
desloca-se a competência da Justiça Federal para a Estadual (CC 88.013/SC, julgado em
2008, e CC 108.350/RJ, julgado em 2009).

Porém, no CC 99.541/PR, julgado em 27 de outubro de 2010 pela 3ª Seção do STJ (que inclui
a 5ª e a 6ª Turmas Criminais), restou decidido que, se no início da ação não havia interesse
da União, e esse interesse só surgiu durante a ação, perpetua-se a competência da Justiça
Estadual, não sendo ela deslocada para a Justiça Federal. Portanto, houve mudança de
posicionamento do STJ quanto a essa questão.

13.3.2.4 – crimes cometidos nas áreas previstas no art. 225, § 4º, da CR

263
Art. 255 (...) § 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o

Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-

se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio

ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

Importante observar que “patrimônio nacional” não significa “patrimônio da União”, de


modo que os crimes cometidos nessas áreas seguem a regra geral de competência.

13.3.2.5 – crime cometido em área fiscalizada ou administrada por órgão federal ambiental

Há decisão do STJ dizendo que a fiscalização ou administração da área pelo órgão federal,
por si só, não fixa a competência da Justiça Federal.

Todavia, há julgado recente, do próprio STJ dizendo que se a área é administrada pelo
IBAMA, há interesse direto e específico da União, que atrai a competência para a Justiça
Federal (Ag. Reg. no REsp 1.046.202, julgado pela 6ª Turma em 2 de dezembro de 2010).

13.3.2.6 – crime cometido em rio estadual, em rio interestadual e no mar territorial

No crime praticado em rio estadual, a competência é da Justiça Estadual. No crime praticado


em rio interestadual (que banha mais de um estado) ou no mar territorial, a competência é
da Justiça Federal, por se tratar de bens da União.

13.3.2.7 – tráfico internacional de animais

A competência para o julgamento do crime de tráfico internacional de animais, crime à


distancia previsto em tratado internacional, é da Justiça Federal, pois o Brasil é signatário de
tratados internacionais que buscam coibir essa prática (art. 109, V, da CR):

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (...)

V - os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a

execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou

reciprocamente; (...)

13.4 – Ação penal nos crimes ambientais

A ação penal nos crimes ambientais é pública incondicionada. Se houver vítima


determinada, é cabível a ação penal privada subsidiária da pública.

13.5 – Transação penal nas infrações ambientais de menor potencial ofensivo

264
O art. 27 da Lei Ambiental condiciona a realização da transação penal, nos crimes ambientais
de menor potencial ofensivo, à prévia composição civil dos danos ambientais:

Art. 27. Nos crimes ambientais de menor potencial ofensivo, a proposta de aplicação

imediata de pena restritiva de direitos ou multa, prevista no art. 76 da Lei nº 9.099, de 26

de setembro de 1995 [transação penal], somente poderá ser formulada desde que tenha

havido a prévia composição do dano ambiental, de que trata o art. 74 da mesma lei, salvo

em caso de comprovada impossibilidade.

Lei 9.099/1995 Lei Ambiental


A composição civil de danos não é requisito para A composição civil de danos, prevista no art. 74
o cabimento da transação penal do art. 76 da Lei da Lei 9099/95 é requisito para o cabimento da
9.099/1995. Ex.: o autor de uma lesão leve não transação penal, prevista no art. 76 da Lei
faz composição civil com a vítima, mas faz 9.099/1995. Portanto, nas infrações penais
transação penal com o MP. ambientais de menor potencial ofensivo, só é
possível transação se foi feita a composição civil
de danos.

Na Lei Ambiental, portanto, os requisitos da transação penal são os do art. 76, § 2º, I a III, da
Lei 9.099/1995, acrescidos da composição civil de danos.

A composição civil de danos, todavia, significa apenas o compromisso formal de reparar, e


não necessariamente a efetiva reparação, que pode demorar anos. Ex.: a celebração de um
TAC pelo infrator com o MP já é considerada composição civil de danos suficiente para o
cabimento da transação penal.

O que ocorre se o infrator cumpre a pena transacionada e descumpre o acordo de


composição civil? Ex.: um fazendeiro comete uma infração ambiental de menor potencial
ofensivo e faz TAC com o MP, comprometendo-se a plantar 500 árvores na área atingida.
Com esse TAC, o fazendeiro tem direito à transação penal. Feita a transação, o Juiz aplica
uma pena de prestação pecuniária a uma entidade social, no valor de 10 salários mínimos. O
fazendeiro cumpre a prestação pecuniária e descumpre o TAC.

Nesse caso, a solução é executar o acordo (o TAC). O processo penal não pode ser retomado,
pois nele já foi aplicada e cumprida a pena. Retomar-se-ia o processo criminal para aplicar o
quê? Só resta ao MP executar o TAC, pois a transação foi cumprida.

13.6 – Suspensão condicional do processo nos crimes ambientais

265
A Lei 9.099/1995 trata da suspensão condicional do processo em seu art. 89. A Lei dos
Crimes Ambientais tem disciplina específica acerca do instituto, em seu art. 28.

Art. 28. As disposições do art. 89 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, aplicam-se

aos crimes de menor potencial ofensivo definidos nesta Lei, com as seguintes

modificações: (...)

De acordo com o dispositivo, somente cabe suspensão condicional do processo em crimes


de menor potencial ofensivo. Ocorre que a suspensão condicional do processo prevista no
art. 89 da Lei 9.099/1995 é cabível a todos os crimes cuja pena mínima não seja superior a
um ano (ex.: furto simples, que tem pena de 1 a 4 anos).

Então, a questão fica da seguinte forma:

Lei 9.605/1998 Doutrina


Só é cabível suspensão condicional do processo Houve erro material do legislador na redação do
para crimes ambientais de menor potencial art. 28 da Lei 9.605/1998. Onde está escrito
ofensivo. “crimes de menor potencial ofensivo previstos
nesta Lei”, o legislador quis dizer “crimes
previstos nesta Lei”.

A doutrina lê o art. 28, caput, ignorando a expressão “crimes de menor potencial ofensivo”.
Assim, para a doutrina, cabe suspensão condicional do processo para todos os crimes
ambientais com pena mínima não superior a um ano. Ou seja, na Lei Ambiental, a suspensão
condicional do processo segue-se a regra geral do art. 89 da Lei 9.099/1995. Em prova
objetiva, se a questão transcrever literalmente o art. 28, caput, deve-se anotá-la como certa.
Se estiver dizendo “de acordo com a doutrina”, deve-se ficar com o segundo entendimento.

Na suspensão condicional do processo da Lei 9.099/1995, cumprido o prazo sem que tenha
havido revogação, o juiz declara extinta a punibilidade. Na Lei Ambiental, a extinção da
punibilidade só pode ser declarada se houver prova pericial de que o infrator reparou os
danos ambientais ou adotou todas as providencias possíveis para fazê-lo. A comprovação
dessa reparação ou dessa tentativa de reparação, como visto, é feita mediante “laudo de
reparação de dano ambiental” (art. 28, I, da Lei Ambiental):

Art. 28 (...) I - a declaração de extinção de punibilidade, de que trata o § 5º do artigo

referido no caput, dependerá de laudo de constatação de reparação do dano ambiental,

ressalvada a impossibilidade prevista no inciso I do § 1º do mesmo artigo; (...)

266
Encerrado o prazo da suspensão condicional do processo, o juiz determina a realização desse
laudo. Se a perícia concluir que não houve reparação integral, o juiz prorroga a suspensão
por mais cinco anos (quatro anos, acrescidos de mais um) e suspende a prescrição:

Art. 28 (...) II - na hipótese de o laudo de constatação comprovar não ter sido completa a

reparação, o prazo de suspensão do processo será prorrogado, até o período máximo

previsto no artigo referido no caput, acrescido de mais um ano, com suspensão do prazo

da prescrição; (...)

Findo o prazo de cinco anos, o juiz determina a realização de novo laudo. Se o laudo indicar
que ainda não houve reparação integral do dano ambiental, o juiz pode novamente
prorrogar a suspensão por mais cinco anos:

Art. 28 (...) IV - findo o prazo de prorrogação, proceder-se-á à lavratura de novo laudo de

constatação de reparação do dano ambiental, podendo, conforme seu resultado, ser

novamente prorrogado o período de suspensão, até o máximo previsto no inciso II deste

artigo, observado o disposto no inciso III;

Durante a primeira e segunda prorrogações, o acusado não fica mais sujeito às condições da
suspensão condicional do processo previstas no art. 89 da Lei 9.099/1995:

Art. 28 (...) III - no período de prorrogação, não se aplicarão as condições dos incisos II, III

e IV do § 1º do artigo mencionado no caput; (...)

Encerrada a prorrogação, o juiz determina a realização de um terceiro laudo. Se o laudo


indicar que não foi reparado o dano e não foram tomadas as providências para reparar, o
juiz revoga a suspensão condicional do processo e o processo segue.

Se o laudo indicar que foi reparado o dano ou foram tomadas as providências para reparar,
embora não tenha sido possível a reparação, o juiz declara extinta a punibilidade:

Art. 28 (...) V - esgotado o prazo máximo de prorrogação, a declaração de extinção de

punibilidade dependerá de laudo de constatação que comprove ter o acusado tomado as

providências necessárias à reparação integral do dano.

Assim, na suspensão condicional do processo da Lei 9.605/1998, o processo pode ficar


suspenso por até quatorze anos: uma primeira suspensão, que pode durar de 2 a 4 anos (art.
89 da Lei 9.099/1995); depois, uma segunda prorrogação, de 5 anos; por fim, uma terceira,
de 5 anos.

13.7 – Termo de compromisso ambiental: reflexos penais

267
O termo de compromisso ambiental está previsto no art. 79-A da Lei 9.605/1998. Trata-se de
um termo de ajustamento de conduta. Mas a Lei Ambiental utiliza expressão diversa, para a
mesma figura:

Art. 79-A. Para o cumprimento do disposto nesta Lei, os órgãos ambientais integrantes do

SISNAMA [trata-se do Sistema Nacional do Meio Ambiente - equivalente ao SUS, na

saúde -, que engloba todos os órgãos do meio-ambiente, como o IBAMA], responsáveis

pela execução de programas e projetos e pelo controle e fiscalização dos

estabelecimentos e das atividades suscetíveis de degradarem a qualidade ambiental,

ficam autorizados a celebrar, com força de título executivo extrajudicial, termo de

compromisso com pessoas físicas ou jurídicas responsáveis pela construção, instalação,

ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos

ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidores.

O termo de compromisso ambiental tem força de título executivo extrajudicial e é firmado


entre um órgão integrante de SISNAMA e a pessoa física ou jurídica que exerça atividade
efetiva ou potencialmente poluidora.

Podem firmar esse compromisso, portanto, as pessoas que já degradaram o meio-ambiente


ou que exerçam atividades perigosas ao meio-ambiente.

O termo de compromisso ambiental, se devidamente cumprido, possui efeitos penais?

1ª corrente: sim. O cumprimento do termo tem reflexos penais. Para alguns, gera falta
de justa causa para a ação penal (Nucci e Delmanto). Para outros, é causa supralegal
de exclusão da ilicitude (José Luiz de Moura Faleiros, em artigo excelente sobre o
tema).

2ª corrente: não. O cumprimento do termo de compromisso não gera reflexos penais,


pelos seguintes motivos: i) o art. 225, § 3º, da CR prevê a responsabilidade penal,
independentemente da obrigação de reparar o dano; ii) o art. 14, II, da Lei Ambiental
prevê que a reparação do dano é apenas atenuante de pena; e iii) o art. 27 da Lei
Ambiental só permite transação se houve a reparação do dano ambiental ou o
compromisso de repará-lo (José Roberto Marques).

Na jurisprudência, o TJ/MG decide reiteradamente que o cumprimento do termo de


compromisso acarreta falta de justa causa para a ação penal (1ª corrente). O STF e o STJ
adotam a segunda corrente. Para eles, o cumprimento do termo de compromisso não gera
reflexos penais, pois ele é celebrado na esfera administrativa, que é independente da penal.

268
Maciel e Luiz Flávio Gomes sustentam que o cumprimento do TCA gera desnecessidade da
pena (Roxin). Assim, reparado o dano, não deve haver ação penal por conta do princípio da
necessidade da pena.

14 – Dos crimes contra o meio-ambiente13

14.1 – Introdução

14.1.1 – norma penal em branco

Conforme estudado anteriormente, normas penais em branco são aquelas que dependem
de complemento normativo. São divididas em próprias (ou heterogêneas) ou impróprias (ou
homogêneas). Nas heterogêneas, o complemento é dado por espécie normativa diversa (ex.:
uma portaria), enquanto nas homogêneas, o complemento é dado pela mesma espécie
normativa (ex.: lei complementada por lei).

As normas penais em branco homogêneas ainda podem ser divididas em duas outras
espécies: homovitelina e heterovitelina. Nas homovitelinas, o complemento normativo
encontra-se no mesmo documento legal (ex.: no crime de peculato, a elementar
“funcionário público” encontra-se no próprio CP). Já nas heterovitelinas, o complemento
normativo encontra-se em documento legal diverso (ex.: no crime de ocultação de
impedimento de casamento, as hipóteses de impedimento da união civil encontram-se no
CC).

A maioria dos crimes ambientais é norma penal em branco. Para a maior parte da doutrina,
essa técnica é legítima em crimes ambientais, por dois motivos:

i) a norma ambiental envolve conceitos extrajurídicos e extrapenais, da biologia, da geologia,


da medicina veterinária etc. Ou seja, as normas ambientais exigem uma
interdisciplinariedade com outras ciências não jurídicas, com outros ramos do saber
humano;

ii) é necessário que os tipos penais sejam complementados por normas administrativas
ambientais, pois é impossível, por exemplo, que o tipo penal elenque todas as áreas de
preservação permanente existentes, todos os locais de pesca proibida ou os locais que têm
valor arqueológico.

13
Os crimes que não forem aqui analisados serão postados como material de apoio (trata-se de
material extraído diretamente do livro de Maciel).

269
14.1.2 – princípio da insignificância

É possível a aplicação do princípio da insignificância aos crimes ambientais?

1ª corrente: não. Qualquer lesão ao meio-ambiente é significante, pois atinge e


desequilibra o ecossistema, direta ou indiretamente. Essa corrente é a que prevalece
nos TRF’s (não é unânime).

2ª corrente: sim. É possível o princípio da insignificância em crimes ambientais, desde


que presentes os requisitos daquele princípio. Esta é a corrente adotada pelo STJ (HC
93.859/SP, julgado em 13 de agosto de 2009).

14.2 – Crimes contra a fauna

14.2.1 – conceito de fauna

Fauna é o conjunto de animais, terrestres e aquáticos, que vivem numa determinada região
ou ambiente.

14.2.2 – normas penais de proteção à fauna

Uma das dificuldades do estudo do direito ambiental é o fato de haver muitas normas
esparsas. Por isso, é importante sistematizar as normas penais referentes à fauna:

i) o art. 27 e §§ da Lei 5.197/1967 (Lei de Proteção à Fauna ou “Código de Caça”) prevê


várias contravenções penais ambientais;

ii) o art. 61 do Decreto-Lei 221/1967 (“Código de Pesca”) prevê crimes de pesca;

iii) o art. 8º da Lei 7.679/1988 prevê crimes de pesca com explosivos;

iv) o art. 64 da Lei das Contravenções Penais prevê a contravenção de crueldade contra
animais;

v) o art. 2º da Lei 7.643/1987 prevê o crime de molestar ou pescar cetáceos;

vi) Lei de Crimes Ambientais.

As quatro primeiras normas que tratam da fauna estão tacitamente revogadas pela Lei de
Crimes Ambientais (em seus aspectos penais). Estão em vigor, portanto, nesse tocante, a Lei
Ambiental e a Lei 7.643/1987.

14.2.3 – crime do art. 29

270
Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou

em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade

competente, ou em desacordo com a obtida:

Pena - detenção de seis meses a um ano, e multa. (...)

14.2.3.1 – sujeitos do crime

Sujeito ativo do crime do art. 29 é qualquer pessoa. Sujeito passivo é a coletividade (para
alguns) ou o Estado (para outros).

14.2.3.2 – tipo objetivo

São cinco as condutas punidas no art. 29: matar (crime material), perseguir (crime formal),
caçar (crime material), apanhar (crime material) ou utilizar (crime material). Exemplos:
utilizar animais em trabalhos forçados (trabalhos acima da capacidade física do animal),
utilizar animais em espetáculos de circo sem a devida autorização.

Este é um crime de conduta múltipla ou variada (tipo misto alternativo). Ou seja, a prática de
várias condutas, no mesmo contexto, resultará crime único. Ex.: se o infrator persegue,
apanha e mata o animal, há um só crime.

14.2.3.3 – objeto material

O objeto material do crime do art. 29 são os espécimes da fauna silvestre. Espécime é um


exemplar da espécie. Ex.: uma ave, um pássaro. Como a expressão está no plural, há
entendimento minoritário de que se a conduta atingisse um só espécime, o fato seria
atípico.

Silvestre é o animal selvagem. O art. 29 não protege animais domésticos e domesticados,


mas o art. 32 da Lei Ambiental.

O conceito de fauna silvestre está na norma penal explicativa do art. 29, § 3º:

Art. 29 (...) § 3º São espécimes da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às espécies

nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou

parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas

jurisdicionais brasileiras. (...)

O tipo penal protege animais selvagens nativos ou exóticos (estrangeiros), terrestres ou


aquáticos. São esses animais o objeto material do dispositivo.

14.3.2.4 – elemento normativo do tipo

271
O art. 29 prevê um elemento normativo do tipo, na expressão “sem a devida permissão,
licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida”. Se a
conduta for permitida ou autorizada, o fato será atípico. Ex.: a Instrução Normativa IBAMA
25/2004 autorizou o abate de javalis no Rio Grande do Sul. Quem abateu esses animais
naquele Estado não cometeu crime.

14.3.2.5 – consumação e tentativa

A consumação se dá com a prática de qualquer das condutas do tipo. A tentativa é


perfeitamente possível, em qualquer das condutas do tipo.

14.3.2.6 – atos de pesca

O art. 29 não pune os atos de pesca:

Art. 29 (...) § 6º As disposições deste artigo não se aplicam aos atos de pesca.

O dispositivo protege a fauna aquática, mas não se aplica aos atos de pesca. Ex.: o sujeito
que mata uma tartaruga marinha responderá pelo crime previsto neste dispositivo.

Os atos de pesca são punidos nos arts. 34 e 35 da Lei Ambiental.

14.3.2.7 – causa de aumento de pena

Art. 29 (...) § 5º A pena é aumentada até o triplo, se o crime decorre do exercício de caça

profissional.

A pena é triplicada se o crime é cometido em atividade de caça profissional, aquela exercida


com habitualidade e intenção de lucro. Ex.: coureiros do Pantanal que matam jacarés.

14.3.2.8 – perdão judicial

Art. 29 (...) § 2º No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada

ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a

pena.

É crime a guarda doméstica de animal silvestre (ex.: arara, papagaio) não autorizada.
Todavia, se o animal não estiver na lista oficial de animais em extinção, é cabível perdão
judicial (art. 29, § 2º). Se o animal está na lista oficial de animais em extinção, não é cabível
perdão judicial e, ainda, há causa de aumento de pena (art. 29, § 4º, I):

Art. 29 (...) § 4º A pena é aumentada de metade, se o crime é praticado:

I - contra espécie rara ou considerada ameaçada de extinção, ainda que somente no local

272
da infração; (...)

14.2.4 – crime do art. 32 (maus tratos)

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos

ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. (...)

14.2.4.1 – sujeitos do crime

Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime de maus tratos. Sujeitos passivos são a
coletividade (para alguns) ou o Estado (para outros) e, eventualmente, o proprietário do
animal.

14.2.4.2 – tipo objetivo

As condutas punidas no art. 32 são: praticar ato de abuso (ex.: transportar o animal em
condições inadequadas), praticar maus tratos (submeter o animal a sofrimento de qualquer
espécie), ferir (causar lesão) e mutilar (cortar partes ou órgãos do animal).

Esse é um crime de conduta múltipla ou variada (tipo misto alternativo). Isso significa que a
prática de várias condutas, no mesmo contexto, resultará crime único.

O art. 32 não prevê o verbo “matar”. Por conta disso, surge a dúvida: qual crime configura
matar animal doméstico (ex.: um cachorro, um gato)? O art. 29 prevê o verbo “matar”, mas
não protege o animal doméstico; o art. 32 protege animal doméstico, mas não prevê o verbo
“matar”. Segundo a doutrina, a conduta configura o crime do art. 32, porque antes de matar
o infrator tem de ferir o animal.

14.2.4.3 – objeto material

O art. 32 protege todos os animais, silvestres, domésticos, domesticados, nativos


(brasileiros) ou exóticos (estrangeiros).

14.2.4.4 – briga de galo (“rinha”), vaquejada, “farra do boi” etc.

A briga de galo (“rinha”), a vaquejada, a “farra do boi” etc. configuram crime?

1ª corrente: não configuram crime por serem manifestações culturais, concretizações


do direito à cultura, garantido no art. 215 da CR. Há várias leis estaduais
regulamentando a briga de galo, a vaquejada etc. (exemplos: Rio Grande do Norte, Rio
de Janeiro, Santa Catarina).

273
2ª corrente: configuram crime, nos termos do art. 225, § 1º, VII, da CR, que proíbe
crueldade contra animais. Esta é a corrente adotada pelo STF, que já declarou
inconstitucionais quatro leis estaduais que autorizavam e regulamentavam essas
práticas, justamente por violação ao dispositivo mencionado:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso

comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à

coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (...)

§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: (...)

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em

risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a

crueldade.

14.2.4.5 – rodeios

Rodeio configura crime? A Lei Federal 10.519/2002 autoriza a realização de rodeios no


Brasil, desde que atendidas as exigências dos seus arts. 3º e 4º (transporte adequado,
proibição de esporas de ponta, proibição de laços que deem tranco, arenas acolchoadas,
acompanhamento veterinário etc.)

Art. 3º Caberá à entidade promotora do rodeio, a suas expensas, prover:

I – infraestrutura completa para atendimento médico, com ambulância de plantão e

equipe de primeiros socorros, com presença obrigatória de clínico-geral;

II – médico veterinário habilitado, responsável pela garantia da boa condição física e

sanitária dos animais e pelo cumprimento das normas disciplinadoras, impedindo maus

tratos e injúrias de qualquer ordem;

III – transporte dos animais em veículos apropriados e instalação de infraestrutura que

garanta a integridade física deles durante sua chegada, acomodação e alimentação;

IV – arena das competições e bretes cercados com material resistente e com piso de areia

ou outro material acolchoador, próprio para o amortecimento do impacto de eventual

queda do peão de boiadeiro ou do animal montado.

Art. 4º Os apetrechos técnicos utilizados nas montarias, bem como as características do

arreamento, não poderão causar injúrias ou ferimentos aos animais e devem obedecer às

normas estabelecidas pela entidade representativa do rodeio, seguindo as regras

internacionalmente aceitas.

Então, praticado de acordo com a Lei 10.519/2002, o rodeio será exercício regular de direito;
praticado em desacordo, será crime ambiental.

274
14.2.4.6 – mutilação de animais para fins estéticos

A mutilação de animais para fins estéticos (ex.: cortar a orelha ou o rabo do cachorro)
configura crime? A doutrina diz que não, desde que a mutilação seja praticada com
anestesia e por profissional autorizado. Não há crime pela ausência de dolo de causar
sofrimento ao animal. Ou, para alguns, pelo princípio da adequação social.

14.2.4.7 – vivissecção

Vivissecção é a experiência dolorosa em animal vivo. Realizada para fins científicos e


didáticos, ela configura crime? Depende: se não houver recurso alternativo, não. Se houver
recurso alternativo que permita evitá-la, há crime (art. 32, § 1º):

Art. 32 (...) § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em

animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos

alternativos.

Ex.: comete crime o professor de faculdade de medicina veterinária que dá aula realizando
vivissecção em animal, se dispõe de meios alternativos para tanto.

A lei que regulamenta o uso científico de animais como cobaias é a Lei 11.794/2008, a qual
revogou a Lei 6.638/1979. Essa lei causou briga no Congresso Nacional entre cientistas e
ambientalistas, mas foi aprovada.

14.2.4.8 – consumação e tentativa

A consumação do crime do art. 32 se dá com a prática de qualquer das condutas do tipo. A


tentativa é perfeitamente possível, em qualquer das condutas.

14.2.4.9 – causa de aumento de pena

O art. 32, § 2º prevê aumento de pena de 1/6 a 1/3, se ocorre a morte do animal:

Art. 32 (...) § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se


ocorre morte do animal.

14.2.5 – crime do art. 34 (pesca proibida)

Os arts. 34 e 35 preveem crimes de pesca, os quais estão incluídos dentre os crimes contra a
fauna, na Lei de Crimes Ambientais. Há ainda um terceiro crime de pesca, previsto na Lei
7.643/1987, de molestar ou pescar cetáceos, que será estudado a seguir.

O art. 34 da Lei Ambiental prevê o crime de pesca proibida:

275
Art. 34. Pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por

órgão competente:

Pena - detenção de um ano a três anos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.

(...)

A conduta é “pescar”. O conceito de pesca está na norma penal explicativa do art. 36:

Art. 36. Para os efeitos desta Lei, considera-se pesca todo ato tendente a retirar, extrair,

coletar, apanhar, apreender ou capturar espécimes dos grupos dos peixes, crustáceos,

moluscos e vegetais hidróbios, suscetíveis ou não de aproveitamento econômico,

ressalvadas as espécies ameaçadas de extinção, constantes nas listas oficiais da fauna e da

flora.

Pescar, portanto, significa praticar qualquer ato tendente a apanhar o animal ou o vegetal
hidróbio (aquele que se alimenta da água), ainda que não seja efetivamente apanhado
nenhum espécime.

O conceito penal de pesca não se confunde com o comum de pesca (“pegar o peixe”): para
fins penais, ainda que não seja pego animal, haverá pesca. Assim, armar rede ou jogar a
tarrafa no rio ou no mar configurará crime de pesca, ainda que não seja pego nenhum peixe.

De acordo com o art. 34, é crime pescar:

i) em período proibido:

O período em que a pesca é proibida é definido por normas administrativas, de acordo com
as peculiaridades de cada local. A Lei 5.197/1967 proibia a pesca, em todo território
nacional, no período de 1º de outubro a 30 de janeiro. Essa norma foi revogada. Agora, cabe
a cada órgão do SISNAMA definir o período proibido, de acordo com a peculiaridade de cada
local. “Período de defeso” é sinônimo de período proibido.

ii) em local interditado por autoridade competente:

Autoridade competente são os órgãos do SISNAMA (o Sistema Nacional do Meio Ambiente).


Exemplo real: o agente pescou em local interditado pela CEMIG (Companhia de Energia
Elétrica de Minas Gerais). Foi denunciado pelo crime do art. 34. O STJ mandou trancar a
ação, por entender que o fato era atípico: a CEMIG não é órgão ambiental, mas Companhia
de Energia Elétrica. Não tinha, portanto, competência para interditar local de pesca.

14.2.6 – crime do art. 35 (pesca predatória)

Art. 35. Pescar mediante a utilização de:

276
I - explosivos ou substâncias que, em contato com a água, produzam efeito semelhante;

II - substâncias tóxicas, ou outro meio proibido pela autoridade competente:

Pena - reclusão de um ano a cinco anos.

O dispositivo trata da pesca predatória, que se dá com explosivos (ou substâncias de efeitos
análogos), substâncias tóxicas ou proibidas por autoridades competentes (leia-se: órgãos do
SISNAMA). Como se percebe, o inciso II do art. 35 é norma penal em branco.

É possível a tentativa dos crimes dos arts. 34 e 35? “Pescar” significa todo ato tendente a
extrair o animal ou o vegetal hidróbio da água. Por essa razão, a tentativa não é possível.
Qualquer ato tendente a extrair a espécime da água já configura crime consumado.

14.2.7 – crime de molestar ou pescar cetáceos (Lei 7.643/87)

O crime de molestar ou pescar cetáceos, como dito, está previsto na Lei 7.643/1987, e não
na Lei Ambiental. Entretanto, ele será aqui estudado por ser uma espécie de crime de pesca.

Segundo os arts. 1º e 2º da Lei 7.643/1987:

Art. 1º Fica proibida a pesca, ou qualquer forma de molestamento intencional, de toda

espécie de cetáceo nas águas jurisdicionais brasileiras.

Art. 2º A infração ao disposto nesta lei será punida com a pena de 2 (dois) a 5 (cinco) anos

de reclusão e multa de 50 (cinquenta) a 100 (cem) Obrigações do Tesouro Nacional - OTN,

com perda da embarcação em favor da União, em caso de reincidência.

Para parte da doutrina, esse crime estaria tacitamente revogado pela Lei Ambiental. Para o
STJ, entretanto, o crime permanece em vigor. O Tribunal manteve a condenação de um
piloto de barco e de um repórter do SBT que perseguiram uma baleia e um filhote, chegando
a bater neles, por este crime de molestar cetáceos. Cetáceos são baleia, golfinho, boto etc.
Molestar (“encher o saco”) da baleia ou do golfinho é crime ambiental.

14.2.8 – excludentes de ilicitude nos crimes contra a fauna

Art. 37. Não é crime o abate de animal, quando realizado:

I - em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família;

II - para proteger lavouras, pomares e rebanhos da ação predatória ou destruidora de

animais, desde que legal e expressamente autorizado pela autoridade competente;

III – (VETADO)

IV - por ser nocivo o animal, desde que assim caracterizado pelo órgão competente.

277
O art. 37, I, trata da chamada “caça famélica”. Realizada a caça famélica com arma de fogo,
não subsiste o crime de posse ilegal de arma, desde que o agente tenha o porte de caçador,
previsto no art. 6º, § 5º, do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.823/2006), com redação
dada pela Lei 11.706/2008:

Art. 6º (...) § 5º Aos residentes em áreas rurais, maiores de 25 (vinte e cinco) anos que

comprovem depender do emprego de arma de fogo para prover sua subsistência

alimentar familiar será concedido pela Polícia Federal o porte de arma de fogo, na

categoria caçador para subsistência, de uma arma de uso permitido, de tiro simples, com

1 (um) ou 2 (dois) canos, de alma lisa e de calibre igual ou inferior a 16 (dezesseis), desde

que o interessado comprove a efetiva necessidade em requerimento ao qual deverão ser

anexados os seguintes documentos:

I - documento de identificação pessoal;

II - comprovante de residência em área rural; e

III - atestado de bons antecedentes.

14.3 – Crimes contra a flora

14.3.1 – conceito de flora

Flora é a totalidade das espécies vegetais de uma determinada região, incluindo as algas e os
fitoplânctons marinhos (Édis Milaré).

14.3.2 – normas penais de proteção à flora

Além da Lei Ambiental, outra norma penal de proteção à flora era o art. 26, “a” a “q”, da Lei
4.771/1965, o qual previa contravenções penais florestais.

As contravenções da Lei 4.771/1965 já haviam sido tacitamente revogadas pela Lei


Ambiental, com exceção das previstas nas letras “e”, “j”, “l” e “m”, que continuavam em
vigor. Ocorre que o antigo Código Florestal foi revogado pela Lei 12.651/2012, tendo
desaparecido todas as contravenções penais da Lei 4.771/1965.

14.3.3 – crime do art. 38

Art. 38. Destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente, mesmo

que em formação, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção:

Pena - detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.

14.3.3.1 – sujeitos do crime

278
Sujeito ativo do crime do art. 38 é qualquer pessoa, inclusive o proprietário ou possuidor da
área destruída ou danificada. Sujeitos passivos são o Estado e a coletividade.

14.3.3.2 – tipo objetivo

As condutas punidas pelo art. 38 são: destruir (aniquilar, fazer desaparecer), danificar
(causar danos) ou utilizar com violação das normas de proteção. Nos três casos, o crime é
material (aquele que se consuma com o resultado naturalístico). A tentativa é possível, em
todas as modalidades.

14.3.3.3 – objeto material

O objeto material do crime do art. 38 é a floresta de preservação permanente ainda que em


formação. Floresta é vegetação composta por árvores de grande porte. Não inclui as
vegetações rasteiras e baixas. Nesse sentido: STJ REsp 783.652. Não é qualquer floresta que
está protegida no tipo, mas apenas a de preservação permanente.

Floresta de preservação permanente é espécie do gênero “áreas de preservação


permanente”, cujo conceito está previsto no art. 3º, II, da Lei 12.651/2012, que revogou o
antigo Código Florestal:

Art. 3º Para os efeitos desta Lei, entende-se por: (...)

II - Área de Preservação Permanente - APP: área protegida, coberta ou não por vegetação

nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a

estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora,

proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas; (...)

A delimitação e o regime legal de proteção das áreas de preservação permanente estão


previstos, respectivamente, nos arts. 4º a 6º e 7º a 9º, da Lei 12.651/2012 14.

O tipo penal está protegendo tanto as florestas naturais quanto as artificiais (criadas por
florestamento ou reflorestamento, ou seja, decorrentes da ação humana).

14.3.4 – crime do art. 39

Art. 39. Cortar árvores em floresta considerada de preservação permanente, sem

permissão da autoridade competente:

Pena - detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.

14
O curso foi ministrado sob a égide do antigo Código Florestal. Com o advento da Lei 12.651/2012,
convém atualizar o material.

279
A este crime, aplica-se tudo o quanto dito acerca do crime do art. 38, com as seguintes
diferenças:

i) a conduta é “cortar”;

ii) o tipo penal prevê um elemento normativo, que está na expressão: “sem permissão da
autoridade competente”;

iii) o crime do art. 38 é punido na forma dolosa e culposa; o do art. 39 só é punido na forma
dolosa.

14.3.5 – crime do art. 41

Art. 41. Provocar incêndio em mata ou floresta:

Pena - reclusão, de dois a quatro anos, e multa.

Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de detenção de seis meses a um ano, e

multa.

Se a conduta for “praticar incêndio em floresta”, que é uma forma de destruí-la ou danificá-
la, o crime será o do art. 41 da Lei Ambiental.

Aqui, surge um problema. O Código Penal, em seu art. 250, § 1º, II, “h”, determina o
seguinte:

Art. 250 - Causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio

de outrem:

Pena - reclusão, de três a seis anos, e multa.

§ 1º - As penas aumentam-se de um terço: (...)

II - se o incêndio é: (...)

h) em lavoura, pastagem, mata ou floresta.

Art. 41 da Lei 9.605/1998 Art. 250, § 1º, II, “h”, do CP


Provocar incêndio em mata ou floresta. Causar incêndio em lavoura, pastagem, mata ou
floresta.

Evidentemente, se o incêndio for causado em lavoura ou pastagem, será aplicado o CP, na


medida em que o art. 41 da Lei Ambiental não prevê lavoura ou pastagem. Ex.: incêndio em
lavoura de cana de açúcar sem autorização da autoridade competente.

280
O problema é que ambos os dispositivos falam em “mata ou floresta”. Pergunta-se: o art. 41
da Lei Ambiental revogou tacitamente o art. 250, § 1º, II, “h”, na parte que se refere à mata
ou floresta?

Predomina o entendimento de que não houve revogação parcial do artigo do CP (Cezar


Roberto Bittencourt e Capez). Isso porque o dispositivo da Lei Ambiental protege o meio
ambiente, não exigindo perigo à incolumidade ou patrimônio alheios. Já o art. 250 do CP
protege a incolumidade pública e exige perigo à vida, à integridade física ou ao patrimônio
alheios.

281
LAVAGEM DE CAPITAIS (LEI 9.613/1998)15

Nos últimos anos, a preocupação com a lavagem de capitais é crescente, apesar de a Lei de
Lavagem de Capitais ser relativamente antiga.

1 – Histórico da lei

A origem da Lei de Lavagem de Capitais está relacionada à Convenção das Nações Unidas
contra o Tráfico Ilícito de Substâncias Entorpecentes, de 1988, aprovada pelo Congresso
Nacional através do Decreto Legislativo 162/1991 e promulgada através do Decreto
Presidencial 154/1991.

Chegou-se à conclusão de que não é possível combater o tráfico de drogas sem o combate à
movimentação financeira por ele gerada.

2 – Expressão “lavagem de capitais”

A expressão “lavagem de capitais” tem origem no direito norte-americano. Em Chicago, por


volta de 1920, na época da restrição ao álcool, sugiram as máfias, que começam a comprar
lavanderias para “limpar” o dinheiro. Daí a expressão: money loundering.

Em alguns países da Europa é utilizada a expressão “branqueamento de capitais” (Espanha e


Portugal), considerada ruim, por conter certa inferência racista.

3 – Conceito de lavagem de capitais

Lavagem de capitais é o processo por meio do qual bens, direitos ou valores provenientes
direta ou indiretamente de infração penal (crimes e contravenções penais) são integrados ao
sistema financeiro, com a aparência de terem sido obtidos de maneira lícita (nova redação
do art. 1º da Lei de Lavagem de Capitais):

Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação

ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de

15
Observação importante: a Lei de Lavagem de Capitais sofreu significativa alteração, pela Lei
12.683/2012, que entrou em vigor em 10 de julho de 2012 e teve o objetivo expresso de “tornar mais
eficiente a persecução penal dos crimes de lavagem de dinheiro” (preâmbulo). É fundamental
atualizar o material, com as novas disposições da lei e suas implicações nos crimes praticados antes e
depois de seu advento.

282
infração penal [abrange crime e contravenção penal]. (Redação dada pela Lei nº 12.683,

de 2012) (...)

Até o advento da Lei 12.683/2012, a presença de um dos crimes antecedentes previstos no


rol do antigo art. 1º era fundamental para a caracterização da lavagem, feita por intermédio
de uma atividade aparentemente lícita. Ex.: locadora de vídeos, em que o fluxo de dinheiro é
difícil de ser controlado. Hoje, a lei faz menção apenas à existência de uma “infração penal”
antecedente, que pode ser um crime ou uma contravenção penal:

Antes da Lei 12.683/2012 Depois da Lei 12.683/2012


Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem,
localização, disposição, movimentação ou localização, disposição, movimentação ou
propriedade de bens, direitos ou valores propriedade de bens, direitos ou valores
provenientes, direta ou indiretamente, de provenientes, direta ou indiretamente, de
crime: infração penal.
I - de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes Pena: reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e
ou drogas afins; multa.
II - de terrorismo;
II – de terrorismo e seu financiamento;
III - de contrabando ou tráfico de armas,
munições ou material destinado à sua
produção;
IV - de extorsão mediante sequestro;
V - contra a Administração Pública, inclusive a
exigência, para si ou para outrem, direta ou
indiretamente, de qualquer vantagem, como
condição ou preço para a prática ou omissão de
atos administrativos;
VI - contra o sistema financeiro nacional;
VII - praticado por organização criminosa.
VIII – praticado por particular contra a
administração pública estrangeira (arts. 337-B,
337-C e 337-D do Decreto-Lei n.° 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 – Código Penal).
Pena: reclusão de três a dez anos e multa.

Observação importante: não é necessário que haja uma quantia muito grande de dinheiro
para que se possa falar em lavagem de capitais, não obstante a possibilidade de aplicação do

283
princípio da insignificância. O STF admitiu o crime em se tratando da lavagem de R$
5.000,00.

4 – Gerações de leis de lavagem de capitais

A ideia das gerações das leis de lavagem de capitais mais ou menos aquela das de direitos
fundamentais, que foram evoluindo no tempo e incorporando os avanços das gerações
anteriores:

i) leis de primeira geração:

Nas leis de primeira geração, o único crime antecedente era o tráfico de drogas.

ii) leis de segunda geração:

Nas leis de segunda geração, há uma ampliação do rol dos crimes antecedentes, o qual,
entretanto, permanece taxativo. Até a Lei 12.683/2012, a lei brasileira inseria-se neste
conceito de leis de segunda geração.

Nas leis de segunda geração, somente se pode pensar no crime de lavagem de capitais se
eles forem provenientes de um dos crimes previstos no rol de crimes antecedentes. Ex.: não
há que se falar em lavagem no caso do agente que usa uma locadora para dissimular a
origem de valores oriundos de roubo de relógios caros, se o roubo não estiver no rol de
crimes antecedentes.

iii) leis de terceira geração:

Nas leis de terceira geração, qualquer infração penal pode figurar como antecedente da
lavagem de capitais (ex.: Espanha e Argentina). Na Espanha, o critério é o crime cuja pena
mínima for mais de 4 anos.

A partir da Lei 12.683/2012, a lei brasileira foi transformada em uma de terceira geração.
Foram apagados todos os crimes antecedentes e, depois de “direta ou indiretamente”,
passou a constar apenas a expressão “de infração penal” (abrangendo, como visto, inclusive
a contravenção penal). Na prática, por trás dessa alteração está o fato de que a apuração do
crime de lavagem era bastante complicada, pois havia de ser demonstrado o recebimento
do dinheiro com conhecimento da ilicitude da origem e a ocultação dessa ilícita origem.

Hoje, portanto, a lei brasileira não mais contém um rol taxativo de crimes antecedentes.

5 – Fases do crime de lavagem de capitais

284
A doutrina aponta que o crime de lavagem de capitais possui três fases distintas:

i) colocação (placement):

A colocação consiste na introdução do dinheiro ilícito no sistema financeiro. Várias técnicas


são utilizadas, como o smurfing, consistente no fracionamento de uma grande quantia de
dinheiro em pequenos valores. O COAF trabalha com a fiscalização dessas movimentações
suspeitas (ex.: um assalariado que ganha um salário mínimo e passa a movimentar R$
500.000,00). As condutas desse tipo devem ser imediatamente avisadas pelo gerente ao
COAF. Por isso a realização do smurfing. Esta é a fase em que é mais fácil identificar o crime,
na medida em que dinheiro ainda está muito próximo de sua origem.

ii) dissimulação (layering):

Na fase da dissimulação, é realizada uma série de negócios ou movimentações financeiras,


de modo a encobrir a origem ilícita dos valores.

iii) integração (integration):

Na integração, com a aparência lícita, os bens são formalmente incorporados ao sistema


econômico, seja por investimentos no mercado mobiliário ou imobiliário, seja no
refinanciamento de atividades ilícitas. O Brasil tem entrado na rota internacional justamente
nesta terceira fase, em especial nas cidades litorâneas, em que há bairros bastante ricos.

Para o STF, não é necessária a ocorrência das três fases para que o crime seja considerado
consumado (RHC 80.816).

Exemplos de crimes de lavagem de dinheiro: caso nos EUA de Franklin Jurado, que
coordenou a lavagem de 26 milhões de dólares oriundos do tráfico; caso do restaurante que
vendia buchada de bode com cocaína dentro.

Na doutrina, há outros modelos de lavagem, alguns até risíveis, como o que faz analogia com
a circulação da água (precipitação, filtragem, rios subterrâneos, lagos subterrâneos etc.)

6 – Bem jurídico tutelado pela lavagem de capitais

285
Não há consenso acerca do bem jurídico tutelado pelo crime de lavagem de capitais. O tema
já foi exigido em prova do MPF:

1ª corrente: é administração da justiça. Isso acontece em alguns países da Europa, em que a


lavagem é tratada como um crime de favorecimento real (art. 349 do CP 16).

2ª corrente: é o mesmo bem jurídico tutelado pela infração penal antecedente. Essa
segunda corrente pode até ser boa quando se pensa na primeira geração da lavagem.
Todavia, no caso do Brasil, há crimes tutelando bens jurídicos de natureza bastante diversa
(estar-se-ia dizendo que o crime tutelaria a saúde pública, a administração da Justiça etc.).
Essa teoria não possui muitos adeptos, justamente por isso.

3ª corrente: é a ordem econômico-financeira. A lavagem geraria um desequilíbrio


econômico-financeiro (pensar na locadora lícita tendo de concorrer com a ilícita). Em razão
disso, é perfeitamente possível, portanto, a aplicação do princípio da insignificância 17. Esta é
a corrente que prevalece.

7 – Acessoriedade da lavagem de capitais

O crime de lavagem de capitais é um crime acessório. Ou seja, depende de uma infração


penal antecedente, estando a ela sempre ligado, como a receptação. Antes da Lei
12.683/2012, falava-se na existência de um “crime antecedente”, expressão que teve de ser
abandonada, pois agora a lavagem de dinheiro abrange também a contravenção penal.

Aqui, surgem vários questionamentos interessantes: se há duas infrações penais


(antecedente e lavagem), elas obrigatoriamente precisam ser julgadas no mesmo processo?
Pode alguém ser condenado por lavagem sem a condenação pela infração penal
antecedente? Em caso afirmativo, se por acaso o cidadão for condenado na lavagem e
absolvido na antecedente, essa absolvição influi na lavagem?

7.1 – Autonomia e independência dos processos

Por ser um delito acessório, as infrações penais antecedentes funcionam como elementar do
crime de lavagem de capitais. O ideal, portanto, é que as duas infrações penais sejam

16
Art. 349 - Prestar a criminoso, fora dos casos de coautoria ou de receptação, auxílio destinado a
tornar seguro o proveito do crime: Pena - detenção, de um a seis meses, e multa.

17
Segundo o STF, são requisitos para a aplicação do princípio da insignificância: mínima ofensividade
da conduta, ausência de periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do
comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada.

286
julgadas num mesmo processo, em virtude da conexão probatória ou instrumental (ocorre
quando a prova de uma infração ou de qualquer das suas circunstâncias elementares influir
na prova de outra infração – art. 76, III, do CP). Mas isso não significa que os processos
criminais não possam correr separadamente.

Ex.: para lavar dinheiro que brotava de Campinas, o PCC estava abrindo contas em nome de
familiares dos presos (laranjas), em várias das cidades do interior de São Paulo, gerando
vários processos de lavagem em cada uma das cidades. Nesse caso, o ideal seria reunir os
processos todos em Campinas. No caso de Abadia, no entanto, os crimes antecedentes eram
cometidos fora do Brasil, mas a lavagem era praticada no Brasil. Se não houvesse a
independência dos processos, ele não poderia ser julgado no Brasil.

Portanto, os processos criminais pelo crime de lavagem e pela infração penal antecedente
são autônomos e independentes, sendo punível a lavagem ainda que desconhecido ou
isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade da infração penal antecedente (art. 2º, II e
§ 1º):

Redação antiga Redação atual


Art. 2º O processo e julgamento dos crimes Art. 2º O processo e julgamento dos crimes
previstos nesta Lei: (...) previstos nesta Lei: (...)
II - independem do processo e julgamento dos II - independem do processo e julgamento das
crimes antecedentes referidos no artigo anterior, infrações penais antecedentes, ainda que
ainda que praticados em outro país; praticados em outro país, cabendo ao juiz
competente para os crimes previstos nesta Lei a
decisão sobre a unidade de processo e
julgamento; (Redação dada pela Lei nº 12.683,
de 2012)

§ 1º A denúncia será instruída com indícios § 1º A denúncia será instruída com indícios
suficientes da existência do crime antecedente, suficientes da existência da infração penal
sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda antecedente, sendo puníveis os fatos previstos
que desconhecido ou isento de pena o autor nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de
daquele crime. pena o autor, ou extinta a punibilidade da
infração penal antecedente. (Redação dada pela
Lei nº 12.683, de 2012)

O autor da lavagem pode ser punido mesmo que não se saiba o autor, por exemplo, do
tráfico.

287
A intenção da Lei nº 9.603/1998 era consagrar uma autonomia absoluta entre o processo e
julgamento do crime de lavagem de dinheiro e o da infração penal antecedente. Ocorre que
a jurisprudência consolidou que essa autonomia é relativa, ou seja, é o juiz quem irá analisar
se é conveniente ou não a reunião dos processos, de acordo com as circunstâncias do caso
concreto.

A Lei nº 12.683/2012, ao alterar o inciso II do art. 2º da Lei de Lavagem, deixou claro o que a
jurisprudência e a doutrina majoritárias já sustentavam: o julgamento do crime de lavagem
de dinheiro e da infração penal antecedente podem ser reunidos ou separados, conforme se
revelar mais conveniente no caso concreto, cabendo ao juiz competente para o crime de
lavagem decidir sobre a unidade ou separação dos processos.

7.2 – Repercussão na lavagem da absolvição na infração penal antecedente

A despeito da autonomia e independência dos processos, no caso de sentença condenatória


na lavagem e de absolvição na infração penal antecedente, a absolvição repercutirá no
processo da lavagem de capitais?

A resposta depende do fundamento da absolvição. Para que o delito de lavagem de capitais


seja punível, a conduta antecedente deve ser típica e ilícita (princípio da acessoriedade
limitada). Portanto, caso o autor do crime antecedente seja absolvido com base na
atipicidade ou com base em uma excludente da ilicitude, não será possível a condenação por
lavagem de capitais (dito de outro modo: para que alguém seja condenado na lavagem, deve
haver o reconhecimento da tipicidade e da ilicitude da conduta). O raciocínio é muito
semelhante ao do concurso de agentes (condutas do autor e dos participes).

O CPP, em seu art. 386, diz quais as hipóteses de sentença absolutória:

Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que

reconheça:

I - estar provada a inexistência do fato;

II - não haver prova da existência do fato;

III - não constituir o fato infração penal;

IV – estar provado que o réu não concorreu para a infração penal; (Redação dada pela Lei

nº 11.690, de 2008)

V – não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal; (Redação dada pela Lei

nº 11.690, de 2008)

VI – existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20, 21,

22, 23, 26 e § 1º do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida

288
sobre sua existência; (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)

VII – não existir prova suficiente para a condenação. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)

(...)

A absolvição do agente na infração penal antecedente repercutirá na lavagem, portanto, se


for decretada com fundamento nos incisos I, III e VI, primeira parte, do art. 386. Porém, se o
autor do crime antecedente for absolvido com base em uma excludente da culpabilidade ou
em virtude de causa extintiva da punibilidade (ex.: morte do autor do antecedente) nada
impede a condenação pelo crime de lavagem de capitais.

Há duas causas extintivas da punibilidade em que o cidadão não pode ser condenado por
lavagem: nas hipóteses de abolitio criminis e de anistia. Cuidando-se de novatio legis que
deixa de considerar o fato antecedente como crime, não será possível a condenação pelo
crime de lavagem de capitais (“coisa de doutrinador”, segundo Renato).

Se os processos já houverem transitado em julgado (condenação na lavagem e atipicidade


do antecedente) cabe HC ou Revisão Criminal (cumulando, se o caso, pedido indenizatório),
conforme haja ou não restrição à liberdade de locomoção.

8 – Sujeito ativo do crime

O crime de lavagem de capitais é comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa.

O autor da infração penal antecedente também responde por lavagem de capitais ou ela é
somente o crime de terceiro? Hoje, cada vez mais a lavagem passa por um processo de
profissionalização. Todavia, no Brasil, o autor da infração penal antecedente também
responde pelo delito de lavagem de capitais. Roberto Delmanto tem posição contrária: para
o autor, aquele que pratica a infração antecedente não responde pela lavagem, se também
pratica a lavagem. Mas é posição isolada, encontrada somente em alguns países da Europa,
em que o crime não é autônomo, como no Brasil.

Cuidado: o traficante que esconde dinheiro no colchão, no armário, transporta no bolso da


calça etc. não pratica lavagem. Isso é ainda apenas o exaurimento do crime. Deve haver o
desenvolvimento de uma nova conduta para acobertar o produto do crime antecedente.

Portanto, no Brasil, o autor do crime antecedente pode responder de forma autônoma pela
lavagem. Relativamente ao advogado, deve-se analisar o caso concreto: o advogado que
cobra R$ 50.000,00 de honorários e declara essa quantia no imposto de renda não comete
crime. O que recebe R$ 500.000,00 e declara ter recebido R$ 50.000,00 extrapola a defesa
técnica e está participando da prática do crime de lavagem. Se aqueles R$ 50.000,00

289
declarados forem produto de lavagem, não há problema, mas esse dinheiro pode ser objeto
de medidas cautelares.

Portanto, caso o advogado deliberadamente concorra para a prática do delito, responderá


normalmente pelo crime de lavagem de capitais (ex.: a Operação Monte Éden, da Polícia
Federal, descobriu um esquema de fraude de escritórios de advocacia especializados em
criar empresas off shore no Uruguai). Curiosidade: há uma ideia de alguns doutrinadores de
que, para evitar essa promiscuidade, deveria a defesa ser necessariamente elaborada por
Defensor Público, mas tal entendimento é amplamente violador do princípio da ampla
defesa (direito do réu de constituir o advogado de sua confiança).

A participação no crime antecedente não é requisito para que o terceiro possa ser sujeito
ativo de lavagem, desde que o agente tenha consciência quanto à origem ilícita dos valores.
É o que vem acontecendo cada vez mais (a “terceirização” da lavagem).

Sujeito passivo da lavagem de capitais são o Estado e a sociedade, lesados na ordem


econômico-financeira.

9 – Tipo objetivo

São dois os verbos utilizados no art. 1º da Lei de Lavagem de Capitais: ocultar e dissimular.
Ocultar significa esconder a coisa, procurando impedir ou dificultar a sua localização.
Dissimular deve ser entendida como ocultação com fraude.

Como dito, a pessoa encontrada na rua com dinheiro não comete o crime de lavagem de
capitais. É preciso que haja um início de atividade de ocultação. Os verbos dão a ideia de um
crime de natureza permanente (a consumação se prolonga no tempo).

Conforme julgamento realizado pelo TRF da 3ª Região, o ex-prefeito Paulo Maluf obteve
valores desviados de obras realizadas em 1994 e fez depósitos no exterior (antes da vigência

290
da lei) e lá os manteve. Aplicam-se, portanto, os efeitos da lei, na medida em que se trata de
crime permanente (Súmula 711 do STF):

Súmula 711 - A LEI PENAL MAIS GRAVE APLICA-SE AO CRIME CONTINUADO OU AO CRIME

PERMANENTE, SE A SUA VIGÊNCIA É ANTERIOR À CESSAÇÃO DA CONTINUIDADE OU DA

PERMANÊNCIA.

O crime de lavagem de capitais é considerado de ação múltipla (ou de conteúdo variado):


caso se pratique a ocultação e a dissimulação num mesmo contexto, haverá crime único
(assim como no caso do tráfico de drogas). É a aplicação do princípio da alternatividade:
praticado mais de um verbo da figura delituosa em um mesmo contexto, o agente responde
por crime único18.

Trata-se de um crime material ou formal19?

O art. 1º, caput, utiliza os verbos “ocultar ou dissimular”, que dão uma ideia de resultado. Já
o art. 1º, § 1º, fala em “para ocultar ou dissimular” (neste caso, a pessoa age com esse
objetivo, mas o resultado não precisa ocorrer). O art. 1º, § 2º é um desdobramento do § 1º:

Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação

ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de

infração penal. (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012) (...)

§ 1º Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens,

direitos ou valores provenientes de infração penal: (Redação dada pela Lei nº 12.683, de

2012) (...)

§ 2º Incorre, ainda, na mesma pena quem: (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de

infração penal; (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

18
A grande discussão acerca do crime de estupro é justamente essa (da aplicação ou não do princípio
da alternatividade), em virtude da fusão com o atentado violento ao pudor (art. 213), no caso de a
pessoa, num mesmo contexto, praticar conjunção carnal e outro ato libidinoso diverso da conjunção
carnal. A grande maioria da doutrina tem caminhado no sentido da aplicabilidade, mas o STJ tem
julgados em sentido contrário (há uma divisão nas Turmas, na verdade). A questão deve em breve
chegar ao STF.

19
Crime material é aquele cujo resultado está dentro do tipo penal (ex.: homicídio); no crime formal
ou de consumação antecipada, há a previsão de um resultado, que não precisa ocorrer para que se
verifique a consumação do delito, sendo considerado mero exaurimento da conduta delituosa (ex.: o
crime de extorsão não demanda o recebimento da vantagem para se consumar).

291
II - participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade

principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei.

Portanto, a figura delituosa do caput é crime material, exigindo o resultado ocultação ou


dissimulação. As dos §§ 1º e 2º são claramente delitos formais, prevendo a ocultação e a
dissimulação, mas não exigindo que elas ocorram para a caracterização do delito.

10 – Tipo Subjetivo

No Brasil, a figura da lavagem de capitais somente é punida a título de dolo. Em outros


países, há também a punição a título culposo.

O crime admite também a punição a título de dolo eventual? Alguns crimes somente
admitem o dolo direto, condição essa aferível através da leitura do tipo (ex.: receptação,
denunciação caluniosa, respectivamente previstas nos arts. 180 e 339 do CP).

O art. 1º, caput e § 1º da Lei de Lavagem de Capitais nada falam acerca do elemento
subjetivo. Já no § 2º, o tipo não admite dolo eventual. Portanto, o crime de lavagem de
capitais é punido a titulo de dolo direto e eventual, tanto no art. 1º, caput, quanto no art. 1º,
§ 1º. Na hipótese do art. 1º, § 2º, o delito só é punível a título de dolo direto.

Para que o agente responda pelo crime de lavagem de dinheiro, seu dolo deve abranger a
consciência de que os valores ocultados ou dissimulados são provenientes de uma infração
penal. Esse é o grande problema da legislação brasileira. Ex.: no aeroporto de Foz do Iguaçu,
um rapaz é preso com R$ 500.000,00 (no território nacional). A acusação tem de demonstrar
que os valores são provenientes de uma infração penal antecedente, bem como que o rapaz
sabia da proveniência ilícita.

Para tentar resolver esse problema, foi criada a “teoria da cegueira deliberada”, também
chamada de ostrich instructions theory (“teoria das instruções da avestruz”). Com origem no
direito norte-americano, ela preconiza que se o agente tinha consciência da elevada
possibilidade de que os bens, direitos ou valores eram provenientes de um dos crimes
antecedentes e agiu de modo indiferente a esse conhecimento, responde pelo delito de
lavagem de capitais a título de dolo eventual.

Exemplos:

i) hipotético:

Renato é um doleiro. Um dia, alguém pede a troca de R$ 5.000,00 em dólar e repete essa
conduta muitas vezes, em dias diferentes, ao longo de um ano. O doleiro tem a obrigação de

292
comunicar as operações. Quando esse alguém quer contar a origem, Renato pede para que
ele não o faça, “enfiando a cabeça do avestruz no buraco”, ou seja, deliberadamente
evitando a consciência.

ii) caso do Banco Central de Fortaleza, de onde foram subtraídos R$ 164.000.000,00:

Uma das formas de lavagem do dinheiro obtido com o furto foi a aquisição de carros. Os
empresários, donos das lojas de automóveis, foram condenados em primeira instância, por
lavagem de dinheiro, por terem recebido R$ 980.000,00, em notas de R$ 50,00 e em sacos
de náilon (eles têm, pela lei, a obrigação de comunicar a operação), para a compra de
diversos carros de luxo. Consta que fora ainda deixado um saldo de R$ 250.000,00 para
futuras compras. Os juízes basearam-se na teoria da cegueira deliberada para a condenação.
Na segunda instância, os empresários foram absolvidos, pois a figura em que eles haviam
sido denunciados não admitia dolo eventual e a compra tinha sido feita antes de o crime ter
vindo à tona.

11 – Objeto material

O objeto material não se confunde com o bem jurídico do crime. O bem jurídico tutelado no
art. 121 do CP é a vida intrauterina, enquanto que o objeto material é o ser humano nascido
com vida. No furto, o bem jurídico é o patrimônio, enquanto que o objeto material é a coisa
alheia móvel.

A lavagem de capitais tem como objeto material bens, direitos ou valores provenientes da
infração penal antecedente. Produto direto (producta sceleris) é o resultado imediato do
crime, ou seja, é o objeto furtado, o dinheiro obtido com a venda da droga. Produto indireto
(fructus sceleris) é o proveito obtido pelo agente como resultado da utilização econômica do
produto direto. Ex.: imóvel comprado com a venda da droga.

12 – Crimes antecedentes20

Até o advento da Lei 12.683/2012, o rol de crimes antecedentes do art. 1º da Lei de Lavagem
de Capitais era taxativo. Faltavam, por exemplo, o tráfico de animais, os crimes contra a
ordem tributária e as contravenções penais.

A alteração legislativa teve fundamental importância, portanto, para abarcar as infrações


penais que não constavam do rol taxativo do art. 1º (como o “Jogo do Bicho”, que gera

20
As observações relativas a cada um dos crimes antecedentes, que constava deste tópico, foi
transferida para outros tópicos, relacionados aos estudos dos crimes pertinentes.

293
muito dinheiro) e solucionar o problema doutrinário a respeito da lavagem do dinheiro
oriundo dos crimes praticados por organizações criminosas.

A Lei nº 9.603/1998 previa, em sua redação original, que ocultar ou dissimular bens, direitos
ou valores provenientes de crimes praticados por organização criminosa configurava
lavagem de dinheiro.

Ocorre que a 1ª Turma do STF entendeu que, para que a organização criminosa seja usada
como crime antecedente da lavagem de dinheiro, seria necessária uma lei em sentido formal
e material definindo o que seria organização criminosa, não valendo a definição trazida pela
Convenção de Palermo. Decidiu também a 1ª Turma que o rol de crimes antecedentes,
trazido pelo art. 1º da Lei 9.613/1998 (em sua redação original) era taxativo e não fazia
menção ao delito de quadrilha (HC 96007/SP, Relator Min. Marco Aurélio, julgado em 12 de
junho de 2012).

Em suma, se um grupo estável de quatro pessoas, formado para a prática de crimes,


realizasse, por exemplo, vários estelionatos e, com isso, arrecadasse uma grande quantia em
dinheiro que seria dissimulado por meio do lucro fictício de empresas de fachada, tal
conduta não seria punida como lavagem de capitais.

Com a alteração trazida pela Lei nº 12.683/2012, para os casos posteriores à sua vigência,
não é necessário mais discutir se existe ou não definição legal de organização criminosa no
Brasil considerando que, como visto, se o dinheiro “sujo” obtido com qualquer crime for
ocultado ou dissimulado, haverá delito de lavagem de capitais.

Perde, assim, relevância a longa e acirrada discussão acerca da validade ou não da definição
de “organização criminosa” estabelecida pelo Decreto 5.015, de 12 de março de 2004, que
promulgou a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional
(Convenção de Palermo).

Esse debate terá ainda importância apenas nos casos anteriores à Lei nº 12.683/2012 que,
neste ponto, não é retroativa, por ser lei penal mais gravosa.

O crime de prevaricação (art. 319 do CP) pode ser antecedente da lavagem? Apesar de
integrar o capítulo de “crimes contra a administração pública”, a prevaricação não é infração
antecedente da lavagem, na medida em que dela não resulta dinheiro. Caso a conduta
omitida resulte em dinheiro, o crime será de corrupção passiva.

Portanto, só se pode falar em lavagem de dinheiro se da infração penal antecedente resultar


a obtenção de bens, direitos e valores, o que não ocorre no exemplo da prevaricação.

294
13 – Tentativa

Para saber se um crime admite tentativa, deve-se analisar se ele é ou não plurissubsistente
(praticado por vários atos). Como a conduta do crime de lavagem é fracionável, ela admite a
tentativa (art. 1º, § 3º, da Lei de Lavagem de Capitais):

Art. 1º (...) § 3º A tentativa é punida nos termos do parágrafo único do art. 14 do Código

Penal. (...)

O dispositivo é considerado irrelevante, pois as regras da Parte Geral do Código Penal são
aplicáveis desde que a lei especial não disponha de modo diverso (art. 12 do CP):

Art. 12 - As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial,

se esta não dispuser de modo diverso.

14 – Habitualidade criminosa

O art. 1º, § 4º, da Lei de Lavagem prevê uma causa de aumento de pena de um a dois terços
se o crime de lavagem for praticado de forma habitual ou por organização criminosa:

Redação antiga Redação nova


Art. 1º (...) § 4º A pena será aumentada de um a Art. 1º (...) § 4º A pena será aumentada de um a
dois terços, nos casos previstos nos incisos I a VI dois terços, se os crimes definidos nesta Lei
do caput deste artigo, se o crime for cometido de forem cometidos de forma reiterada ou por
forma habitual ou por intermédio de organização intermédio de organização criminosa. (Redação
criminosa. dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

Habitualidade criminosa (ou criminoso habitual) não se confunde com crime habitual.
Naquela, a habitualidade é uma característica do agente, que faz do crime seu estilo de vida
(“a profissão do cidadão é ser criminoso”). Crime habitual é o delito em que um ato isolado
não tipifica a conduta delituosa, sendo necessária a reiteração de determinada conduta para
a configuração do crime (ex.: exercício ilegal da medicina, previsto no art. 282 do CP).

15 – Delação premiada

15.1 – Origem e conceito

Na história, são vários os exemplos de delação premiada: Judas, traidores de Joaquim


Silvério dos Reis (Tiradentes) etc. A ideia surge com muita força no direito anglo-saxão, mais
especificamente na Inglaterra (as “testemunhas da coroa”), e teve importância no combate
à máfia na Itália.

295
Delação premiada é a possibilidade concedida ao participante ou coautor de fato delituoso
de receber determinado benefício mediante a prestação de informações às autoridades.

Alguns doutrinadores chamam a delação premiada de “chamamento de corréu”. Só se fala


em delação se o delator reconhece seu envolvimento na prática do delito e colabora com o
esclarecimento do crime.

Luiz Flávio Gomes entende que delação premiada não se confunde com a colaboração
premiada. Colaboração premiada seria o gênero, do qual a delação seria a espécie. Para o
autor, só há delação quando são apontados comparsas.

Com efeito, há situações em que se colabora com a autoridade sem apontar comparsas (ex.:
indicação do local do produto do crime). Luiz Flávio Gomes entende que, nesses casos, não
haveria delação, mas colaboração premiada.

Alguns doutrinadores questionam a delação premiada, entendendo que ela não deveria ser
incentivada pelo Estado, pois contraria a ética e a moral, incentivando comportamentos
antiéticos do criminoso. Essa é, todavia, uma tese acadêmica, que não é aceita pela
jurisprudência, na medida em que não há que se falar em ética entre os criminosos.

A delação premiada não viola o direito à não autoincriminação, pois o criminoso não é
obrigado a colaborar.

15.2 – Previsão legal acerca da delação premiada

A depender da lei em que houver delação premiada, o objetivo visado e o benefício


concedido serão diferentes (ex.: liberação da vítima, desmantelamento da quadrilha etc.)

i) art. 8º, parágrafo único, da Lei 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos):

Art. 8º (...) Parágrafo único. O participante e o associado que denunciar à autoridade o

bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a

dois terços.

O dispositivo pune a formação de quadrilha ou bando para a prática de crimes hediondos,


tortura, tráfico ou terrorismo. Aqui, as informações devem possibilitar o desmantelamento
da quadrilha e a diminuição da pena será de um a dois terços.

ii) art. 159, § 4º, do CP:

Art. 159 (...) § 4º - Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à

autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois

296
terços. (Redação dada pela Lei nº 9.269, de 1996)

O dispositivo trata da delação premiada no crime de extorsão mediante sequestro. Visa a


possibilitar a libertação da vítima. A redução é de um a dois terços da pena.

iii) art. 25, § 2º, da Lei 7.492/1986 (Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional):

Art. 25 (...) § 2º Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou coautoria, o

coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou

judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços. ( Incluído pela

Lei nº 9.080, de 19.7.1995)

Esta delação premiada foi inserida pela Lei 9.080/1995. Mais uma vez, aqui a redução é de
um a dois terços.

iv) art. 16, parágrafo único, da Lei 8.137/1990 (Lei dos Crimes contra a Ordem Tributária,
Econômica e contra as Relações de Consumo):

Art. 16 (...) Parágrafo único. Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou

coautoria, o coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à

autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a

dois terços. (Parágrafo incluído pela Lei nº 9.080, de 19.7.1995)

Esta delação premiada também foi inserida pela Lei 9.080/1995. Mais uma vez, aqui a
redução é de um a dois terços. Relativamente aos crimes contra a ordem econômica
previstos na Lei 8.137/1990, a Lei 12.529/2011 previu uma modalidade mais moderna de
delação premiada, que será analisada a seguir.

v) art. 6º da Lei 9.034/1995 (Lei das Organizações Criminosas):

Art. 6º Nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de um a

dois terços, quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de

infrações penais e sua autoria.

Importante observar que, em todos os dispositivos citados, a lei traz apenas uma causa de
diminuição de pena, o que é muito pouco. O delator pode cumprir pena no mesmo lugar dos
delatados, e a “caguetagem” resulta a ele a pena de morte.

vi) art. 1º, § 5º, da Lei de Lavagem de Capitais:

Redação antiga Redação atual


Art. 1º (...) § 5º A pena será reduzida de um a Art. 1º (...) § 5º A pena poderá ser reduzida de

297
dois terços e começará a ser cumprida em um a dois terços e ser cumprida em regime
regime aberto, podendo o juiz deixar de aplicá-la aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz
ou substituí-la por pena restritiva de direitos, se deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer
o autor, coautor ou partícipe colaborar tempo, por pena restritiva de direitos, se o
espontaneamente com as autoridades, autor, coautor ou partícipe colaborar
prestando esclarecimentos que conduzam à espontaneamente com as autoridades,
apuração das infrações penais e de sua autoria prestando esclarecimentos que conduzam à
ou à localização dos bens, direitos ou valores apuração das infrações penais, à identificação
objeto do crime. dos autores, coautores e partícipes, ou à
localização dos bens, direitos ou valores objeto
do crime. (Redação dada pela Lei nº 12.683, de
2012)

Na Lei de Lavagem de Capitais, a delação premiada já é bem melhor, se comparada com as


anteriores, pois o delator pode ser beneficiado com causa de diminuição de pena e fixação
do regime inicial aberto ou semiaberto, substituição da pena privativa de liberdade por
restritiva de direitos ou perdão judicial (causa extintiva da punibilidade). Veja que a redação
do dispositivo foi alterada pela Lei 12.683/2012.

Essa nova disciplina dos benefícios previstos na legislação os torna compensatórios, o que
demonstra o claro objetivo do legislador de incentivar a colaboração. O juiz aplicará o
benefício mais adequado de acordo com o grau de colaboração do delator.

vii) art. 41 da Lei 11.343/2006:

Art. 41. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial

e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime e na

recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena

reduzida de um terço a dois terços.

Veja que aqui houve certo retrocesso em termos de benefício ao delator.

viii) art. 13 da Lei 9.807/1999:

A Lei 9.807/1999 será tratada no tópico seguinte.

ix) art. 86 e 87 da Lei 12.529/2011:

Os arts. 35-B e 35-C da Lei 8.884/1994, lei que transformava o Conselho Administrativo de
Defesa Econômica (CADE) em Autarquia, dispunha sobre a prevenção e a repressão às

298
infrações contra a ordem econômica e dava outras providências, tratavam da delação
premiada no âmbito criminal e no âmbito das apurações administrativas. Ela também era
chamada pela lei de “acordo de leniência” (Damásio fala, também, em acordo de brandura
ou doçura). No art. 36-C, o acordo de leniência impedia o oferecimento da denúncia, desde
que objetivamente eficaz (ou seja, da delação deveria ocorrer um resultado
efetivo/objetivo).

A Lei 8.884/1994 foi inteiramente revogada pela Lei 12.529/2011, que passou a prever, em
seus arts. 86 e 87, o chamado “Programa de Leniência”. O art. 86 prevê a possibilidade de
celebração do acordo no âmbito administrativo; o art. 87, no âmbito criminal (crimes contra
a ordem econômica tipificados na Lei 8.137/1990

Art. 87. Nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei no 8.137, de 27 de

dezembro de 1990, e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais

como os tipificados na Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no art. 288

do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, a celebração de

acordo de leniência, nos termos desta Lei, determina a suspensão do curso do prazo

prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da

leniência.

Parágrafo único. Cumprido o acordo de leniência pelo agente, extingue-se

automaticamente a punibilidade dos crimes a que se refere o caput deste artigo.

A lei prevê a extinção da punibilidade automática com o cumprimento do acordo de


leniência.

15.3 – Delação na Lei de Proteção às Testemunhas

As várias leis estudadas no tópico anterior preveem delações para crimes específicos. A
grande novidade surge com a Lei de Proteção às Testemunhas (Lei 9.807/1999), que em seu
art. 13 traz uma delação geral, a qual, segundo parte da doutrina, poderia ser aplicada a
todos os outros crimes:

Art. 13. Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e

a consequente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha

colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde

que dessa colaboração tenha resultado:

I - a identificação dos demais coautores ou partícipes da ação criminosa;

II - a localização da vítima com a sua integridade física preservada;

III - a recuperação total ou parcial do produto do crime.

299
Parágrafo único. A concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do

beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso.

A concessão do perdão judicial envolve colaboração bastante robusta, pois é um benefício


muito grande.

De acordo com a doutrina, os incisos do art. 13 deverão estar presentes cumulativamente,


caso seja possível, no caso concreto. Isso porque alguns crimes possibilitam a presença de
todos, mas outros não. Ex.: na extorsão mediante sequestro em coautoria, com vítima ainda
sob custódia a pagamento de resgate, devem ser observados os três requisitos. Se, no
mesmo crime, não tiver sido realizado o pagamento de resgate, não há como observar os
três requisitos.

Caso não sejam preenchidos os requisitos do art. 13, o art. 14 da Lei 9.807/1999 prevê o
cabimento de uma causa de diminuição de pena para o delator:

Art. 14. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial

e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime, na

localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no

caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços.

A lei também traz medidas de proteção aos delatores (art. 15) 21:

Art. 15. Serão aplicadas em benefício do colaborador, na prisão ou fora dela, medidas

especiais de segurança e proteção a sua integridade física, considerando ameaça ou

coação eventual ou efetiva.

§ 1º Estando sob prisão temporária, preventiva ou em decorrência de flagrante delito, o

colaborador será custodiado em dependência separada dos demais presos.

§ 2º Durante a instrução criminal, poderá o juiz competente determinar em favor do

colaborador qualquer das medidas previstas no art. 8o desta Lei.

§ 3º No caso de cumprimento da pena em regime fechado, poderá o juiz criminal

determinar medidas especiais que proporcionem a segurança do colaborador em relação

aos demais apenados.

A Lei 9.807/1999 é muito avançada, mas na prática ela é pouco explorada e aplicada.

A “testemunha anônima” é aquela cuja identidade verdadeira não é divulgada ao acusado e


ao seu defensor técnico. Muitas vezes, ela é ouvida com um capuz e instrumentos de

21
Ver, a esse respeito, os arts. 7º, 8º e 9º da Lei de Proteção às Testemunhas.

300
distorção da voz e sua qualificação não é revelada. Essa possibilidade de preservação da
identidade da testemunha e do delator está prevista na lei (art. 7º, IV):

Art. 7º Os programas compreendem, dentre outras, as seguintes medidas, aplicáveis

isolada ou cumulativamente em benefício da pessoa protegida, segundo a gravidade e as

circunstâncias de cada caso: (...)

IV - preservação da identidade, imagem e dados pessoais; (...)

É perfeitamente possível, portanto, que se colha o depoimento do delator e da testemunha


sem revelação da identidade.

O Provimento nº 32/2000, da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, admite


a colheita de testemunho anônimo, mas prevê a possibilidade de acesso aos dados pessoais
da testemunha pelo advogado do réu. Pressupõe que o exercício da ampla defesa depende
do conhecimento dos dados da testemunha. O ordenamento confia que o advogado não
repassará as informações para o acusado. No julgamento do HC 90.321/2008, o STF
estabeleceu que é preciso assegurar o conhecimento dos dados da testemunha/delator
anônimo apenas ao advogado do réu, nomeado ou constituído. O direito de defesa não tem
natureza absoluta.

15.4 – Natureza jurídica da delação premiada

A delação premiada pode ser analisada sob as óticas do Direito Penal e do Direito Processual
Penal.

Sob a ótica do Direito Penal, ela pode funcionar como: i) causa de diminuição de pena; ii)
causa de substituição da pena por restritiva de direitos; iii) causa de fixação de regime inicial
aberto; ou iv) causa extintiva da punibilidade.

Sob a ótica do Direito Processual Penal, a delação premiada é um meio de obtenção de


prova. Através dela, o criminoso ajudará na obtenção de informações para a apuração e
esclarecimento do crime. No art. 87 da Lei 12.529/2011, a delação premiada é uma causa
impeditiva do oferecimento de denúncia.

A delação premiada é um benefício de natureza pessoal (somente o delator poderá ser


agraciado).

15.5 – Momento oportuno para a delação premiada

O melhor momento para a delação premiada é a fase investigatória. Todavia, ela pode
ocorrer também durante o processo judicial.

301
Há doutrinadores que entendem que ela pode ser feita até mesmo após o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória (Damásio). No entanto, essa seria uma hipótese
excepcionalíssima, de difícil ocorrência prática. Pode-se pensar no caso do coautor preso por
sequestro longo que, condenado, fornece informações suficientes para a localização e
recuperação da vítima.

Há doutrinadores que entendem que, transitada em julgado a sentença, seria o caso de


revisão criminal. Para Renato, a revisão criminal não é a melhor opção, pois a hipótese não
se enquadra dentre os casos de revisão. Melhor é tratar da delação num incidente na
execução criminal.

15.6 – Acordo de delação premiada

O acordo de delação premiada é um acordo sigiloso 22, celebrado entre o MP e o acusado, na


presença de seu defensor, a ser submetido a homologação do Juiz, que não poderá deixar de
observá-lo por ocasião da sentença, caso as obrigações estabelecidas tenham sido
cumpridas pelo delator.

O acordo não está previsto na letra fria da lei. Todavia, o criminoso está dando ao Estado
informações importantes, que podem resultar na própria morte dele, de modo que ele não
pode ser feito verbalmente. É quase um contrato, celebrado pelo MP. Deve haver
homologação, para ser judicialmente cobrado. O acordo visa a trazer maior eficácia à
delação e maior segurança ao delator.

15.7 – Valor probatório da delação premiada e necessidade de observância do


contraditório

Para a jurisprudência, a delação premiada isoladamente considerada não pode fundamentar


uma condenação. Devem a ela ser somados outros elementos probatórios.

Havendo necessidade de oitiva do delator no processo, será obrigatória a observância do


contraditório e da ampla defesa, permitindo-se que o advogado do corréu delatado possa
fazer reperguntas ao delator. Isso é pacífico na jurisprudência (STF HC 94.016 e STJ HC
83.875).

16 – Aspectos processuais da Lei de Lavagem de Capitais

16.1 – Procedimento da apuração do crime de lavagem de capitais (art. 2º, I)

22
Determinando o sigilo do acordo de delação, ver o STF HC 90.688.

302
Art. 2º O processo e julgamento dos crimes previstos nesta Lei:

I – obedecem às disposições relativas ao procedimento comum dos crimes punidos com

reclusão, da competência do juiz singular; (...)

Atenção! A lei fala que o processo e o julgamento do crime de lavagem de capitais


obedeceriam ao procedimento comum dos crimes punidos com reclusão. Isso era o que
acontecia até 2008, quanto, o procedimento do CPP era estabelecido de acordo com a
natureza da pena. A partir das modificações produzidas naquele ano, o que há no CPP é o
procedimento comum ordinário, sumário e sumaríssimo. A distinção não é mais realizada
com base na natureza, mas no quantum da pena.

Os crimes sujeitos ao procedimento comum ordinário são os com pena máxima igual ou
superior a quatro anos. Quando houver causas de aumento de pena ou de diminuição, deve-
se aumentar no máximo ou diminuir no mínimo possível.

O procedimento comum sumário será observado quando o crime possuir pena máxima
inferior a quatro anos e superior a dois anos. Há poucos delitos com essa característica,
como o homicídio culposo.

Por fim, o procedimento comum sumaríssimo é o do JECRIM, aplicado às infrações de menor


potencial ofensivo, que são todas as contravenções penais e os crimes com pena máxima
não superior (igual ou inferior) a dois anos, cumulada ou não com multa e submetidos ou
não a procedimento especial.

Assim, uma vez que a pena prevista para a lavagem de capitais é de reclusão de um a dez
anos e multa, o procedimento a ser seguido é o comum ordinário, previsto no CPP.

16.2 – Autonomia do processo (art. 2º, II)

Redação antiga Redação atual


Art. 2º O processo e julgamento dos crimes Art. 2º O processo e julgamento dos crimes
previstos nesta Lei: (...) previstos nesta Lei: (...)
II - independem do processo e julgamento dos II - independem do processo e julgamento das
crimes antecedentes referidos no artigo anterior, infrações penais antecedentes, ainda que
ainda que praticados em outro país; (...) praticados em outro país, cabendo ao juiz
competente para os crimes previstos nesta Lei a
decisão sobre a unidade de processo e
julgamento; (Redação dada pela Lei nº 12.683,
de 2012) (...)

303
Anteriormente, foi dito que o crime de lavagem depende da infração penal antecedente
para existir. Todavia, para os Tribunais Superiores, os processos criminais pelo delito de
lavagem de capitais e pela infração penal antecedente não precisam, obrigatoriamente,
tramitar juntos, o que, no entanto, não impede a reunião dos processos em virtude da
conexão probatória (ou instrumental), a depender do caso concreto (STJ HC 59.663).

Ex.: um traficante internacional que está comprando imóveis no Brasil será julgado no Brasil
pela lavagem de capitais, ainda que esteja traficando fora do Brasil e, por essa razão, não
possa ser julgado pelo tráfico aqui.

Assim, tudo dependerá do caso concreto: não vigora a obrigatoriedade de reunião nem da
separação. Como dito, foi positivado o entendimento jurisprudencial no sentido de que cabe
ao juiz competente para o crime de lavagem de dinheiro a decisão sobre a unidade de
processo e julgamento.

16.3 – Competência criminal

Como dito, prevalece na doutrina que o bem jurídico tutelado pela Lei de Lavagem de
Capitais é a ordem econômico-financeira. O art. 109, VI, da CR diz que os crimes contra a
ordem econômico-financeira serão julgados pela Justiça Federal “nos casos determinados
por lei”:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (...)

VI - os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o

sistema financeiro e a ordem econômico-financeira; (...)

Assim, para saber se a competência do crime contra a ordem econômico-financeira é da


Justiça Federal, deve-se analisar o que menciona a lei a respeito:

i) art. 26 da Lei 7.492/1986:

A competência para julgar os Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional é da Justiça


Federal:

Art. 26. A ação penal, nos crimes previstos nesta lei, será promovida pelo Ministério

Público Federal, perante a Justiça Federal. (...)

ii) Lei 1.521/1951:

A Lei dos Crimes contra a Economia Popular não fala nada sobre competência criminal, de
modo que ela será da Justiça Estadual (Súmula 498 do STF):

304
Súmula 498 - COMPETE À JUSTIÇA DOS ESTADOS, EM AMBAS AS INSTÂNCIAS, O

PROCESSO E O JULGAMENTO DOS CRIMES CONTRA A ECONOMIA POPULAR.

iii) Lei 8.176/1991 (Crime de Adulteração de Combustíveis):

A lei também é omissa, de modo que a competência para o julgamento do crime de


adulteração de combustíveis é da Justiça Estadual, pouco importando o fato de a ANP
realizar a fiscalização do combustível. O interesse da ANP é mediato, reflexo, não deslocando
a competência para a Justiça Federal, segundo os Tribunais Superiores.

iv) Lei 8.137/1990:

Nos Crimes contra a Ordem Tributária e Econômica e contra as Relações de Consumo, a


competência para julgamento dependerá da natureza do tributo. Sonegação de Imposto de
Renda é julgada pela Justiça Federal; sonegação de IPVA é julgada pela Justiça Estadual.

Essa lei também traz o delito de formação de cartéis (ex.: cartel de pãozinho), o qual, em
regra, é julgado pela Justiça Estadual. Porém, se o delito tiver a possibilidade de abranger
vários estados da Federação ou prejudicar setor econômico estratégico ou o fornecimento
de recursos essenciais, a competência será da Justiça Federal. O cartel do gás/combustível
será julgado pela Justiça Federal.

v) Lei de Lavagem de Capitais:

Em regra, a competência para julgar os crimes de lavagem de capitais é da Justiça Estadual.


Porém, atenção! Diversamente do que colocam alguns doutrinadores, não é sempre que a
competência para julgar a lavagem será da Justiça Estadual. O crime será julgado pela Justiça
Federal: quando praticado em detrimento de bens, serviços ou interesse da União, suas
autarquias ou Empresas Públicas; e quando o crime antecedente for de competência da
Justiça Federal (ex.: tráfico internacional de drogas que passou pelo Brasil, crimes contra o
Sistema Financeiro Nacional). Portanto, tudo dependerá do caso concreto. Nesse sentido,
ver o STJ CC 32.861 e o STJ CC 96.678.

16.4 – Criação de Varas Especializadas para o julgamento de lavagem de capitais

A criação de Varas Especializadas para o julgamento de lavagem de capitais provocou muita


controvérsia. Em 2003, foi editada a Resolução nº 314 do Conselho da Justiça Federal, que
dizia que os Tribunais deveriam criar Varas Especializadas para o combate à lavagem de
capitais. A partir daí, os cinco Tribunais Regionais Federais passaram a criar tais varas (ex.: de

305
acordo com o Provimento 238, do TRF da 3ª Região, a 2ª e a 6ª Varas Federais seriam
especializadas).

Os advogados começaram a dizer que a especialização de varas através de Provimento


violaria o princípio do Juiz Natural. O STF, no HC 86.660, apreciou a questão, tendo decidido
que apesar de a Resolução do Conselho da Justiça Federal ser inconstitucional, os Tribunais
podem especializar varas por meio de Provimentos ou Resoluções, por força do poder de
auto-organização. Era um julgado aguardado com grande ansiedade pelos militantes da
área.

No caso da Justiça Federal, é bom que se diga, existe inclusive previsão legal: art. 12 da Lei
5.010/1966:

Art. 12. Nas Seções Judiciárias em que houver mais de uma Vara, poderá o Conselho da

Justiça Federal fixar-lhes sede em cidade diversa da Capital, especializar Varas e atribuir

competência por natureza de feitos a determinados Juízes.

Detalhe: o dispositivo fala no Conselho da Justiça Federal, mas, a partir da CR/88, o órgão
passou a ter atribuições meramente administrativo-orçamentárias. O STF entendeu que o
Conselho da Justiça Federal não pode especializar Varas, por não possuir tal atribuição, razão
pela qual a Resolução foi considerada inconstitucional. Todavia, apesar disso, os
provimentos dos tribunais que especializassem varas não padeceriam do mesmo vício, em
decorrência do poder de auto-organização dos tribunais.

16.5 – Justa causa duplicada

No processo penal, as condições da ação são as três do processo civil (possibilidade do


pedido, interesse de agir e legitimidade) mais a justa causa (Afrânio Silva Jardim).

Justa causa é a existência de lastro probatório mínimo quanto à autoria e materialidade do


delito. A mera instauração de um processo penal contra uma pessoa já produz efeitos
deletérios. Por isso a exigência de justa causa para a denúncia.

A justa causa duplicada é uma construção de Luiz Flávio Gomes. Para que alguém possa ser
processado pelo crime de lavagem de capitais, além da justa causa quanto ao crime de
lavagem, também é necessário lastro probatório mínimo acerca da prática do crime
antecedente.

306
Então, em se tratando de lavagem de capitais, não basta demonstrar, por exemplo, a
ocultação ou dissimulação dos valores. Deve ser demonstrado que eles provêm de um dos
crimes considerados antecedentes (art. 2º, § 1º, da Lei de Lavagem):

Redação antiga Redação atual


Art. 2º (...) § 1º A denúncia será instruída com Art. 2º (...) § 1º A denúncia será instruída com
indícios suficientes da existência do crime indícios suficientes da existência da infração
antecedente, sendo puníveis os fatos previstos penal antecedente, sendo puníveis os fatos
nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou
pena o autor daquele crime. isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade
da infração penal antecedente. (Redação dada
pela Lei nº 12.683, de 2012)

As primeiras denúncias acerca de lavagem de capitais foram consideradas ineptas. A


expressão “indícios”, a que se refere o dispositivo, está sendo usada no sentido de prova
semiplena (uma prova com menor valor persuasivo).

16.6 – Aplicação do art. 366 do CPP na Lei 9.613/1998

O art. 366 do CPP teve sua redação alterada pela Lei 9.271/1996:

Art. 366. Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado,

ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar

a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão

preventiva, nos termos do disposto no art. 312. (Redação dada pela Lei nº 9.271, de

17.4.1996)

O dispositivo está claramente relacionado com o princípio da ampla defesa. Ninguém lê


edital, de modo que, para preservar o direito de defesa da pessoa, suspendem-se o processo
e a prescrição. Os dois parágrafos do art. 366 foram revogados em 2008, o que não afeta a
aplicação do dispositivo, pois o caput restou mantido.

O art. 366 é o que a doutrina chama de “norma processual mista”: trata-se de um dispositivo
que acarreta tanto a suspensão do processo (norma processual) quanto a suspensão da
prescrição (norma penal). Assim, é norma de natureza processual penal e penal, em prejuízo
do acusado.

Em se tratando de norma processual mista, qual o critério de direito intertemporal aplicado?


Ex.: crime praticado em 1995. Em 1997, quando já estava em vigor a Lei 9.271/1996, o
cidadão é citado por edital. Aplica-se o art. 366 e realiza-se a suspensão do processo e da

307
prescrição? Se fosse norma de natureza estritamente processual, haveria a aplicação
imediata. Entretanto, prevaleceu nos Tribunais Superiores o entendimento de o art. 366 do
CPP só seria aplicável aos crimes cometidos após a vigência da Lei 9.271/1996, por ser mais
grave a norma que manda suspender a prescrição.

O dispositivo do art. 366, ao prever a suspensão do processo e da prescrição, preserva da


defesa e o direito de punir do Estado. Fica, todavia, a pergunta: por quanto tempo o
processo poderá permanecer suspenso? O art. 366 não responde. Há duas posições sobre o
assunto:

1ª corrente: admite-se, como tempo de suspensão do processo, o tempo de prescrição da


pretensão punitiva abstrata, após o que a prescrição voltaria a correr novamente. Ex.: o
crime de furto, que tem pena máxima de 4 anos, prescreve em 8 anos, de modo que o
processo ficaria suspenso por oito anos. Para Renato, é a melhor corrente, pois evita a
criação de outros crimes imprescritíveis, além dos previstos na CR. Essa é a posição do STJ
(Súmula 415):

Súmula 415 – O período [máximo] de suspensão do prazo prescricional é regulado pelo

máximo da pena cominada.

2ª corrente: para o STF, o processo e a prescrição podem permanecer suspensos por prazo
indeterminado (RE 460.971). Renato acha que, com a atual composição de hoje, o STF
mudaria esse entendimento.

O art. 366 não criou uma prisão preventiva obrigatória. Na verdade, ela está condicionada à
presença dos pressupostos dos arts. 312 e 313 do CPP. Veja que o art. 366 fala
expressamente que o juiz poderá, “se for o caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do
disposto no art. 312”. Diante do princípio da presunção de inocência, não há falar-se em
prisão preventiva obrigatória.

Discussão mais recente e atual diz respeito à produção antecipada de provas nas hipóteses
do art. 366. O processo e a prescrição suspendem-se no início do processo. Membros do MP,
na ocasião da aplicação do art. 366, já querem a oitiva das testemunhas, pois elas tendem a
se esquecer dos fatos. Todavia, para o STJ, o simples argumento de que testemunhas
costumam se esquecer rapidamente dos fatos delituosos não é suficiente, por si só, para
autorizar a produção antecipada da prova, cuja realização deve ser feita nos termos do art.
225 do CPP. Isso para a preservação do direito de defesa:

Art. 225. Se qualquer testemunha houver de ausentar-se, ou, por enfermidade ou por

velhice, inspirar receio de que ao tempo da instrução criminal já não exista, o juiz poderá,

308
de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, tomar-lhe antecipadamente o

depoimento.

A idade avançada ou o estado grave de saúde da testemunha justificam a produção


antecipada da prova. A Súmula 455 do STJ trata exatamente dessa matéria:

Súmula 455 – A decisão que determina a produção antecipada de provas com base no art.

366 do CPP deve ser concretamente fundamentada, não a justificando unicamente o

mero decurso do tempo.

Pois bem. O artigo o art. 2º, § 2º, da Lei 9.613/1998 veda a aplicação do art. 366 à lavagem
de capitais:

Redação antiga Redação atual


Art. 2º (...) § 2º No processo por crime previsto Art. 2º (...) § 2º No processo por crime previsto
nesta Lei, não se aplica o disposto no art. 366 do nesta Lei, não se aplica o disposto no art. 366 do
Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941
(Código de Processo Penal), devendo o acusado
que não comparecer nem constituir advogado
ser citado por edital, prosseguindo o feito até o
julgamento, com a nomeação de defensor
dativo. (Redação dada pela Lei nº 12.683, de
2012)

A despeito da previsão legal, a doutrina se posicionava no sentido da inaplicabilidade do


dispositivo, por duas razões: i) ele seria inconstitucional, enquanto violador da ampla defesa;
e ii) a lei seria dotada de uma antinomia normativa (dispositivos conflitantes de uma mesma
lei), pois o art. 4º, § 3º, de maneira paradoxal, mandava aplicar o art. 366. Com base no
princípio do in dubio pro reo, a doutrina entendia que, havendo divergência quanto à
interpretação de um dispositivo, deveria prevalecer a mais favorável ao réu.

Ocorre que esse art. 4º, § 3º, também foi alterado pela Lei 12.683/2012, para corrigir
justamente essa antinomia:

Redação antiga Redação atual


Art. 4º (...) § 3º Nenhum pedido de restituição Art. 4º (...) § 3º Nenhum pedido de liberação
será conhecido sem o comparecimento pessoal será conhecido sem o comparecimento pessoal
do acusado, podendo o juiz determinar a prática do acusado ou de interposta pessoa a que se
de atos necessários à conservação de bens, refere o caput deste artigo, podendo o juiz

309
direitos ou valores, nos casos do art. 366 do determinar a prática de atos necessários à
Código de Processo Penal. conservação de bens, direitos ou valores, sem
prejuízo do disposto no § 1º. (Redação dada pela
Lei nº 12.683, de 2012)

O art. 4º, § 1º, a que se refere o § 3º, com redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012,
determina que se procederá à alienação antecipada para preservação do valor dos bens
sempre que estiverem sujeitos a qualquer grau de deterioração ou depreciação, ou quando
houver dificuldade para sua manutenção.

Com a alteração da lei, além de não mais haver a antinomia, foi sanada outra crítica que se
fazia ao art. 2º, § 2º, de que o dispositivo vedava a aplicação do art. 366 do CPP, mas não
explicitava o procedimento a ser adotado.

Permanece, entretanto, o debate acerca da constitucionalidade do dispositivo:

1ª corrente: o dispositivo é inconstitucional, por violar o princípio da ampla defesa (Marco


Antônio de Barros).

2ª corrente: o dispositivo é constitucional. Trata-se de opção legislativa legítima para esse


tipo de criminalidade. É a opinião de José Paulo Baltazar Júnior e Gilmar Mendes. Há
julgados do TRF da 3ª Região seguindo esta corrente.

16.7 – Liberdade provisória

Liberdade provisória é uma medida de contracautela que funciona como substitutivo da


prisão em flagrante, ficando o agente em liberdade sob o cumprimento de certas condições.
Assim como as demais medidas cautelares diversas da prisão, trata-se de um remédio para a
prisão em flagrante.

Na esteira de outras leis, a Lei de Lavagem de Capitais previa hipótese de liberdade


provisória proibida (com ou sem fiança):

Art. 3º Os crimes disciplinados nesta Lei são insuscetíveis de fiança e liberdade provisória

e, em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá

apelar em liberdade. (Revogado pela Lei nº 12.683, de 2012)

São leis que possuem dispositivo semelhante:

i) art. 31 da Lei 7.492/1986 (Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional): veda a liberdade
provisória com fiança;

310
ii) Lei 7.616/1989: por conta da própria CR, a lei determina que a prática do racismo é
insuscetível de liberdade provisória com fiança;

iii) a ação de grupos armados, civis e militares, contra a ordem constitucional e o estado
democrático é crime insuscetível de liberdade provisória (Lei 7.170/1983);

iv) crimes hediondos e equiparados:

Cuidado com a redação original do art. 2º, II, da Lei 8.072/1990, que dizia que crimes
hediondos e equiparados eram insuscetíveis de liberdade provisória com ou sem fiança. A lei
foi alterada, em 2007, pela Lei 11.464/2007, que simplesmente revogou a parte final do
dispositivo. A doutrina concluiu que crimes hediondos e equiparados admitem, pelo menos
em tese, a liberdade provisória sem fiança, quando o juiz verificar a inocorrência das
hipóteses que autorizam a prisão preventiva. O dispositivo havia desvirtuado a liberdade
provisória, pois era mais fácil obter liberdade provisória sem fiança do que a com fiança. O
art. 310, parágrafo único, do CPP foi alterado pela recente Lei de Prisões, e possui conteúdo
absolutamente diverso.

Art. 310.  Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá

fundamentadamente: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

I - relaxar a prisão ilegal; ou (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos

constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as

medidas cautelares diversas da prisão; ou (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. (Incluído pela Lei nº 12.403, de

2011).

Parágrafo único.  Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente

praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do art. 23 do Decreto-

Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, poderá, fundamentadamente,

conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos

os atos processuais, sob pena de revogação. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Quando a lei entrou em vigor, em 2007, foi extremamente criticada pela mídia. Todavia, isso
não significa que todos os autores de crimes hediondos serão postos em liberdade, mas que,
na prática, o juiz é quem poderá aferir a necessidade ou a cautelaridade da medida.

v) art. 7º da Lei 9.034/1995 (Lei das Organizações Criminosas): veda a liberdade provisória
com ou sem fiança;

vi) art. 1º, § 6º, da Lei 9.455/1997 (Lei de Tortura);

311
vii) Estatuto do Desarmamento:

Na redação original dos arts. 14, parágrafo único, 15, parágrafo único e 21, foi vedada a
concessão de liberdade provisória. Os três dispositivos foram declarados inconstitucionais
pelo STF (ADI 3112), que entendeu que ao legislador ordinário não seria dado vedar a
liberdade provisória de forma absoluta. Seria equiparar esses crimes aos mais graves
(racismo, hediondos etc.);

viii) art. 44 da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas): não admite a concessão de liberdade
provisória com ou sem fiança.

É possível que o legislador ordinário vede, peremptoriamente, a concessão de liberdade


provisória?

1ª corrente: é possível a vedação da liberdade provisória, com fundamento no art. 5º, LXVI,
da CR, que fala em “quando a lei admitir”. Haveria, portanto, permissivo constitucional:

Art. 5º (...) LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a

liberdade provisória, com ou sem fiança;

2ª corrente: a permanência de alguém na prisão em virtude de flagrante delito depende da


presença dos pressupostos que autorizam a prisão preventiva. Em recentes julgados, o STJ
(Resp 772.504) e o STF (HC 94.404) decidiram que o juiz é obrigado a apontar uma das
hipóteses que autorizam a prisão preventiva, para não conceder a liberdade provisória. Esta
corrente é majoritária (Pacelli, Alberto Silva Franco, Luiz Flávio Gomes).

A grande discussão dizia respeito ao art. 44 da Lei 11.343/2006, que vedava ambas as
espécies de liberdade provisória. A Lei 8.072/1990 foi alterada em 2007 e passou a admitir a
liberdade provisória sem fiança. A doutrina passou a entender que, se a liberdade provisória
é admissível para os crimes hediondos, com maior razão admiti-la para os casos de tráfico de
drogas.

O STF considerou que é inconstitucional toda e qualquer lei que vede, de forma genérica, a
concessão de liberdade provisória. Nesse sentido, decidiu recentemente o STF no caso do HC
104.339/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, 10.5.2012, no qual se declarou inconstitucional o art.
44 da Lei nº 11.343/2006 na parte em que proíbe a liberdade provisória para os crimes de
tráfico de drogas.

312
Não faz sentido que a pessoa fique presa durante o processo por um crime e, na hora da
condenação, receba restritiva de direitos. Seria irrazoável considerar que uma pessoa
sofresse punição mais gravosa durante o processo.

O art. 3º da Lei de Lavagem de Capitais foi expressamente revogado pela Lei 12.683/2012.
Apesar de não ter sido declarado pelo STF, ele era igualmente inconstitucional.

16.8 – Recurso em liberdade na lei de lavagem de capitais (art. 3º, parte final)

A questão do recurso em liberdade foi discutida por muito tempo. Durante muitos anos,
vigorou o disposto na Súmula 9 do STJ:

Súmula 9 - A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia

constitucional da presunção de inocência.

Isso começa a mudar quando os operadores do direito passam a dar importância ao Pacto
de São José da Costa Rica, que, em seu art. 8º, 2, “h”, assegura o duplo grau de jurisdição,
independentemente do recolhimento à prisão:

Artigo 8º - Garantias judiciais (...)

2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência,

enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa

tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...)

h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.

Diante dessa crescente importância da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a


discussão culmina no julgamento do HC 88.420, em que o STF reconheceu o direito de apelar
independentemente do recolhimento à prisão (o Tribunal reconheceu que “uma coisa é uma
coisa, outra coisa é outra coisa”). Como consequência, o STJ edita a Súmula 347 (sem
formalmente cancelar a Súmula 9, que está superada):

Súmula 347 - O conhecimento de recurso de apelação do réu independe de sua prisão.

No art. 3º, parte final, da Lei de Lavagem, o legislador condicionava o conhecimento da


apelação ao recolhimento à prisão (a Lei 9.034/1995 – Lei de Organizações Criminosas, em
seu art. 9º, possui dispositivo muito semelhante, mais categórico ainda 23).

23
Art. 9º O réu não poderá apelar em liberdade, nos crimes previstos nesta lei.

313
O art. 387, parágrafo único, do CPP, alterado pela Lei 11.719/2008, passou a prever
taxativamente o conhecimento da apelação independentemente da manifestação
fundamentada do juiz no sentido de prender ou manter o réu em liberdade:

Art. 387 (...) Parágrafo único. O juiz decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção

ou, se for o caso, imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem

prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser interposta. (Incluído pela Lei nº

11.719, de 2008).

O dispositivo, ainda que no CPP, já havia revogado tacitamente não só o art. 3º da Lei de
Lavagem como os demais previstos em lei especial, como o da Lei 9.034/1995. Como dito, a
Lei 12.683/2012 revogou expressamente o art. 3º da Lei de Lavagem.

16.9 – Recuperação de ativos e medidas cautelares

16.9.1 – noções gerais

Um dos principais objetivos do combate à lavagem de capitais é o ataque à movimentação


financeira das organizações criminosas, pelos seguintes motivos:

i) o confisco de bens e valores promove a asfixia econômica da organização criminosa;

ii) as penas privativas de liberdade têm se mostrado ineficientes a coibir as atividades das
organizações criminosas;

iii) a capacidade de controle das organizações criminosas do interior dos presídios;

iv) a rápida substituição dos administradores das organizações criminosas.

A recuperação de ativos e as medidas cautelares estão diretamente ligadas a esses motivos.


Como toda medida cautelar, sua decretação condiciona-se à presença do fumus boni iuris
(que em direito penal é chamado de fumus comissi delicti) e do periculum in mora.

O art. 4º da Lei 9.613/1998 trata exatamente dessas medidas assecuratórias destinadas à


arrecadação cautelar e posterior confisco dos bens, direitos ou valores do investigado, do
acusado ou das interpostas pessoas. Elas deverão ser concedidas inaudita altera parte, para
que não haja esvaziamento patrimonial. O contraditório será postergado/diferido.

A Lei 12.683/2012 não trouxe mudanças substanciais no caput do art. 4º, tendo sido apenas
aprimorada a redação original, que era menos clara que a atual. A redação original
mencionava que o juiz poderia decretar a apreensão ou o sequestro de bens, direitos ou

314
valores. Por conta dessa menção restrita à apreensão e ao sequestro, havia divergência na
doutrina sobre se seria possível o juiz determinar também a hipoteca legal e o arresto.

Como será estudado adiante, a nova lei não acaba com a polêmica, pois apesar de afirmar
que o juiz poderá decretar “medidas assecuratórias” (terminologia mais ampla, que pode ser
vista como um gênero que engloba todas essas espécies de medidas cautelares), o conceito
de arresto é incompatível com a previsão legal do art. 4º, caput.

A nova lei também deixa claro que podem ser objeto das medidas assecuratórias os bens,
direitos ou valores que estejam em nome do investigado (antes da ação penal), do acusado
(após a ação penal) ou de interpostas pessoas. Agora, ficou expresso que somente podem
ser objeto de medidas assecuratórias os bens, direitos ou valores que sejam instrumento,
produto ou proveito do crime de lavagem ou das infrações penais antecedentes:

Redação antiga Redação atual


Art. 4º O juiz, de ofício, a requerimento do Art. 4º O juiz, de ofício, a requerimento do
Ministério Público, ou representação da Ministério Público ou mediante representação
autoridade policial, ouvido o Ministério Público do delegado de polícia, ouvido o Ministério
em vinte e quatro horas, havendo indícios Público em 24 (vinte e quatro) horas, havendo
suficientes, poderá decretar, no curso do indícios suficientes de infração penal, poderá
inquérito ou da ação penal, a apreensão ou o decretar medidas assecuratórias de bens,
sequestro de bens, direitos ou valores do direitos ou valores do investigado ou acusado,
acusado, ou existentes em seu nome, objeto dos ou existentes em nome de interpostas pessoas,
crimes previstos nesta Lei, procedendo-se na que sejam instrumento, produto ou proveito dos
forma dos arts. 125 a 144 do Decreto-Lei nº crimes previstos nesta Lei ou das infrações
3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de penais antecedentes. (Redação dada pela Lei nº
Processo Penal. (...) 12.683, de 2012)

16.9.1 – apreensão

Apreensão é a medida cautelar decretada com o objetivo de apreender coisas, objetos ou


documentos de interesse para o processo, podendo atingir quaisquer objetos e
instrumentos relacionados ao crime de lavagem. Busca e apreensão são duas medidas
diversas (uma pode haver sem a outra). A busca está prevista no art. 240 do CPP:

Art. 240. A busca será domiciliar ou pessoal.

§ 1º Proceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadas razões a autorizarem, para:

a) prender criminosos;

b) apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos;

315
c) apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou

contrafeitos;

d) apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou

destinados a fim delituoso;

e) descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu;

f) apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja

suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato;

g) apreender pessoas vítimas de crimes;

h) colher qualquer elemento de convicção.

§ 2º Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte

consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo

anterior.

16.9.2 – sequestro

Sequestro é medida cautelar de natureza patrimonial, fundada no interesse público,


antecipativa do perdimento de bens como efeito da condenação, no caso de bens que sejam
produto de crime ou adquiridos pelo agente com a prática do delito.

O art. 91, II, do CP, traz o chamado “confisco de bens”:

Art. 91 - São efeitos da condenação: (...)

II - a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: (...)

b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo

agente com a prática do fato criminoso.

Interessa, aqui, a letra “b”. Esse perdimento ou confisco somente poderá ser realizado com
o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (que no Brasil ocorre muito tempo
após o crime). Daí a importância do sequestro: permitir a eficácia da pena de confisco.

O sequestro recai sobre o bem litigioso (o produto da infração). O CPP, em seus arts. 126 e
125, trata exatamente disso:

Art. 125. Caberá o sequestro dos bens imóveis, adquiridos pelo indiciado com os

proventos da infração, ainda que já tenham sido transferidos a terceiro.

Art. 126. Para a decretação do sequestro, bastará a existência de indícios veementes da

proveniência ilícita dos bens.

316
É necessário demonstrar, por exemplo, que o apartamento adquirido é produto da lavagem:
é o que a doutrina chama de “referibilidade”.

De acordo com o CPP, uma vez decretado o sequestro, a ação penal deve ter início no prazo
de 60 dias (art. 131, I):

Art. 131. O sequestro será levantado:

I - se a ação penal não for intentada no prazo de sessenta dias, contado da data em que

ficar concluída a diligência; (...)

Na antiga redação da Lei de Lavagem de Capitais, esse prazo era de 120 dias (art. 4º, § 1º).
Em ambas as hipóteses, a jurisprudência já considerava que o prazo tinha natureza relativa:
é um parâmetro importante, mas, a depender da complexidade do caso, seria admissível a
dilatação. A atual redação da Lei 9.613/1998, não prevê prazo para as medidas
assecuratórias:

Redação antiga Redação atual


Art. 4º (...) § 1º As medidas assecuratórias Art. 4º (...) § 1º Proceder-se-á à alienação
previstas neste artigo serão levantadas se a ação antecipada para preservação do valor dos bens
penal não for iniciada no prazo de cento e vinte sempre que estiverem sujeitos a qualquer grau
dias, contados da data em que ficar concluída a de deterioração ou depreciação, ou quando
diligência. houver dificuldade para sua manutenção.
(Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)

Fica a dúvida sobre se o prazo de 60 dias do CPP será aplicável ao sequestro da Lei de
Lavagem de Capitais, em virtude da ausência de previsão legal específica.

16.9.3 – arresto

O arresto é uma medida cautelar de natureza patrimonial fundada no interesse privado, que
tem por finalidade assegurar a reparação civil do dano causado pelo delito, em favor do
ofendido ou de seus sucessores.

O sequestro liga-se ao interesse público (o confisco). O arresto preocupa-se com o interesse


privado (a futura indenização aos credores, em virtude do crime).

O arresto recai sobre qualquer bem do agente, seja ele lícito ou ilícito. O CPP trata dessa
figura a partir do art. 136.

Como dito, o art. 4º, caput, da Lei 9.613/1998 apenas se referia à apreensão e ao sequestro.
Teoricamente, o arresto estaria incluído dentre as medidas cautelares admitidas, em virtude

317
da remissão que fazia o dispositivo aos arts. 125 a 144 do CPP. Todavia, como o dispositivo
era categórico ao falar em “bens, direitos ou valores do acusado, ou existentes em seu
nome, objeto dos crimes previstos nesta Lei”, prevalecia que na Lei de Lavagem de Capitais
não se admitia o arresto, pelo próprio conceito de arresto, incompatível com essa parte do
artigo (Pacelli e a jurisprudência do STF, no Inquérito 2.248).

A nova redação do dispositivo legal não resolveu o problema, pois fala genericamente nas
“medidas assecuratórias”, mas continua dizendo que elas poderão ser decretadas quanto
aos “bens, direitos ou valores do investigado ou acusado, ou existentes em nome de
interpostas pessoas, que sejam instrumento, produto ou proveito dos crimes previstos
nesta Lei ou das infrações penais antecedentes”. Mantém-se, portanto, a incompatibilidade
da previsão legal com o conceito de arresto.

16.10 – Alienação antecipada

16.10.1 – conceito

A alienação antecipada consiste na venda antecipada de bens considerados instrumentos da


infração penal ou daqueles que constituam proveito auferido pelo agente pela prática do
delito, desde que haja risco de perda do valor econômico, ressalvada a hipótese em que a
União indique bens que devam permanecer sob a custódia da autoridade policial 24.

Assim, quando os bens forem interessantes à própria polícia, em vez da alienação


antecipada, ela própria os utilizará. Ex.: helicópteros, aviões, pertencentes a organizações
criminosas e apreendidos pela Polícia Federal.

16.10.2 – previsão legal

A alienação antecipada já tinha previsão expressa nos arts. 61 e 62 da Lei de Drogas:

Art. 62 (...) § 4º Após a instauração da competente ação penal, o Ministério Público,

mediante petição autônoma, requererá ao juízo competente que, em caráter cautelar,

proceda à alienação dos bens apreendidos, excetuados aqueles que a União, por

intermédio da Senad, indicar para serem colocados sob uso e custódia da autoridade de

polícia judiciária, de órgãos de inteligência ou militares, envolvidos nas ações de

24
Definição de Márcio André Lopes Cavalcante: “A alienação antecipada é a venda, por meio de leilão,
antes do trânsito em julgado da ação penal, dos bens que foram objeto de medidas assecuratórias e
que estão sujeitos a qualquer grau de deterioração ou depreciação, ou quando houver dificuldade
para sua manutenção”.

318
prevenção ao uso indevido de drogas e operações de repressão à produção não

autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, exclusivamente no interesse dessas atividades.

A Lei de Lavagem não tratava do tema. Entendia-se que, de acordo com a antiga redação do
art. 5º, se havia a administração dos bens, eles não poderiam ser alienados, ressalvada a
hipótese em que o crime antecedente fosse o de tráfico de drogas.

Entretanto, como visto acima, a Lei 12.683/2012 deu nova redação ao art. 4º, § 1º, passando
a prever expressamente a possibilidade de alienação antecipada dos bens arrecadados por
medidas assecuratórias.

Regramento da alienação antecipada:

CPP Lei de Drogas Lei de Lavagem


O tratamento dado pelo CPP Atento à nova realidade, Prossegue nessa tendência de
ao tema foi muito acanhado permite a alienação ampliar a possibilidade de
tendo em vista que, na época antecipada de veículos, alienação antecipada
em que foi editado, os embarcações, aeronaves e afirmando que isso irá ocorrer
processos penais não eram tão quaisquer outros meios de sempre que os bens que foram
demorados e o tipo de transporte, os maquinários, objeto de medidas
criminalidade existente não utensílios, instrumentos e assecuratórias, nos processos
exigia tais respostas. Por essas objetos de qualquer natureza, de lavagem de dinheiro,
razões, há apenas um utilizados para a prática dos estiverem sujeitos a qualquer
dispositivo que autoriza a crimes definidos nesta Lei (art. grau de deterioração ou
alienação antecipada em caso 62, § 4º). depreciação, ou quando
de coisas facilmente houver dificuldade para sua
deterioráveis (art. 120, § 5º). manutenção (art. 4º, § 1º da
Lei 9.613/1998).

16.10.3 – destinação dos recursos obtidos com a alienação antecipada

A quantia apurada com a alienação antecipada fica depositada em conta judicial, até o final
da ação penal respectiva. Se o réu for absolvido, os recursos serão devolvidos a ele.

Em caso de condenação, o réu será privado definitivamente dessa quantia, cujo destino irá
variar de acordo com o crime cometido e com a natureza da apreensão do bem:

i) se o bem alienado era instrumento, produto ou proveito do crime de lavagem, o valor


obtido será perdido em favor da União ou do Estado (art. 7º, I, da Lei 9.613/1998):

319
Art. 7º São efeitos da condenação, além dos previstos no Código Penal:

I - a perda, em favor da União - e dos Estados, nos casos de competência da Justiça

Estadual -, de todos os bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à

prática dos crimes previstos nesta Lei, inclusive aqueles utilizados para prestar a fiança,

ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé; (Redação dada pela Lei nº 12.683,

de 2012) (...)

ii) na hipótese de tráfico de drogas, a quantia arrecadada será destinada ao Fundo Nacional
Antidrogas (art. 62, § 9º, da Lei 11.343/2006):

Art. 62 (...) § 9º Realizado o leilão, permanecerá depositada em conta judicial a quantia

apurada, até o final da ação penal respectiva, quando será transferida ao Funad,

juntamente com os valores de que trata o § 3º deste artigo.

16.10.4 – constitucionalidade da alienação antecipada

Segundo o Juiz Márcio André Lopes Cavalcanti, a alienação antecipada não é


inconstitucional, não violando o devido processo legal, a presunção de inocência ou o direito
de propriedade.

O devido processo legal não é afrontado, considerando que a constrição sobre os bens da
pessoa não é feita de forma arbitrária, sendo, ao contrário, prevista na lei que traz os
balizamentos para que ela possa ocorrer.

Não há violação ao princípio da presunção de inocência, considerando que ele não é


absoluto e não impede a decretação de medidas cautelares contra o réu, desde que se
revelem necessárias e proporcionais no caso concreto. Nesse mesmo sentido, não é
inconstitucional a prisão preventiva, o arresto, o sequestro, a busca e apreensão etc.

O direito de propriedade, que também não é absoluto, não é vilipendiado porque o réu
somente irá perder efetivamente o valor econômico do bem se houver o trânsito em julgado
da condenação.

16.10.5 - procedimento da alienação antecipada na Lei de Lavagem

A Lei 12.683/2012 acrescentou o art. 4º-A, que prevê o procedimento da alienação


antecipada nos processos envolvendo lavagem de dinheiro. Este novo art. 4º-A é de
fundamental relevância na prática e sua leitura é recomendada.

16.11 – Inversão do ônus da prova

320
O art. 4º, § 2º, da Lei de Lavagem prevê uma hipótese de inversão do ônus de prova, ao
determinar que cabe ao acusado a demonstração da origem lícita dos bens apreendidos:

Redação original Redação atual


Art. 4º (...) § 2º O juiz determinará a liberação Art. 4º (...) § 2º O juiz determinará a liberação
dos bens, direitos e valores apreendidos ou total ou parcial dos bens, direitos e valores
sequestrados quando comprovada a licitude de quando comprovada a licitude de sua origem,
sua origem. mantendo-se a constrição dos bens, direitos e
valores necessários e suficientes à reparação dos
danos e ao pagamento de prestações
pecuniárias, multas e custas decorrentes da
infração penal. (Redação dada pela Lei nº
12.683, de 2012)

A dúvida que se coloca é a seguinte: o dispositivo viola o princípio da presunção de


inocência?

Veja que, num primeiro momento, caso se busque a apreensão ou o sequestro de bens
direitos e valores, deve-se demonstrar o fumus comissi delicti e o periculum in mora
(“indícios suficientes da prática do delito”).

Num segundo momento (processual), em que se está já diante de um processo em


andamento, o ônus da prova quanto à licitude dos valores é do acusado, caso tenha
interesse na restituição. É isso o que a doutrina chama de inversão do ônus da prova.

A maioria entende que não há violação da presunção da inocência, pois o princípio estaria
ligado a medidas de natureza pessoal, não a medidas patrimoniais (cíveis, portanto, trazidas
para o processo penal por questão de celeridade).

Num terceiro momento, da sentença condenatória, o ônus da prova é do MP: caso não seja
demonstrada a origem ilícita dos bens, eles deverão ser restituídos ao acusado.

16.12 – Ação civil de confisco

A ação civil de perdimento ou confisco é um instrumento processual que possibilita a


formação de um título executivo judicial antes do trânsito em julgado da sentença
condenatória. Dela, resultam dois benefícios:

i) permite a recuperação de ativos em caso de decisões declaratórias extintivas da


punibilidade e absolutórias que não façam coisa julgada no cível. Ex.: no caso de falecimento

321
do acusado, as medidas cautelares serão levantadas e os bens entrarão na sucessão. Aqui a
importância da ação civil de confisco, para evitar o perdimento desses bens;

ii) permite alcançar uma sentença cível condenatória antes da sentença no processo penal, o
qual costuma ser mais lento.

A ação civil de confisco não está prevista na Lei de Lavagem. Sua criação é, todavia,
recomendada pelos organismos internacionais, de modo que, em breve, poderá surgir no
ordenamento jurídico brasileiro.

16.13 – Ação controlada

A ação controlada consiste no retardamento da intervenção policial ou judicial, para que ela
ocorra num momento mais oportuno sob o ponto de vista da colheita probatória.

Ela está prevista nos seguintes dispositivos legais:

i) art. 2º, II, da Lei 9.034/1995 (Lei das Organizações Criminosas):

Como visto, esta ação controlada independe de prévia autorização judicial. Por isso,
doutrinadores a chamam de “ação controlada descontrolada”.

ii) art. 53, II, da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006):

Na Lei de Drogas, a ação controlada depende de autorização judicial.

iii) Art. 4º-B, da Lei de Lavagem:

Anteriormente prevista no art. 4º, § 4º, da Lei de Lavagem, a ação controlada está agora no
art. 4º-B do mesmo diploma legal:

Redação antiga Redação atual


§ 4º A ordem de prisão de pessoas ou da Art. 4º-B. A ordem de prisão de pessoas ou as
apreensão ou sequestro de bens, direitos ou medidas assecuratórias de bens, direitos ou
valores, poderá ser suspensa pelo juiz, ouvido o valores poderão ser suspensas pelo juiz, ouvido o
Ministério Público, quando a sua execução Ministério Público, quando a sua execução
imediata possa comprometer as investigações. imediata puder comprometer as investigações.
(Incluído pela Lei nº 12.683, de 2012)

A ordem de prisão ou as medidas assecuratórias poderão ser suspensas pelo juiz. Note que o
flagrante delito não está aqui inserido, pois não depende de autorização prévia. Ao contrário
das duas leis anteriormente citadas, na Lei de Lavagem a prisão em flagrante continua sendo

322
obrigatória, somente sendo possível o retardamento das prisões preventiva e temporária e
das medidas assecuratórias.

Nas duas leis anteriores (Lei de Drogas e Lei de Organizações Criminosas), a ação controlada
é denominada flagrante prorrogado, retardado ou diferido. Já na Lei de Lavagem de Capitais
não é possível utilizar essas expressões, tendo em vista que a prisão em flagrante continua
sendo obrigatória.

Não se deve confundir essas figuras com o flagrante preparado. Neste, alguém é induzido à
prática do delito ao mesmo tempo em que a autoridade policial adota medidas para evitar a
sua consumação.

16.14 – Efeitos da condenação

Os efeitos da condenação estão previstos no art. 7º da Lei 9.613/1998:

Art. 7º São efeitos da condenação, além dos previstos no Código Penal:

I - a perda, em favor da União - e dos Estados, nos casos de competência da Justiça

Estadual -, de todos os bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à

prática dos crimes previstos nesta Lei, inclusive aqueles utilizados para prestar a fiança,

ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé; (Redação dada pela Lei nº 12.683,

de 2012)

II - a interdição do exercício de cargo ou função pública de qualquer natureza e de diretor,

de membro de conselho de administração ou de gerência das pessoas jurídicas referidas

no art. 9º, pelo dobro do tempo da pena privativa de liberdade aplicada. (...)

Há aqui os efeitos genéricos da condenação.

323
ESTATUTO DO DESARMAMENTO (LEI 10.826/2003)

1 – Considerações iniciais

Antes do Estatuto do Desarmamento, vigia a Lei 9.437/1997, que previa todos os crimes
(posse, porte, disparo, comércio e tráfico de armas), de forma concentrada, no art. 10, com
a mesma pena cominada:

Art. 10. Possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou

fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente,

emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo, de uso

permitido, sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Pena - detenção de um a dois anos e multa. (...)

Como se verifica, havia crimes de gravidades diferentes com penas iguais, em violação ao
princípio da proporcionalidade.

A Lei 9.437/1997 foi revogada pelo atual Estatuto do Desarmamento, que prevê crimes
diferentes em dispositivos diversos, com penas diferentes, desta vez atendendo ao princípio
da proporcionalidade.

2 – Competência para julgamento dos crimes

O controle de armas no Brasil é federal, realizado pelo SINARM, uma entidade da União.
Quando entrou em vigor, surgiu uma tese no TJ/RJ segundo a qual, se o controle de armas
no Brasil é federal, os crimes previstos no Estatuto do Desarmamento seriam da
competência da Justiça Federal, por ferirem interesse da União.

O STJ derrubou essa tese. Segundo o Tribunal, a competência para o julgamento dos crimes
do previstos no Estatuto do Desarmamento é da Justiça Estadual, salvo se houver interesse
específico da União (ex.: policial rodoviário federal trabalhando com arma de numeração
raspada). Isso porque, segundo o STJ, o que fixa a competência é o bem jurídico protegido,
que é a segurança pública, pertencente à coletividade, e não à União.

Há, todavia, uma exceção: o tráfico internacional de armas de fogo é de competência da


Justiça Federal. É o único crime genuinamente federal.

No caso de porte ilegal de arma por militar em local sujeito à administração militar, quem
julga é a Justiça Comum, e não a militar (STJ CC 112.314).

324
3 – Competência para determinar o local que deve ser entregue a arma
apreendida em processo findo

Processado o réu por porte ilegal de arma, a arma confiscada é entregue ao Exército. Surge
aí um conflito de atribuições entre o Comando do Exército e o Juiz do processo. O STJ
decidiu que a competência para a determinação do local de entrega da arma é do juiz do
processo, e não do Comando do Exército.

Ao Comando cabe definir quais unidades do Exército receberão essas armas. Ao juiz do
processo cabe decidir em qual dessas unidades a arma será entregue (STJ CAT 191/BA, mas
há vários outros no mesmo sentido).

4 – Bens jurídicos protegidos pelo Estatuto do Desarmamento

De acordo com o STF e o STJ, os bens jurídicos mediatos protegidos pelo Estatuto do
Desarmamento são os seguintes: i) incolumidade pessoal; ii) liberdade individual; iii) vida; iv)
integridade física; v) saúde; vi) patrimônio; vii) outros direitos fundamentais.

Ainda, de acordo com os Tribunais Superiores, a segurança coletiva é o bem jurídico


imediato.

Nesse sentido, ver os seguintes julgados: STF HC 96.072 e STJ HC 156.736.

5 – Dos crimes do Estatuto do Desarmamento

5.1 – Posse irregular de arma de fogo de uso permitido (art. 12)

Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso

permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua

residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o

titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa:

Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. (...)

5.1.1 – sujeitos do crime

O sujeito ativo do crime do art. 12 pode ser qualquer pessoa. Trata-se de crime comum. Já o
sujeito passivo é a coletividade, tratando-se, por essa razão, de crime vago.

5.1.2 – condutas

As condutas previstas no tipo penal são duas: i) “possuir”; ou ii) “manter sob a guarda”.
Possuir significa ter a pronta disponibilidade da arma.

325
5.1.3 – objeto material

Objeto material do crime do art. 12 é: i) arma de fogo; ii) munição; ou iii) acessório, desde
que sejam de uso permitido. Os conceitos de arma de fogo, munição e acessório estão nos
Decretos 3.665/2000 (art. 3º) e 5.123/2004 (art. 10).

Art. 3º Para os efeitos deste Regulamento e sua adequada aplicação, são adotadas as

seguintes definições: (...)

II - acessório de arma: artefato que, acoplado a uma arma, possibilita a melhoria do

desempenho do atirador, a modificação de um efeito secundário do tiro ou a modificação

do aspecto visual da arma; (...)

Exemplos de acessórios: mira a laser e silenciador. Partes de uma arma desmontada (ex.:
cano, cabo) não são acessórios. O coldre (objeto que vai à cintura para portá-la) não é
acessório.

XIII - arma de fogo: arma que arremessa projéteis empregando a força expansiva dos

gases gerados pela combustão de um propelente confinado em uma câmara que,

normalmente, está solidária a um cano que tem a função de propiciar continuidade à

combustão do propelente, além de direção e estabilidade ao projétil; (...)

LXIV - munição: artefato completo, pronto para carregamento e disparo de uma arma,

cujo efeito desejado pode ser: destruição, iluminação ou ocultamento do alvo; efeito

moral sobre pessoal; exercício; manejo; outros efeitos especiais; (...)

Art. 10. Arma de fogo de uso permitido é aquela cuja utilização é autorizada a pessoas

físicas, bem como a pessoas jurídicas, de acordo com as normas do Comando do Exército

e nas condições previstas na Lei no 10.826, de 2003.

Art. 11. Arma de fogo de uso restrito é aquela de uso exclusivo das Forças Armadas, de

instituições de segurança pública e de pessoas físicas e jurídicas habilitadas, devidamente

autorizadas pelo Comando do Exército, de acordo com legislação específica.

Atenção! A posse de arma de fogo, munição ou artefato de uso restrito configura o crime do
art. 16 do Estatuto do Desarmamento.

5.1.4 – elemento espacial do tipo penal

326
O crime do art. 12 possui um elemento espacial: “no interior de sua residência ou
dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o
responsável legal do estabelecimento ou empresa”.

É esse elemento espacial do tipo penal o que permite diferenciar posse e porte. A posse
ocorre: i) na residência ou em dependência da residência do infrator; ou ii) no local de
trabalho do infrator, desde que ele seja o proprietário ou o responsável pelo
estabelecimento. O porte, por sua vez, ocorre em qualquer outro local que não seja os
indicados acima.

Exemplos:

i) o infrator tem uma arma no quarto: posse; coloca a arma na cintura e sai para passear com
o cachorro: porte;

ii) o dono do restaurante e o garçom têm armas guardadas na gaveta do restaurante. Para o
dono do restaurante, será posse; para o garçom, porte.

5.1.5 – elemento normativo do tipo penal

O art. 12 também possui um elemento normativo: “em desacordo com determinação legal
ou regulamentar”. Veja, portanto, que nem toda posse de arma é crime, apenas a ilegal. A
posse legal é fato atípico.

Posse legal Posse ilegal


Fato atípico. Crime.
Legal é a posse com registro expedido pela Ilegal é a posse sem registro ou com registro sem
Polícia Federal, após autorização do Sinarm. validade. Desde a entrada em vigor do Estatuto
Registro é o documento que legaliza a posse (art. do Desarmamento até o dia 31 de dezembro de
25
5º do Estatuto do Desarmemento) . 2009, sucessivas normas concederam prazos para
a regularização da posse ilegal junto à Polícia
Federal ou a entrega da arma com posse ilegal.

De acordo com a jurisprudência pacífica do STF e do STJ, até o dia 31 de dezembro de 2009,
a posse ilegal de arma de fogo não era crime. Só passou a ser crime a partir de 1º de janeiro

25
Art. 5º O certificado de Registro de Arma de Fogo, com validade em todo o território nacional,
autoriza o seu proprietário a manter a arma de fogo exclusivamente no interior de sua residência ou
domicílio, ou dependência desses, ou, ainda, no seu local de trabalho, desde que seja ele o titular ou o
responsável legal pelo estabelecimento ou empresa. (Redação dada pela Lei nº 10.884, de 2004) (...)

327
de 2010. Até 31 de dezembro de 2009 houve o que o STF e o STJ chamam de abolitio
criminis temporária, vacatio legis especial, vacatio legis indireta, descriminalização
temporária ou atipicidade momentânea.

5.1.6 – lista das normas que prorrogaram o prazo

As seguintes normas concederam prazos para a regularização da posse ilegal das armas de
fogo:

i) arts. 30 a 32 do Estatuto do Desarmamento: até 23 de dezembro de 2006 (arma permitida


e proibida);

ii) Lei 11.191/2005: até 23 de outubro de 2005 (arma permitida e proibida);

iii) Lei 11.706/2008: até 31 de dezembro de 2008 (somente para arma permitida);

iv) Lei 11.922/2009: até 31 de dezembro de 2009 (somente para arma permitida).

Nos intervalos entre essas leis, os prazos foram sendo prorrogados por Medida Provisória. A
posse ilegal é aquela sem registro ou com registro sem validade. O prazo “i” é para a
regularização de posse com registro com validade vencida (art. 5º, § 3º); o prazo “ii” é para
posse sem registro. Acerca do tema, ver o STJ HC 190.568, julgado em 14 de abril de 2011.

A partir de 1º de janeiro de 2010, não houve mais prorrogação e a posse ilegal passou a ser
crime, mas a entrega espontânea da arma é causa extintiva da punibilidade (art. 32 do
Estatuto do Desarmamento):

Art. 32. Os possuidores e proprietários de arma de fogo poderão entregá-la,

espontaneamente, mediante recibo, e, presumindo-se de boa-fé, serão indenizados, na

forma do regulamento, ficando extinta a punibilidade de eventual posse irregular da

referida arma. (Redação dada pela Lei nº 11.706, de 2008)

5.1.7 – questões específicas acerca da abolitio criminis temporária

5.1.7.1 – crimes praticados sob a égide da anterior Lei de Armas

A abolitio criminis temporária aplica-se retroativamente aos crimes praticados na vigência da


anterior Lei de Armas (Lei 9.437/1997)? Para o STF, não (HC 98.180/SC, julgado em 26 de
junho de 2010); para o STJ, retroage (HC 191.114/DF, julgado em 5 de abril de 2011).

5.1.7.2 – arma de fogo de uso restrito, proibido ou raspada

328
A abolitio criminis temporária aplica-se à arma de fogo de uso restrito (proibido) ou de
numeração raspada?

A 5ª Turma do STJ entendia que, com relação às armas de fogo proibidas ou raspadas,
aplicava-se a abolitio criminis temporária até o dia 23 de outubro de 2005, pois até essa data
ela era aplicável tanto à arma de uso permitido quanto à arma de uso proibido. Ou seja, a
abolitio não se aplicava a armas proibidas ou raspadas a partir de 24 de outubro de 2005.
Esse entendimento era pacífico na 5ª Turma do STJ.

De 24 de outubro de 2005 a 31 de dezembro de 2009, portanto, a abolitio criminis


temporária só passou a valer para armas permitidas e não raspadas. Nesse sentido, ver o HC
200.172/DF, julgado em 5 de maio de 2011.

No entanto, para a 6ª Turma do STJ, a abolitio criminis se aplicava até o dia 31 de dezembro
de 2009, para qualquer tipo de arma, na medida em que, até essa data, a pessoa podia
regularizar a arma ou entregá-la à polícia.

No REsp 1.311.408-RN, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 13/3/2013 (Informativo
519), a Terceira Seção do STJ definiu que é típica a conduta de possuir arma de fogo de uso
permitido com numeração raspada, suprimida ou adulterada (art. 16, parágrafo único, IV, da
Lei 10.826/2003) praticada após 23/10/2005.

O entendimento do STF é o de que abolitio criminis temporária não se aplica às armas


raspadas, pois ela não tem como ser regularizada.

O STJ, no primeiro semestre de 2014, colocou uma pá de cal no assunto e editou a Súmula
513 que assim dispõe:

Súmula 513 - A abolitio criminis temporária prevista na Lei n. 10.826/2003 aplica-se ao

crime de posse de arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer

outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado, praticado somente até

23/10/2005.

A súmula não abrange armas de uso restrito ou proibido, bem como não trata do porte, mas
apenas da posse.

5.1.7.3 – porte ilegal

A abolitio criminis temporária não se aplica ao porte ilegal. Só vale para posse. Isso é pacífico
(STJ HC 171.198, julgado em 5 de maio de 2011).

329
5.1.8 – elemento subjetivo

O elemento subjetivo do crime do art. 12 é o dolo. Não existe posse culposa de arma de
fogo.

5.1.9 – consumação e tentativa

A consumação se dá no momento em que o infrator ingressa na posse ilegal de arma de


fogo. A tentativa não é possível, por se tratar de crime de mera conduta.

Aliás, prevalece no STJ e no STF que o crime de posse ilegal de arma de fogo é de mera
conduta e de perigo abstrato (REsp 1.191.112, julgado em 5 de maio de 2011; STF HC
104.206, julgado em 26 de agosto de 2010).

5.2 – Omissão de cautela (art. 13, caput)

Art. 13. Deixar de observar as cautelas necessárias para impedir que menor de 18

(dezoito) anos ou pessoa portadora de deficiência mental se apodere de arma de fogo

que esteja sob sua posse ou que seja de sua propriedade:

Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa. (...)

O crime de omissão de cautela não tem nenhuma relação com o do art. 13, parágrafo único,
que é de omissão de comunicação.

5.2.1 – sujeitos do crime

Pela leitura do dispositivo, o sujeito ativo do crime de omissão de cautela só pode ser o
proprietário ou o possuidor da arma de fogo. Capez e Nucci entendem que se trata de crime
próprio.

Sujeito passivo é o menor de 18 anos (criança ou adolescente, portanto) e o doente mental.

Observações:

i) há o crime mesmo que o menor de dezoito anos tenha obtido a capacidade civil absoluta;

ii) não é necessária nenhuma relação jurídica entre os sujeitos ativo e passivo;

iii) a lei só tutela o doente mental, não a pessoa portadora de deficiência física.

5.2.2 – conduta

A conduta punida é “deixar de observar as cautelas necessárias”. Trata-se de crime omissivo


puro ou próprio.

330
5.2.3 – elemento subjetivo

O crime do art. 13, caput, é culposo. A conduta indica negligência, quebra de dever de
cuidado objetivo. A previsão expressa, necessária para a punição do crime culposo, pode
estar na própria redação do tipo penal. Não é necessário haver norma à parte dizendo que
se pune a forma culposa.

5.2.4 – objeto material

Objeto material do crime de omissão de cautela é a arma de fogo. O tipo penal não
especifica qual, de modo que pode se tratar de arma de fogo de uso permitido ou de uso
restrito ou proibido. A espécie de arma será somente considerada na dosagem da pena.

O tipo penal não prevê acessório e munição como objetos materiais do crime. Portanto,
deixar acessório ou munição culposamente ao alcance da vítima não configura o crime do
art. 13, caput.

5.2.5 – consumação e tentativa

A consumação do crime ocorre com o apoderamento da arma pelo menor ou pelo doente
mental.

Assim, o crime do art. 13 é um crime omissivo, mas que não se consuma com a simples
omissão na cautela. É necessário que a vítima se apodere da arma. Por essa razão, Nucci diz
que se trata de um crime omissivo condicionado (a consumação está sujeita a uma
condição).

O crime é material, formal ou de mera conduta?

1ª corrente: para Capez, trata-se de crime material. O apoderamento é o resultado


naturalístico exigido pelo tipo (Capez).

2ª corrente: para Nucci, trata-se de crime de mera conduta. O resultado naturalístico


seria a ofensa à vida ou à integridade física da vítima, que não precisa acontecer para
a consumação do crime.

Veja que Nucci classifica o crime como de mera conduta, mas pela explicação dada por ele a
classificação correta seria de crime formal. Isso porque, se há resultado naturalístico, que
não precisa ocorrer, trata-se de crime formal, e não de mera conduta (no crime de mera
conduta não há resultado naturalístico).

331
A tentativa não é possível, pois se trata de crime omissivo puro e culposo. Há um duplo
motivo para não se punir a tentativa.

5.3 – Omissão de comunicação (art. 13, parágrafo único)

Art. 13 (...) Parágrafo único. Nas mesmas penas [detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e

multa] incorrem o proprietário ou diretor responsável de empresa de segurança e

transporte de valores que deixarem de registrar ocorrência policial e de comunicar à

Polícia Federal perda, furto, roubo ou outras formas de extravio de arma de fogo,

acessório ou munição que estejam sob sua guarda, nas primeiras 24 (vinte quatro) horas

depois de ocorrido o fato.

5.3.1 – sujeitos do crime

Sujeito ativo do crime de omissão de comunicação é o proprietário ou o diretor responsável


de empresa de segurança ou transporte de valores. Trata-se de crime próprio, que exige
uma qualidade especial do agente.

Sujeito passivo é a coletividade e o Estado, que fica prejudicado no controle de armas.

5.3.2 – condutas

As condutas punidas no art. 13, parágrafo único, são deixar de: i) registrar ocorrência
policial; e ii) comunicar à Polícia Federal qualquer forma de extravio (furto, roubo, perda)
das armas que estejam sob a guarda dos sujeitos ativos.

Veja que a lei impõe um duplo dever de comunicação, de modo que, para a maioria, a falta
de uma dessas comunicações configura o crime (ex.: registrar o BO e não comunicar a PF).

Importante observar que para a minoria a falta de uma comunicação não configura o crime.
Ou seja, segundo essa corrente, o agente tem o dever de realizar uma só comunicação, pois
o Estado tem o dever de manter um cadastro único de armas. O cidadão não pode ser
punido pela falta de comunicação e organização entre os órgãos do Estado. Caberia à Polícia
Civil a comunicação à Polícia Federal, ou vice versa. Trata-se de tese da Defensoria Pública.

5.3.3 – objeto material

O objeto material do crime do art. 13, parágrafo único, é a arma de fogo, acessório ou
munição. A arma de fogo pode ser de uso permitido ou restrito.

5.3.4 – elemento subjetivo

332
Diferentemente do crime do art. 13, caput, o do art. 13, parágrafo único, é um crime doloso.

5.3.5 – consumação e tentativa

A consumação do delito ocorre após 24 horas do fato. Trata-se de crime a prazo, ou seja,
aquele que só se consuma depois de determinado prazo. A tentativa não é possível, por se
tratar de crime de mera conduta.

5.4 – Porte ilegal de arma de fogo de uso permitido (art. 14)

Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder,

ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar

arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo

com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. (...)

5.4.1 – sujeitos do crime

O sujeito ativo do crime de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido pode ser qualquer
pessoa. O sujeito passivo é a coletividade.

5.4.2 – conduta

O art. 13 é um tipo penal de conduta múltipla ou variada, de tipo misto ou alternativo. Há


vários núcleos verbais e a prática de vários deles configura crime único.

5.4.3 – objeto material

Assim como o do crime do art. 12, o objeto material do crime do art. 14 é: i) arma de fogo; ii)
munição; ou iii) acessório, desde que sejam de uso permitido. Os conceitos de arma de fogo,
munição e acessório estão nos Decretos 3.665/2000 (art. 3º) e 5.123/2004 (art. 10) e já
foram analisados anteriormente.

5.4.4 – elemento subjetivo

O crime do art. 14 é punido a título de dolo.

5.4.5 – consumação e tentativa

A consumação do porte ilegal de arma de fogo de uso permitido se dá com a prática de


qualquer das condutas do tipo. Lembre que em algumas delas o crime é permanente. A
tentativa é possível. Ex.: tentar adquirir ilegalmente arma de fogo.

333
O STJ decidiu que enterrar a arma dentro de casa configura a conduta ocultar, do art. 14.
Para Maciel, a decisão é teratológica, pois se trata de posse, não de porte.

5.4.6 – questões relevantes

As questões aqui analisadas valem tanto para a posse como para o porte de arma de fogo.

5.4.6.1 – exame pericial na arma ou munição

O exame pericial na arma ou munição é ou não necessário à existência do crime?

Para a 1ª Turma do STF, a falta de exame pericial impede o reconhecimento da existência do


crime. Ou seja, para aquela Turma, o exame pericial na arma ou munição é indispensável
(STF HC 97.209 e 100.008, ambos julgados em 2010).

Para a 2ª Turma do STF e a 5ª do STJ, o exame pericial na arma ou munição é dispensável,


por se tratar de crime de perigo abstrato (STF HC 100.860 e STJ HC 107.112).

Qual entendimento é o correto? Para o reconhecimento da causa de aumento de pena no


crime de roubo, é pacífico que não é necessário o exame ou sequer a apreensão da arma.
Para Maciel, a 2ª e a 5ª Turmas estão, no mínimo, sendo coerentes.

5.4.6.2 – arma desmuniciada

A posse ou o porte de arma desmuniciada configura crime?

Há duas posições:

1ª corrente: para a 1ª Turma do STF e 5ª Turma do STJ, a arma desmuniciada


configura crime sempre, esteja ou não em condições de pronto municiamento, ou
seja, haja ou não munição para carregar a arma imediatamente. Isso porque se trata
de crime de perigo abstrato (presunção absoluta de perigo), não sendo necessária a
geração de algum perigo real. A arma pode estar vazia, que haverá crime (STF HC
96.072, julgado em 2010).

2ª corrente: para a 2ª Turma do STF e a 6ª Turma do STJ, a arma desmuniciada e sem


condições de pronto municiamento, ou seja, sem munição próxima para ser colocada
na arma, não configura crime. Todavia, arma desmuniciada, mas em condições de
pronto municiamento configura crime (Ag. Rg. no REsp 1.109.654, julgado em 14 de
abril de 2011).

5.4.6.3 – posse de munição ou acessório

334
Posse de munição ou acessório sem arma configura crime?

Para o STJ, a posse somente de munição ou acessório, desacompanhado (a) de arma,


configura crime, por dois motivos: i) trata-se de crime de perigo abstrato (portanto, não
precisa gerar um perigo real, o que dispensa a presença de arma); ii) os tipos penais
expressamente mencionam munição e acessório como objetos materiais do crime. Por essas
razões, a 5ª Turma do STJ (que julga aproximadamente 90% dos crimes do Estatuto do
Desarmamento) entende que é crime (REsp 1.191.122 e HC 175.085, ambos julgados em 5
de maio de 2011).

No STF, a questão está sendo discutida na 2ª Turma, no HC 90.075/SC. O julgado ainda não
foi concluído. Eros Grau e Joaquim Barbosa entenderam que o porte de munição e acessório
é crime. Pelluzo, em voto imenso, entendeu que não se trata de crime (Informativo 583).
Depois do voto dele, pediu vista a Min. Ellen Grace. Após a aposentadoria da Ministra, os
autos foram remetidos ao gabinete da Ministra Rosa Weber, onde ainda aguardam
julgamento (verificado em março de 2014).

5.4.6.4 – arma quebrada

Arma quebrada configura crime?

Para Capez, em se tratando de arma absolutamente inapta para efetuar disparos, tratar-se-á
de crime impossível. Caso se trate de arma relativamente inapta para efetuar disparos, a
conduta será crime. “Relativamente” significa que a arma às vezes dispara, às vezes não.
Para Maciel, este é o entendimento mais adequado.

O que ocorre se o laudo conclui que a arma é absolutamente ineficaz para o disparo, mas
estava municiada? É possível a punição pelo porte de munição? Para o STJ, sim. Condena-se
pelo porte de munição (HC 166.446, julgado em 5 de abril de 2011).

5.4.6.5 – posse ou porte de munição e princípio da insignificância

O STJ reconheceu inaplicável o princípio da insignificância em se tratando de posse ilegal de


munição, independentemente do número de munições.

5.4.6.6 – absorção do crime de posse ou porte pelo homicídio

O homicídio absorve o crime de posse ou porte ilegal?

Depende. Se a posse ou porte foram praticados exclusivamente para o homicídio, ele


absorve o crime. Exemplo: o agente briga no bar, vai até a casa dele, pega a arma registrada,

335
volta no bar e mata o desafeto. O porte ilegal de arma praticado do trajeto da casa dele até
o bar foi exclusivo para o cometimento do homicídio, razão pela qual fica absorvido, por ser
crime meio do crime fim de homicídio.

No entanto, se a posse ou porte já estão consumados, e eventualmente a arma é utilizada


no homicídio, haverá concurso material de crimes de posse ou porte ilegal e crime de
homicídio. Concurso material, pois os crimes têm objetos jurídicos diferentes. Ex.: o infrator
vai todos os dias ao bar portando ilegalmente uma arma. Num determinado dia, mata
alguém com essa arma. Perceba que o porte já estava consumado há muito, sendo que
eventualmente o sujeito usa a arma para matar. Não há uma relação de causalidade entre o
porte e o homicídio.

5.4.6.7 – posse ou porte simultâneo de duas ou mais armas

É amplamente majoritário o entendimento de que a posse ou o porte simultâneo de duas ou


mais armas de fogo configura crime único, sendo que o número de armas será considerado
na dosagem da pena. Ex.: o indivíduo tem três armas no porta-malas do carro.

Atenção! O STJ decidiu que se uma arma é de uso permitido e a outra é de uso restrito,
haverá concurso formal de crimes (arts. 14 e 16 do Estatuto do Desarmemento).

5.5 – Disparo de arma de fogo (art. 15)

Art. 15. Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas

adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha como

finalidade a prática de outro crime:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. (...)

5.5.1 – sujeitos do crime

O sujeito ativo do crime de disparo de arma de fogo pode ser qualquer pessoa. O sujeito
passivo é a coletividade.

5.5.2 – condutas

São condutas punidas no art. 15: i) disparar arma de fogo; ou ii) acionar munição. Cuidado,
pois a lei pune o disparo e o acionamento de munição sem disparo.

5.5.3 – elemento espacial do tipo

336
Só há crime se o disparo ocorrer em um dos locais previstos no dispositivo: local habitado ou
suas adjacências. Se o disparo ocorrer em local ermo, desabitado, não há o crime do art. 15.
O fato é atípico.

Efetuados, por exemplo, cinco tiros ao mesmo tempo, tratar-se-á de um crime só. A
quantidade de disparos será considerada na dosagem da pena.

5.5.4 – elemento subjetivo

O elemento subjetivo do crime do art. 15 é o dolo. O disparo acidental (culposo) não


configura o delito. Claro que se o disparo acidental ferir ou matar alguém haverá crime de
lesão corporal culposa ou homicídio culposo.

5.5.5 – consumação e tentativa

A consumação do crime de disparo de arma de fogo se dá com o mero disparo ou


acionamento da munição. A tentativa é teoricamente possível (ex.: o agente for desarmado
antes de conseguir efetuar o disparo ou o acionamento), muito embora, na prática,
dificilmente ocorrerá.

O crime de disparo de arma de fogo é de perigo abstrato ou concreto? Muitos fariam o


seguinte raciocínio: se o disparo tem de ocorrer em via pública ou em local habitado, seria
de perigo concreto. Todavia, entende a maioria que o crime é de perigo abstrato. O disparo
tem de ocorrer em via pública ou em local habitado, mas não precisa causar perigo real a
ninguém. Ex.: o agente, durante a madrugada, para em uma rua vazia e efetua disparo
contra o muro de uma casa desabitada. Veja que a conduta não gerou perigo a ninguém,
mas, sendo o disparo em via pública, ocorrerá o crime do art. 15.

O grande problema é a parte final do dispositivo: “desde que essa conduta não tenha por
finalidade a prática de outro crime”. Esse crime é, portanto, um crime subsidiário (trata-se
de uma subsidiariedade expressa no tipo penal). Perceba que o tipo penal não fala em crime
mais grave, mas em outro crime. Seguindo a letra seca da lei, o disparo não se aplicaria
quando tivesse por intenção a prática de outro crime, menos grave ou mais grave. Todavia, a
doutrina sustenta que o crime mais grave não pode ser absorvido pelo menos grave, de
forma que a questão fica da seguinte maneira:

i) disparo mais homicídio: o disparo fica absorvido, aplicando-se somente o crime de


homicídio;

337
ii) disparo mais lesão grave, gravíssima ou seguida de morte (homicídio preterdoloso): o
disparo fica absorvido, por serem crimes mais graves que o disparo;

iii) disparo mais lesão leve: haverá somente o crime de disparo, pois ele é mais grave que o
de lesão leve, não podendo o crime mais grave ser absorvido pelo menos grave. Há quem
entenda que, nesse caso, seriam aplicáveis os dois crimes;

iv) disparo mais perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132 do CP): o crime de
exposição a perigo também é subsidiário (problema). Nesse caso, aplica-se o mais grave, que
é o disparo, restando o perigo à vida ou à saúde de outrem absorvido:

Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:

Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave. (...)

5.6 – Posse ou porte ilegal de arma proibida ou restrita (art. 16)

5.6.1 – crime do art. 16, caput

Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar,

ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda

ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem

autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. (...)

O art. 16 pune a posse e porte de arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou
restrito no mesmo dispositivo. Assim, em se tratando de arma permitida, a posse configura o
crime do art. 12 e o porte o do art. 14. Caso se trate de arma restrita ou proibida, tanto a
posse como o porte configurarão o crime do art. 16. São crimes de gravidades diferentes
punidos com a mesma pena. Há doutrina que diz que essa equiparação violaria o princípio
da proporcionalidade.

Aplica-se ao art. 16 tudo o quanto dito por ocasião do estudo dos arts. 12 e 14 do Estatuto
do Desarmamento, com uma única diferença: o objeto material, que no art. 16 é arma de
fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito.

Capez aponta a seguinte diferença entre arma, acessório ou munição de uso restrito e de
uso proibido: proibida é aquela cuja posse ou porte é vedado de forma absoluta. Ex.:
canhão. Uso restrito é aquela cujo porte ou posse é limitado a certas pessoas e instituições.

Todavia, o Decreto 3.665/2000, em seu art. 3º, XVIII, define o seguinte: arma de uso restrito
é aquela que só pode ser utilizada pelas Forças Armadas, por algumas instituições de

338
segurança e por pessoas físicas e jurídicas habilitadas, devidamente autorizadas pelo
Exército, de acordo com legislação específica. O mesmo dispositivo, no inciso LXXX, define
que a antiga designação de uso proibido é dada aos produtos controlados pelo Exército,
designados como de uso restrito. Ou seja, o Decreto não utiliza mais a expressão “uso
proibido”. Não existem mais armas, acessórios ou munições de uso proibido, que é uma
expressão antiga.

O art. 16, caput, portanto, só tem como objeto material arma de fogo, munição ou acessório
de uso proibido ou restrito.

5.6.2 – crime do art. 16, parágrafo único

Diferentemente do caput, o art. 16, parágrafo único, tem como objeto material tanto a arma
de fogo, acessório ou munição de uso permitido como restrito.

Art. 16 (...) Parágrafo único. Nas mesmas penas [reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e

multa] incorre quem:

I – suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de

fogo ou artefato;

II – modificar as características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma

de fogo de uso proibido ou restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer modo induzir

a erro autoridade policial, perito ou juiz;

III – possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem

autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;

IV – portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração,

marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado;

V – vender, entregar ou fornecer, ainda que gratuitamente, arma de fogo, acessório,

munição ou explosivo a criança ou adolescente; e

VI – produzir, recarregar ou reciclar, sem autorização legal, ou adulterar, de qualquer

forma, munição ou explosivo.

Perceba, portanto, que o parágrafo único é tipo penal autônomo em relação ao caput.

5.6.2.1 – art. 16, parágrafo único, I

Para a doutrina, a expressão “artefato” a que se refere o inciso I seria, por exemplo, arma de
fabricação caseira. Todavia, arma de fabricação caseira não tem numeração, de modo que
esse raciocínio não faz muito sentido. Poderia ser considerado artefato, por exemplo, uma

339
granada. Aquele que raspa a numeração de arma ou artefato reponde pela figura do inciso I;
aquele que porta arma ou artefato já raspado, responde pela do inciso IV.

Essa diferenciação resolveu problema da lei anterior, que somente punia quem raspava,
sendo que, na prática, é muito difícil saber quem o faz.

5.6.2.2 – art. 16, parágrafo único, II

A conduta no inciso II é modificar as características da arma: i) com o fim de torná-la arma


proibida ou restrita (ex.: alterar o cano da arma para calibre restrito); ou ii) com o fim de
induzir em erro autoridade policial, juiz ou perito.

O crime se consuma com a simples modificação, ainda que a finalidade não seja alcançada.
Relativamente à modalidade “ii”, o crime prevalece sobre o de fraude processual do art. 347
do CP (princípio da especialidade):

Art. 347 - Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o

estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito:

Pena - detenção, de três meses a dois anos, e multa.

Parágrafo único - Se a inovação se destina a produzir efeito em processo penal, ainda que

não iniciado, as penas aplicam-se em dobro.

Se a finalidade for induzir membro do MP, não há crime, pois o tipo penal só menciona
autoridade policial, juiz ou perito.

A tentativa é perfeitamente possível.

5.6.2.3 – art. 16, parágrafo único, III

O objeto material, no inciso III, não é arma de fogo, acessório ou munição. É artefato
explosivo ou incendiário. Ex.: lança-chamas, bomba caseira, granada.

5.6.2.4 – art. 16, parágrafo único, V

Este inciso V derrogou o art. 242 do ECA (derrogação é revogação parcial). Os tipos penais
são idênticos, mas a revogação parcial ocorreu porque a doutrina entende que o art. 242 do
ECA continua aplicável às armas brancas:

Art. 242. Vender, fornecer ainda que gratuitamente ou entregar, de qualquer forma, a

criança ou adolescente arma, munição ou explosivo:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos. (Redação dada pela Lei nº 10.764, de

12.11.2003)

340
5.7 – Comércio ilegal de arma de fogo (art. 17)

Art. 17. Adquirir, alugar, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito,

desmontar, montar, remontar, adulterar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma

utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial,

arma de fogo, acessório ou munição, sem autorização ou em desacordo com

determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

Parágrafo único. Equipara-se à atividade comercial ou industrial, para efeito deste artigo,

qualquer forma de prestação de serviços, fabricação ou comércio irregular ou clandestino,

inclusive o exercido em residência.

5.7.1 – sujeitos do crime

O sujeito ativo do crime de comércio ilegal de armas de fogo é somente o comerciante ou


industrial, legal ou ilegal, de arma de fogo, acessório ou munição. Trata-se de crime próprio,
que exige qualidade especial do sujeito ativo.

Se o proprietário de um restaurante vende a arma dele a um cliente, não responderá pelo


art. 17, pois não é comerciante de arma de fogo, mas de alimentos. Responderá pelo crime
do art. 14 ou do art. 16, conforme o caso, mas nunca pelo do art. 17.

Sujeito passivo é a coletividade.

5.7.2 – objeto material

O objeto material do crime do art. 17 é arma de fogo, acessório ou munição, tanto de uso
permitido quanto restrito. Ou seja, vender ilegalmente um revólver 38 ou uma metralhadora
configurará o mesmo crime.

Todavia, vale observar que, em se tratando de arma de fogo, acessório ou munição de uso
restrito, a pena é aumentada da metade (art. 19):

Art. 19. Nos crimes previstos nos arts. 17 e 18, a pena é aumentada da metade se a arma

de fogo, acessório ou munição forem de uso proibido ou restrito.

5.7.3 – elemento subjetivo

O elemento subjetivo do crime do art. 17 é o dolo.

5.7.4 – consumação e tentativa

341
A consumação se dá com a prática de qualquer dos núcleos do tipo e a tentativa é
perfeitamente possível.

O crime do art. 17 é habitual ou instantâneo? Ele exige uma reiteração de condutas ou se


configura com uma só conduta? É instantâneo. O comerciante da loja de armas pode vender
milhares de armas de forma legal, mas se vender uma ilegalmente já pratica o crime.

5.8 – Tráfico internacional de arma de fogo (art. 18)

Art. 18. Importar, exportar, favorecer a entrada ou saída do território nacional, a qualquer

título, de arma de fogo, acessório ou munição, sem autorização da autoridade

competente:

Pena – reclusão de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

5.8.1 – sujeitos do crime

O sujeito ativo do crime de tráfico internacional de arma de fogo pode ser qualquer pessoa.
O sujeito passivo é coletividade.

5.8.2 – condutas

As condutas punidas no art. 18 são:

i) importar e exportar:

Nessas condutas, o crime é material, consumando-se com a efetiva entrada ou saída da


arma do país. A tentativa é perfeitamente possível. Essas condutas prevalecem sobre o
crime de contrabando do Código Penal. Ou seja, se o sujeito importar ou exportar arma
ilegalmente, responderá pela norma especial do art. 18 do Estatuto do Desarmamento, e
não por contrabando.

ii) facilitar a entrada ou a saída:

Aqui, o crime é formal, consumando-se com a simples facilitação, ainda que o facilitado não
consiga importar ou exportar o objeto. A tentativa é possível. A conduta de facilitar a
entrada ou a saída prevalece sobre o crime de facilitação de contrabando do art. 318 do CP:

Art. 318 - Facilitar, com infração de dever funcional, a prática de contrabando ou

descaminho (art. 334):

Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 8.137, de

27.12.1990)

342
Veja, portanto, que o funcionário público que facilitar responde pela norma especial do art.
18, e não pelo crime do CP. O detalhe é que o art. 318 é um crime funcional. O art. 18 é
crime comum.

5.8.3 – objeto material do crime

O objeto material do crime do art. 18 é idêntico ao do art. 17. É arma de fogo, acessório ou
munição, tanto de uso permitido quanto restrito. Ou seja, traficar internacionalmente um
revólver 38 ou uma metralhadora configurará o mesmo crime.

Todavia, vale observar que, em se tratando de arma de fogo, acessório ou munição de uso
restrito, a pena é aumentada da metade (art. 19):

Art. 19. Nos crimes previstos nos arts. 17 e 18, a pena é aumentada da metade se a arma

de fogo, acessório ou munição forem de uso proibido ou restrito.

5.8.4 – venda de arma

A venda de arma configura qual crime?

Depende. Se o sujeito ativo for não comerciante, pode configurar o crime do art. 14, em se
tratando de arma permitida, ou o do art. 16, se for arma restrita. Caso se trate de
comerciante de armas, configurará o crime do art. 17. Caso se trate de transação
internacional (comerciante ou não), configurará o crime do art. 18.

5.8.5 – Lei de Segurança Nacional

A Lei de Segurança Nacional, em seu art. 12, prevê um crime análogo ao do art. 18:

Art. 12 - Importar ou introduzir, no território nacional, por qualquer forma, sem

autorização da autoridade federal competente, armamento ou material militar privativo

das Forças Armadas.

Pena: reclusão, de 3 a 10 anos.

Parágrafo único - Na mesma pena incorre quem, sem autorização legal, fabrica, vende,

transporta, recebe, oculta, mantém em depósito ou distribui o armamento ou material

militar de que trata este artigo.

Para a incidência deste crime da Lei de Segurança Nacional, a conduta deve ter motivação
política. Caso contrário a figura delituosa será aquela prevista no art. 18 do Estatuto do
Desarmamento.

343
6 – Liberdade provisória nos crimes do Estatuto do Desarmamento

Os arts. 14, parágrafo único, e 15, parágrafo único, dizem que os crimes ali previstos são
inafiançáveis. Já o art. 21 diz serem os crimes dos arts. 16, 17 e 18 são insuscetíveis de
liberdade provisória:

Art. 14. (...) Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável, salvo quando a

arma de fogo estiver registrada em nome do agente.

Art. 15. (...) Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável.

Art. 21. Os crimes previstos nos arts. 16, 17 e 18 são insuscetíveis de liberdade provisória.

Ocorre que os três dispositivos foram declarados inconstitucionais na ADI 3112-1. Conclusão:
é cabível fiança e/ou liberdade provisória sem fiança a todos os crimes do Estatuto do
Desarmamento. O mesmo se diga quanto às medidas cautelares diversas da prisão.

Com base nas penas previstas nos arts. 12 a 15, conclui-se que é cabível o arbitramento de
fiança para os crimes ali previstos, pela própria autoridade policial. A redação antiga do CPP
determinava que somente cabia fiança nos casos em que a pena mínima cominada fosse
inferior a 2 anos. A nova redação dos arts. 322 e 323 do CPP, introduzidos pela Lei
12.403/2011, passou a prever a possibilidade de fiança nos casos de infração cuja pena
privativa máxima não seja superior a quatro anos, salvo as exceções legais (crimes
hediondos etc.), decretável pela autoridade policial, e, dentre outras hipóteses, quando não
for admissível a decretação da preventiva:

Art. 322. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja

pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos.

Parágrafo único. Nos demais casos, a fiança será requerida ao juiz, que decidirá em 48

(quarenta e oito) horas.

Art. 323. Não será concedida fiança:

I - nos crimes de racismo;

II - nos crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e nos

definidos como crimes hediondos;

III - nos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem

constitucional e o Estado Democrático; (...)

344
DOS CRIMES DA LEI DE FALÊNCIAS (LEI 11.101/2005)

A Lei 11.101/2005 tem uma parte criminal, divida da seguinte forma: i) dos crimes em
espécie; ii) das disposições comuns; e iii) procedimento de apuração dos crimes
falimentares.

1 – Abrangência da Lei de Recuperação de Empresas e Falências

O art. 1º da Lei de Falências diz os casos aos quais ela se aplica: abrange a sociedade
empresária, o empresário que exerce atividade profissional econômica organizada e, ainda,
o empresário rural que tenha optado por sua inscrição no Registro de Empresas Mercantis:

Art. 1º Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do

empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor.

O art. 2º, por outro lado, dispõe acerca das hipóteses nas quais ela não se aplica:

Art. 2º Esta Lei não se aplica a:

I – empresa pública e sociedade de economia mista;

II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade

de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde,

sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente

equiparadas às anteriores.

A empresa pública e a sociedade de economia mista não estão sujeitas a falência porque
têm disciplina própria. As entidades do inciso II também não estão sujeitas a recuperação
judicial, extrajudicial ou falência. Essas empresas sofrem fiscalização, intervenção ou
liquidação.

Essas referências aos arts. 1º e 2º terão reflexos nos casos de crimes falimentares. Ex.: num
crime praticado contra uma instituição financeira, um plano de saúde ou uma sociedade de
capitalização, será aplicada a Lei do Colarinho Branco, não a Lei de Falências.

O DL 7.661/1945 (antiga Lei de Falências) somente previa a falência. Na vigência daquele


diploma legal, utilizava-se a expressão “crimes falimentares”. Todavia, hoje, além da
falência, há a recuperação judicial e a extrajudicial. Por conta disso, indaga-se se continua
correto falar em “crimes falimentares”. A esmagadora maioria da doutrina diz que sim. A
expressão continua sendo utilizada em concursos e na jurisprudência. Somente há que se

345
dividir entre crimes pré-falimentares e falimentares. É comum também a utilização da
expressão “crimes falitários”.

2 – Objetividade jurídica

Os crimes falimentares são pluriofensivos. Ou seja, protegem mais de um bem jurídico. A


doutrina não chegou a um consenso acerca de qual o objeto jurídico dos crimes
falimentares. Há quem diga que eles protegem: i) a fé pública; ii) a economia pública; iii) a
administração da justiça; iv) o patrimônio; v) as relações comerciais.

3 – Classificação dos crimes falimentares

3.1 – Crimes próprios e comuns (ou impróprios)

Crime falimentar próprio é aquele que somente pode ser praticado pelo empresário devedor
ou pelo falido. Ou seja, são crimes que exigem uma condição especial do sujeito ativo.

Os crimes falimentares comuns ou impróprios são aqueles que podem ser praticados por
qualquer pessoa, inclusive as autoridades (Juiz, MP da falência).

3.2 – Crimes pré-recuperação ou pré-falimentares e pós-recuperação ou pós-


falimentares

Quanto ao momento, os crimes podem ser pré-recuperação ou pré-falimentares e pós-


recuperação ou pós-falimentares.

Pré-recuperação ou pré-falimentares são os crimes praticados antes da recuperação judicial


ou extrajudicial ou antes da sentença de falência. Pós-recuperação ou pós-falimentares são
os crimes praticados após a recuperação ou após a sentença de falência.

3.3 – Crimes de perigo e de dano

Crime de perigo é aquele cuja conduta somente expõe o bem jurídico a perigo. Crime de
dano é o que causa a efetiva lesão ao bem jurídico.

4 – Princípio da unicidade nos crimes falimentares

O princípio da unicidade nos crimes falimentares, também chamado de princípio da


unicidade penal falimentar, significa que se o infrator praticar mais de um comportamento
típico, ou seja, mais de um crime falimentar, responderá apenas pelo crime falimentar mais
grave.

346
Ou seja, todos os crimes falimentares são considerados uma só unidade. Na verdade, é um
complexo unitário de condutas dirigido a um só evento (doutrina e STJ). O número de
condutas praticadas será dosado na pena base.

O STJ já decidiu que o princípio da unicidade falimentar só se aplica entre os crimes


falimentares. Isso significa que, havendo crimes falimentares conexos com crimes não
falimentares, afasta-se a unicidade e haverá concurso de crimes. Ex.: dois crimes
falimentares em concurso com falsidade documental: o agente responde pelo crime
falimentar mais grave, em concurso com a falsidade. Nesse sentido, ver STJ HC 56.368/SP.

5 – Elemento subjetivo

Todos os crimes da Lei de Falências são dolosos. Não há, naquele diploma legal, crimes
culposos.

6 – Prisão preventiva na Lei de Falências

A Lei de Falências prevê uma hipótese de prisão preventiva decretada pelo juiz falimentar,
não pelo criminal. Veja que o dispositivo está fora da parte criminal (art. 99, VII):

Art. 99. A sentença que decretar a falência do devedor, dentre outras determinações: (...)

VII – determinará as diligências necessárias para salvaguardar os interesses das partes

envolvidas, podendo ordenar a prisão preventiva do falido ou de seus administradores

quando requerida com fundamento em provas da prática de crime definido nesta Lei; (...)

A doutrina majoritária diz que essa prisão preventiva é inconstitucional, pelos seguintes
motivos:

i) ela é decretada para garantir os interesses dos credores:

Se visa a garantir o interesse dos credores, não se trata de uma prisão preventiva, mas de
hipótese de prisão civil por dívida, com o “nome” de preventiva (Delmanto). Prisão para
garantir crédito nada mais é que uma prisão civil por dívida, sem previsão constitucional
para esta hipótese.

ii) não pode juiz civil (falimentar) decretar medida cautelar penal, pois isso ofende o devido
processo legal (Nucci):

Se a competência para julgar o crime falimentar é do juiz criminal, é ele quem tem de
decretar a preventiva, e não o juiz da falência. Ele decretará preventiva sem poder julgar o
processo criminal?

347
iii) essa prisão não tem fundamento cautelar:

Para a decretação da prisão preventiva, deve haver cautelaridade. E o fundamento dessa


prisão preventiva é garantir o crédito.

Praticamente todos os crimes falimentares têm a pena máxima de até 4 anos. Somente um
deles tem a pena máxima de 5 anos. Assim, em regra, àqueles crimes não caberá prisão
preventiva. É possível, então, adicionar mais um argumento para sustentar o não cabimento
da preventiva (além da inconstitucionalidade): se houver concurso de crimes, aplica-se a
unicidade falimentar.

7 – Dos crimes falimentares em espécie

7.1 – Desobediência (art. 99, III)

Art. 99. A sentença que decretar a falência do devedor, dentre outras determinações: (...)

III – ordenará ao falido que apresente, no prazo máximo de 5 (cinco) dias, relação nominal

dos credores, indicando endereço, importância, natureza e classificação dos respectivos

créditos, se esta já não se encontrar nos autos, sob pena de desobediência;

O art. 99, III, prevê o crime falimentar de desobediência. Ele consiste em deixar de atender à
ordem judicial de entrega da relação nominal de credores em até cinco dias. Trata-se de
crime a prazo.

Há doutrina que sustenta ser esse crime inconstitucional, pois a entrega dessa relação pode
constituir prova de crime falimentar, e ninguém é obrigado a produzir prova contra si. O
artigo estaria obrigando o falido a produzir prova contra si, o que viola o principio da não
autoincriminação, um princípio implícito e decorrente da dignidade da pessoa humana
(Delmanto e Arthur Migliari Jr.)

7.2 – Fraude contra credores (art. 168)

Art. 168. Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a

recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial, ato fraudulento de que

resulte ou possa resultar prejuízo aos credores, com o fim de obter ou assegurar

vantagem indevida para si ou para outrem.

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. (...)

7.2.1 – sujeitos

Os crimes falimentares, como visto, podem ser próprios ou comuns. O do art. 168 é um
crime próprio, que somente pode ser praticado pelo empresário devedor ou falido.

348
Importante destacar que, nos termos do art. 179, empresário devedor ou falido são eles
próprios e as pessoas a eles equiparadas:

Art. 179. Na falência, na recuperação judicial e na recuperação extrajudicial de

sociedades, os seus sócios, diretores, gerentes, administradores e conselheiros, de fato ou

de direito, bem como o administrador judicial, equiparam-se ao devedor ou falido para

todos os efeitos penais decorrentes desta Lei, na medida de sua culpabilidade.

Ex.: gerente da empresa, conselheiro da empresa, administrador judicial (o antigo síndico da


falência). Trata-se de conceito amplo, como o de funcionário público para fins penais.

É possível a participação ou a coautoria no crime do art. 168. Ex.: o empresário e seu irmão,
que não tem nada a ver com a empresa, praticam o ato fraudulento, simulando uma
negociação. O irmão do empresário será considerado coautor do crime.

Sujeitos passivos imediatos são os credores lesados com a fraude. Sujeitos passivos
secundários são o Estado e a administração da justiça.

O que ocorre se o ato fraudulento causar prejuízos a terceiros que não integrem o processo
falimentar (terceiros que não são os credores da empresa)? Se o crime causar prejuízos a
terceiros não integrantes da massa de credores, haverá crime não falimentar. É dizer: esse
crime de fraude contra credores somente se aplica se a conduta atingir credores envolvidos
na falência. Se atingir outros, será crime comum (no sentido de não falimentar).

7.2.2 – tipo penal

A conduta punida no art. 168 é “praticar ato fraudulento”. No ato fraudulento, o devedor
insolvente ou em vias de se tornar insolvente desfalca o patrimônio, em prejuízo dos
credores.

É unânime na doutrina que só há o crime se o ato tiver potencialidade para lesar credores.
Caso o ato não coloque em perigo efetivo o direito dos credores, não haverá o crime. Ou
seja, não é qualquer negociação feita pelo falido ou empresário em recuperação considerada
fraude contra credores.

Trata-se de crime de dano ou de perigo? A doutrina diz que se trata, ao mesmo tempo, de
crime de dano, quando “resulte” prejuízo aos credores, e de perigo, quando “possa resultar”
prejuízo aos credores.

349
O tipo penal possui um elemento subjetivo/finalidade específica/“dolo específico” (para os
italianos). Para que haja o crime do art. 168, não basta o ato fraudulento. É necessário o ato
fraudulento com a finalidade de obter vantagem para si ou para outrem.

Importante destacar que, neste crime, não é necessário que alguém seja induzido em erro
através do ato fraudulento. Ou seja, o ato fraudulento não é necessariamente aquele que
induz alguém em erro. Exemplos de atos fraudulentos: dar garantias a um credor em
detrimento de outros, desviar maquinários ou outros objetos que façam parte da massa
falida etc.

7.2.3 – elemento subjetivo

Como visto, o elemento subjetivo do crime do art. 168 é o dolo, acrescido da finalidade
específica de obter vantagem indevida.

7.2.4 – consumação e tentativa

A consumação do crime de fraude contra credores da Lei de Falências se dá com a prática do


ato fraudulento, ainda que a finalidade não seja alcançada.

A maioria da doutrina entende que não é cabível a tentativa nesse crime falimentar. Para
Maciel, ela é em tese possível. Mas tentativa em crime falimentar é algo complicado.

Outra parte da doutrina faz o seguinte raciocínio: se o crime foi praticado antes da
decretação da falência ou da concessão da recuperação, não é possível a tentativa. Se
praticado depois, é possível a tentativa (Nucci e Jaime Walmer de Freitas). Essa divisão é
feita pela seguinte razão: a sentença que decreta a falência e a decisão que concede a
recuperação judicial ou homologa a recuperação extrajudicial são condições objetivas de
punibilidade. Sem tal condição objetiva de punibilidade, não há que se falar em tentativa.

7.2.5 – causas de aumento de pena

O art. 168, § 1º prevê causas de aumento de pena. Trata-se de hipóteses específicas do


gênero “ato fraudulento”:

Art. 168 (...) § 1º A pena aumenta-se de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se o agente:

I – elabora escrituração contábil ou balanço com dados inexatos;

II – omite, na escrituração contábil ou no balanço, lançamento que deles deveria constar,

ou altera escrituração ou balanço verdadeiros;

III – destrói, apaga ou corrompe dados contábeis ou negociais armazenados em

computador ou sistema informatizado;

350
IV – simula a composição do capital social;

V – destrói, oculta ou inutiliza, total ou parcialmente, os documentos de escrituração

contábil obrigatórios. (...)

A escrituração contábil ou balanço inexato com a finalidade de fraudar credores é causa de


aumento de pena (inciso I), na medida em que ato fraudulento com a finalidade de lesar ou
causar prejuízo a credores. A depender da finalidade da conduta, poderá haver outros
crimes:

i) se a conduta é praticada para fraudar a Previdência Social, há o crime de falsificação de


documento público (art. 297, § 3º, III, do CP):

Art. 297 (...) § 3º Nas mesmas penas incorre quem insere ou faz inserir: (Incluído pela Lei

nº 9.983, de 2000) (...)

III – em documento contábil ou em qualquer outro documento relacionado com as

obrigações da empresa perante a previdência social, declaração falsa ou diversa da que

deveria ter constado. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)

ii) se a finalidade é fraudar a fiscalização tributária, haverá crime contra a ordem tributária
(art. 1º, II, da Lei 8.137/1990):

Art. 1º Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou

contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: (Vide Lei nº

9.964, de 10.4.2000) (...)

II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação

de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; (...)

Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

iii) se a conduta for praticada em Sociedade Anônima e afetar o patrimônio dos acionistas,
haverá o crime de fraude na administração de sociedades por ações (art. 177, § 1º, VI, do
CP):

Art. 177 (...) § 1º - Incorrem na mesma pena, se o fato não constitui crime contra a

economia popular: (Vide Lei nº 1.521, de 1951)

VI - o diretor ou o gerente que, na falta de balanço, em desacordo com este, ou mediante

balanço falso, distribui lucros ou dividendos fictícios;

O art. 168, § 1º, IV, da Lei de Falências determina que se aumenta a pena se o agente simula
a composição do capital social. Na lei anterior, a simulação de capital somente configurava
crime falimentar se tivesse por fim obter crédito maior do que o correspondente ao capital

351
(ou seja, do que o possível pelo capital social da empresa). Agora, a simples simulação de
capital, com a finalidade de fraudar credores, configura crime falimentar.

O art. 168, § 2º, prevê outra hipótese específica de fraude falimentar contra credores: a
contabilidade paralela (o “caixa-dois”):

Contabilidade paralela

Art. 168 (...) § 2º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) até metade se o devedor

manteve ou movimentou recursos ou valores paralelamente à contabilidade exigida pela

legislação. (...)

O caixa-dois pode ser feito com várias finalidades. No entanto, somente haverá crime
falimentar se a finalidade for fraudar credores da falência (o § 2º está ligado à finalidade do
caput). Se for outra, haverá outro crime:

i) se a finalidade da contabilidade paralela for sonegar tributo, haverá crime contra a ordem
tributária (art. 1º, II e 2º, V, da Lei 8.137/1990);

Art. 2º Constitui crime da mesma natureza: (...)

V - utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito

passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei,

fornecida à Fazenda Pública.

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

ii) se a contabilidade paralela for praticada em instituição financeira, haverá o crime do art.
11 da Lei 7.492/1986 (Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional ou Lei dos Crimes
de Colarinho Branco):

Art. 11. Manter ou movimentar recurso ou valor paralelamente à contabilidade exigida

pela legislação:

Pena - Reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa.

Até porque, como visto, a Lei de Falências não se aplica às instituições financeiras.

7.3 – Violação de sigilo empresarial (art. 169)

Art. 169. Violar, explorar ou divulgar, sem justa causa, sigilo empresarial ou dados

confidenciais sobre operações ou serviços, contribuindo para a condução do devedor a

estado de inviabilidade econômica ou financeira:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

7.3.1 – sujeitos

352
O sujeito ativo do crime do art. 169 pode ser qualquer pessoa, exceto o próprio empresário
devedor. Sujeitos passivos são o empresário devedor e os credores prejudicados com a
insolvência do devedor.

7.3.2 – bens jurídicos protegidos no crime

Os bens jurídicos protegidos no crime são: i) o sigilo empresarial (ou seja, a proteção contra
a concorrência); ii) a saúde financeira da empresa; e iii) o direito dos credores: se o devedor
cai em estado de inviabilidade econômica, eles também sofrerão os prejuízos, por via
indireta.

7.3.3 – tipo penal

O tipo penal do art. 169 prevê três núcleos verbais: i) “violar”: devassar sem autorização; ii)
“explorar”: tirar proveito econômico; ou iii) “divulgar”: a divulgação pode ser a uma só
pessoa, não precisando ser a várias. Isso porque, divulgada a informação a uma só pessoa,
permite-se a divulgação a outras.

O tipo possui ainda um elemento normativo: “sem justa causa”. Ou seja, havendo justa
causa para a quebra do sigilo empresarial, não há crime. Ex.: o agente divulga que a empresa
obteve empréstimos com documentos falsos ou que ela está fabricando automóveis com
componentes de risco. Caso essas divulgações levem a empresa à falência, não haverá crime
falimentar, em vista da presença de justa causa, protegendo a probidade ou a segurança dos
consumidores.

7.3.4 – objeto material do crime

Os objetos materiais do crime são o sigilo empresarial, dados confidenciais sobre operações
(bancárias, comerciais etc.) ou sobre serviços (ex.: informações confidenciais de logística da
empresa).

7.3.5 – consumação e tentativa

O crime se consuma quando a empresa entra no estado de inviabilidade econômica ou


financeira. Portanto, trata-se de crime material, que exige resultado naturalístico. Se a
divulgação não causar esse resultado, não há crime.

A doutrina entende que não é possível a tentativa, tendo em vista que o tipo penal exige o
estado de insolvência do devedor (Nucci e Delmanto).

7.3.6 – distinção de crimes

353
Se a violação de sigilo é praticada com a intenção de concorrência desleal, haverá crime de
concorrência desleal (art. 195, XI e XII da Lei 9.279/1996, a Lei de Crimes de Concorrência
Desleal):

Art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem: (...)

XI - divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos, informações ou

dados confidenciais, utilizáveis na indústria, comércio ou prestação de serviços, excluídos

aqueles que sejam de conhecimento público ou que sejam evidentes para um técnico no

assunto, a que teve acesso mediante relação contratual ou empregatícia, mesmo após o

término do contrato;

XII - divulga, explora ou utiliza-se, sem autorização, de conhecimentos ou informações a

que se refere o inciso anterior, obtidos por meios ilícitos ou a que teve acesso mediante

fraude; ou

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. (...)

Deve-se tomar cuidado com os crimes falimentares, pois, muitas vezes, a depender da
finalidade buscada, o crime será diverso.

7.4 – Divulgação de informações falsas (art. 170)

Art. 170. Divulgar ou propalar, por qualquer meio, informação falsa sobre devedor em

recuperação judicial, com o fim de levá-lo à falência ou de obter vantagem:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

7.4.1 – sujeitos

O sujeito ativo do crime do art. 170 pode ser qualquer pessoa, exceto o próprio empresário
devedor. Sujeitos passivos são o empresário devedor e os credores prejudicados com a
insolvência do devedor.

7.4.2 – tipo objetivo

São duas as condutas punidas no art. 170: i) “divulgar” (revelar a terceiros, tornar público);
ou ii) “propalar” (espalhar a um número indeterminado de pessoas). Essa divulgação pode
ser a uma ou mais pessoas.

7.4.3 – objeto material

O objeto material do crime do art. 170 é a informação falsa sobre devedor em recuperação
judicial. Se a informação for verdadeira, não há crime, ainda que ela leve o devedor à
falência.

354
Veja que somente haverá crime se o devedor estiver em recuperação judicial. Não há crime
se ele estiver em recuperação extrajudicial ou em estado de falência. Divulgar informação
falsa do devedor que se encontre nestes dois estados, será, para a doutrina, difamação (art.
139 do CP, para aqueles que entendem que a pessoa jurídica pode ser vítima desse crime)
ou o crime de concorrência desleal (art. 195, I e II da Lei 9.279/1996):

Art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem:

I - publica, por qualquer meio, falsa afirmação, em detrimento de concorrente, com o fim

de obter vantagem;

II - presta ou divulga, acerca de concorrente, falsa informação, com o fim de obter

vantagem; (...)

7.4.4 – elemento subjetivo

O elemento subjetivo do crime do art. 170 é o dolo de divulgar ou propalar, acrescido da


finalidade específica de levar o devedor à falência ou de obter vantagem.

7.4.5 – consumação e tentativa

A consumação ocorre com a divulgação ou propalação potencialmente lesiva. Se não houver


potencialidade lesiva (incapacidade de gerar prejuízo), não há crime (crime impossível).

A tentativa é possível, para a maioria da doutrina. Delmanto e Jaime Walmer de Freitas


dizem que a tentativa é possível, na forma escrita.

7.4.6 – distinção de crimes

Importante distinguir o crime do art. 170 de outras figuras criminosas:

i) divulgar informação falsa ou prejudicialmente incompleta sobre instituição financeira é


crime contra o Sistema Financeiro Nacional (art. 3º da Lei 7.492/1986):

Art. 3º Divulgar informação falsa ou prejudicialmente incompleta sobre instituição

financeira:

Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

ii) divulgar informação falsa sobre sociedade por ações que não seja instituição financeira
configura o crime do art. 177, § 1º, I, do CP (ou mesmo o do art. 177, caput):

Art. 177 - Promover a fundação de sociedade por ações, fazendo, em prospecto ou em

comunicação ao público ou à assembleia, afirmação falsa sobre a constituição da

sociedade, ou ocultando fraudulentamente fato a ela relativo:

355
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa, se o fato não constitui crime contra a

economia popular.

§ 1º - Incorrem na mesma pena, se o fato não constitui crime contra a economia popular:

(Vide Lei nº 1.521, de 1951)

I - o diretor, o gerente ou o fiscal de sociedade por ações, que, em prospecto, relatório,

parecer, balanço ou comunicação ao público ou à assembleia, faz afirmação falsa sobre as

condições econômicas da sociedade, ou oculta fraudulentamente, no todo ou em parte,

fato a elas relativo; (...)

7.5 – Indução a erro (art. 171)

Art. 171. Sonegar ou omitir informações ou prestar informações falsas no processo de

falência, de recuperação judicial ou de recuperação extrajudicial, com o fim de induzir a

erro o juiz, o Ministério Público, os credores, a assembleia-geral de credores, o Comitê ou

o administrador judicial:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

7.5.1 – sujeitos

O sujeito ativo do crime do art. 171 pode ser qualquer pessoa (crime falimentar comum, que
pode ser praticado por qualquer um, inclusive por peritos contadores, funcionários do Poder
Judiciário etc.)

O sujeito passivo é, segundo a doutrina, o Estado e, secundariamente, as pessoas


prejudicadas com a conduta.

7.5.2 – tipo objetivo

As condutas punidas no art. 171 são três: i) sonegar informações (deixar de prestar as
informações devidas); ii) omitir informações (que é o mesmo que sonegar); ou iii) prestar
informações falsas. Nos dois primeiros verbos, o crime é omissivo próprio. Na terceira
conduta, o crime é comissivo.

Não se trata de crime de conduta mista, que é aquele que, para a tipicidade, são necessárias
uma ação e uma omissão.

O crime só existe se essas informações forem omitidas ou prestadas em processo de falência


ou de recuperação judicial ou extrajudicial. Prestadas fora de um processo, pode ocorrer um
dos outros crimes falimentares já vistos.

356
O crime exige uma finalidade específica: induzir em erro o juiz, o MP, credores, a
assembleia-geral de credores, o comitê de credores ou o administrador judicial (o antigo
síndico da falência). Mas não é necessário que a finalidade seja alcançada. Basta que ela
ocorra.

7.5.3 – consumação e tentativa

A consumação do crime de indução a erro ocorre com a mera conduta, ainda que a
finalidade não seja alcançada. Ou seja, ainda que o infrator não consiga induzir em erro o
juiz, o MP, os credores etc.

Nas modalidades omissivas puras (sonegar ou omitir), não será possível a tentativa (crime
omissivo puro ou próprio não admite tentativa). O problema diz respeito à modalidade
comissiva. Para Delmanto, não é possível a tentativa por se tratar de crime unissubisistente
(a conduta não pode ser fracionada). Nucci faz o raciocínio já mencionado anteriormente: se
a conduta é praticada antes da recuperação ou da falência, não é possível a tentativa, pois a
recuperação e a falência são condições objetivas de punibilidade. Praticada após a
recuperação ou a falência, é admissível a tentativa.

7.5.4 – distinção de crimes

Se a finalidade da omissão ou das informações falsas é sonegar tributos, haverá crime contra
a ordem tributária (art. 1º, I, da Lei 8.137/1990):

Art. 1º Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou

contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; (...)

Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

7.6 – Favorecimento de credores (art. 172)

Art. 172. Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a

recuperação judicial ou homologar plano de recuperação extrajudicial, ato de disposição

ou oneração patrimonial ou gerador de obrigação, destinado a favorecer um ou mais

credores em prejuízo dos demais:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre o credor que, em conluio, possa beneficiar-se

de ato previsto no caput deste artigo.

357
O favorecimento de credores é um dos crimes falimentares que mais se observam na
prática. O caput pune o devedor. O parágrafo único pune o credor que estiver conluiado
com o empresário devedor ou falido.

7.6.1 – sujeitos do crime

Sujeito ativo do crime do art. 172 é o empresário devedor ou falido ou o credor com ele
ajustado. Trata-se de crime próprio. Sujeitos passivos são os demais credores prejudicados
com a conduta criminosa.

7.6.2 – tipo objetivo

As condutas punidas no art. 172 são três:

i) praticar ato de disposição:

Esse ato pode ser oneroso ou gratuito, como a venda a preço vil, a doação etc.

ii) praticar ato de oneração:

Ato de oneração é o estabelecimento de um ônus real em favor de algum credor, como


hipotecar em favor de algum credor quirografário, fazendo com que ele, no concurso de
credores, passe a ter preferência em relação aos demais.

iii) praticar ato gerador de obrigação:

Trata-se de qualquer transação de que resulte privilégio a um credor, em detrimento dos


demais. A doutrina dá dois exemplos clássicos: simular contrato com um dos credores e,
segundo Silva Pacheco, pagar antecipadamente uma dívida não vencida.

7.6.3 – elemento subjetivo

O elemento subjetivo do crime do art. 172 é o dolo, acrescido da finalidade específica de


favorecer um ou mais credores. Ausente essa finalidade específica, não há o crime.

7.6.4 – consumação e tentativa

A consumação do favorecimento de credores se dá com a prática da conduta, ainda que a


finalidade não seja alcançada, ou seja, ainda que o credor não seja favorecido. Portanto,
trata-se de crime formal ou de consumação antecipada.

Prevalece que a tentativa é possível.

358
7.7 – Desvio, ocultação ou apropriação de bens (art. 173)

Art. 173. Apropriar-se, desviar ou ocultar bens pertencentes ao devedor sob recuperação

judicial ou à massa falida, inclusive por meio da aquisição por interposta pessoa:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

O art. 173 prevê um misto dos verbos da apropriação indébita com os do peculato. A
doutrina chama este crime de “apropriação indébita falimentar”.

7.7.1 – sujeitos do crime

Sujeito ativo é qualquer pessoa (crime comum). Sujeitos passivos são os credores
prejudicados e, secundariamente, o Estado.

7.7.2 – tipo objetivo

As condutas são três: i) apropriar-se (assenhorar-se definitivamente); ii) desviar (dar


destinação ilegal); ou iii) ocultar.

Essas condutas podem ser praticadas diretamente pelo sujeito ativo ou por interposta
pessoa, o chamado “laranja” (ou, como preferem os italianos, o “homem de palha”). No caso
de interposta pessoa, haverá, por óbvio, concurso de agentes entre o infrator e o laranja.

7.7.3 – objetos materiais

Objetos materiais do crime do art. 173 são os bens pertencentes ao devedor em


recuperação judicial ou à massa falida.

7.7.4 – consumação e tentativa

A consumação se dá com a apropriação, o desvio ou a ocultação (crime material).

Há doutrina que sustenta que esse crime somente se configura se resultar prejuízo aos
credores. Ou seja, para esses autores, o simples fato de haver apropriação, desvio ou
ocultação não configura crime.

A tentativa é possível.

7.7.5 – distinção de crimes

Mais uma vez, importante distinguir o crime do art. 173 de outras figuras delituosas:

359
i) aquele que adquire, recebe ou usa ilicitamente bens da massa falida responde pelo crime
do art. 174 da Lei de Falências (aquisição, recebimento ou uso ilegal de bens):

Art. 174. Adquirir, receber, usar, ilicitamente, bem que sabe pertencer à massa falida ou

influir para que terceiro, de boa-fé, o adquira, receba ou use:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

ii) se a apropriação ou o desvio for de bens, títulos ou valores pertencentes a instituição


financeira, há o crime do art. 5º da Lei 7.492/1986:

Art. 5º Apropriar-se, quaisquer das pessoas mencionadas no art. 25 desta lei, de dinheiro,

título, valor ou qualquer outro bem móvel de que tem a posse, ou desviá-lo em proveito

próprio ou alheio:

Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. (...)

A diferença é que, no art. 173, o bem que está sendo apropriado ou desviado pertence à
massa falida ou ao devedor em recuperação judicial. Na Lei 7.492/1986, o bem pertence à
instituição financeira.

7.8 – Habilitação ilegal de crédito (art. 175)

Art. 175. Apresentar, em falência, recuperação judicial ou recuperação extrajudicial,

relação de créditos, habilitação de créditos ou reclamação falsas, ou juntar a elas título

falso ou simulado:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Na habilitação ilegal de crédito, o sujeito entra na massa de credores sem ser credor (sem
ter crédito algum).

7.8.1 – sujeitos

O sujeito ativo do crime do art. 175 pode ser qualquer pessoa. Se o agente estiver
previamente ajustado com o empresário devedor ou falido, ambos responderão em
concurso de agentes (coautoria ou participação). Exemplos recorrentes: i) o empregado, em
conluio com o empregador, habilita um falso crédito trabalhista na falência (o empregado
cobra R$ 50.000,00, devolve R$ 30.000,00 e fica com R$ 20.000,00); ii) falso credor
apresenta falso título de crédito para se habilitar na falência.

Nucci e Delmanto indicam dois sujeitos passivos do crime: i) os verdadeiros credores (pois o
falso credor entrará na concorrência de crédito com eles); e ii) o Estado.

360
7.8.2 – tipo objetivo

As condutas previstas no art. 175 têm de ocorrer em falência, recuperação judicial ou


extrajudicial. São elas:

i) apresentar relação de créditos falsos:

O administrador da falência, ao apresentar a listagem de credores, inclui credores falsos. Ex.:


são vinte credores verdadeiros, e o administrador inclui mais cinco falsos.

ii) habilitação de créditos falsos:

Trata-se da postulação de um credor que não foi incluído na listagem pelo administrador. A
lei permite a habilitação de crédito do credor verdadeiro. Se o falso credor pede habilitação
de crédito inexistente, ele comete o crime do art. 175.

iii) apresentar reclamação falsa:

Reclamação falsa é a impugnação ou o protesto para incluir crédito que não é o


efetivamente devido. Ex.: o credor tem direito a R$ 30.000,00 e exige a habilitação de
crédito de R$ 60.000,00.

7.8.3 – consumação e tentativa

O crime de habilitação ilegal de crédito ocorre com a apresentação falsa, ainda que a
vantagem não seja obtida. Trata-se de crime formal ou de consumação antecipada.

A doutrina divide-se quanto à possibilidade da tentativa: há quem diga que é possível e


quem diga que não, por se tratarem de condutas unissubsistentes (não podem ser
fracionadas em vários atos).

7.8.4 – distinção de crimes

Apresentar declaração de crédito ou reclamação falsa, ou juntar título falso em processo de


liquidação extrajudicial de instituição financeira configura o crime do art. 14 da Lei
7.492/1986:

Art. 14. Apresentar, em liquidação extrajudicial, ou em falência de instituição financeira,

declaração de crédito ou reclamação falsa, ou juntar a elas título falso ou simulado:

Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.

Parágrafo único. Na mesma pena incorre o ex-administrador ou falido que reconhecer,

como verdadeiro, crédito que não o seja.

361
Veja que as condutas são as mesmas. A diferença é que, no caso do art. 14, o título é juntado
em processo de liquidação extrajudicial de instituição financeira.

7.9 – Exercício ilegal de atividade (art. 176)

Art. 176. Exercer atividade para a qual foi inabilitado ou incapacitado por decisão judicial,

nos termos desta Lei:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

O dispositivo tem a ver com um dos efeitos da condenação falimentar. É comum, na


Falência, a sentença civil ou penal tornar o condenado incapaz de exercer a atividade
empresária. Violando essa proibição, ele comete o crime do art. 176.

7.9.1 – sujeitos

O sujeito ativo do crime de exercício ilegal de atividade somente pode ser o empresário
declarado falido e inabilitado ou incapacitado para exercer qualquer atividade empresarial.

Sujeito passivo é a administração da justiça.

Atenção! O crime do art. 176 prevalece sobre o do art. 359 do CP (desobediência a decisão
judicial sobre perda ou suspensão de direito), em decorrência do princípio da especialidade:

Art. 359 - Exercer função, atividade, direito, autoridade ou múnus, de que foi suspenso ou

privado por decisão judicial:

Pena - detenção, de três meses a dois anos, ou multa.

No crime de desobediência do CP, o infrator está descumprindo uma decisão judicial que lhe
suspendeu ou proibiu um direito. O art. 176 da Lei de Falências é exatamente essa hipótese.
A diferença é que a norma, aqui, é especial em relação àquela.

7.9.2 – consumação e tentativa

A doutrina diz que o crime do art. 176 é habitual, consumando-se com a reiteração de atos.
Por conta disso, ele não admite a tentativa.

7.10 – Violação de impedimento (art. 177)

Art. 177. Adquirir o juiz, o representante do Ministério Público, o administrador judicial, o

gestor judicial, o perito, o avaliador, o escrivão, o oficial de justiça ou o leiloeiro, por si ou

por interposta pessoa, bens de massa falida ou de devedor em recuperação judicial, ou,

em relação a estes, entrar em alguma especulação de lucro, quando tenham atuado nos

respectivos processos:

362
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

As pessoas envolvidas no processo de falência estão, por determinação da própria Lei de


Falências, impedidas de adquirir bens da massa falida ou de ter lucro com ela. Se o fizerem,
estão violando impedimento. Daí o nome do crime.

7.10.1 – sujeitos do crime

O crime do art. 177 é próprio: exige qualidade especial do sujeito ativo. Os sujeitos ativos
são somente as pessoas indicadas no tipo penal (“o juiz, o representante do Ministério
Público, o administrador judicial, o gestor judicial, o perito, o avaliador, o escrivão, o oficial
de justiça ou o leiloeiro”). O tipo penal fala na prática direta/pessoal da conduta (que nunca
ocorre) ou por interposta pessoa, que será coautor do crime. Essa interposta pessoa é o
“laranja”.

Sujeito passivo é o Estado.

Caso a aquisição ocorra, ela será nula, de acordo com disposição do Código Civil. A despeito
da nulidade, há o crime independentemente de eventual decisão judicial anulando o ato de
aquisição.

7.10.2 – objeto material

Objetos materiais do crime do art. 177 são os bens da massa falida ou do devedor em
recuperação judicial.

7.10.3 – consumação e tentativa

A consumação se dá com a aquisição (crime material) e a tentativa é perfeitamente possível.

7.11 – Omissão dos documentos contábeis obrigatórios (art. 178)

Art. 178. Deixar de elaborar, escriturar ou autenticar, antes ou depois da sentença que

decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar o plano de recuperação

extrajudicial, os documentos de escrituração contábil obrigatórios:

Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais

grave.

7.11.1 – sujeitos

Na conduta de “deixar de elaborar” documentos contábeis obrigatórios, o sujeito ativo do


crime do art. 178 é o empresário, pois é dele tal obrigação. Na conduta de “deixar de

363
escriturar”, os sujeitos ativos podem ser o empresário e o contador, que é o responsável
pela escrituração da empresa. Por fim, na conduta de “deixar de autenticar”, em regra o
sujeito ativo é o contador ou o auditor (ou quem tenha tal função).

Sujeito passivo é o Estado.

7.11.2 – tipo objetivo

As condutas já foram vistas acima. São: “deixar de elaborar”, “deixar de escriturar” ou


“deixar de autenticar” documentos contábeis obrigatórios.

7.11.3 – objetos materiais

Objetos materiais do crime são os documentos de escrituração contábil obrigatórios. Ou


seja, caso não se trate de documento contábil, ou em se tratando de documento contábil
não obrigatório, não há o crime.

7.11.4 – consumação e tentativa

A consumação se dá com a simples omissão. Trata-se crimes omissivos próprios, que não
admitem tentativa.

8 – Natureza jurídica da sentença que decreta a falência, concede a


recuperação judicial ou homologa a recuperação extrajudicial

Veja que a falência é “decretada”, a recuperação judicial é “concedida” e a recuperação


extrajudicial é “homologada”.

Na vigência da lei anterior, havia três correntes quanto à natureza da sentença declaratória
de falência (lembre-se que não havia recuperação judicial ou extrajudicial):

1ª corrente: a sentença declaratória de falência é elementar do crime, ou seja, integra


a figura típica (Frederico Marques). Para o autor, sem ela, não haveria crime. É mais
ou menos o que o STF fala acerca do lançamento definitivo do tributo.

2ª corrente: a sentença declaratória de falência é condição de procedibilidade. A


Maciel parecia a posição mais correta, na medida em que o CPP dispunha, em seu art.
507, que a ação não podia ser proposta sem a sentença declaratória de falência.

3ª corrente: a sentença declaratória de falência é condição objetiva de punibilidade.


Condição objetiva de punibilidade é uma condição que está fora da conduta (ou seja,
não abrangida pelo dolo ou culpa do agente), mas que é requisito para a punição.

364
Objetiva por não estar na conduta subjetiva; de punibilidade porque, sem ela, não é
possível punir.

Com o advento do art. 180 da Lei de Falências, esse discussão acabou (foi resolvida pela lei):

Art. 180. A sentença que decreta a falência, concede a recuperação judicial ou concede a

recuperação extrajudicial de que trata o art. 163 desta Lei é condição objetiva de

punibilidade das infrações penais descritas nesta Lei.

A sentença que decreta a falência, concede a recuperação judicial ou concede a recuperação


extrajudicial tem natureza de condição objetiva de punibilidade. Não é elementar do tipo
penal ou condição de procedibilidade. A discussão doutrinária não tem mais sentido.

Questão 1: a sentença que decreta a falência ou homologa ou concede a recuperação é


condição objetiva de punibilidade em todos os crimes falimentares?

Pela letra do art. 180 da Lei de Falências, sim. Ou seja, sem ela, não se pode punir por crime
falimentar. Essa é a posição a ser adotada em prova objetiva e a que prevalece (Delmanto,
Luiz Flávio Gomes e a maioria).

Nucci, todavia, tem posição diversa. Para o autor, a redação de certos tipos penais torna
claro que essa sentença não é necessária para todos os crimes falimentares. Se o crime foi
cometido antes da sentença, ela é pressuposto do crime, e não condição objetiva de
punibilidade.

Maciel discorda da posição de Nucci. Para ele, a sentença nada tem a ver com a existência
do crime. Ela será sempre condição objetiva de punibilidade. Praticado antes ou depois da
sentença, o crime somente poderá ser punido depois da sentença. Isso é o que se entende
por condição objetiva de punibilidade. A distinção, para Maciel, não faz sentido. Se o crime
for praticado antes da sentença, ter-se-á que aguardá-la para punir; praticado depois, já há a
condição.

Questão 2: se a sentença declaratória da falência, concessiva ou homologatória da


recuperação for anulada, pode haver ação penal por crime falimentar?

O antigo art. 507 do CPP dizia que se a sentença declaratória da falência fosse reformada, a
ação penal seria extinta:

Art. 507. A ação penal não poderá iniciar-se antes de declarada a falência e extinguir-se-á

quando reformada a sentença que a tiver decretado. (Revogado pela Lei nº 11.101, de

2005)

365
O artigo, todavia, foi revogado e a Lei de Falências é omissa acerca do assunto. Mesmo
assim, o entendimento correto é de que a ação penal não pode ser proposta ou mantida, já
que a declaratória sentença é condição objetiva de punibilidade, conforme visto acima.

Assim, anulada a sentença declaratória de falência, terá de haver, conforme o caso,


arquivamento do inquérito policial (se na fase de investigação), rejeição da denúncia (se
ainda não recebida), extinção da ação penal (se já recebida a denúncia) ou revisão criminal
para anular a pena (inclusive se ela já tiver sido cumprida).

9 – Efeitos da condenação por crime falimentar

A Lei de Falências tem seus próprios efeitos da condenação, previstos no art. 181:

Art. 181. São efeitos da condenação por crime previsto nesta Lei:

I – a inabilitação para o exercício de atividade empresarial;

II – o impedimento para o exercício de cargo ou função em conselho de administração,

diretoria ou gerência das sociedades sujeitas a esta Lei;

III – a impossibilidade de gerir empresa por mandato ou por gestão de negócio. (...)

O primeiro efeito da condenação por crime falimentar é a inabilitação para o exercício de


atividade empresarial. Se o sujeito praticar atos empresariais, ele cometerá o crime já
estudado acima.

Veja que, de acordo com o inciso II, o sujeito inabilitado pode ser, por exemplo, diretor de
sociedade de economia mista, por não se tratar de entidade sujeita à Lei de Falências.

O art. 181, § 1º, é bastante exigido em prova: os efeitos não são automáticos, devendo ser
motivadamente declarados na sentença:

Art. 181 (...) § 1º Os efeitos de que trata este artigo não são automáticos, devendo ser

motivadamente declarados na sentença, e perdurarão até 5 (cinco) anos após a extinção

da punibilidade, podendo, contudo, cessar antes pela reabilitação penal.

Não declarado na sentença, não há o efeito. São os chamados “efeitos alomáticos” (Canuto
Mendes de Almeida), ou seja, não automáticos.

O prazo desses efeitos é de até cinco anos após a extinção da punibilidade, podendo cessar
antes, pela reabilitação.

10 – Prescrição de crimes falimentares (art. 182)

366
Na anterior Lei de Falências, a prescrição dos crimes nela previstos era sempre de apenas
dois anos, independentemente da pena máxima prevista, cominada ou aplicada. Na atual lei,
aplicam-se os prazos do Código Penal:

Art. 182. A prescrição dos crimes previstos nesta Lei reger-se-á pelas disposições do

Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, começando a correr do

dia da decretação da falência, da concessão da recuperação judicial ou da homologação

do plano de recuperação extrajudicial. (...)

Aliás, aplicam-se as regras de prescrição do CP, com as seguintes particularidades:

i) início da contagem do prazo prescricional:

No CP, a prescrição começa a ser contada na forma dos arts. 111 e 112 (dia da consumação
do crime, da tentativa, da cessação da permanência etc.) Na Lei de Falências, a prescrição
somente começa a ser contada do dia da decretação da falência ou da concessão ou
homologação da recuperação judicial ou extrajudicial. Ex.: consumado hoje o crime
falimentar, o juiz decreta a falência depois de três anos. Em três anos é que começará a
correr o prazo de prescrição.

ii) interrupção da prescrição pela sentença que decreta a falência:

O art. 117 do CP prevê as causas interruptivas da prescrição. O art. 182 da Lei de Falências
também prevê uma causa interruptiva: a sentença declaratória de falência:

Art. 182 (...) Parágrafo único. A decretação da falência do devedor interrompe a

prescrição cuja contagem tenha iniciado com a concessão da recuperação judicial ou com

a homologação do plano de recuperação extrajudicial.

A sentença declaratória de falência interrompe a contagem da prescrição quando essa


contagem se iniciar com a concessão ou homologação da recuperação. Ex.: o juiz concede
recuperação judicial hoje. Começa a correr a prescrição hoje. Se não der certo o plano de
recuperação e a falência for decretada após dois anos, a prescrição restará interrompida
(começa a correr novamente).

Portanto, a sentença declaratória de falência é, ao mesmo tempo, termo inicial de contagem


da prescrição e causa interruptiva, quanto antes dela tiver havido recuperação.

11 – Competência para o julgamento da ação penal por crime falimentar

367
Na lei anterior, quem julgava crime falimentar era o próprio juiz da falência. Havia, além
disso, o chamado inquérito judicial (quem investigava era o próprio juiz, o que era um
absurdo). O inquérito judicial era, na prática, extração de cópias, que instruíam a denúncia.

A Lei de Falências acabou com aquela figura do inquérito judicial. A partir de então, quem
passa a apurar o crime falimentar é a polícia. E quem julga o crime falimentar é o juiz
criminal do local onde foi decretada a falência ou concedida ou homologada a recuperação
(art. 183):

Art. 183. Compete ao juiz criminal da jurisdição onde tenha sido decretada a falência,

concedida a recuperação judicial ou homologado o plano de recuperação extrajudicial,

conhecer da ação penal pelos crimes previstos nesta Lei.

O STF decidiu que leis de organização judiciária local podem atribuir a competência criminal
ao juiz da vara especializada de falências ou à câmara do respectivo tribunal. É o que ocorre
em São Paulo, onde há vara e câmara especializadas. O STF julgou constitucional a lei
paulista. Nucci defende essa posição. Essa lei de São Paulo, na verdade, já existia desde
1983, tendo ela sido mantida, por não violar o princípio do juiz natural.

12 – Ação penal nos crimes de falências (art. 184)

Nos termos do art. 184 da Lei de Falências, a ação penal para a apuração dos crimes
falimentares é pública incondicionada. O parágrafo único do dispositivo, todavia, prevê
legitimados para a propositura da ação penal privada subsidiária da pública:

Art. 184. Os crimes previstos nesta Lei são de ação penal pública incondicionada.

Parágrafo único. Decorrido o prazo a que se refere o art. 187, § 1º, sem que o

representante do Ministério Público ofereça denúncia, qualquer credor habilitado ou o

administrador judicial poderá oferecer ação penal privada subsidiária da pública,

observado o prazo decadencial de 6 (seis) meses.

Se o MP não oferecer a denúncia no prazo legal por crime de falência, torna-se cabível a
propositura da ação penal privada subsidiária da pública, cujos legitimados são: i) o credor
que tenha habilitado seu crédito na falência (ele não deixa de ser uma vítima do crime
falimentar); e ii) o administrador judicial da falência.

O prazo para o ajuizamento da ação penal privada subsidiária da pública é decadencial de


seis meses, contados do dia em que se esgotar prazo para o MP apresentar denúncia (art. 38
do CPP):

368
Art. 38. Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá no

direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de seis meses,

contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do

dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia. (...)

O prazo para o MP oferecer denúncia, nos crimes previstos na Lei de Falências, é o do art.
187, § 1º:

Art. 187 (...) § 1º O prazo para oferecimento da denúncia regula-se pelo art. 46 do

Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, salvo se o

Ministério Público, estando o réu solto ou afiançado, decidir aguardar a apresentação da

exposição circunstanciada de que trata o art. 186 desta Lei, devendo, em seguida,

oferecer a denúncia em 15 (quinze) dias. (...)

Veja que se trata dos mesmos prazos do CPP: 5 dias para réu preso; 15 dias para réu solto.
Cumpre observar, todavia, que se o réu estiver solto, o MP pode optar por aguardar o
relatório circunstanciado do administrador judicial da falência, para então denunciar.

Se o MP optar por aguardar esse relatório, o prazo para ele denunciar será de 15 dias,
contados do dia em que recebê-lo.

13 – Espécies de procedimento nos crimes da Lei de Falências (art. 185)

O CPP, nos arts. 503 a 512, previa procedimento especial para a apuração dos crimes da Lei
de Falências. Ocorre que esse procedimento foi revogado pelo art. 200 da atual Lei de
Falências:

Art. 200. Ressalvado o disposto no art. 192 desta Lei, ficam revogados o Decreto-Lei nº

7.661, de 21 de junho de 1945, e os arts. 503 a 512 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de

outubro de 1941 - Código de Processo Penal.

Portanto, não existe mais procedimento especial para a apuração dos crimes falimentares.

O art. 185 prevê que, recebida a denúncia ou queixa, observar-se-á o procedimento previsto
nos arts. 531 a 540 do CPP (o procedimento sumário):

Art. 185. Recebida a denúncia ou a queixa, observar-se-á o rito previsto nos arts. 531 a

540 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal

[procedimento sumário].

369
Assim, nos crimes falimentares, o procedimento é o sumário, independentemente da pena
máxima cominada.

Existe, todavia, outro entendimento. Há doutrinador (ex.: Jaime Valter de Freitas) que
sustenta que o art. 185 da Lei de Falências foi tacitamente revogado pelo novo art. 394 do
CPP, alterado em 2008 pela Lei 11.719/2008, de modo que o procedimento dependerá da
pena máxima abstratamente cominada ao crime. Lembre-se que o art. 394 do CPP define a
espécie de procedimento com base na pena máxima prevista para o crime:

i) quatro anos ou mais: procedimento ordinário;

ii) mais de dois a menos de quatro anos: procedimento sumário;

iii) dois anos ou menos: procedimento sumaríssimo.

Art. 394. O procedimento será comum ou especial.

§ 1º O procedimento comum será ordinário, sumário ou sumaríssimo:

I - ordinário, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada for igual ou

superior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade;

II - sumário, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada seja inferior a 4

(quatro) anos de pena privativa de liberdade;

III - sumaríssimo, para as infrações penais de menor potencial ofensivo, na forma da lei

[contravenções e crimes cuja pena máxima cominada não seja superior a 2 anos,

cumulada ou não com multa]. (...)

Em prova, se a questão cair em primeira fase, deve-se optar pela letra seca da lei. Em prova
subjetiva, é importante expor as duas correntes.

A anterior Lei de Falências dizia que o recebimento da denúncia ou queixa devia ser
fundamentado. A nova lei não diz mais isso. Por essa razão, deve-se seguir a jurisprudência
dos tribunais quanto à necessidade ou não de fundamentação do recebimento da denúncia
ou queixa.

370
LEI MARIA DA PENHA (LEI 11.340/2006)

1 – Críticas

A especialização legislativa da violência não só é importante como se trata de uma tendência


que se vem verificando desde 1990. Até então, todas as espécies de violência eram tratadas
pelo Código Penal, sem documentos especializados.

A Lei 8.069/1990 (ECA) especializou a violência praticada contra a criança e o adolescente. A


Lei 8.092/1990 especializou os crimes de grande potencial ofensivo (Lei dos Crimes
Hediondos). A Lei 9.099/1995 tratou de forma especial a violência de menor potencial
ofensivo. O erro dessa lei foi não excluir a violência doméstica e familiar, banalizando-a. Em
1997, a violência especial da tortura também foi especializada (Lei 9.455/1997). No mesmo
ano, restou especializada a violência no trânsito (Lei 9.508/1997). Depois, veio a Lei
9.605/1998 (Lei dos Crimes Ambientais), o Estatuto do Idoso, o Estatuto do Torcedor e a Lei
11.340/2006 (Lei Maria da Penha).

Assim, o movimento descrito acima nada mais faz que retratar essa especialização da
violência. Todavia, apesar de a Lei Maria da Penha ser aqui estudada na área penal, ela
pouco tem de direito penal e processual penal. É uma lei extrapenal.

2 – Finalidades da Lei Maria da Penha


Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar

contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção

sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção

Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros

tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a

criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece

medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e

familiar.

As finalidades da Lei Maria da Penha estão previstas em seu art. 1º:

i) prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher;

ii) criar o Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher;

iii) assistir a mulher vítima de violência doméstica e familiar;

371
iv) proteger a mulher vítima de violência doméstica e familiar.

Nenhuma dessas finalidades tem predicado penal, o que demonstra o caráter extrapenal
dessa lei.

O homem não é objeto de violência doméstica e familiar? A Lei Maria da Penha reconhece a
possibilidade de o homem ser vítima de tal violência. Tanto que o seu art. 44 modificou o
art. 121 do CP:

Art. 44. O art. 129 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal),

passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 129. (...) § 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão,

cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda,

prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.

§ 11. Na hipótese do § 9º deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for

cometido contra pessoa portadora de deficiência.”

Note que o dispositivo fala em irmão, cônjuge, companheiro, abrangendo homem e mulher.
O que a Lei Maria da Penha fez, portanto, foi dar uma proteção especial quando se tratar de
mulher vítima.

Assim, se a vítima de violência doméstica e familiar for homem, aplica-se o CP; se for mulher,
aplica-se o CP e a Lei Maria da Penha.

A questão que surge é a seguinte: é constitucional essa proteção especial à mulher? Limitar
a proteção da lei somente à mulher vítima não viola a isonomia?

3 – Constitucionalidade da Lei 11.340/2006

Acerca da constitucionalidade da Lei Maria da Penha, há basicamente duas correntes, que


serão tratadas a seguir.

3.1 – Inconstitucionalidade

Uma primeira corrente defende que a Lei Maria da Penha seria inconstitucional, por violar:

i) o art. 226, § 5º, da CR:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...)

§ 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo

homem e pela mulher.

372
Na medida em que o dispositivo dá ao homem e à mulher os mesmos direitos no âmbito da
sociedade conjugal, a Lei Maria da Penha violaria essa isonomia.

ii) o art. 226, § 8º, da CR:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...)

§ 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a

integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Se a CR quer proteção a todos os integrantes da família, por que proteger somente a mulher
e deixar de lado os demais membros?

3.2 – Constitucionalidade

Uma segunda corrente defende que a Lei Maria da Penha é constitucional.

Há dois tipos de sistemas de proteção:

i) geral: não existe destinatário certo (nem pode haver destinatário certo nesse sistema);

ii) especial: possui destinatário certo.

O Código Penal insere-se no sistema de proteção geral, por isso não limita a proteção à
mulher. A Lei Maria da Penha está no âmbito do sistema de proteção especial, podendo ter
destinatário certo. Isso porque somente assim a mulher conseguirá concretizar a igualdade
constitucional.

A política que busca a concretização de uma igualdade prevista em lei é chamada de ação
afirmativa. A Lei Maria da Penha, portanto, nada mais faz que concretizar uma ação
afirmativa. Como visto, ela reconhece a possibilidade de violência contra o homem.
Entretanto, sabendo que a mulher, estatisticamente, é vítima em situações muito mais
corriqueiras, dá a ela uma proteção especial, visando à concretização de fato dessa
igualdade de direito.

Em 9 de fevereiro de 2012, o STF julgou constitucional a Lei Maria da Penha. Os ministros


consideraram que todos os artigos da lei, que vinham tendo interpretações divergentes na
primeira e segunda instâncias, estão de acordo com o princípio fundamental de respeito à
dignidade humana, sendo instrumento de mitigação de uma realidade de discriminação
social e cultural.

Depois desta decisão, tomada no julgamento de uma ação declaratória de


constitucionalidade (ADC 19), proposta em 2007 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da

373
Silva, o mesmo plenário entendeu, em ação de inconstitucionalidade ajuizada pelo
procurador-geral da República (Adin 4424), que qualquer ação penal com base na Lei Maria
da Penha deve ser processada pelo Ministério Público, mesmo sem representação da vítima.
E que não pode ser julgada por juizado especial, como se fosse de “menor potencialidade
ofensiva”, mesmo em se tratando de lesão corporal leve.

O TJMG decidiu, de forma pioneira, que a Lei 11.340/2006 só é aplicada à mulher vítima,
mas nada impede que o juiz, usando seu poder geral de cautela, aplique as medidas
protetivas para os homens vítimas, em especial quando vulneráveis. Ex.: aplicação das
medidas protetivas ao homem idoso. Isso não é analogia in mallan partem, pois se trata de
aplicação de medida protetiva, não punitiva.

Aplica-se a Lei Maria da Penha ao transexual? Transexual é uma pessoa que apresenta uma
dicotomia físico-psíquica. Fisicamente ele é de um sexo e psicologicamente de outro. De
acordo com a maioria, se a pessoa portadora de transexualismo transmutar suas
características sexuais (por cirurgia e de modo irreversível, com a ablação do órgão), deve
ser encarada de acordo com sua nova realidade morfológica, permitindo-se, inclusive,
retificação de registro civil.

4 – Conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 5º)


Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher

qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento

físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio

permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente

agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que

são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por

vontade expressa;

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido

com a ofendida, independentemente de coabitação.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação

sexual.

4.1 – Violência de gênero

374
Para a aplicação da lei, a violência tem de ser baseada no gênero. Ou seja, tem de se tratar
de violência de gênero, violência-discriminação, violência-preconceito, violência contra
vítima vulnerável.

Segundo Rogério, não é porque o homem bateu na mulher que a Lei Maria da Penha será
aplicada. Somente haverá incidência das regras da lei se se tratar dessa violência-
preconceito, ou seja, caso a mulher esteja em situação de vulnerabilidade.

Exemplos:

i) o marido chega a casa e a mulher batera no filho dele. Ele, se condoendo com o filho, dá
uma surra na mulher. Isso foi violência de gênero? Ele encara a mulher como simples
objeto? Não. Nesse caso, não há violência de gênero, razão pela qual, em tese, não seria
possível a aplicação da Lei Maria da Penha;

ii) uma mulher desenvolve doença sexualmente transmissível, inclusive transmitida pelo
marido, em que a vagina fica inchada, purulenta e quente. O marido não deixava que a
mulher tratasse a doença, pois tinha mais prazer dessa forma. Agindo dessa forma, ele
encara a mulher como simples objeto. Trata-se de violência de gênero, passível de aplicação
da Lei 11.340/2006.

Não parece ser essa a posição do STJ (Informativo 539): “O fato de a vítima ser figura pública
renomada não afasta a competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher para processar e julgar o delito. Isso porque a situação de vulnerabilidade e de
hipossuficiência da mulher, envolvida em relacionamento íntimo de afeto, revela-se ipso
facto, sendo irrelevante a sua condição pessoal para a aplicação da Lei Maria da Penha.
Trata-se de uma presunção da Lei” (STJ, 5ª Turma. REsp 1.416.580-RJ, Rel. Min. Laurita Vaz,
julgado em 1º/4/2014, caso Luana Piovani x Dado Dolabela).

O TJRJ havia entendido que o fato de a vítima ser pessoa notória e o casal não viver em
união estável, mas apenas namorar, subtrairia a competência da Vara de Violência
Doméstica e Familiar. O STJ rechaçou a tese, entendendo que o namoro já seria suficiente à
proteção legal (a violência doméstica independe de coabitação) e a caracterização da
vulnerabilidade e hipossuficiência da mulher seria presumida, ou seja, não teria de ser
demonstrada, por decorrer da lei.

4.2 – Violência praticada no âmbito da unidade familiar, da família ou em qualquer


relação íntima de afeto

375
O art. 5º, I, exige que a violência seja praticada “no âmbito da unidade doméstica”. Unidade
doméstica é o espaço caseiro. Dispensa vínculo familiar. Em razão desse dispositivo, pode
figurar como vítima, por exemplo, a empregada doméstica.

O inciso II fala em violência “no âmbito da família”. Aqui, pressupõe-se vínculo familiar,
ainda que por afinidade. Assim, a sogra poderá ser considerada protegida. O dispositivo
dispensa a coabitação.

O inciso III fala, por fim, em “qualquer relação íntima de afeto”. Surge a dúvida: ele abrange
o ex-marido agredindo a ex-mulher? E se forem ex-namorados? O STJ nunca disse que a Lei
Maria da Penha não se aplicaria a eles. O que ele disse é que, no caso específico do
Informativo que tratou do tema, a Lei Maria da Penha não seria aplicada por não ter o STJ
enxergado a violência de gênero, a objetalização da mulher. O STJ, assim, entende
perfeitamente aplicável a lei protetiva ao ex-marido ou ao ex-namorado, desde que
presente a violência de gênero.

Portanto, para a aplicação da Lei Maria da Penha, deve haver a violência de gênero e a
presença de um dos incisos do art. 5º.

Ainda, de acordo com o art. 5º, parágrafo único, a aplicação da Lei Maria da Penha
independe da orientação sexual da vítima, sendo ela aplicada mesmo nas relações
homoafetivas:

Art. 5º (...) Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de

orientação sexual.

O artigo permite a aplicação da Lei Maria da Penha apenas às relações homoafetivas


femininas ou também às masculinas? O concurso do TJSP entendeu correta a alternativa que
abrangia também a relação homoafetiva masculina, desde que a vítima fosse a “mulher” da
relação.

Para Rogério, mesmo com a decisão do STF que reconheceu a entidade homoafetiva como
união estável, estando a Lei preocupada com a mulher vítima, a Lei Maria da Penha somente
se aplicaria à mulher vítima, mesmo nas relações homoafetivas.

5 – Formas de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 7º)

5.1 – Violência física

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou

376
saúde corporal; (...)

A violência física varia desde uma contravenção penal de vias de fato até um homicídio, que
é a forma mais grave de violência física.

5.2 – Violência psicológica

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: (...)

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano

emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno

desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças

e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento,

vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização,

exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo

à saúde psicológica e à autodeterminação; (...)

A conceituação da lei é extremamente ampla. Deve-se atentar para o fato de que a violência
psicológica não é qualquer atitude corriqueira que cause dissabores normais oriundos da
relação, sob pena de banalização do dispositivo, levando-se a situações absurdas. A violência
deve ser grave. Há quem diga que o controle excessivo de gastos da mulher configuraria
controle das ações da mulher passível de aplicação da Lei Maria da Penha. Rogério considera
isso um absurdo.

5.3 – Violência sexual

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: (...)

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a

manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça,

coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a

sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao

matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem,

suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e

reprodutivos; (...)

A violência sexual é extremamente ampla. É quase tão ampla quanto a violência psicológica.
Repare que a violação sexual não é simplesmente a dos crimes do CP. É algo muito mais
amplo, como a do homem que impede que a mulher utilize métodos contraceptivos.

5.4 – Violência patrimonial

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: (...)

377
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção,

subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho,

documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os

destinados a satisfazer suas necessidades; (...)

Esta é a hipótese do homem que, por exemplo, quebra toda a casa.

5.5 – Violência moral

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: (...)

V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação

ou injúria.

Violência moral é a calúnia, a injúria e a difamação.

Da análise dos cinco incisos, percebe-se que as condutas podem corresponder a crimes,
contravenções penais ou até configurar fato atípico. Exemplo de violência doméstica ou
familiar que configura fato atípico é o adultério (uma espécie de violência psicológica).

6 – Medidas de prevenção da Lei Maria da Penha (art. 8º)

O art. 8º trata das medidas integradas de prevenção contra a violência doméstica e familiar
contra a mulher. Repare que não somente o Estado como toda a sociedade é conclamada à
proteção da mulher contra a violência:

Art. 8º A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher

far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito

Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes: (...)

O inciso III determina que, para mudar a imagem da mulher da sociedade, deve-se mudar a
imagem dela nos meios de comunicação. Ou seja, para que a mulher deixe de ser tratada
como objeto, ela não deve ser tratada como tal nos meios de comunicação social (ex.: não
mais tratá-la como produto hortifrutigranjeiro, ou como “Amélia” nas novelas). No “Pânico
na Band”, não há nenhuma mulher que está lá pelos seus atributos intelectuais:

Art. 8º (...) III - o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da

pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou

exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o estabelecido no inciso III do

art. 1º, no inciso IV do art. 3º e no inciso IV do art. 221 da Constituição Federal;

378
O inciso IV prevê a implementação de atendimento especializado à mulher nas polícias,
preferencialmente realizado por mulheres. O Brasil não tem 10% dos Municípios com esse
nível de especialização:

Art. 8º (...) IV - a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres,

em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher; (...)

Por fim, cumpre ressaltar o disposto no inciso IX, que impõe destaque na educação para o
problema da violência doméstica e familiar contra a mulher:

Art. 8º (...) IX - o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os

conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao

problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.

7 – Formas de assistência (art. 9º)

A Lei Maria da Penha prevê uma tríplice assistência à mulher em situação de violência
doméstica e familiar: i) social; ii) à saúde (SUS); e iii) à segurança (Polícia Civil).

Art. 9º A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada

de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da

Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública,

entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o

caso. (...)

A lei rotulou a Polícia Civil como o “porto seguro” da mulher vítima (art. 11):

Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a

autoridade policial deverá, entre outras providências:

I - garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério

Público e ao Poder Judiciário;

II - encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal;

III - fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro,

quando houver risco de vida;

IV - se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do

local da ocorrência ou do domicílio familiar;

V - informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis.

O problema é que, na prática, o governo não dá às polícias a estrutura necessária à


realização de um atendimento eficaz.

379
Cabe aqui ressaltar duas formas de assistência:

i) quando a vítima for servidora pública, será aplicado o art. 9º, § 2º, I:

Art. 9º (...) § 2º O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar,

para preservar sua integridade física e psicológica:

I - acesso prioritário à remoção quando servidora pública, integrante da administração

direta ou indireta; (...)

A lei assegura prioridade na remoção à mulher nessas condições, para sair da situação de
violência. A solução é muito válida em se tratando de servidora pública federal ou estadual.
Contudo, no caso de servidora pública municipal, a medida somente é eficaz se o município
for de grande porte. Em municípios de pequeno e médio porte, ela será praticamente
inócua.

ii) quando a vítima for empregada na iniciativa privada, será aplicado o art. 9º, § 2º, II:

Art. 9º (...) § 2º O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar,

para preservar sua integridade física e psicológica: (...)

II - manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de

trabalho, por até seis meses.

Trata-se do afastamento do trabalho da mulher, com garantia de emprego por até seis
meses. Há dois tipos de afastamento do trabalho: suspensão (não recebendo salário) e
interrupção (recebendo salário). De qual das modalidades o artigo se refere? Rogério
entende que se trata de suspensão, para não onerar o empregador e, consequentemente,
gerar discriminação da mulher na hora da contratação.

Assim, prevalece na doutrina que o afastamento previsto no art. 9º, § 2º, II é do tipo
suspensão do contrato de trabalho, mantendo-se o vínculo empregatício, porém sem
recebimento de salário do empregador.

Rogério sustenta que deveria ser criado benefício previdenciário específico para essa
hipótese.

Qual juiz garantirá essa medida de assistência empregatícia à mulher? Aparentemente, para
a Lei Maria da Penha, é o Juizado de Violência Doméstica por ela criado (salvo no DF e
Territórios), pertence à Justiça Estadual Comum. No entanto, apesar de essa ter sido a
intenção do legislador, é cada vez mais crescente doutrina lecionando que a competência

380
para a garantia do vínculo empregatício é do Juiz do Trabalho, por se tratar de matéria
trabalhista (art. 114 da CR).

8 – Medidas protetivas

As medidas protetivas pressupõem violência doméstica e familiar contra a mulher e podem


ser concedidas no processo-crime e/ou no processo civil. Segundo a 4ª Turma do STJ
(Infomativo 535, REsp 1.419.421), as medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha
podem ser aplicadas em ação cautelar cível satisfativa, independentemente da existência de
inquérito policial ou processo criminal contra o suposto agressor.

As medidas protetivas estão previstas nos arts. 22 a 24 da Lei Maria da Penha e têm
natureza extrapenal.

Essa constatação é importante, pois o art. 313, III, do CPP, com redação dada pela Lei
12.403/2011, autoriza a decretação de prisão preventiva para garantir as medidas protetivas
de urgência aplicadas pelo juiz. Regra semelhante já constava da redação do art. 313, IV,
outrora dada pela própria Lei Maria da Penha:

Redação antiga Redação atual


Art. 313. Em qualquer das circunstâncias, Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código,
previstas no artigo anterior, será admitida a será admitida a decretação da prisão preventiva:
decretação da prisão preventiva nos crimes (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). (...)
dolosos: (Redação dada pela Lei nº 6.416, de III - se o crime envolver violência doméstica e
24.5.1977) familiar contra a mulher, criança, adolescente,
IV - se o crime envolver violência doméstica e idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para
familiar contra a mulher, nos termos da lei garantir a execução das medidas protetivas de
específica, para garantir a execução das medidas urgência; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de
protetivas de urgência. (Incluído pela Lei nº 2011). (...)
11.340, de 2006)

A nova redação do dispositivo veio a confirmar que o juiz, com base no poder geral de
cautela, poderá aplicar as medidas protetivas da lei a outros personagens vulneráveis, que
não necessariamente mulher.

Pouco importa o crime. Mesmo que se trate do crime de ameaça (que nunca admitiu
preventiva), poderá ser decretada a preventiva para a garantia das medidas protetivas.

Em se tratando de prisão para a garantia de medidas extrapenais, essa “prisão preventiva” é


constitucional?

381
Há doutrina que critica essa modalidade de prisão preventiva, pois, segundo esse
entendimento, tratar-se-ia de prisão civil não prevista na CR. Logo, inconstitucional. Os
defensores dessa corrente dizem que as medidas têm natureza cível, e a prisão preventiva
serve para garanti-las, de modo que o acessório segue o principal (se uma é cível, a outra
também será). Por outro lado, há doutrina admitindo a prisão preventiva quando o agente
viola a medida protetiva com a prática de um crime.

Há, portanto, que serem diferenciadas duas situações: i) o agente viola, por exemplo, o
distanciamento mínimo sem praticar crime (para pedir perdão): nesse caso, não cabe
preventiva; ii) o agente viola o distanciamento mínimo para agredir novamente a vítima:
nessa hipótese, cabe preventiva.

O STJ julgou constitucional o decreto de prisão preventiva, a despeito de o crime ser punido
com detenção e ser de menor potencial ofensivo (HC 132.379/BA).

De qualquer forma, qualquer que seja a corrente adotada, a prisão preventiva depende da
presença de requisitos:

Medida protetiva Prisão preventiva


Requisitos: Requisitos previstos no art. 312 do CPP.
i) fumus boni iuris;
ii) periculum in mora.

Não é possível a concessão da prisão preventiva sem os requisitos do art. 312 do CPP:

Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da

ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação

da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

(Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de

descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas

cautelares (art. 282, § 4º). (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

Segundo decidiu a 6ª Turma do STJ (Informativo 538, REsp 1.374.653), o descumprimento de


medida protetiva de urgência prevista na Lei Maria da Penha não configura crime de
desobediência (art. 330 do CP). Isso porque não há crime de desobediência quando a pessoa
desatende a ordem e existe previsão legal de sanção civil, administrativa ou processual penal
para esse descumprimento, sem ressalvar que poderá haver também a sanção criminal (ex.:
o art. 288 do CTB prevê sanções administrativas sem cumular crime; o art. 219 do CPP prevê

382
sanções processuais penais e cumula a possibilidade de crime; o art. 412 do CPC prevê
sanções cíveis sem a aplicação cumulativa do crime de desobediência).

9 – Regras de organização judiciária

Como visto, a intenção da Lei Maria da Penha é criar o Juizado Especial de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher.

Criado e instalado o JVD, o art. 14 determina que a competência dele será cumulativa, cível
e criminal. Haverá, portanto, o processo cível de divórcio, o processo-crime e a análise das
medidas protetivas:

Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça

Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito

Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das

causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. (...)

Esse juizado ainda é hoje a exceção. A regra é a do art. 33 da lei:

Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a

Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e

julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher,

observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual

pertinente.

Parágrafo único. Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o

processo e o julgamento das causas referidas no caput.

Neste caso, a Justiça Criminal acumula cível e criminal. Esse é o maior erro da lei, na medida
em que ela não tem predicados penais. Prevalece que o acúmulo da competência cível
envolve somente a aplicação das medidas protetivas de urgência, pois na Vara da Família é
que tramitará a ação cível principal (para o divórcio, os alimentos etc.) Assim, a competência
cível do juízo criminal circunscreve-se à aplicação das medidas protetivas de urgência.

Observações importantes:

i) o juiz da família pode alterar ou revogar medida protetiva concedida pelo juiz criminal ou
conceder medida que o juiz criminal indeferiu. Isso significa que o juiz da família não está
atrelado ao quanto decidido pelo juiz criminal;

ii) a Câmara competente para o julgamento de eventual recurso contra decisão proferida
pelo JVD é a de direito privado ou criminal? Prevalece que os recursos no âmbito do Juizado

383
Especial da violência doméstica e familiar contra a mulher devem ser processados na
Câmara Cível. Isso, entretanto, não é pacífico;

iii) indeferida a medida protetiva pleiteada ou deferida medida contra o agressor com a qual
ele não concorde, qual o recurso cabível? Prevalece que o recurso cabível contra a
concessão ou não das medidas protetivas é o agravo de instrumento;

iv) como é sabido, o rito do Júri é bifásico, composto de um juízo de viabilidade da acusação,
que vai até a pronúncia, e da fase de delibação (ou juízo da causa) em que é realizada a
análise do mérito. Pergunta-se: alguma dessas fases pode se processar no JVD? O STJ, no HC
73.161/SC, decidiu que, até a fase da pronúncia, o homicídio contra a mulher no ambiente
doméstico e familiar deve ser processado no Juizado Especial. Entretanto, o mesmo Tribunal,
no HC 121.214/DF decidiu que o homicídio, nessas condições, deve tramitar no juízo
criminal, e não no Juizado Especial, obedecendo ao estabelecido na Lei de Organização
Judiciária. Assim, a questão ainda não está amadurecida.

10 – Art. 41 da Lei Maria da Penha


Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher,

independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de

1995.

A Lei 9.099/1995 prevê, em suma:

i) criação de Juizado Especial Criminal para processo e julgamento das infrações de menor
potencial ofensivo;

ii) a lavratura de um termo circunstanciado, ao invés do inquérito policial;

iii) a existência de uma fase de conciliação preliminar (medida despenalizadora);

iv) a possibilidade de transação penal (medida despenalizadora);

v) o benefício da suspensão condicional do processo (não exclusivo das infrações de menor


potencial ofensivo);

vi) na lesão corporal dolosa de natureza leve, que a ação penal passe a ser pública
condicionada à representação.

Quando o art. 41 da Lei Maria da Penha vedou a aplicação da Lei 9.099/1995, ele não quis o
JECRIM, mas a Justiça Comum; quis de volta o inquérito policial, com flagrante, inclusive;
quis denúncia, e não medidas despenalizadoras; não quis a suspensão condicional do

384
processo, mas a sentença; não quis representação no caso de lesão dolosa leve, tornando o
crime de ação penal pública incondicionada 26.

Assim, é importante observar o seguinte:

i) contravenção penal também pode ser forma de violência doméstica, como visto. Em se
tratando de contravenção, a Lei 9.099/1995 pode ser aplicada?

Referindo-se o art. 41 a “crimes”, é aplicável a Lei 9.099/1995 aos fatos típicos rotulados
como contravenção penal, ainda que no ambiente doméstico e familiar contra a mulher.
Entretanto, o STJ, no CC 102.571/MG, decidiu que a expressão “crimes” deve ser
interpretada de forma a abranger as contravenções. Rogério considera esse entendimento
um absurdo, por se tratar de analogia in mallan partem.

ii) havia jurisprudência (inclusive do STJ) admitindo suspensão condicional do processo,


mesmo nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, pois o benefício não se
restringe às infrações da Lei 9.099/1995 (infrações de menor potencial ofensivo), como o
furto e o estelionato. A mais recente decisão do STF, entretanto, determinou a não aplicação
da suspensão condicional do processo aos casos da Lei Maria da Penha;

iii) ação penal relativa à lesão dolosa leve no ambiente doméstico e familiar contra a mulher:

1ª corrente: o art. 41 da Lei Maria da Penha afasta a aplicação da Lei 9.099/1995.


Logo, a ação penal passa a ser pública incondicionada, importante para se perseguir a
pena em casos como esses, de grave violação a direitos humanos. Alice Bianchini
entende, inclusive, que todas as mulheres são vítimas da violência de gênero, e não só
aquela que sofreu a violência no caso concreto.

2ª corrente: o art. 41 da Lei Maria da Penha afasta a aplicação da Lei 9.099/1995


quando se refere às medidas despenalizadoras exteriores à vontade da mulher vítima
(conciliação, transação penal e suspensão do processo). Não afasta a necessidade de
representação, medida que depende da vontade dela. Essa corrente foi acolhida pelo
STJ, pela Seção (REsp 1.097.042/DF, julgado em 24 de fevereiro de 2010).

Em 9 de fevereiro de 2012, por votação unânime, o Plenário do Supremo Tribunal Federal


declarou a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da Lei Maria da Penha. Com a decisão,
a Suprema Corte declarou procedente a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 19,

26
Observação: a Lei Maria da Penha não mudou a lesão corporal culposa, pois não se trata de infração
de gênero. Somente as infrações dolosas são de gênero.

385
ajuizada pela Presidência da República com objetivo de propiciar uma interpretação judicial
uniforme dos dispositivos contidos nesta lei. A celeuma agora está finalizada.

Na mesma data, por maioria de votos, vencido o presidente, Ministro Cezar Peluso, o
Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou procedente, a Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI 4424) ajuizada pela Procuradoria-Geral da República quanto aos
artigos 12, inciso I, 16 e 41 da Lei Maria da Penha.

A corrente majoritária da Corte acompanhou o voto do relator, ministro Marco Aurélio, no


sentido da possibilidade de o Ministério Público dar início a ação penal sem necessidade de
representação da vítima. Para a maioria dos ministros do STF, a possibilidade de
representação, no caso da lesão corporal leve, acabava por esvaziar a proteção
constitucional assegurada às mulheres. Também foi esclarecido que não compete aos
Juizados Especiais julgar os crimes cometidos no âmbito da Lei Maria da Penha.

Antes do julgamento, muitos já diziam que a persecução penal não poderia depender da
representação da mulher, pois ela pode ser coagida a se retratar. Agora, o STF adotou
definitivamente a 1ª corrente.

Essa posição foi reafirmada pelo STJ, que entendeu não se aplicar a Lei 9.099 nunca e para
nada que se refira à Lei Maria da Penha, inclusive em se tratando de contravenção penal
(Informativo 539, HC 280.788). Trata-se de interpretação do art. 41 da Lei Maria da Penha
que atende aos fins sociais a que a lei se destina.

11 – “Renúncia” à representação

O art. 16 da Lei Maria da Penha prevê uma solenidade especial para a homologação da
retratação da representação da vítima. Veja que a lei erra ao falar em “renúncia”, pois se
trata de retratação, já que não é possível renunciar a algo que já foi exercido:

Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que

trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência

especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido

o Ministério Público.

Como visto, por decisão do STF, não se aplica a Lei 9.099/1995 aos crimes praticados com
violência doméstica e familiar contra a mulher, por força do art. 41 da Lei Maria da Penha,
de modo que o crime de lesão dolosa leve praticado nessas circunstâncias é de ação penal
pública incondicionada, não estando sujeito a representação ou retratação.

386
No CPP, a retratação da representação está prevista no art. 25:

Art. 25. A representação será irretratável, depois de oferecida a denúncia.

No CPP, o oferecimento da denúncia é o marco divisório entre a retratabilidade e a


irretratabilidade da representação. Ao falar no recebimento da denúncia, o art. 16 da Lei
Maria da Penha posterga o tempo admissível para a retratação.

Se a vítima não comparecer injustificadamente à audiência especialmente designada com a


finalidade de ouvi-la quanto à retratação, há julgados decidindo que se trata de caso de
retratação tácita.

387
LEI DE DROGAS (LEI 11.343/2006)

1 – Introdução histórica

A primeira lei especial a tratar da prevenção e da repressão às drogas foi a Lei 6.368/1976.
Ela previa crimes e um procedimento especial para apuração deles.

A Lei 10.409/2002 foi a segunda lei, que também previa um capítulo de crimes e um de
procedimento especial. Fernando Henrique Cardoso vetou o capítulo de crimes, tendo
surgido a dúvida acerca da aplicabilidade do procedimento. O STF decidiu que aquele
procedimento novo seria aplicável. Trabalhava-se com duas leis: o direito material com uma
e o processual com outra.

Por fim, veio a Lei 11.343/2006 e resolveu definitivamente o assunto, trazendo um capítulo
de crimes e outro prevendo um procedimento especial, revogando ambas as leis anteriores.

Mas cuidado, pois alguns dispositivos da Lei 6.368/1976 podem continuar ultrativos.

2 – Características principais da Lei 11.343/2006

2.1 – Terminologia

A Lei 6.368/1976 falava em “substâncias entorpecentes”. A nova lei, quase sempre, fala em
“drogas”.

2.2 – Norma penal em branco em sentido estrito

A Lei 6.368/1976 era complementada por uma portaria. Era uma norma penal em branco.
Nessa portaria, constava a definição de substâncias entorpecentes. A Lei 11.343/2006
manteve essa característica (trata-se de norma penal em branco heterogênea). A Portaria
que a define é a nº 344/1998 da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde.

2.3 – Proporcionalidade das penas e novas figuras

A Lei 6.368/1976 reunia comportamentos distintos no mesmo tipo e com a mesma sanção
penal, o que era objeto de críticas. Ex.: punia de 3 a 15 anos quem traficava drogas e quem
induzia alguém a usar drogas.

A lei nova criou figuras próprias para comportamentos distintos, com penas proporcionais.
Ex.: aquele que comercializa drogas tem pena de 5 a 15 anos (art. 33, caput); aquele que

388
induz ao uso, responde por pena de 1 a 3 anos (art. 33, § 2º). Ela respeita o princípio
constitucional da proporcionalidade.

2.4 – Utilização de exceções pluralistas à teoria monista

O artifício usado pela lei para alcançar essa proporcionalidade, dando ao mesmo
comportamento consequências jurídicas distintas, é a utilização frequente das exceções
pluralistas à teoria monista do art. 29 do CP:

Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este

cominadas, na medida de sua culpabilidade. (...)

3 – Dos crimes em espécie

3.1 – Uso de drogas (art. 28)

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para

consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou

regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. (...)

3.1.1 – bem jurídico tutelado

O bem jurídico tutelado no art. 28 é a saúde pública colocada em risco pelo comportamento
do usuário. Não há proteção à saúde individual do agente, no porte de droga para uso
próprio, pois o direito não pune a autolesão.

3.1.2 – sujeitos

O crime o art. 28 é comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa. Sujeito passivo é a
coletividade. Está-se diante, portanto, de um crime vago.

3.1.3 – tipo objetivo

Na lei anterior, o dispositivo legal correspondente (art. 16) tinha três núcleos: “adquirir”,
“guardar” e “trazer consigo”:

Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente

ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com

determinação legal ou regulamentar:

389
Pena - Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a 50

(cinquenta) dias-multa.

Na Lei 11.343/2006, há a previsão de cinco núcleos: “adquirir”, “guardar”, “ter em


depósito”, “transportar” e “trazer consigo”.

Surge a dúvida: pune-se o agente usando drogas? Não se pune o agente se ele for
surpreendido usando drogas, sem possibilidade de se encontrar a substância em seu poder
(ex.: caso do usuário de maconha que engole o cigarro), pois não será comprovada a
materialidade delitiva.

3.1.4 – elemento normativo indicativo da ilicitude do comportamento

No art. 28 há um elemento normativo que deve ser colocado necessariamente na denúncia,


sob pena de inépcia: “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar”.

3.1.5 – tipo subjetivo

Tipo subjetivo do art. 28 é o dolo, acrescido de uma finalidade especial (um elemento
subjetivo do tipo): “para consumo pessoal”.

3.1.6 – consumação e tentativa

O crime do art. 28 se consuma com a simples prática de qualquer um dos núcleos do tipo.
Em algumas modalidades, como em “guardar”, o crime é permanente, enquanto não cessar
a guarda da substância.

Para a doutrina, admite-se a tentativa, não obstante ela seja de difícil ocorrência na prática.
Ex.: tentar adquirir.

3.1.7 – consequências do uso de drogas

O art. 28 ora chama as consequências de “penas”, ora de “medidas educativas”:

i) advertência;

ii) prestação de serviço à comunidade;

iii) comparecimento a programas.

Na verdade, as consequências configuram penas alternativas à privativa de liberdade (um


caso raro de penas alternativas não substitutivas). São penas principais, previstas no tipo.

390
Nucci rotula o art. 28 como infração de “ínfimo potencial ofensivo”, pois, mesmo sendo
inviável a transação penal (ainda que reincidente o agente), jamais será aplicada pena
privativa de liberdade, mas penas alternativas com medidas assecuratórias.

Num crime comum, a possibilidade de conversão das penas alternativas em prisão


constrange o agente a cumpri-las. No caso do art. 28 da Lei de Drogas, como não é possível a
decretação da prisão, as medidas assecuratórias são outras, previstas no § 6º (admoestação
verbal ou multa diária, com natureza similar à das astreintes no Processo Civil):

Art. 28 (...) § 6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o

caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz

submetê-lo, sucessivamente a:

I - admoestação verbal;

II - multa. (...)

Se o art. 28 não tem previsão de pena privativa de liberdade, como é possível apurar a
prescrição, já que o art. 109 do CP varia o prazo prescricional conforme a pena privativa de
liberdade prevista para o crime? A Lei de Drogas, por essa razão, possui prazo prescricional
autônomo, previsto em seu art. 30:

Art. 30. Prescrevem em 2 (dois) anos a imposição e a execução das penas, observado, no

tocante à interrupção do prazo, o disposto nos arts. 107 e seguintes do Código Penal.

Antes da Lei 12.234/2010 Depois da Lei 12. 234/2010


O prazo prescricional variava de 20 a 2 anos (a Lei Houve aumento de 2 para 3 anos do prazo
de Drogas adotou este prazo mínimo). prescricional mínimo.

O art. 30 da Lei 11.343/2006 (lei especial) prevalece, quando comparado com o art. 109 do
CP, de modo que se mantém a o prazo prescricional de 2 anos para o crime do art. 28.

No art. 28 aplica-se o princípio da insignificância (ex.: pessoa encontrada com pequena


quantidade de drogas)? O STF já admitiu a utilização do princípio da insignificância num caso
em que foram encontrados quatro cigarros de maconha num quartel. Essa decisão do STF foi
tão criticada que o próprio Tribunal já mudou de ideia. As últimas decisões não têm admitido
o princípio da insignificância, em especial em ambientes sob a administração militar.

O STF entendeu que não é possível aplicar nenhuma medida socioeducativa que prive a
liberdade do adolescente (internação ou semiliberdade) caso ele tenha praticado um ato
infracional análogo ao delito do art. 28 da Lei de Drogas. Isso porque o art. 28 da Lei

391
11.343/2006 não prevê a possibilidade de penas privativas de liberdade caso um adulto
cometa esse crime. Ora, se nem mesmo a pessoa maior de idade poderá ser presa por conta
da prática do art. 28 da Lei de Drogas, com maior razão não se pode impor a restrição da
liberdade para o adolescente que incidir nessa conduta (Informativo 742, HC 119.160).

3.1.8 – natureza jurídica do art. 28

Há três correntes acerca da natureza jurídica do art. 28: i) crime; ii) infração penal sui
generis; e iii) fato atípico, merecedor de consequências extrapenais.

3.1.8.1 – crime

Uma primeira corrente entende que o art. 28 prevê um crime, pelas seguintes razões:

i) o dispositivo está inserido no Capítulo III, intitulado “Dos Crimes e das Penas”;

ii) o art. 28, § 4º, fala expressamente em “reincidência”:

Art. 28 (...) § 4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput

deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.

iii) o art. 30 fala em “prescrição”, razão pela qual se está diante de crime:

Art. 30. Prescrevem em 2 (dois) anos a imposição e a execução das penas, observado, no

tocante à interrupção do prazo, o disposto nos arts. 107 e seguintes do Código Penal.

iv) o art. 5º, XLVI, da CR prevê para crimes penas outras que não reclusão e detenção:

Art. 5º (...) XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as

seguintes:

a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alternativa;

e) suspensão ou interdição de direitos;

v) trata-se de crime com medidas assecuratórias.

O STF adotou a primeira corrente.

3.1.8.2 – infração penal sui generis

392
Uma segunda corrente entende que o art. 28 prevê uma infração penal sui generis,
criticando o posicionamento da primeira corrente, pelas seguintes razões:

i) é comum o Capítulo não espelhar o que enuncia. Ex.: o Decreto-Lei 201/1967, em seu art.
4º, chama de crime o que, na verdade, é infração político-administrativa; a Lei 1.079/1950
também chama de crime o que é uma infração político-administrativa;

ii) a expressão “reincidência” foi utilizada no art. 28, § 4º em sentido popular, no sentido de
repetição do fato. Reincidência não é algo exclusivo dos crimes. Contravenções penais e
infrações administrativas também estão sujeitas a reincidência;

iii) a prescrição também existe em outras esferas: medidas socioeducativas, direito civil,
infrações disciplinares etc.;

iv) a Lei de Introdução ao Código Penal fala em “reclusão” e “detenção” para crimes e
“prisão simples” para contravenção penal. Na medida em que não fala em nenhuma dessas
modalidades, o art. 28 não pode ser considerado crime.

v) não se trata de crime, pois o usuário deve ser preferencialmente conduzido ao Juiz. Isso
significa que o usuário não é criminoso. É quase o mesmo tratamento que recebe a criança
ou o adolescente infrator.

3.1.8.3 – fato atípico

Uma terceira corrente entende que o art. 28 traz um fato atípico, merecedor de
consequências extrapenais. Os fundamentos são os seguintes:

i) a lei, ao invés de punir, prefere falar em “medidas educativas”;

ii) o não cumprimento das medidas não gera consequência penal;

iii) princípio da intervenção mínima;

iv) a saúde individual é um bem jurídico disponível.

Para Rogério, o último argumento “pisou na bola”, pois o bem jurídico tutelado é a saúde
coletiva.

3.1.9 – condutas equiparadas do § 1º

O § 1º do art. 28 traz condutas equiparadas, que estarão sujeitas às mesmas medidas do


caput:

393
§ 1o  Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou

colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto

capaz de causar dependência física ou psíquica.

O elemento subjetivo do tipo é também o dolo, acrescido da finalidade especial “para seu
consumo pessoal”. Essa é a conduta, por exemplo, da senhora de idade que semeia e colhe
pequena quantidade de plantas de maconha em seu quintal, para fazer uso da substância.

3.2 – Tráfico de drogas

3.2.1 – art. 33, caput

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à

venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever,

ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem

autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500

(mil e quinhentos) dias-multa. (...)

3.2.1.1 – bem jurídico

No art. 33, caput, há uma tutela imediata, a saúde pública, e uma tutela mediata, a saúde
individual das pessoas que integram a sociedade (pessoas expostas ao vício).

3.2.1.2 – sujeitos

O sujeito ativo do crime de tráfico pode ser qualquer pessoa (crime comum). Todavia, na
modalidade “prescrever”, o crime somente pode ser praticado por médico ou dentista.
Prescrever significa receitar para o homem.

Sujeito passivo é a sociedade, a coletividade (crime vago).

3.2.1.3 – venda de drogas para criança ou adolescente

O agente que vende drogas para as criança ou adolescente comete o crime do art. 243 do
ECA (bem mais brando) ou o do art. 33, caput, da Lei de Drogas?

Art. 243. Vender, fornecer ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer

forma, a criança ou adolescente, sem justa causa, produtos cujos componentes possam

causar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida:

Pena - detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais

grave. (Redação dada pela Lei nº 10.764, de 12.11.2003)

394
Trata-se de um conflito aparente de normas:

Art. 243 do ECA Lei 11.343/2006


Produtos cujos componentes possam causar Produtos cujos componentes possam causar
dependência física ou psíquica. dependência física ou psíquica.
Produtos que estão fora da Portaria. Produtos previstos na Portaria 344/1998 SVS/MS.

Assim, a pessoa que vende cola de sapateiro à criança pratica o crime previsto no ECA, pois a
cola e seus componentes/produtos não estão incluídos na Portaria. Já a pessoa que vende
cigarros de maconha à criança pratica o crime previsto no art. 33, da Lei 11.343/06, pois a
maconha é substância incluída na Portaria.

3.2.1.4 – tipo objetivo

O art. 33, caput, da Lei de Drogas possui 18 núcleos: “importar, exportar, remeter, preparar,
produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar,
trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas”.

Sob a égide da Lei 6.368/1976, havia três correntes a respeito da tipificação da cessão
gratuita para consumo conjunto:

Havia três correntes:

1ª corrente: tratava-se de tráfico, pois a lei era clara ao dizer “fornecer, ainda que
gratuitamente”, não tendo realizado diferenciação acerca do uso comum ou não.

2ª corrente: tratava-se de tráfico, porém não equiparado a hediondo, pois o agente


não visava ao lucro, o que faria desaparecer a hediondez.

3ª corrente: tratava-se de uso de drogas, pois, se o agente fornecia para usar, o


tratamento deveria ser equiparado ao do usuário.

A Lei 11.343/2006 acabou com a discussão. Agora, a cessão gratuita par uso conjunto pode
configurar: i) o crime do art. 33, caput; ou ii) o crime do art. 33, § 3º. A tipificação dependerá
do caso concreto, como será analisado a seguir.

O art. 33, caput, é um dispositivo plurinuclear de ação múltipla (ou de conteúdo variado):
mesmo que o agente pratique, no mesmo contexto fático e sucessivamente, mais de uma
ação típica, por força do princípio da alternatividade, responderá por crime único.

395
Assim, o agente que, por exemplo, importa, mantém em depósito e depois vende a droga
pratica um único crime. Todavia, o juiz considerará a pluralidade de núcleos na fixação da
pena-base.

Faltando proximidade comportamental entre as várias condutas, haverá concurso de crimes


(material ou crime continuado, a depender do caso concreto).

Detalhe: o art. 33, caput, fala em “sem autorização ou em desacordo com determinação
legal ou regulamentar”. Há aqui, como visto, elemento normativo indicativo da ilicitude. Isso
porque há alguns casos em que as condutas previstas no tipo podem ser autorizadas. O art.
2º da Lei de Drogas proíbe as drogas no território nacional, ressalvando “a hipótese de
autorização legal ou regulamentar”:

Art. 2º Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a

cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas

ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem

como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias

Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso.

Parágrafo único. Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais

referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em

local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas

supramencionadas.

Já o art. 31 da Lei de Drogas prevê os casos em que é indispensável a licença:

Art. 31. É indispensável a licença prévia da autoridade competente para produzir, extrair,

fabricar, transformar, preparar, possuir, manter em depósito, importar, exportar,

reexportar, remeter, transportar, expor, oferecer, vender, comprar, trocar, ceder ou

adquirir, para qualquer fim, drogas ou matéria-prima destinada à sua preparação,

observadas as demais exigências legais.

Nos casos em que haja autorização legal ou regulamentar, o fato é atípico.

Se o agente tem autorização e desvia da finalidade da autorização (ex.: o sujeito tem


autorização para plantar, mas, além disso, ele produz e vende), tal desvio equivale à
ausência de autorização, ainda que regularmente concedida.

Se a pessoa começa a comercializar drogas por estar a família em miséria, o sujeito pode
alegar estado de necessidade? Dificuldade de subsistência por meios lícitos decorrente de

396
doença, embora grave, não justifica apelo a recurso ilícito, moralmente reprovável e
socialmente perigoso, de se entregar o agente ao comércio de drogas (jurisprudência).

O art. 52, I, da Lei de Drogas é importante, pois determina que a quantidade da droga, por si
só, não é suficiente para qualificar determinada conduta como tráfico ou uso:

Art. 52. Findos os prazos a que se refere o art. 51 desta Lei, a autoridade de polícia

judiciária, remetendo os autos do inquérito ao juízo:

I - relatará sumariamente as circunstâncias do fato, justificando as razões que a levaram à

classificação do delito, indicando a quantidade e natureza da substância ou do produto

apreendido, o local e as condições em que se desenvolveu a ação criminosa, as

circunstâncias da prisão, a conduta, a qualificação e os antecedentes do agente; ou (...)

A presença de pouca substância pode configurar tráfico; a presença de muita substância


pode configurar uso. Devem ser analisadas: quantidade, natureza da substância ou do
produto etc.

3.2.1.5 – tipo subjetivo

O crime do art. 33, caput, obviamente, é punido a título de dolo. Importante diferenciar que,
aqui, deve haver o dolo e a finalidade de tráfico.

3.2.1.6 – consumação e tentativa

A consumação ocorre com a prática de qualquer dos núcleos trazidos pelo crime.
Determinados núcleos, como visto, configuram crimes permanentes (ex.: guardar, manter
em depósito, trazer consigo, transportar etc.)

Relativamente à tentativa, há duas correntes:

1ª corrente: a multiplicidade de condutas incriminadas (18 núcleos) torna inviável a


tentativa.

2ª corrente: admite-se a tentativa, como no caso da aquisição frustrada (resposta


considerada correta na prova da Polícia Federal).

Para a maioria da doutrina, a Lei de Drogas prevê crimes de perigo abstrato, ou seja, crimes
cujo perigo é presumido por lei. O STF não tem concordado com a existência de crimes dessa
natureza, mas na Lei de Drogas o Tribunal não tem feito essa insurgência, admitindo a
modalidade.

397
Problema: Caio traz drogas consigo e atua junto com Ticio, que vigia para evitar se alguém
atrapalhará o comércio. Antonio e Pedro são investigadores simulando serem usuários e se
dirigem até Caio para comprar a droga (hipótese muito comum). Caio, preso quando
entregava a droga na compra simulada, delata Tício, e ambos são presos.

Na denúncia de Caio e Tício deve constar que eles praticaram o tráfico (art. 33, caput), mas
nunca se deve falar em “venda”, sob pena de denúncia por crime impossível (a venda foi
provocada), o que levaria ao não recebimento por inépcia. O tráfico, aqui foi realizado na
modalidade “trazer consigo” somente por Caio. Desse modo, deve ser elaborada a denúncia
da seguinte forma: “Caio, juntamente com Tício, trazia consigo...” Caio é que somente trazia
consigo. Tício apenas auxiliava.

3.2.1.7 – concurso de crimes entre o tráfico e outros delitos

O concurso de crimes entre o tráfico e outros delitos é possível. Exemplos:

i) tráfico e furto: uma faculdade se dispõe a guardar 300kg de cocaína e alguém subtrai a
droga. Esse sujeito responderá por furto e tráfico de drogas, em concurso;

ii) tráfico e receptação: o agente vende cocaína e recebe, pela venda da droga, um relógio
que sabe ser roubado;

iii) tráfico e sonegação: o princípio de direito tributário do non olet determina que toda a
atividade, lícita ou ilícita, desde que rentável, deve ser tributada. Em virtude dele, é possível
o concurso entre tráfico e sonegação?

O princípio não se aplica no direito penal, pois seria obrigar a pessoa a produzir prova contra
si mesma. O MPF já denunciou Fernandinho Beira-Mar por tráfico e sonegação, mas
prevalece que isso não é possível.

3.2.2 – art. 33, § 1º, I

Art. 33 (...) § 1º Nas mesmas penas incorre quem:

I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece,

fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente,

sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-

prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas; (...)

O art. 33, caput, tem as drogas como objeto material. O art. 33, § 1º, I traz um tráfico
equiparado, pois o objeto material aqui é matéria-prima, insumo e produto químico. A
diferença entre os dispositivos, portanto, é simplesmente o objeto material.

398
Exemplo de aplicação do dispositivo: o sujeito tem em depósito, em sua casa, éter, sulfúrico
e acetona (não caseira).

Os objetos materiais do art. 33, § 1º, I compreendem não só as substâncias destinadas


exclusivamente à preparação de drogas como também as que, eventualmente, se prestem a
essa finalidade.

Aqui também é imprescindível a presença do elemento normativo indicativo da ilicitude.

Esse produto químico/matéria-prima tem de ter necessariamente o efeito farmacológico


(“tem que dar barato”)? Não há necessidade de que as matérias-primas tenham os efeitos
farmacológicos das drogas a serem produzidas. Basta que tenham as condições e qualidades
químicas necessárias para a produção e preparação da droga. Essa é, inclusive, a posição do
STF.

O crime, aqui, é punido a título de dolo. O agente deve ter ciência de que a substância pode
servir à preparação de drogas.

O agente tem de ter a vontade de preparar drogas, ou basta saber que a substância pode
servir à preparação de drogas? O crime dispensa a vontade de querer empregar a matéria-
prima à produção de drogas, bastando o conhecimento de sua capacidade para tanto
(Vicente Greco Filho). A preocupação do legislador é o perigo que ter em casa a substância
traz para a sociedade, em virtude da potencialidade do uso para a produção de drogas.

3.2.3 – art. 33, § 1º, II

Art. 33 (...) § 1º Nas mesmas penas incorre quem: (...)

II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação

legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação

de drogas; (...)

O que diferencia os incisos do § 1º e o caput do art. 33 é o objeto material. O art. 33, caput,
fala em drogas. O inciso I fala de matéria-prima, insumos e produtos químicos. O inciso II fala
de uma matéria prima especial: as plantas para a produção de drogas. Por isso as figuras
estarem em tipos distintos: o objeto material vai mudando.

Aqui, também é imprescindível o elemento normativo indicando a ilicitude do


comportamento: “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar”.

399
A matéria-prima não precisa trazer em si o efeito farmacológico (mesmo raciocínio do inciso
anterior).

Se o agente semeia, cultiva e colhe a planta, produz a droga com a planta e mantém a droga
em depósito, o § 2º resta absorvido pelo caput. Todavia, ainda que as condutas configurem
crime único, o juiz as considerará na fixação da pena base.

O sujeito que planta para uso próprio responde por qual crime?

Sob a égide da Lei 6.368/1976, havia três correntes:

1ª corrente: há crime de tráfico, pois a lei não diferencia se é o plantio destina-se a


uso próprio ou não.

2ª corrente: há crime de uso, pois se o agente plantou para uso próprio, ele deve ser
tratado como usuário. Essa corrente acreditava estar fazendo uma analogia benéfica.

3ª corrente: o fato é atípico. Esta corrente defende que a analogia referida


anteriormente seria maléfica e não benéfica, na medida em que o art. 16 não prevê a
conduta “plantar” (Luiz Flávio Gomes).

Com a Lei 11.343/2006, o plantio para uso próprio pode configurar, dependendo do caso
concreto:

i) o crime do art. 33, § 1º, II;

ii) o crime do art. 28, § 1º, da Lei de Drogas:

Art. 28 (...) § 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal,

semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de

substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

O dispositivo refere-se expressamente a “pequena quantidade”. Desse modo, plantando


para uso próprio em pequena quantidade, trata-se o sujeito como usuário; plantando em
média ou grande quantidade, mesmo que para uso próprio, incidirá a conduta no art. 33, §
1º, II. Assim, a solução dependerá de perícia para a aferição da quantidade.

A propriedade surpreendida plantando plantas psicotrópicas será expropriada (art. 243 da


CR):

Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de

plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao

400
assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos,

sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em

lei. (...)

Lembre que não se trata de desapropriação, mas de expropriação, uma desapropriação-


sanção. O art. 32, § 4º, da Lei de Drogas faz expressa menção ao art. 243 da CR:

Art. 32 (...) § 4º As glebas cultivadas com plantações ilícitas serão expropriadas, conforme

o disposto no art. 243 da Constituição Federal, de acordo com a legislação em vigor.

Em se tratando a propriedade que plantava maconha de bem de família, pode o juiz


determinar a expropriação? Lembre que o bem de família é impenhorável. De acordo com a
maioria (ou seja, o entendimento não é unânime), é legítima a expropriação de bem
considerado de família pertencente ao traficante, compatível com as exceções previstas no
art. 3º da Lei 8.009/1990 (ex.: dívida relacionada ao próprio bem), não ferindo o direito à
moradia.

Além disso, ninguém pode usar garantias constitucionais como manto protetor para a
prática de crime (o sujeito planta maconha à vontade tendo certeza da impossibilidade de
expropriação). Nenhuma garantia constitucional é absoluta. Há aqui uma relativização dos
direitos e garantias fundamentais.

3.2.4 – art. 33, § 1º, III

Art. 33 (...) § 1º Nas mesmas penas incorre quem: (...)

III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse,

administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que

gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou

regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas. (...)

O agente consente que alguém se utilize do imóvel próprio para guardar drogas em grande
quantidade, ainda que gratuitamente, responderá pelo crime previsto neste dispositivo, que
é uma exceção pluralista à teoria monista.

Mais uma vez, deve estar presente o elemento normativo indicando a ilicitude: “sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. Esse elemento,
importante ressaltar, está expresso em todos os tipos penais. Na lei anterior ele não estava
previsto em todos. Era implícito.

Para que o agente responda pelo crime, é necessária a posse legítima ou basta a ilegítima
(ex.: invasor da propriedade usa o imóvel para guardar droga)? É irrelevante a natureza da

401
posse do imóvel, legítima ou ilegítima. Basta que a conduta do agente seja causal em relação
ao tráfico de drogas no local. O crime é punido a título de dolo, dispensando finalidade de
lucro. Basta consentir, sabendo que lá se realizará o tráfico de drogas.

Relativamente à consumação, deve-se dividir o inciso em duas partes (há momentos


consumativos distintos): na primeira modalidade, o crime se consuma com efetivo proveito
do local; na segunda, basta a mera permissão.

Ambas as modalidades admitem tentativa, mesmo a mera permissão (ex.: caso da permissão
feita através de carta, que acaba sendo interceptada).

3.2.5 – art. 33, § 2º

Art. 33 (...) § 2º Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga: (Vide ADI

4274)

Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-

multa. (...)

O sujeito ativo do crime do art. 33, § 2º, pode ser qualquer pessoa. Trata-se de um crime
comum, que pode ser praticado por qualquer pessoa. Sujeitos passivos são dois: a
coletividade e o induzido, instigado ou auxiliado.

O tipo objetivo é composto por induzimento, instigação ou auxílio. “Induzir” é fazer nascer a
ideia. “Instigar” é reforçar a ideia existente. “Auxiliar” é dar assistência material (não no
sentido de entregar a droga, caso em que o agente seria traficante típico). Exemplos desta
conduta: dar dinheiro para comprar droga, apresentar ao traficante, levar a pessoa ao morro
para adquirir a substância etc.

O crime do art. 33, § 2º da Lei de Drogas não se confunde com o do art. 287 do CP (apologia
ao crime ou criminoso):

Art. 287 - Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: Pena -

detenção, de três a seis meses, ou multa.

Art. 33, § 2º, da Lei 11.343/2006 Art. 287 do CP


Há um incentivo específico, isto é, com Há um incentivo genérico, isto é, sem
destinatário certo. destinatário certo (dirigido a pessoas incertas e
indeterminadas).

O MP, normalmente, ajuíza Ação Civil Pública para proibir a “marcha para a
descriminalização da maconha” e alerta que todos os integrante seriam presos, por apologia

402
ao crime. Essa conduta jamais configuraria o crime do art. 33, § 2º, pois a marcha não tem
destinatário certo. Também não configura o crime do art. 287, pois não se trata do dolo
caracterizador do delito. Os sujeitos não estão fazendo apologia ao consumo da maconha ou
ao autor desse crime, mas tentando sensibilizar a população de que o fato deve ser
descriminalizado. Diferente é a situação do Planet Hemp, em que era feita apologia ao uso
da droga, além da necessidade de descriminalização.

Em decisão unânime (8 votos), o STF liberou a realização dos eventos chamados “marcha da
maconha”, que reúnem manifestantes favoráveis à descriminalização da droga. Para os
ministros, os direitos constitucionais de reunião e de livre expressão do pensamento
garantem a realização dessas marchas. Muitos ressaltaram que a liberdade de expressão e
de manifestação somente pode ser proibida quando for dirigida a incitar ou provocar ações
ilegais e iminentes.

Pela decisão, tomada no julgamento da ADPF 187, ajuizada pela Procuradoria-Geral da


República, o artigo 287 do Código Penal deve ser interpretado conforme a Constituição, de
forma a não impedir manifestações públicas em defesa da legalização de drogas. O
dispositivo tipifica como crime fazer apologia de "fato criminoso" ou de "autor do crime".

O voto do decano da Corte, ministro Celso de Mello, foi seguido integralmente pelos
colegas. Segundo ele, a “marcha da maconha” é um movimento social espontâneo que
reivindica, por meio da livre manifestação do pensamento, “a possibilidade da discussão
democrática do modelo proibicionista (do consumo de drogas) e dos efeitos que (esse
modelo) produziu em termos de incremento da violência”.

Além disso, o ministro considerou que o evento possui caráter nitidamente cultural, já que
nele são realizadas atividades musicais, teatrais e performáticas, e cria espaço para o debate
do tema por meio de palestras, seminários e exibições de documentários relacionados às
políticas públicas ligadas às drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas.

Celso de Mello explicou que a mera proposta de descriminalização de determinado ilícito


penal não se confunde com o ato de incitação à prática do delito nem com o de apologia de
fato criminoso: “O debate sobre abolição penal de determinadas condutas puníveis pode ser
realizado de forma racional, com respeito entre interlocutores, ainda que a ideia, para a
maioria, possa ser eventualmente considerada estranha, extravagante, inaceitável ou
perigosa”.

Acerca da consumação do crime do art. 33, § 2º, há duas correntes:

403
1ª corrente: trata-se de delito material, que se consuma com o efetivo uso da droga
(Vicente Greco Filho).

2ª corrente: trata-se de delito formal, que se consuma com o mero incentivo,


dispensando o efetivo uso (Rogério Sanches).

Rogério entende que a segunda corrente (delito formal) é a melhor, pois a lei fala em
induzir, instigar ou auxiliar alguém “ao uso”. A lei anterior falava em induzir, instigar ou
auxiliar alguém “a usar”, o que poderia fazer pressupor o efetivo uso. No caso da nova lei, o
sujeito usar (ou não) não interferirá no crime, podendo interferir na pena.

3.2.6 – art. 33, § 3º

Art. 33 (...) § 3º Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu

relacionamento, para juntos a consumirem:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.500

(mil e quinhentos) dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28.

Conforme visto anteriormente, sob a égide da Lei 6.368/1976, havia três correntes a
respeito da tipificação da cessão gratuita para consumo conjunto:

1ª corrente: tratava-se de tráfico, pois a lei era clara ao dizer “fornecer, ainda que
gratuitamente”, não tendo realizado diferenciação acerca do uso comum ou não.

2ª corrente: tratava-se de tráfico, porém não equiparado a hediondo, pois o agente


não visava ao lucro, o que faria desaparecer a hediondez.

3ª corrente: tratava-se de uso de drogas, pois, se o agente fornecia para usar, o


tratamento deveria ser equiparado ao do usuário.

A Lei 11.343/2006 acabou com a discussão. Agora, a cessão gratuita par uso conjunto pode
configurar: i) o crime do art. 33, caput; ou ii) o crime do art. 33, § 3º. A tipificação dependerá
das circunstâncias do caso concreto.

São elementares imprescindíveis para a configuração do delito:

i) oferecer droga eventualmente:

Deixa de configurar o crime do art. 33, § 3º (tráfico de menor potencial ofensivo) e passa a
configurar o crime do caput (tráfico equiparado ao hediondo) se houver reiteração,
costume, habitualidade no fornecimento de drogas.

ii) sem objetivo de lucro:

404
Mais uma vez, oferecida droga com objetivo de lucro, o traficante responde pela modalidade
equiparada a hediondo.

Esse lucro pode ser direto ou indireto, não importa. Exemplo de lucro indireto: o sujeito
oferece droga gratuitamente para o sujeito experimentar e, se o usuário gostar, ele volta
para adquiri-la.

A expressão “sem objetivo de lucro” traz uma finalidade especial que não pode estar
presente. Configura, portanto, um “elemento subjetivo negativo do tipo”, isto é, uma
finalidade que não pode animar o agente, sob pena de incidir a conduta no crime do caput.

iii) a pessoa de seu relacionamento:

Não adianta que o oferecimento da droga seja eventual e sem o objetivo de lucro. Para
incidir no § 3º, a pessoa a quem é oferecida a droga tem de ser do relacionamento familiar,
social ou profissional do traficante (familiar, amigo, namorada, colega de trabalho etc.)
Rogério, por essa razão, sustenta que este não é um crime comum, mas exige uma relação
jurídica ou de fato entre os sujeitos.

iv) para juntos a consumirem:

Se a droga é oferecida somente para o consumidor usá-la, incide o tráfico do art. 33, caput.
Esta elementar é elemento subjetivo positivo do tipo: uma finalidade especial que tem de
estar presente.

O crime é de menor potencial ofensivo (pena de 6 meses a 1 ano).

3.2.7 – art. 33, § 4º

Art. 33 (...) § 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão

ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de

direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às

atividades criminosas nem integre organização criminosa. (Vide Resolução nº 5, de 2012)

Trata-se do dispositivo mais controvertido da lei. Traz uma causa de diminuição de pena.
Alguns doutrinadores chegam a chamá-lo de “tráfico privilegiado”.

No REsp 1.329.088-RS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 13/3/2013 (Informativo
519), a Terceira Seção do STJ definiu que mesmo o tráfico privilegiado é equiparado a crime
hediondo: “a partir da vigência da Lei 11.464/2007, que modificou o art. 2º, § 2º, da Lei
8.072/1990, exige-se o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for
primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente, para a progressão de regime no caso de

405
condenação por tráfico de drogas, ainda que aplicada a causa de diminuição prevista no art.
33, § 4º, da Lei 11.343/2006”.

No HC 118.213, julgado em 6 de maio de 2014 (Informativo 745), a 2ª Turma do STF decidiu


que não cabe indulto ao réu condenado por tráfico de drogas, ainda que tenha sido aplicada
a causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei de Drogas. Isso porque os condenados
por crimes hediondos e equiparados não podem ser contemplados com o indulto, mesmo o
chamado “indulto humanitário”.

3.2.7.1 – requisitos

Para a aplicação do art. 33, § 4º, o agente: i) deve ser primário; ii) de bons antecedentes; iii)
não deve se dedicar às atividades criminosas; e iv) não deve integrar organização criminosa.
Repare que são requisitos cumulativos. Faltando um deles, não há a diminuição de pena.

De acordo com a Quinta Turma do STJ (Informativo 514), o magistrado não pode deixar de
aplicar a minorante se utilizando exclusivamente dos elementos descritos no núcleo do
referido tipo penal para concluir que o réu se dedicava à atividade criminosa. Segundo
afirmado, para que se negue a aplicação da referida minorante em razão do exercício do
tráfico como atividade criminosa, deve o juiz basear-se em dados concretos que indiquem
tal situação, sob pena de toda e qualquer ação descrita no núcleo do tipo ser considerada
incompatível com a aplicação da causa especial de diminuição de pena. HC 253.732-RJ, Rel.
Min. Jorge Mussi, julgado em 6/12/2012.

3.2.7.2 – crimes passíveis de redução de pena

São crimes passíveis e redução de pena:

i) art. 33, caput;

ii) art. 33, § 1º.

A lei determina que somente esses dois crimes são passíveis de redução. Ou seja, o privilégio
não atinge os crimes dos §§ 2º e 3º.

3.2.7.3 – patamar/valor/quantum da diminuição

Segundo a norma, a redução da pena varia de 1/6 a 2/3. Para variar a diminuição, o juiz não
deve considerar os antecedentes do agente, na medida em que eles são requisitos para a
incidência do privilégio. Rogério sugere como critérios a serem considerados pelo juiz o tipo
e a quantidade da droga.

406
No que concerne à quantidade da droga, cumpre realizar uma observação: a Segunda Turma
do STF, no julgamento do HC 106.135 (recente), decidiu que a variação da redução de pena
prevista no § 4º não deve considerar a quantidade da droga, circunstância já analisada na
fixação da pena base, sob pena de incorrer em bis in idem. Ainda que não represente a
decisão do Pleno, trata-se de decisão importante, que pode vir a ser exigida em prova.

3.2.7.4 – natureza jurídica

De acordo com a maioria, a redução de pena prevista no art. 33, § 4º é um direito subjetivo
do réu. Isto é, preenchidos os requisitos, o juiz deve (e não “pode”) reduzir a pena.

3.2.7.5 – inconstitucionalidade da restrição à conversão da pena em restritiva de direitos

O art. 33, § 4º, da Lei de Drogas trazia a seguinte expressão: “vedada a conversão em penas
restritivas de direitos”. O STF, no HC 97.256, julgou esta restrição inconstitucional (Pleno).
Entendeu o Supremo que quem deve aferir o cabimento ou não do benefício é o juiz, na
análise do caso concreto, e não o legislador.

Em razão disso, o Senado Federal editou a Resolução nº 5/2012, suspendendo a eficácia do


dispositivo:

Art. 1º É suspensa a execução da expressão "vedada a conversão em penas restritivas de

direitos" do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, declarada

inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal nos autos do Habeas

Corpus nº 97.256/RS.

3.2.7.6 – retroatividade do art. 33, § 4º

A anterior Lei de Drogas não previa causa de diminuição sequer parecida. Em se tratando de
novidade legal em favor do réu, o art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006 pode retroagir de forma
benéfica, para alcançar fatos praticados antes da sua vigência?

Lei 6.368/1976 Lei 11.343/2006


Art. 12: pena de 3 a 15 anos. Art. 33: pena de 5 a 15 anos.
Primariedade e bons antecedentes eram Primariedade e bons antecedente garantem, nos
considerados circunstâncias judiciais favoráveis. termos do art. 33, § 4º, redução de 1/6 a 2/3.

Acerca desse tema, percebe-se hoje uma nítida diferença de posição no STJ e no STF. Não há
pacificidade:

i) Superior Tribunal de Justiça:

407
No STJ havia duas correntes. Uma primeira entendia que o benefício não poderia ser
aplicado retroativamente, pois isso seria combinação de leis, transformando o juiz em
legislador. Uma segunda corrente defendia que o benefício seria retroativo, admitindo-se a
combinação de leis. Nesta segunda corrente, havia uma divergência: alguns admitiam
retroatividade sem limites. Outros admitiam retroatividade limitada a uma pena mínima de
1 ano e 8 meses. O motivo era o seguinte: na vigência da Lei 6.368/1976, a pena mínima era
de 3 anos, que, reduzida de 2/3, chegaria a 1 ano. Na lei nova, a pena é de 5 anos, que,
reduzida de 2/3, chegaria a 1 ano e 8 meses. Ou seja, esse mínimo de 1 ano e 8 meses seria a
pena mínima alcançada com a redução sobre os 5 anos.

Recentemente, o STJ editou a Súmula 501, encerrando a celeuma:

Súmula 501 – É cabível a aplicação retroativa da Lei n. 11.343/2006, desde que o

resultado da incidência das suas disposições, na íntegra, seja mais favorável ao réu do que

o advindo da aplicação da Lei n. 6.368/1976, sendo vedada a combinação de leis.

Veja que a Súmula descreve uma terceira postura do Tribunal, admitindo a retroatividade da
Lei 11.343/2006, mas desde a sua aplicação seja mais favorável (diminuição sobre a pena de
5 anos), não se admitindo a combinação (diminuição incidindo sobre a pena de 3 anos).

ii) Supremo Tribunal Federal:

1ª corrente: o benefício não pode ser aplicado retroativamente, pois isso seria
combinação de leis, transformando o juiz em legislador.

2ª corrente: o benefício pode ser aplicado retroativamente, sendo admissível a


combinação de leis.

Hoje, prevalece no STF a primeira corrente.

Em 2014, foi editada a Súmula 512 do STJ que assim dispõe:

A aplicação da causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei n.

11.343/2006 não afasta a hediondez do crime de tráfico de drogas.

De acordo com o STJ, mesmo com os benefícios (redução de pena e substituição por
restritiva de direitos), o crime permanece equiparado a hediondo, sofrendo os consectários
da Lei 8.072/90. Portanto, não é possível a concessão de indulto, conforme art. 5º, XLIII, da
CR (STJ HC 167.825/MS).

408
Apesar de muitos fazerem referência a este dispositivo como “tráfico privilegiado”, não se
trata de privilégio, pois o legislador não inseriu um novo mínimo e um novo máximo da
pena. Trata-se, na realidade, de uma causa de diminuição de pena, que varia de 1/6 a 2/3. É
uma causa de diminuição importante, pois caso aplicada em seu patamar máximo, o
condenado terá sua pena diminuída de 5 anos para 1 ano e 8 meses.

Pressupostos para a incidência da minorante:

i) aplicável apenas aos crimes do art. 33, caput, e §1º, da Lei 11.343/06;

ii) é necessário o preenchimento de 4 requisitos cumulativos (e não alternativos): acusado


primário, bons antecedentes, não dedicação a atividades criminosas, não integração de
organização criminosa. Nesse sentido: STF, RHC 110.084.

Acusado primário é o não reincidente. Reincidente é aquele que pratica novo crime já tendo
contra si condenação transitada em julgado referente à prática de outro crime
(interpretação a contrario sensu dos arts. 63 e 64 do CP).

No julgamento do E 453.000, o Plenário do STF concluiu ser constitucional a aplicação da


reincidência não só como agravante da pena em processos criminais (art. 61, I, do CP), mas
também como fator impeditivo para a concessão de diversos benefícios, sem que se possa
objetar a configuração de bis in idem.

Inquéritos policiais, processos criminais em andamento, bem como absolvições por


insuficiência de provas, reconhecimento de prescrições abstratas, retroativas ou
intercorrentes não podem ser considerados como maus antecedentes, sob pena de violação
ao princípio da presunção de inocência. De acordo com a Súmula 444 do STJ, “é vedada a
utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”.

Maus antecedentes são condenações transitadas em julgado que não caracterizem a


reincidência. Ultrapassado o lapso temporal de 5 anos (considerado reincidência), as
condenações poderão ser consideradas maus antecedentes. Maus antecedentes, portanto,
são as condenações pretéritas não abrangidas pela reincidência, isto é, que tenham
transitado em julgado há mais de 5 anos. Nesse sentido: STJ, 5ª Turma, HC 198.557/MG.

Em relação à não dedicação a atividades criminosas, é necessário que o acusado tenha


atividade laborativa lícita e habitual, evidenciando que o crime foi evento isolado em sua
vida.

409
Se restar evidenciado que o acusado faz parte de associação voltada para o tráfico (art. 35,
Lei 11343/06), ou é um dos integrantes de associação criminosa (art. 288 do CP, com
redação dada pela Lei 12.850/13), não será possível a incidência da minorante. Nesse
sentido: STJ, 5ª Turma, REsp 1.178.001/DF.

A apreensão de grande quantidade e variedade de droga torna inadmissível a aplicação da


minorante, pois revela forte indício de participação em estrutura voltada ao tráfico. Nesse
sentido: STJ, 6ª Turma, HC 194.594/SP.

Não há bis in idem pelo fato de uma mesma circunstância ser levada em consideração duas
vezes, ora na primeira fase de individualização da pena, ora para fixar o quantum de
diminuição da pena-base. Na verdade, trata-se da utilização do mesmo referencial a ser
sopesado em momentos distintos quando da dosimetria da pena, objetivando uma
reprimenda proporcional e que atenda às finalidades da sanção penal. Nesse sentido: STJ, 5ª
Turma, HC 199.416.

O quarto critério a ser atendido é não ser o acusado integrante de organização criminosa. O
conceito de organização criminosa deve ser extraído do art. 1º, §1º, da Lei 12.850/13
(associação de quatro ou mais pessoas; estrutura ordenada e caracterizada pela divisão de
tarefas; objetivo de obter vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações
penais com máximas superiores a 4 anos, ou de caráter transnacional).

Apesar de controverso, prevalece o entendimento de que as denominadas “mulas do


tráfico” não fazem jus à minorante, pois, pelo menos em regra, trata-se de pessoa dedicada
à atividade criminosa e integrante de organização criminosa (STF, 2ª Turma, HC 101.265).

No caso concreto, é possível que a defesa consiga fazer prova de que é a primeira vez que a
pessoa se dedica à atividade criminosa, contudo, essa prova é deveras difícil de ser
produzida.

No que tange ao ônus da prova, incumbe ao MP comprovar a impossibilidade de aplicação


da minorante, demonstrando a ausência de pelo menos um dos pressupostos necessários
para a aplicação do art. 33, §4º, sob pena de violação à regra provatória que deriva do
princípio da presunção de inocência. Nesse sentido: STF, 2ª Turma, HC 103.225/RN. Isso é
bastante importante para as provas de Defensoria.

Um dos desdobramentos do princípio da presunção de inocência é fazer recair sobre o MP o


ônus da prova. Se o MP imputa a prática do crime previsto no art. 33, o ônus da prova é da
acusação. Da mesma forma, se o MP pretende que não seja aplicada a minorante, é ele que

410
deve provar que não estão presentes os requisitos. Não se trata de prova diabólica, pois
pode ser perfeitamente produzida pelo MP.

Presentes os requisitos, deve ser aplicada a minorante. Trata-se, pois, de verdadeiro direito
subjetivo do acusado. Para o cálculo da diminuição, não pode o juiz se valer dos mesmos
critérios utilizados para concessão da minorante. Se assim o fizesse, todo acusado que
preenchesse os requisitos que autorizam o benefício receberia a diminuição máxima,
tornando inócua a previsão de um mínimo (1/6) e um máximo (2/3). Nesse contexto: STF, 1ª
Turma, HC 103.430/MG. O juiz deve se valer dos mesmos critérios constantes do art. 42 da
Lei de Drogas (natureza e quantidade da droga, personalidade e conduta social do agente).

Prevalece o entendimento de que o fato de uma mesma circunstância ser levada em


consideração para fins de individualização da pena e para fixar o quantum de diminuição de
pena do §4º do art. 33 da Lei de Drogas não caracteriza bis in idem. Nesse sentido: STJ, AgRg
no AREsp 74.617/MG, STF HC 104.195/MS, STF HC 100.800/RJ. Em sentido contrário, há
precedentes da 2ª Turma do STF: STF, HC 97.256/RS, HC 108.513/RS e HC 108.523/MS.

Causa de diminuição e direito intertemporal:

À época da revogada Lei 6.368/76, o tráfico era púnico com pena de reclusão, de 3 a 15
anos. A Lei 11.343/06 fixou a pena do tráfico de drogas em 5 a 15 anos de reclusão, ou seja,
aumentou a pena-base. Contudo, previu causa de diminuição no art. 33, §4º, que não era
prevista na lei anterior.

Pergunta-se: é possível a combinação de leis penais favoráveis ao réu, isto é, seria possível
aplicar aos crimes praticados antes da Lei 11.343/06 a pena-base de 3 anos e também fazer
incidir a minorante do art. 33, §4º? Sobre o assunto, veja-se o teor da Súmula 501 do STJ: “É
cabível a aplicação retroativa da Lei 11.343/06, desde que o resultado da incidência das suas
disposições, na íntegra, seja mais favorável ao réu do que o advindo da aplicação da Lei
6.368/76, sendo vedada a combinação de leis”.

Para o STF (RE 600.817), não é possível a aplicação da causa de diminuição do art. 33, §4º da
nova Lei de Drogas, combinada com penas previstas na Lei 6.368/76, para crimes cometidos
durante sua vigência.

3.3 – Tráfico de maquinários (art. 34)

Art. 34. Fabricar, adquirir, utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar a

qualquer título, possuir, guardar ou fornecer, ainda que gratuitamente, maquinário,

aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação, preparação, produção

411
ou transformação de drogas, sem autorização ou em desacordo com determinação legal

ou regulamentar:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 1.200 (mil e duzentos) a

2.000 (dois mil) dias-multa.

3.3.1 – sujeitos

O sujeito ativo do crime do art. 34 pode ser qualquer pessoa (crime comum). Sujeito passivo
é a sociedade (a coletividade figura como vítima).

3.3.2 – tipo objetivo

O art. 33, caput, punia o tráfico de drogas, ou seja, as drogas eram o objeto material do
delito. O art. 34 pune o tráfico de maquinários, objetos destinados à produção da droga etc.
Então, entre os arts. 33 e 34 foi alterado o objeto material.

Não existem aparelhos exclusivamente destinados à finalidade de produção da droga.


Qualquer instrumento ordinariamente utilizado em laboratório químico pode vir a ser
utilizado na produção, preparação ou transformação da droga. Vale observar que a lâmina
de barbear não caracteriza objeto material do art. 34, pois não se destina a tais finalidades,
mas à separação da droga pronta para o uso.

O fato de o agente agir sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou


regulamentar deve obrigatoriamente constar da denúncia, sob pena de inépcia. Trata-se do
elemento indicativo da ilicitude do comportamento.

3.3.3 – tipo subjetivo

O crime é punido a título de dolo (vontade consciente de traficar maquinários etc.)

3.3.4 – consumação e tentativa

O tráfico de maquinários consuma-se com a prática de qualquer um dos núcleos do tipo. Em


alguns deles, cumpre lembrar, o crime é permanente (ex.: guardar).

Na prática, a tentativa é de difícil ocorrência, mas na teoria ela é admissível, por se tratar de
delito plurissubsistente (aquele cuja execução admite fracionamento).

A pessoa que mantém em depósito maquinários para produção, produz a droga e mantém
em depósito pratica quantos crimes?

412
Se praticados no mesmo contexto fático, o art. 34 fica absorvido pelo crime do art. 33, caput,
da Lei 11.343/2006, pois o art. 34 é delito subsidiário. As circunstâncias do art. 34 serão
consideradas na fixação da pena base do art. 33. Caso não estejam as condutas abrangidas
pelo mesmo contexto fático, o agente responderá por ambos os crimes. Ex.: no local, são
encontrados maquinário para a produção de cocaína e quantidade significativa de maconha.

3.3.5 – aplicabilidade do art. 33, § 4º

Nos termos do art. 33, § 4º, o traficante de drogas primário e portador de bons
antecedentes que não se envolve em atividade e organização criminosas, como visto, terá
pena reduzida, de 1/6 a 2/3 (reduzindo 5 anos de 2/3 resultará em pena mínima de 1 ano e 8
meses de reclusão).

Aqui, entretanto, mesmo que se trate de traficante de maquinários que preencha os


requisitos do art. 33, § 4º, a pena será de 3 a 10 anos, sem qualquer redução.

Vale ponderar o seguinte: mais perigoso que traficar maquinário é traficar a droga pronta.
Todavia, um comportamento mais grave poderá ter pena mínima de 1 ano e 8 meses,
enquanto que um menos grave terá pena mínima de 3 anos. Isso ofende o princípio da
proporcionalidade das penas (pune-se o mais com o menos e o menos com mais). A doutrina
sugere a aplicação do art. 33, § 4º, ao art. 34, numa analogia in bonam partem.

Não há, ainda, jurisprudência a esse respeito. Até porque, na maioria dos casos, o art. 34
resta absorvido pelo art. 33.

3.4 – Associação para o tráfico (art. 35)

Art. 35. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou

não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil

e duzentos) dias-multa. (...)

Inicialmente, importante observar que não há qualquer razoabilidade na cominação dos


dias-multa nos crimes previstos na Lei de Drogas.

O crime do art. 35 não deve ser chamado de “associação criminosa”, pois não é exigida a
presença de três pessoas. Apesar, disso, os demais requisitos dos crimes são iguais:

Art. 288 do CP Art. 35, caput, da Lei 11.343/2006


Associação criminosa: Associação criminosa:
i) reunião de mais de 3 pessoas (ou seja, mínimo i) reunião de duas ou mais pessoas (ou seja, no

413
de três pessoas); mínimo duas);
ii) reunião estável e permanente; ii) reunião estável e permanente;
iii) reunião para o fim de praticar crimes. iii) reunião para o fim de praticar,
reiteradamente ou não, os crimes do art. 33,
caput, § 1º e art. 34 da Lei de Drogas.

Como associar as expressões “estável e permanente” com “reiteradamente ou não”? O


“reiteradamente ou não” não se liga às características da associação, mas aos crimes que ela
possa vir eventualmente a praticar.

A exemplo da associação criminosa, o art. 35 é um crime autônomo em relação aos crimes


por ela visado. Consuma-se com a formação da associação, não dependendo da prática de
qualquer dos crimes referidos no tipo, configurando-se o concurso material de delitos, caso
ocorram. Associando-se duas pessoas para a prática do tráfico de drogas, o crime já está
consumado. Praticado o tráfico, os agentes responderão também por ele, sendo ambos os
crimes em concurso material.

A associação para o tráfico é um crime permanente (aquele cuja consumação se protrai no


tempo). A maioria da doutrina não admite a tentativa.

Questão: “A” e “B”, associados de forma estável e permanente, são presos comercializando
drogas. “A” é primário e portador de bons antecedentes. “B” é reincidente. “B” responderá
pelos crimes dos arts. 33, caput, e 35, em concurso material. “A” responderá pelos crimes do
art. 33, caput, e 35, em concurso material, sem a redução da pena do art. 33, § 4º, pois
associação para o tráfico é espécie de organização criminosa e o art. 33, § 4º, expressamente
prevê como requisito que o sujeito não integre associação criminosa (posição tranquila dos
Tribunais Superiores).

3.5 – Nova espécie de associação criminosa (art. 35, parágrafo único)

Art. 35 (...) Parágrafo único. Nas mesmas penas do caput deste artigo incorre quem se

associa para a prática reiterada do crime definido no art. 36 desta Lei [financiamento ou

custeio do tráfico].

O crime do art. 35, parágrafo único, é também uma associação criminosa, exigindo a reunião
de duas ou mais pessoas (mínimo de duas, portanto), estabilidade e permanência. No
entanto, diferentemente da associação anterior, a do parágrafo único deve ocorrer para a
prática reiterada do crime definido no art. 36 (lembre que, no caput, a associação deve ser
para prática reiterada ou não dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º e 34).

414
O art. 35, parágrafo único, é também delito autônomo: ocorrido o crime do art. 36, haverá
concurso material de delitos.

Veja que, no art. 35, caput a lei fala em “reiteradamente ou não”. Já no parágrafo único, ela
fala em prática “reiterada”. A importância dessa diferença será analisada por ocasião do
estudo do art. 36.

3.6 – Financiamento ou custeio do tráfico (art. 36)

Art. 36. Financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput

e § 1º, e 34 desta Lei:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 20 (vinte) anos, e pagamento de 1.500 (mil e quinhentos) a

4.000 (quatro mil) dias-multa.

O financiamento ou custeio do tráfico é um crime novo, que possui a mais grave pena da lei.
Veja que ele não pune o traficante, mas aquele que está por trás da cena, custeando ou
financiando-o.

3.6.1 – sujeitos

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (crime comum), isolada ou associada a outra.
Lembre que, caso se trate de pessoa isolada, ela responderá pelo crime do art. 36. Associada
a outra, responderá pelo crime do art. 35, parágrafo único, mais o do art. 36.

Essa observação é importante, na medida em que algumas pessoas imaginam que o crime
do art. 36 somente poderia ser praticado por associação, o que não é verdadeiro.

Sujeitos passivos são a coletividade e o Estado.

3.6.2 – tipo objetivo

O crime do art. 36 pune “financiar” ou “custear” os crimes dos arts. 33, caput, 33, § 1º e 34.
Há quem diga que o legislador foi redundante ao mencionar financiar e custear (seriam a
mesma coisa).

Não é qualquer dinheiro dado ao traficante que ensejará a aplicação do art. 36.
Considerando-se a pena, é imprescindível a relevância do sustento. O financiamento e o
custeio têm de ser de tal modo que, sem o auxílio, o traficante não sobreviveria como tal.

3.6.3 – tipo subjetivo

O tipo subjetivo do art. 36 é o dolo.

415
3.6.4 – consumação e tentativa

O crime do art. 36 é ou não habitual? A opção por uma ou outra resposta influenciará na
existência ou não da tentativa.

1ª corrente: o crime não é habitual, consumando-se com qualquer ato indicativo do


sustento (Nucci e a maioria).

2ª corrente: trata-se de crime habitual, consumando-se com a reiteração de atos


indicativos do sustento (Rogério Sanches).

Rogério baseia seu entendimento nas seguintes razões:

i) financiar e custear parecem estar sempre ligados a uma pluralidade de atos;

ii) o art. 40, VII, da Lei de Drogas traz causa de aumento quando o agente financiar ou
custear o crime:

Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois

terços, se: (...)

VII - o agente financiar ou custear a prática do crime.

Na medida em que a lei fala duas vezes em financiar e custear, o art. 36 é financiamento ou
custeio habitual (crime) e o art. 40, VII, serve para o caso de financiamento ocasional,
hipótese em que o sujeito responderá pelo art. 33 ou 34, com causa de aumento.

iii) o art. 35, parágrafo único, quando se refere ao art. 36, utiliza a expressão “reiterada”,
pois o art. 36 somente pode ser praticado reiteradamente:

Art. 35 (...) Parágrafo único. Nas mesmas penas do caput deste artigo incorre quem se

associa para a prática reiterada do crime definido no art. 36 desta Lei.

O art. 35, caput, fala em “reiteradamente ou não”, pois aqueles crimes podem ser praticados
dessa forma; o art. 35, parágrafo único, fala somente em “reiteradamente”, pois ele não tem
como ser praticado de outra forma, que não a reiterada.

Os adeptos da primeira corrente admitem tentativa. Os que adotam a segunda não admitem
tentativa.

3.7 – Crime do art. 37

Art. 37. Colaborar, como informante, com grupo, organização ou associação destinados à

prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei:

416
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e pagamento de 300 (trezentos) a 700

(setecentos) dias-multa.

O crime do art. 37 pune o chamado “papagaio” ou “fogueteiro”. É aquele que avisa que a
polícia está chegando.

3.7.1 – sujeitos

Sujeito ativo do crime do art. 37 pode ser qualquer pessoa (crime comum). Ex.: informantes
nos morros. Cuidado: se o colaborador for funcionário público, além do art. 37 incidirá o
aumento previsto no art. 40, II, que será visto adiante.

O sujeito passivo é a coletividade.

3.7.2 – tipo objetivo

O art. 37 está punindo a cooperação criminosa. Detalhe: a colaboração deve ser com uma
organização criminosa, não com uma pessoa somente (o sujeito que vigia outro que está
traficando não pratica o crime do art. 37).

Essa colaboração tem de ser necessariamente eventual. Se a pessoa tem como missão avisar
a organização, não será informante, mas associada da organização.

Assim, apesar de isso não estar expresso no dispositivo legal, a conduta do informante
colaborador necessariamente precisa ser eventual. Comprovando-se que a contribuição é
permanente e estável, ela tipificará o art. 35 da Lei. Caso contrário, dentro de uma
organização criminosa, todos alegariam que atuam como informantes, para fugirem da
aplicação do art. 35.

3.7.3 – tipo subjetivo

O crime do art. 37 é punido a título de dolo.

3.7.4 – consumação e tentativa

O crime consuma-se com qualquer ato indicativo da efetiva colaboração. Admite tentativa.
Ex.: colaboração por escrito (carta interceptada).

3.8 – Crime do art. 38

Art. 38. Prescrever ou ministrar, culposamente, drogas, sem que delas necessite o

paciente, ou fazê-lo em doses excessivas ou em desacordo com determinação legal ou

regulamentar:

417
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de 50 (cinquenta) a 200

(duzentos) dias-multa. (...)

O art. 38 prevê o único crime culposo da Lei de Drogas. É infração de menor potencial
ofensivo.

3.8.1 – sujeitos

Na vigência da Lei 6.368/1976, o crime estava previsto no art. 15. A lei dizia expressamente
que ele somente poderia ser praticado por médico, dentista, farmacêutico ou profissional de
enfermagem:

Art. 15. Prescrever ou ministrar culposamente, o médico, dentista, farmacêutico ou

profissional de enfermagem substância entorpecente ou que determine dependência

física ou psíquica, em de dose evidentemente maior que a necessária ou em desacordo

com determinação legal ou regulamentar:

Pena - Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de 30 (trinta) a 100 (cem)

dias-multa.

O art. 38 da vigente Lei de Drogas silencia quanto aos profissionais anteriormente


mencionados. Com isso, surge a dúvida: o crime abrange agora outros sujeitos ativos, como
o veterinário e o nutricionista?

1ª corrente: apesar do silêncio da lei, o crime continua tendo como sujeitos ativos os
mesmos profissionais descritos na lei anterior (médico, dentista, farmacêutico e
profissional de enfermagem).

2ª corrente: a nova redação do crime culposo acaba por abranger todos que possam
prescrever drogas, como o veterinário ou o nutricionista (Vicente Greco).

Não há corrente que prevaleça na doutrina, que está tendendo a seguir Vicente Greco (o
autor é uma referência). Não há nada na jurisprudência. Rogério discorda da hipótese do
veterinário, pois ele não pode prescrever drogas ao ser humano. Também considera que o
curandeiro não pode ser abrangido no tipo. Não existe Conselho Federal dos Curandeiros
(veja que o dispositivo menciona a comunicação ao Conselho respectivo):

Art. 38 (...) Parágrafo único. O juiz comunicará a condenação ao Conselho Federal da

categoria profissional a que pertença o agente.

Sujeitos passivos são a coletividade e a pessoa que recebe a droga irregular.

418
3.8.2 – tipo objetivo

O art. 38 pune uma negligência na prescrição ou na aplicação da droga.

Quadro comparativo entre as formas de negligência previstas nas leis anterior e atual:

Lei 6.368/1976 Lei 11.343/2006


Previa duas formas de negligência: A lei nova cobriu a lacuna que havia. Ela pune:
i) droga certa na dose errada; i) droga certa na dose errada;
ii) dose certa da droga errada. ii) dose certa da droga errada;
Para Vicente Greco Filho, receitar a droga certa, iii) droga certa, na dose certa, para o paciente
na dose certa, ao paciente errado era fato errado.
atípico. Essa seria uma lacuna da lei, que não
podia ser integrada, sob pena de analogia in
mallan partem.

3.8.3 – consumação e tentativa

O momento consumativo do crime do art. 38 varia de acordo com a conduta. Na modalidade


“prescrever”, o crime consuma-se com a entrega da receita ao paciente. Já na modalidade
“ministrar”, consuma-se no momento da aplicação da droga.

O crime é culposo, não admitindo tentativa. Vicente Greco, equivocadamente, admite a


tentativa quando a receita não chega às mãos do paciente (na tentativa, o crime não se
consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente; no crime culposo, não existe a
vontade de praticar a conduta).

3.9 – Crime do art. 39

Art. 39. Conduzir embarcação ou aeronave após o consumo de drogas, expondo a dano

potencial a incolumidade de outrem:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, além da apreensão do veículo, cassação

da habilitação respectiva ou proibição de obtê-la, pelo mesmo prazo da pena privativa de

liberdade aplicada, e pagamento de 200 (duzentos) a 400 (quatrocentos) dias-multa. (...)

3.9.1 – sujeitos

O crime do art. 39 não exige qualidade especial do agente, podendo ser praticado por
qualquer pessoa (crime comum).

419
Sujeitos passivos são a coletividade e eventual indivíduo colocado em perigo pela conduta
do agente.

3.9.2 – tipo objetivo

O tipo penal pune:

i) conduzir embarcação ou aeronave:

O conceito de “embarcação” vai de um jet-sky a um navio. O de aeronave vai de um


monomotor a um Boeing. A condução de veículo automotor, nessas mesmas circunstâncias,
é punida pelo art. 306 do CTB, que prevê a mesma pena:

Art. 306.  Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da

influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:

(Redação dada pela Lei nº 12.760, de 2012)

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a

permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

ii) após o consumo de drogas:

O sujeito deve estar conduzindo ainda sob o efeito da droga.

iii) expondo a dano potencial a incolumidade de outrem:

Trata-se de um crime de perigo concreto difuso. Assim, não é necessária a demonstração de


que alguém tenha corrido perigo, bastando a prova de haver baixado o nível de segurança,
ou seja, de que o individuo conduzia a embarcação ou a aeronave de maneira anormal. O
sujeito, sob efeito de drogas, que conduz normalmente a aeronave comete mera infração
administrativa.

3.9.3 – tipo subjetivo

O crime do art. 39 é punido a título de dolo.

3.9.4 – consumação e tentativa

A consumação ocorre com a condução anormal, rebaixando o nível de segurança.

O crime não admite tentativa, de acordo com a maioria da doutrina.

3.9.5 – transporte coletivo de passageiros

Art. 39 (...) Parágrafo único. As penas de prisão e multa, aplicadas cumulativamente com

420
as demais, serão de 4 (quatro) a 6 (seis) anos e de 400 (quatrocentos) a 600 (seiscentos)

dias-multa, se o veículo referido no caput deste artigo for de transporte coletivo de

passageiros.

Relativamente ao art. 39, parágrafo único, a doutrina discute se é necessário ou não haver
passageiros no veículo. Há bastante divergência. Há quem diga que basta que se trate de
veículo de transporte coletivo. Para Rogério, se a preocupação é com os passageiros, parece
bastante óbvio que é necessário haver ao menos um no interior da embarcação ou da
aeronave no momento da condução anormal.

4 – Causas de aumento de pena (art. 40)

O art. 40 prevê sete hipóteses de aumento de pena, que variam de 1/6 a 2/3, e incidem
sobre os arts. 33 a 37 da Lei de Drogas.

Na variação, o juiz deverá levar em consideração a pluralidade e a gravidade das causas de


aumento de pena.

4.1 – Art. 40, I

Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois

terços, se:

I - a natureza, a procedência da substância ou do produto apreendido e as circunstâncias

do fato evidenciarem a transnacionalidade do delito; (...)

Esta causa de aumento de pena trata do tráfico transnacional.

A Lei 6.368/1976 falava em “tráfico internacional”. A nova lei adaptou a nomenclatura à


Convenção de Palermo. No tráfico internacional, era necessário o envolvimento de dois
países soberanos (importação ou exportação). No transacional, não importa a origem ou o
destino, bastando a entrada ou a saída da droga do território nacional. Uma droga que
venha de alto-mar é considerada transnacional, mas não internacional.

Cumpre destacar que a droga não precisa sair do país para configurar a transnacionalidade,
bastando que essa seja a intenção (ex.: o traficante é surpreendido no aeroporto, com
passagem para a Espanha).

A competência para a apuração do crime com esta majorante é da Justiça Federal. Onde não
houver Justiça Federal, os autos serão remetidos à Justiça Federal mais próxima. Não existe
mais delegação de competência à Justiça Estadual, como havia na lei anterior.

421
4.2 – Art. 40, II

Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois

terços, se: (...)

II - o agente praticar o crime prevalecendo-se de função pública ou no desempenho de

missão de educação, poder familiar, guarda ou vigilância; (...)

A majorante do inciso II incide se o agente se prevalece de função pública (não


necessariamente ligada à prevenção ou repressão ao tráfico, como exigia a lei anterior), ou
está no desempenho: i) de missão de educação (ex.: professor/aluno); ii) poder familiar (ex.:
pai/filho); iii) de missão de guarda (ex.: pessoa que guarda drogas apreendidas ou
psicotrópicos em hospitais); e iv) de vigilância (ex.: pessoa que cuida da vigilância desses
locais).

4.3 – Art. 40, III

Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois

terços, se: (...)

III - a infração tiver sido cometida nas dependências ou imediações de estabelecimentos

prisionais, de ensino ou hospitalares, de sedes de entidades estudantis, sociais, culturais,

recreativas, esportivas, ou beneficentes, de locais de trabalho coletivo, de recintos onde

se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza [ex.: “Rave”], de serviços de

tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social, de unidades militares ou

policiais ou em transportes públicos; (...)

É difícil imaginar uma hipótese de tráfico em que não incida a causa de aumento do inciso III.

O problema do dispositivo diz respeito à expressão “imediações”. Elas abrangem: i) a área


em que o traficante poderia facilmente atingir o ponto especialmente protegido, com alguns
passos, em alguns segundos; ou ii) o local de passagem obrigatória ou normal das pessoas
que saem dos estabelecimentos ou a ele se dirigem. Ou seja, o caso concreto dirá o que são
“imediações”. Não deixa de ser uma expressão porosa/vaga, sujeita a crítica.

4.4 – Art. 40, IV

Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois

terços, se: (...)

IV - o crime tiver sido praticado com violência, grave ameaça, emprego de arma de fogo,

ou qualquer processo de intimidação difusa ou coletiva; (...)

422
Esta causa de aumento é o que muitas vezes ocorre nos Morros do Rio de Janeiro, com os
“toques de recolher”, por exemplo.

4.5 – Art. 40, V

Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois

terços, se: (...)

V - caracterizado o tráfico entre Estados da Federação ou entre estes e o Distrito Federal;

(...)

O dispositivo traz o tráfico interestadual ou doméstico.

A competência é da Justiça Estadual.

A Polícia Federal tem atribuição para investigar o crime. Porém, ela investiga e encaminha o
resultado das investigações à Justiça Estadual. Cuidado, pois quem preside o inquérito
policial (autoriza interceptação, decreta prisão etc.) é o juiz estadual.

4.6 – Art. 40, VI

Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois

terços, se: (...)

VI - sua prática envolver ou visar a atingir criança ou adolescente ou a quem tenha, por

qualquer motivo, diminuída ou suprimida a capacidade de entendimento e determinação;

(...)

O dispositivo é autoexplicativo.

4.7 – Art. 40, VII

Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois

terços, se: (...)

VII - o agente financiar ou custear a prática do crime.

O dispositivo já foi estudado, por ocasião da análise do crime do art. 36.

5 – Restrições legais

5.1 – Noções gerais

Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis

e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão

de suas penas em restritivas de direitos.

423
O dispositivo traz as restrições próprias de um crime hediondo (exceto o regime inicial
fechado), acrescidas da vedação de restritiva de direitos e sursis. Por conta disso, Vicente
Greco conclui que os crimes dos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 são equiparados a
hediondos.

Rogério discorda dessa posição. Quem equipara crimes a hediondos é o art. 5º, XLIII, da CR:

Art. 5º (...) XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a

prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os

definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e

os que, podendo evitá-los, se omitirem;

Assim, para Rogério, se a CR equipara somente o tráfico de drogas a crime hediondo,


evidentemente a equiparação abrangerá apenas os seguintes crimes: i) art. 33, caput; ii) art.
33, § 1º; e iii) art. 36.

Prevalece, todavia, que se equiparam a hediondos os crimes previstos nos arts. 33, caput,
33, § 1º, 34 e 36. Veja que o art. 34 nem tráfico de drogas é, mas de maquinários.

A importância da diferença é que, excluindo-se o crime da equiparação a hediondo, ele não


terá regime inicial fechado.

5.2 – Das restrições em espécie

5.2.1 – inafiançáveis

A inafiançabilidade dos crimes acima mencionados não será tratada neste tópico.

5.2.2 – insuscetíveis de sursis

A Lei 8.072/1990 não proíbe a concessão de sursis. Ora, se a Lei de Crimes Hediondos não
veda o sursis, vedá-lo num crime equiparado violaria a proporcionalidade. Por conta disso,
existe doutrina questionando a constitucionalidade desta proibição na Lei de Drogas (numa
colaboração para o tráfico, com pena mínima de 2 anos, não cabe sursis, enquanto que para
um estupro tentado cabe, o que é absurdo).

5.2.3 – insuscetíveis de anistia, graça ou indulto

A insuscetibilidade dos crimes acima à anistia, graça ou indulto não será analisada.

5.2.4 – vedação da conversão da pena em restritivas de diretos.

424
Como visto, o Pleno do STF, no HC 97.256, decidiu que é inconstitucional a vedação da
conversão da pena em restritivas de direitos, nos crimes acima, pois quem deve julgar
possível ou não o cabimento da restritiva de direitos é o juiz, analisando o caso concreto.

A despeito de a decisão do STF ter se referido tanto ao art. 33, § 4º, quanto ao art. 44, a
Resolução nº 5/2012, do Senado Federal, retirou a eficácia apenas do primeiro do
dispositivo:

Parte da ementa do HC 97.256:

(...) 5. Ordem parcialmente concedida tão-somente para remover o óbice da parte final do

art. 44 da Lei 11.343/2006, assim como da expressão análoga “vedada a conversão em

penas restritivas de direitos”, constante do § 4º do art. 33 do mesmo diploma legal.

Declaração incidental de inconstitucionalidade, com efeito ex nunc, da proibição de

substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos; determinando-

se ao Juízo da execução penal que faça a avaliação das condições objetivas e subjetivas da

convolação em causa, na concreta situação do paciente.

Art. 1º É suspensa a execução da expressão "vedada a conversão em penas restritivas de

direitos" do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, declarada

inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal nos autos do Habeas

Corpus nº 97.256/RS.

5.2.5 – vedação de liberdade provisória

O art. 44 da Lei de Drogas também não admite a concessão de liberdade provisória àqueles
crimes, com ou sem fiança.

A discussão acerca da possibilidade de o legislador ordinário vedar, peremptoriamente, a


concessão de liberdade provisória já foi analisada anteriormente. Como dito, havia duas
correntes:

1ª corrente: é possível a vedação da liberdade provisória, com fundamento no art. 5º,


LXVI, da CR, que fala em “quando a lei admitir”. Haveria, portanto, permissivo
constitucional:

Art. 5º (...) LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a

liberdade provisória, com ou sem fiança;

2ª corrente: a permanência de alguém na prisão em virtude de flagrante delito


depende da presença dos pressupostos que autorizam a prisão preventiva. Em

425
recentes julgados, o STJ (Resp 772.504) e o STF (HC 94.404) decidiram que o juiz é
obrigado a apontar uma das hipóteses que autorizam a prisão preventiva, para não
conceder a liberdade provisória. Esta corrente é majoritária (Pacelli, Alberto Silva
Franco, Luiz Flávio Gomes).

A grande discussão dizia respeito justamente a este art. 44 da Lei 11.343/2006, que vedava
ambas as espécies de liberdade provisória. A Lei 8.072/1990 foi alterada em 2007 e passou a
admitir a liberdade provisória sem fiança. A doutrina passou a entender que, se a liberdade
provisória é admissível para os crimes hediondos, com maior razão admiti-la para os casos
de tráfico de drogas.

O STF considerou que é inconstitucional toda e qualquer lei que vede, de forma genérica, a
concessão de liberdade provisória. Nesse sentido, decidiu recentemente o STF no caso do HC
104.339/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, 10.5.2012, no qual se declarou inconstitucional o art.
44 da Lei nº 11.343/2006 na parte em que proíbe a liberdade provisória para os crimes de
tráfico de drogas.

Não faz sentido que a pessoa fique presa durante o processo por um crime e, na hora da
condenação, receba restritiva de direitos. Seria irrazoável considerar que uma pessoa
sofresse punição mais gravosa durante o processo.

O STF manteve coerência com o julgado que entendeu inconstitucional o dispositivo que
vedava a conversão da pena em restritiva de direitos, analisado no tópico anterior.

5.2.6 – vedação do livramento condicional ao reincidente específico

O art. 44, parágrafo único, por fim, prevê que, nos crimes relacionados no caput, o
livramento condicional somente poderá ser concedido após o cumprimento de dois terços
da pena, sendo ele vedado ao reincidente específico:

Art. 44 (...) Parágrafo único. Nos crimes previstos no caput deste artigo, dar-se-á o

livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena, vedada sua

concessão ao reincidente específico.

6 - Lei 12.961/14

A Lei 12.961/14 alterou a Lei de Drogas para dispor sobre a destruição de drogas
apreendidas.

A apreensão da droga é de fundamental importância para dois exames: laudo de


constatação, que é um exame preliminar, e para o exame toxicológico.

426
O laudo de constatação é importante para legitimar o auto de prisão em flagrante e é
condição específica da ação penal para o oferecimento da denúncia.

O exame toxicológico é o laudo definitivo e é de fundamental importância para que haja


sentença condenatória. Sem ele o juiz não poderá condenar alguém por tráfico de drogas.

A apreensão da droga também é importante para que se faça a distinção entre os crimes dos
arts. 28 e 33, da Lei 11.343/06. Obviamente, a quantidade de droga não é o único critério
utilizado, mas é de fundamental importância. A quantidade é um indicativo de que se trata
de tráfico ou porte para uso pessoal. Ex.: pessoa encontrada com dois papelotes de cocaína
no bolso. A circunstância pode indicar porte para uso pessoal ou, ainda, indicar o crime de
tráfico caso a pessoa tenha no outro bolso uma grande quantidade em dinheiro
acompanhada de uma agenda com um organograma da distribuição de drogas.

Após a realização do laudo preliminar e do exame toxicológico, o restante da droga deve ser
destruída. A Lei 12.961/14 cuida da destinação da droga apreendida. Uma pequena
quantidade da droga apreendida deve ser guardada para a realização de eventual
contraprova. Pode ser que a defesa queira impugnar o laudo preliminar ou o exame
toxicológico e é para isso que serve a pequena quantidade guardada.

A Lei de Drogas não estabelecia um prazo para a destruição da droga. A droga ficava
custodiada em delegacias de polícias, procuradoria do MP ou fóruns criminais, locais sem
qualquer segurança.

“Art. 50.  .......................................................................

............................................................................................. 

§ 3º Recebida cópia do auto de prisão em flagrante, o juiz, no prazo de 10 (dez) dias,

certificará a regularidade formal do laudo de constatação e determinará a destruição das

drogas apreendidas, guardando-se amostra necessária à realização do laudo definitivo. 

§ 4o A destruição das drogas será executada pelo delegado de polícia competente no

prazo de 15 (quinze) dias na presença do Ministério Público e da autoridade sanitária. 

§ 5o O local será vistoriado antes e depois de efetivada a destruição das drogas referida

no § 3o, sendo lavrado auto circunstanciado pelo delegado de polícia, certificando-se

neste a destruição total delas.” (NR) 

O dispositivo estabelece um prazo para a análise do laudo de constatação e, ao mesmo


tempo, um prazo para que o magistrado determine a destruição imediata da droga.

A destruição das drogas será realizada no prazo de 15 dias pelo delegado de polícia na
presença do MP e da autoridade sanitária.

427
Quando houver apreensão de droga no caso de prisão em flagrante, portanto, o juiz terá dez
dias para certificar a regularidade formal do laudo de constatação e determinar a destruição
da droga. A autoridade policial, na sequência, terá o prazo de 15 dias para fazer a destruição
da droga.

Não há mais, portanto, possibilidade de armazenamento dessa droga em repartições


policiais ou forenses. Atualmente, ultrapassado o prazo, será possível a responsabilização da
autoridade judiciária, do promotor e da autoridade policial.

A determinação para a destruição da droga deve ser feita pelo juiz. A execução dessa ordem
será levada a efeito pelo delegado de polícia, no prazo de 15 dias, e deve ser acompanhada
pelo MP e autoridade sanitária.

Quando não houver prisão em flagrante, apesar de se tratar de hipótese rara, deve-se
utilizar o art. 50-A, que também foi acrescentado à Lei de Drogas pela Lei 12.961/14:

“Art. 50-A.  A destruição de drogas apreendidas sem a ocorrência de prisão em flagrante

será feita por incineração, no prazo máximo de 30 (trinta) dias contado da data da

apreensão, guardando-se amostra necessária à realização do laudo definitivo, aplicando-

se, no que couber, o procedimento dos §§ 3o a 5o do art. 50.” 

Nesse caso, há um prazo diferenciado de 30 dias para que a droga seja incinerada.
Importante lembrar que também será necessária a autorização do juiz.

A pequena quantidade de droga guardada para contraprova deverá ser destruída quando
houver o trânsito em julgado da sentença condenatória.

“Art. 72.  Encerrado (leia-se: com o trânsito em julgado) o processo penal ou arquivado o

inquérito policial, o juiz, de ofício, mediante representação do delegado de polícia ou a

requerimento do Ministério Público, determinará a destruição das amostras guardadas

para contraprova, certificando isso nos autos.” (NR) 

LEI DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA (LEI 12.850/2013)

1 – Aspectos materiais

1.1 – Breve histórico sobre o objeto da Lei

O art. 1º, caput, da Lei 12.850/13 define o objeto da lei:

Art. 1º Esta Lei define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os

428
meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser

aplicado. (...)

A lei define organização criminosa, dispõe sobre a investigação criminal, os meios de


obtenção de prova, infrações correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado.

No ano de 1995, foi editada a Lei 9.034 dispondo sobre a utilização de meios operacionais
para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas. Apesar de
louvável, a inciativa veio acompanhada de falhas, chamando à atenção a ausência de
definição do próprio objeto da lei: organização criminosa. O legislador criou uma lei
prevendo instrumentos de combate ao crime organizado (investigação por meio de agente
infiltrado, ação controlada etc.), porém não definiu o conceito de crime organizado ou
organização criminosa. A não definição do objeto da lei tratava-se de erro crasso do
legislador.

A omissão legislativa incentivava parcela da doutrina a emprestar a definição dada pela


Convenção de Palermo, que trata da criminalidade transnacional. Os operadores buscavam o
conceito dado pela Convenção Internacional. O STJ aplaudiu essa iniciativa.

Porém, essa postura recebeu críticas:

i) a definição dada pela Convenção de Palermo é muito ampla, genérica, violando a


taxatividade, desdobramento lógico do princípio da legalidade;

ii) a definição dada pela Convenção vale para as relações com o direito internacional, e não
com o direito interno;

iii) as definições dadas pelas convenções ou tratados internacionais jamais valem para reger
nossas relações com o direito penal interno:

No Brasil, somente lei cria crime e comina pena. Há várias fontes formais imediatas, mas
somente a lei pode criar crime e cominar pena. O tratado internacional, a despeito de ser
considerado fonte formal imediata, não pode fazê-lo. Essa crítica foi defendida por Luís
Flávio Gomes e adotada pelo STF no HC 96.007/SP.

Esse HC foi um divisor de águas. Nele, o STF anunciou que tratados e convenções
internacionais não podem criar crimes e cominar penas, ou seja, não podem incentivar um
direito penal interno incriminador (valeriam apenas para direito penal interno não
incriminador). Foi uma provocação ao legislador, que deveria criar uma lei em que se
definisse o conceito de organização criminosa.

429
Foi assim que nasceu a Lei 12.694/12, em que o legislador definiu organização criminosa
para o direito penal interno (art. 2º):

Art. 2º Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3

(três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas,

ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de

qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior

a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.  

Portanto, organização criminosa era a associação de três ou mais pessoas, estruturalmente


organizada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo
de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de
crimes cuja pena máxima fosse igual ou superior a 4 anos ou que fossem de caráter
transnacional.

A Lei 12.850/13, editada menos de um ano após a Lei 12.694/12, por sua vez, reviu o
conceito, definindo organização criminosa no parágrafo 1º do seu artigo inaugural:

Art. 1º (...) § 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais

pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que

informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer

natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a

4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.

A definição de organização criminosa atualmente utilizada é a trazida pela Lei 12.850/13.

Portanto, hoje, considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais


pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que
informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer
natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4
(quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.

Houve significativas mudanças:

Lei 12.694/12 Lei 12.850/13


Associação, de 3 ou mais pessoas. Associação, de 4 ou mais pessoas.
Estruturalmente ordenada e caracterizada pela Estruturalmente ordenada e caracterizada pela
divisão de tarefas, ainda que informalmente. divisão de tarefas, ainda que informalmente.
Com objetivo de obter, direta ou indiretamente, Com objetivo de obter, direta ou indiretamente,
vantagem de qualquer natureza. vantagem de qualquer natureza.

430
Mediante a prática de crimes cujas penas Mediante a prática de infrações penais cujas
máximas sejam iguais ou superiores a 4 anos ou penas máximas sejam superiores a 4 anos ou
sejam de caráter transnacional. sejam de caráter transnacional.

A Lei 12.850/13 exige quatro ou mais pessoas para que esteja caracterizada uma
organização criminosa.

Quanto à estrutura, não há diferença, ou seja, deve ser estruturalmente ordenada e


caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente.

O objetivo é o mesmo em ambas as leis: obter, direta ou indiretamente, vantagem de


qualquer natureza.

Tal objetivo se dava mediante a prática de crimes na Lei 12.694/12, enquanto na Lei
12.850/13 o objetivo é alcançado mediante a prática de infrações penais, cujas penas
máximas sejam superiores (e não mais iguais) a 4 anos ou que sejam de caráter
transnacional. As infrações penais abrangem contravenção penal, desde que seja
contravenção penal com pena máxima superior a 4 anos (veja que não existe contravenção
penal com pena superior a quatro anos).

Cuidado, pois a Lei 12.694/12 não foi revogada pela Lei 12.850/13. Apenas a definição de
organização criminosa foi revogada pela nova lei, de forma que os demais dispositivos da Lei
12.694/12 coexistem com os da Lei 12.850/13. A Lei 12.694/12 criou, por exemplo, a
possibilidade do julgamento por órgão colegiado em primeiro grau, em se tratando de crime
praticado por organização criminosa.

Portanto, as Leis 12.694/12 e 12.850/13 coexistem, tendo sido revogada a primeira somente
no que se refere ao conceito de organização criminosa (art. 2º).

Resumo das Leis que tratam de organização criminosa:

Lei 6.034/95 Lei 12.694/12 Lei 12.850/13


Previa meios especiais de Definiu organização criminosa e Definiu organização criminosa e
investigação, porém não definia criou a possibilidade de tratou dos meios especiais de
organização criminosa. julgamento por órgão colegiado obtenção de prova, além de
de primeiro grau. criar novos delitos.
A Lei 12.850/13 revogou a Lei 9.034/95 e também revogou a definição de organização criminosa
dada pela Lei 12.694/12.

431
É possível trabalhar com os meios especiais de obtenção de prova (agente infiltrado, ação
controlada etc.) previstos na Lei 12.850/13, mesmo que ausente organização criminosa? É
preciso lembrar que a figura do agente infiltrado foi criada principalmente para investigar
organizações criminosas e a ação controlada para permitir um flagrante em uma organização
criminosa. Seria, então, possível utilizar esses meios quando não se trata de uma
organização criminosa ou tal caraterização é imprescindível?

O § 2º do art. 1º da Lei 12.850/13 autoriza, desde que reunidos alguns requisitos:

Art. 1º (...) § 2º Esta Lei se aplica também:

I - às infrações penais previstas em tratado ou convenção internacional quando, iniciada a

execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou

reciprocamente;

II - às organizações terroristas internacionais, reconhecidas segundo as normas de direito

internacional, por foro do qual o Brasil faça parte, cujos atos de suporte ao terrorismo,

bem como os atos preparatórios ou de execução de atos terroristas, ocorram ou possam

ocorrer em território nacional.

Dessa forma, os meios especiais de obtenção de prova podem ser utilizados em infrações
penais previstas em tratado ou convenção internacional quando, iniciada a execução no
País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente, e em
organizações terroristas internacionais, reconhecidas segundo as normas de direito
internacional, por foro do qual o Brasil faça parte, cujos atos de suporte ao terrorismo, bem
como os atos preparatórios ou de execução de atos terroristas, ocorram ou possam ocorrer
em território nacional, dispensando-se a caracterização da organização criminosa.

Um exemplo é o crime de tráfico internacional de pessoas (art. 231 do CP). Nele, mesmo que
não esteja presente organização criminosa, admite-se a utilização dos modos especiais de
obtenção de prova.

Até o advento da Lei 12.850/13, organização criminosa não era crime, e sim forma especial
de praticar crime. Organização criminosa não tinha tipo penal, muito mesmo pena, mas
apenas consequências.

Lei 12.850/13
Antes Depois
Organização criminosa não era crime. Organização criminosa é crime.
Organização criminosa não tinha pena, somente Possui tipo próprio com pena privativa de
consequências. Ex.: membro de organização liberdade.

432
criminosa podia sofrer a sanção disciplinar do
RDD.

1.2 – Art. 2º, caput

O crime de organização criminosa está previsto no art. 2º, caput, da Lei 12.850/13:

Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta

pessoa, organização criminosa:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas

correspondentes às demais infrações penais praticadas.

Com a nova Lei, a figura da organização criminosa deixou de ser “apenas” forma de se
praticar crimes para se tornar delito autônomo, punido com reclusão de 3 a 8 anos.

Ocorreu, portanto, novatio legis incriminadora, obviamente irretroativa. Ou seja, não


alcança os fatos esgotados antes de sua vigência. Cuidado, pois o comportamento é
permanente, ou seja, a organização criminosa que começou antes, mas continua após o
advento da Lei 12.850/13, pode sofrer os seus rigores.

1.2.1. Bem jurídico tutelado

Como em toda associação criminosa, tutela-se a paz pública.

De acordo com a maioria, trata-se de crime de perigo abstrato ou presumido.

1.2.2. Sujeito ativo e passivo

Em relação ao sujeito ativo, trata-se de crime comum, plurissubjetivo (exige número plural
de agentes, no mínimo quatro pessoas), de condutas paralelas (umas auxiliando as outras).

No número mínimo de quatro associados, computam-se eventuais inimputáveis ou pessoas


não identificadas.

Não se computa agente infiltrado. O agente infiltrado não tem o animus associativo, seu
objetivo é desmantelar a associação criminosa, e não integrá-la.

Em relação ao sujeito passivo, a sociedade aparece como vítima.

1.2.3. Conduta punida

433
A conduta punida consiste em promover (trabalhar a favor), constituir (formar), financiar
(custear despesas) ou integrar (fazer parte), pessoalmente (forma direta) ou por interposta
pessoa (forma indireta), organização criminosa.

Partindo-se da definição de organização criminosa (art. 1º, §1º), fica claro que a associação,
além da pluralidade de agentes, demanda estabilidade e permanência, com estrutura
ordenada e divisão de tarefas. Faltando qualquer um desses requisitos, ainda que haja a
pluralidade de agentes, não estará configurado o delito de organização criminosa. Nesse
caso, é possível configurar-se mero concurso de pessoas ou o crime de associação criminosa
do art. 288 do CP, antigamente chamado de quadrilha ou bando.

Requisitos:

i) número plural de agentes (no mínimo quatro pessoas);

Há número plural de agentes na organização criminosa, na associação criminosa (art. 288 do


CP) e no concurso de pessoas.

ii) estabilidade e permanência;

Caso desapareça a estabilidade e a permanência, haverá mero concurso de pessoas.

iii) estrutura ordenada e divisão de tarefas;

Caso não se configure a estrutura ordenada e a divisão de tarefas, haverá crime de


associação criminosa (art. 288 do CP).

É imprescindível que a reunião seja efetivada antes da deliberação dos delitos. Caso primeiro
deliberem os delitos, para somente depois as pessoas reunirem-se em associação para
praticar os delitos certos e determinados, haverá mero concurso de pessoas. Ex.: se Rogério
se associa a Carlos, Roberto e Renato e, depois de associados, todos deliberam os crimes
que a associação irá praticar, presentes os demais requisitos, trata-se de organização
criminosa. Caso Rogério primeiro delibere os crimes e, depois disso, saia atrás de pessoas
para lhe ajudar a praticá-los, tratar-se-á de mero concurso de pessoas.

1.2.4. Voluntariedade

O crime é punido a título de dolo.

O crime exige o fim especial de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer


natureza mediante a prática de infrações penais.

434
É imprescindível o animus associativo.

1.2.5. Consumação

Consuma-se o delito com a societas criminis (formação da associação), sendo indispensável


estrutura ordenada com divisão de tarefas (ausente este requisito, pode se caracterizar o
crime do art. 288 do CP).

É infração permanente, ou seja, a consumação se protrai enquanto não cessada a


permanência. Isso significa:

i) que o agente pode ser preso em flagrante enquanto não desfeita a associação ou
enquanto não abandoná-la (art. 303 do CPP);

ii) o termo inicial da prescrição se dá com o fim da permanência;

A prescrição tem termo inicial diferenciado (art. 111, III, do CP).

iii) enquanto não cessada a permanência, aplica-se a Lei nova, ainda que mais grave (Súmula
711 do STF).

Havendo delitos efetivamente praticados pela associação, os agentes respondem apenas


pelos crimes praticados, de forma que o crime de associação criminosa é absorvido,
respondem apenas pela organização criminosa e os crimes praticados são por ela absorvidos
ou os agentes respondem por todos os crimes, em concurso material?

Tratando-se de delito autônomo, a punição da organização independe da prática de


qualquer crime pela associação, o qual, ocorrendo, gera o concurso material (art. 69 do CP),
cumulando as penas. O que já era tranquilo na doutrina (seguida pela jurisprudência), agora
está expresso no preceito secundário do art. 2º:

Art. 2º (...) Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas

correspondentes às demais infrações penais praticadas.

Assim, para punir a organização criminosa, não é preciso que os crimes sejam efetivamente
praticados pela associação, mas, se ocorrerem, serão punidos em concurso material com o
crime do art. 2º da Lei 12.850/13.

O crime de organização criminosa admite tentativa? De acordo com a maioria, não é possível
a tentativa. Os atos praticados com a finalidade de formar a associação são atos
preparatórios e, portanto, impuníveis.

435
1.3. Art. 2º, § 1º

O art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 enuncia que na mesma pena (reclusão de 3 a 8 anos) incorre
quem impede ou de qualquer forma embaraça a investigação penal que envolva organização
criminosa.

Art. 2º (...) § 1º Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma,

embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.

O art. 2º, § 1º pune a obstrução, seja impedindo ou embaraçando, da persecução penal de


infração que envolva organização criminosa. A pessoa que obstrui ou embaraça a
persecução penal está violando, em última instância, a administração da justiça.

1.3.1. Bem jurídico tutelado

O art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13, tutela a administração da justiça, e não mais a paz pública.

1.3.2. Sujeitos

Em relação ao sujeito ativo, trata-se de crime comum e monossubjetivo (concurso eventual).

O agente não pode estar envolvido ou ter concorrido, de qualquer modo, para a formação
ou funcionamento da organização criminosa. Caso tenha se envolvido ou de qualquer forma
concorrido para a formação ou funcionamento da organização criminosa, responderá pelo
art. 2º, caput, da Lei 12.850/13. Nessa situação, o § 1º seria um post factum impunível.

O sujeito passivo é o Estado-administração.

1.3.3. Conduta punida

A conduta punida consiste em impedir ou, de qualquer forma, embaraçar a investigação de


infração penal que envolva organização criminosa.

Atenção, pois o legislador omitiu a obstrução do processo judicial correspondente. Essa


omissão pode ser suprida pelo intérprete?

Investigação Processo
Impedir ou embaraçar a investigação caracteriza Caso o agente impeça ou embarace o processo,
o art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13. há duas correntes.

Há duas correntes:

436
1ª corrente: a omissão não pode ser suprida, pois seria analogia incriminadora,
violando o princípio da legalidade (Cezar Roberto Bitencourt).

2ª corrente: a omissão pode ser suprida, abrangendo a fase do processo, através da


interpretação teleológica ou extensiva (Rogério Sanches, Nucci, LFG). Este é o mesmo
raciocínio que o STF faz quanto ao crime de introduzir celular em presídios,
estendendo a interpretação para o fato de introduzir chips e carregadores em
presídio. A intenção do legislador é punir qualquer conduta capaz de impedir ou
embaraçar a persecução penal, nas suas duas fases (inquérito policial e processo).
Zaffaroni afirma que a interpretação extensiva deve ser excepcional e utilizada quando
qualquer outra interpretação resultar em um absurdo.

Cuidado, pois o crime é de execução livre, podendo ser praticado com violência, grave
ameaça, fraude etc. Aliás, usando o agente, na obstrução, de violência ou grave ameaça
contra autoridade ou qualquer outra personagem atuante na persecução penal, não há que
se cogitar do crime de coação no curso do processo, tipificado no art. 344 do CP, punido com
pena de 1 a 4 anos de reclusão:

Art. 344 - Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou

alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a

intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral:

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

Prevalece, na hipótese, o princípio da especialidade. Conclusão outra gera um absurdo


inaceitável, desafiando a proporcionalidade e a razoabilidade.

Exemplos:

i) Fulano embaraça investigação de organização criminosa da qual não faz parte, ameaçando
pessoas não ligadas a persecução penal. Estará configurado o art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13,
punido com pena de 3 a 8 anos;

ii) Fulano embaraça investigação de organização criminosa da qual não faz parte, ameaçando
o Delegado de Polícia ou testemunhas. Nesse caso, estará configurado o crime do art. 2º, §
1º, da Lei 12.850/13, punido com pena de 3 a 8 anos. Não pode configurar o crime do art.
344 do CP, que tem pena de 1 a 4 anos.

Trabalha-se com o princípio da especialidade.

437
Rogério entende que o agente não poderia ser punido com menos ameaçando o mais, e ser
punido com mais ameaçando o menos. Para ele, constitui violação da proporcionalidade e
da razoabilidade.

1.3.4. Voluntariedade

O crime é punido somente a título de dolo.

1.3.5. Consumação

Tratando-se do verbo “impedir”, a consumação se dá com a obstrução da investigação ou


curso do processo (de acordo com a 2ª corrente). Nessa hipótese, é admitida a tentativa.

No núcleo embaraçar, dispensa-se o resultado naturalístico, consumando-se o crime com


qualquer conduta indicativa de empecilho. Também admite tentativa: o agente tenta
praticar conduta indicativa de empecilho e não consegue por circunstâncias alheias à sua
vontade.

1.4. Art. 2º, § 2º

O art. 2º, § 2º, da Lei 12.850/13 é uma causa de aumento de pena e assim dispõe:

Art. 2º (...) § 2º As penas aumentam-se até a metade se na atuação da organização

criminosa houver emprego de arma de fogo.

O legislador empregou a expressão “arma de fogo”, diferentemente do que fez no crime de


roubo, em que utilizou a expressão “arma”. Significa que não abrange outro tipo de
instrumento, ainda que fabricado com finalidade bélica.

Seguindo o espírito da jurisprudência majoritária, a incidência da causa de aumento


dispensa a apreensão da arma utilizada no crime, admitindo prova por qualquer outro meio.

1.5. Art. 2º, § 3º

Trata-se de agravante de pena, semelhante a do art. 62, I, do CP, a ser considerada pelo
magistrado na segunda fase do cálculo da pena.

Art. 2º (...) § 3º A pena é agravada para quem exerce o comando, individual ou coletivo,

da organização criminosa, ainda que não pratique pessoalmente atos de execução.

É uma hipótese de aplicação da teoria do domínio do fato. Trata-se do autor que domina o
fato, autor genuíno do crime.

438
1.6. Art. 2º, § 4º

O § 4º, do art. 2º, da Lei 12.850/13 volta a prever causas de aumento de pena.

Art. 2º (...) § 4º A pena é aumentada de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços):

I - se há participação de criança ou adolescente;

II - se há concurso de funcionário público, valendo-se a organização criminosa dessa

condição para a prática de infração penal;

III - se o produto ou proveito da infração penal destinar-se, no todo ou em parte, ao

exterior;

IV - se a organização criminosa mantém conexão com outras organizações criminosas

independentes;

V - se as circunstâncias do fato evidenciarem a transnacionalidade da organização.

Rogério entende que a causa de aumento que tende a aparecer em provas de concurso é a
do inciso V, que trata da transnacionalidade da organização.

Ocorre que a transnacionalidade é elementar do crime de organização criminosa, prevista na


parte final do art. 1º, § 1º, da Lei 12.850/13. Portanto, no que diz respeito ao inciso V, o
aumento ficará sem aplicação, pois essa circunstância aparece como elementar do tipo do
art. 1º, § 1º, sob pena de configurar-se bis in idem.

1.7. Art. 2º, § 5º

O § 5º, do art. 2º, da Lei 12.850/13 prevê uma medida cautelar.

Art. 2º (...) § 5º Se houver indícios suficientes de que o funcionário público integra

organização criminosa, poderá o juiz determinar seu afastamento cautelar do cargo,

emprego ou função, sem prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à

investigação ou instrução processual.

Esta medida cautelar está prevista no art. 319, VI, do CPP, pressupondo o binômio: i)
periculum in mora; e ii) fumus boni iuris, como toda e qualquer cautelar.

Pode ser decretada em qualquer fase da persecução penal, e não apenas na fase do
inquérito policial, abrangendo a fase da investigação ou do processo.

1.8. Art. 2º, § 6º

Art. 2º (...) § 6º A condenação com trânsito em julgado acarretará ao funcionário público a

perda do cargo, função, emprego ou mandato eletivo e a interdição para o exercício de

função ou cargo público pelo prazo de 8 (oito) anos subsequentes ao cumprimento da

439
pena.

Trata-se da previsão de um efeito extrapenal da sentença condenatória definitiva.

Diferentemente do art. 92 do CP cujo parágrafo único exige decisão motivada do juízo para
gerar este efeito, a Lei de Organização Criminosa repetiu o espírito da Lei de Tortura, em que
a perda do cago, emprego ou função é automática, dispensando-se motivação.

Portanto, como já ocorre na Lei de Tortura (art. 1º, § 5º), o efeito é automático, dispensando
decisão motivada do magistrado.

No que tange ao mandato eletivo, a doutrina e a jurisprudência discutem se a questão é


matéria interna corporis do Congresso Nacional ou não. Não há posicionamento definitivo
no STF.

1.9. Art. 2º, § 7º

Art. 2º (...) § 7º Se houver indícios de participação de policial nos crimes de que trata esta

Lei, a Corregedoria de Polícia instaurará inquérito policial e comunicará ao Ministério

Público, que designará membro para acompanhar o feito até a sua conclusão.

A finalidade do dispositivo é garantir a eficiência da investigação policial, impedindo


omissões decorrentes de corporativismo.

O dispositivo é um desdobramento lógico do controle externo da Polícia exercido pelo


Ministério Público. É uma garantia fundamental do cidadão prevista no art. 129, VII, da CR.

Nucci afirma que o dispositivo tem a finalidade de impedir a investigação de membros da


Polícia que integrem organização criminosa, podendo o MP apenas acompanhar a
investigação. Rogério não concorda com esse posicionamento, pois em nenhum momento o
dispositivo quer dizer que o Ministério Público não pode mais investigar, questão já discutida
por ocasião da PEC 37, tendo-se decidido que o Ministério Público pode e deve investigar,
principalmente organização criminosa envolvendo policiais. Até mesmo aqueles que eram
contra a investigação conduzida pelo Ministério Público reconheciam a sua possibilidade
extraordinária em casos de policiais que integram organização criminosa.

Portanto, a atuação da Corregedoria da Polícia, acompanhada pelo Ministério Público,


obviamente não impede o Promotor ou Procurador de conduzir a investigação. Na visão de
Rogério, isso seria um absurdo, pois a condução da investigação nesse caso por órgão que
não faça parte da Polícia é necessária.

440
Rogério pondera, ainda, que de acordo com jurisprudência pacífica, o Promotor ou o
Procurador que participar ou conduzir a investigação não estará impedido de atuar na ação
penal.

1.10. Crimes ocorridos na investigação e na obtenção de provas

Há um capítulo próprio na Lei 12.850/13 prevendo crimes ocorridos na investigação e na


obtenção de provas. O legislador decidiu criar crimes ligados à investigação e obtenção de
provas em crimes de organização criminosa. São crimes novos, que buscam inibir
comportamentos que prejudiquem a investigação e a obtenção de provas.

A Lei 12.850/13 anunciou importantes meios de obtenção de provas, notadamente: i)


colaboração premiada; ii) agente infiltrado; e iii) quebra de sigilo de dados.

O legislador criou crimes para inibir comportamentos que prejudiquem esses meios
extraordinários de obtenção de prova.

1.10.1. Art. 18

Art. 18. Revelar a identidade, fotografar ou filmar o colaborador, sem sua prévia

autorização por escrito:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

O art. 5º, II, da Lei 12.850/13 assegura ao agente colaborador sigilo quanto à identidade. O
inciso V, por sua vez, enuncia que é direito do agente colaborador não ter sua identidade
revelada por qualquer meio de comunicação sem sua prévia autorização.

A finalidade de tais segredos é não apenas preservar o meio de obtenção de provas (a


eficácia da colaboração), mas também a segurança do agente colaborador. Este, inclusive, é
o bem jurídico tutelado pelo dispositivo.

Em relação ao sujeito ativo, o crime é comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa. A
vítima é o Estado, periclitado na sua tarefa de obtenção de provas e o próprio agente
colaborador.

Trata-se de crime de ação múltipla, punindo os seguintes comportamentos (alternativos):

i) revelar (dar conhecimento), de qualquer modo, a identidade do agente colaborador;

ii) fotografar o agente colaborador;

iii) filmar o agente colaborador.

441
Atenção, pois nas três formas de execução é imprescindível que o autor do crime aja sem
prévia autorização por escrito do agente colaborador. O fato será atípico se a pessoa tiver tal
autorização.

Pune-se somente a forma dolosa da conduta (leia-se: vontade consciente de revelar


identidade, fotografar ou filmar pessoa que sabe ser agente colaborador), dispensando
finalidade especial animando a conduta do agente.

Se houver dúvida quanto à identidade do agente colaborador, poderá caracterizar dolo


eventual.

Consuma-se o crime com a prática de qualquer dos núcleos, sendo perfeitamente possível a
tentativa. Trata-se de crime plurisubssistente (a execução pode ser fracionada em vários
atos).

1.10.2. Art. 19

Este crime pune o agente colaborador:

Art. 19. Imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de

infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações sobre a estrutura

de organização criminosa que sabe inverídicas:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Trata-se do agente colaborador que colabora de forma fraudulenta. O dispositivo trata da


falsa colaboração.

Junto com a administração da justiça, o art. 19 tutela de forma mediata, a honra da pessoa
inocente a quem o colaborador imputou a prática da infração penal.

Figura como sujeito ativo o agente colaborador, nos termos do art. 4º da Lei 12.850/13.
Conforme dispõe o art. 4º, § 14, o agente renuncia, na presença de seu defensor, ao direito
ao silêncio e presta o compromisso de dizer a verdade:

Art. 4º (...) § 14. Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de

seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a

verdade.

Há crítica em relação à expressão “renuncia”. Trata-se de impropriedade do legislador, na


medida em que o direito ao silêncio constitui-se em direito fundamental, que tem como

442
característica inerente a irrenunciabilidade. O ideal, portanto, é falar em não exercício do
direito ao silêncio.

A vítima imediata é o Estado, além da pessoa objeto da injusta provocação (vítima eventual
mediata).

O tipo incrimina dois comportamentos alternativos:

i) colaboração caluniosa:

A primeira conduta típica consiste em imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com
a justiça, a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente.

O agente colaborador, durante a negociação da colaboração premiada, atribui a alguém


(pessoa certa e determinada) infração penal sabidamente falsa.

Haverá o crime quando o fato imputado jamais ocorreu (é a chamada falsidade que recai
sobre o fato) ou, quando real o acontecimento, não foi a pessoa apontada o seu autor (a
falsidade recai sobre a autoria do fato).

Diferentemente da denunciação caluniosa (art. 339 do CP), dispensa-se que da falsa


imputação ocorra a instauração de procedimento oficial em face do inocente imputado. No
crime do art. 339 do CP é imprescindível que seja instaurado procedimento oficial.

ii) colaboração fraudulenta:

Na segunda conduta típica, o colaborador revela informações sobre a estrutura de


organização criminosa que sabe inverídicas, podendo confundir as autoridades na difícil
investigação que busca desmantelar o grupo criminoso.

A Lei 12.850/13 orienta a, sempre que possível, registrar os atos da colaboração.

Pune-se apenas a título de dolo. O agente deve saber que pratica colaboração caluniosa ou
fraudulenta.

É indispensável que o sujeito ativo tenha consciência de que a imputação à pessoa inocente
é falsa. A dúvida pode configurar dolo eventual. Na segunda parte (colaboração
fraudulenta), deve saber que as informações reveladas são inverídicas. De acordo com a
leitura do tipo, a dúvida parece configurar fato atípico.

Obviamente, a boa-fé exclui o dolo. Ex.: agente colaborador acreditava que as informações
eram verídicas, ainda que efetivamente não sejam.

443
O crime se consuma com a falsa imputação ou com a revelação de informações não
verdadeiras, dispensando efetivo prejuízo para a administração da justiça.

Tratando-se de crime plurissubsistente, é possível a tentativa.

1.10.3. Art. 20

Art. 20. Descumprir determinação de sigilo das investigações que envolvam a ação

controlada e a infiltração de agentes:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

A ação controlada e a infiltração de agentes são meios extraordinários de obtenção de


prova.

Com o objetivo de garantir o êxito da investigação, sem desconsiderar a necessidade de


preservar os protagonistas das diligências, o crime do art. 20 incrimina a violação do sigilo
envolvendo ação controlada e infiltração de agentes.

Figura como sujeito ativo apenas o personagem que atua na persecução penal de
organização criminosa. Trata-se de delito próprio. São as pessoas que, em razão do cargo,
devem guardar sigilo. Isso, contudo, não impede que particular concorra para o crime.

Sujeito passivo é o Estado-administração. São vítimas mediatas os outros personagens que


tiveram a segurança periclitada por conta da ação de outro servidor que violou o sigilo da
ação controlada ou da infiltração de agentes.

A conduta punida pelo tipo consiste em descumprir determinação (legal ou judicial) de sigilo
das investigações que envolvam a ação controlada e a infiltração de agentes. O sigilo pode
ser imposto por lei ou pelo magistrado.

Dispõe o art. 8º, §§ 2º e 3º:

Art. 8º - Consiste a ação controlada em retardar a intervenção policial ou administrativa

relativa à ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada, desde que mantida

sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento

mais eficaz à formação de provas e obtenção de informações.

§ 2º A comunicação será sigilosamente distribuída de forma a não conter informações que

possam indicar a operação a ser efetuada.

§ 3º Até o encerramento da diligência, o acesso aos autos será restrito ao juiz, ao

Ministério Público e ao delegado de polícia, como forma de garantir o êxito das

investigações.

444
O art. 10 acrescenta:

Art. 10. A infiltração de agentes de polícia em tarefas de investigação, representada pelo

delegado de polícia ou requerida pelo Ministério Público, após manifestação técnica do

delegado de polícia quando solicitada no curso de inquérito policial, será precedida de

circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial, que estabelecerá seus limites.

Os dispositivos trabalham o sigilo envolvendo a ação controlada e a infiltração de agentes.

O crime pode ser praticado por ação e omissão.

Existe o crime mesmo que a revelação se dê a outro funcionário sem acesso ao segredo.

Na Lei 12.850/13, protege-se apenas o sigilo das investigações, não abrangendo o do


processo. A revelação de sigilo do processo configura o crime do art. 325 do CP.

Havendo justa causa para a revelação do sigilo, poderá ser excluído o caráter criminoso do
fato.

O crime é punido a título de dolo.

Consuma-se com a revelação do sigilo. Se praticado por ação, admite tentativa. A tentativa
também é admitida em caso de omissão imprópria.

1.10.4. Art. 21

Art. 21. Recusar ou omitir dados cadastrais, registros, documentos e informações

requisitadas pelo juiz, Ministério Público ou delegado de polícia, no curso de investigação

ou do processo:

Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

O bem jurídico tutelado é a administração da justiça.

Figura como sujeito ativo qualquer pessoa a quem se dirige a requisição (e que tenha poder-
dever de obedecê-la). Trata-se de crime comum.

Servidor público não pratica este crime, e sim o de prevaricação.

O sujeito passivo é o Estado-administração, desprestigiado na ordem.

Pune-se o agente recusar (não aceitar) ou omitir (deixar de fazer) dados cadastrais, registros,
documentos e informações requisitadas pelo juiz, Ministério Público ou delegado de polícia,
no curso de investigação ou do processo.

445
De acordo com os arts. 15, 16 e 17, da Lei 12.850/13, não só o juiz, como também delegado
e Ministério Público terão acesso direto a determinados dados cadastrais. Ex.: itinerários de
viagens, números das contas bancárias etc.

As informações requisitadas devem se restringir, única e exclusivamente, aos dados


cadastrais. Isso porque o mero acesso a dados cadastrais não implica em quebra de sigilo
pessoal, quer de ordem fiscal, quer de comunicação.

O crime é punido a título de dolo.

A consumação se dá com a recusa ou omissão. Trata-se de crime omissivo próprio, que não
admite tentativa.

O parágrafo único do art. 21 pune com a mesma pena quem, de forma indevida, se apossa,
propala, divulga ou faz uso dos dados cadastrais de que trata a Lei.

Art. 21 (...) Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem, de forma indevida, se apossa,

propala, divulga ou faz uso dos dados cadastrais de que trata esta Lei.

Apesar do silêncio da redação típica, parece evidente que os cadastros devam conter
informações sigilosas.

1.10.5. Alteração do art. 288 do CP

Atenção, pois o art. 24 da Lei 12.850/13 alterou o art. 288 do CP, que passa a se chamar
associação criminosa e vigorar com a seguinte redação:

Art. 24. O art. 288 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal),

passa a vigorar com a seguinte redação:

“Associação Criminosa

Art. 288. Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.

Parágrafo único. A pena aumenta-se até a metade se a associação é armada ou se houver

a participação de criança ou adolescente.” (NR)

Tabela explicativa:

Art. 288 do CP (antes da Lei 12.850/13) Art. 288 do CP (depois da Lei 12.850/13)
Associarem-se mais de três pessoas, em Associarem-se três ou mais pessoas, para o fim
quadrilha ou bando, para o fim de cometer específico de cometer crimes
crimes

446
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos
Parágrafo único. A pena aplica-se em dobro, se a Parágrafo único. A pena aumenta-se até a
quadrilha ou bando é armado metade se a associação é armada ou se houver a
participação de criança ou adolescente

2 – Aspectos processuais

2.1. Introdução

2.1.1. Objeto da Lei 12.850/13

O art. 1º da Lei 12.850/13 dispõe sobre o objeto da lei:

Art. 1º Esta Lei define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os

meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser

aplicado.

Os meios de obtenção de prova e a investigação, assim como o procedimento são tratados


no Capítulo II da Lei, a partir de seu art. 3º:

Art. 3º Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já

previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova:

I - colaboração premiada;

II - captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos;

III - ação controlada;

IV - acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes

de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais;

V - interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos da legislação

específica;

VI - afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação

específica;

VII - infiltração, por policiais, em atividade de investigação, na forma do art. 11;

VIII - cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na

busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instrução criminal.

Veja que o caput do art. 3º fala em persecução penal. Portanto, pelo menos em tese, os
meios de obtenção de prova podem ser utilizados na investigação ou no curso do processo.

O artigo indica alguns meios de obtenção de prova que podem ser utilizados na investigação
de crimes praticados por organizações criminosas. Contudo, nem todos os meios de

447
obtenção de prova estão regulamentados na Lei 12.850/13, que dispõe apenas sobre
colaboração premiada, ação controlada, acesso a registro de ligações telefônicas e
telemáticas e dados cadastrais, assim como infiltração por policiais.

2.1.2. Distinção entre meios de obtenção de prova e meios de prova

A Lei fala em meios de obtenção de prova e não em meios de prova. As expressões não são
sinônimas e é preciso ter cuidado com a terminologia.

Fontes de prova são as pessoas ou coisas exteriores ao processo e que têm algum
conhecimento sobre o fato delituoso. É tudo o que está relacionado ao fato delituoso. São
anteriores ao processo e sua introdução no processo ocorre através dos meios de prova.

Ex.: ocorrido um crime em um estúdio de televisão, as pessoas que presenciaram, as


impressões digitais, as cápsulas da arma, são fontes de prova. A introdução dessas fontes de
prova no processo dar-se-á pelos meios de prova (oitiva das testemunhas em juízo, exames
periciais etc.).

Meios de obtenção de prova são procedimentos investigatórios realizados sem o


conhecimento prévio do investigado, cujo objetivo é conseguir coletar provas materiais, que
podem ser realizados por outros funcionários que não o juiz.

A surpresa é característica inerente, ou seja, o acusado não pode tomar ciência do


procedimento investigatório, tendo em vista que poderá tomar medidas para impedir o
conhecimento pelo Estado desses meios de prova.

Ex.: busca domiciliar é um meio de obtenção de prova. É preciso ter em conta que busca e
apreensão não são um único meio de obtenção de prova. A busca pode ser pessoal ou
domiciliar. Pode haver busca sem apreensão.

Atualmente, dá-se especial importância às técnicas especiais de investigação (TEI) ou meios


extraordinários de obtenção de prova. O CPP é da década de 1940 e prevê meios de
obtenção de prova arcaicos e desatualizados com a atual sistemática das organizações
criminosas. Com o passar dos anos, o legislador começou a perceber que o Estado precisava
se modernizar em relação aos meios de obtenção de prova.

As TEI são ferramentas sigilosas, postas à disposição do Estado para a apuração e persecução
de crimes graves, que exijam o emprego de estratégias investigativas distintas das
tradicionais (baseadas normalmente em prova documental ou testemunhal). São novos
procedimentos investigatórios. Caracterizam-se por dois elementos: sigilo e dissimulação.

448
O sigilo é inerente à eficácia das TEI. O Estado também se vale de métodos dissimulados
para que o acusado não tome conhecimento do procedimento investigatório. As TEI’s Foram
pensadas para o crimes de tráfico de droga, e posteriormente utilizadas em relação ao crime
de organização criminosa.

Meios de prova, por fim, são os instrumentos através dos quais as fontes de prova são
introduzidas no processo. Os meios de prova, ao contrário das fontes, referem-se a
atividades endoprocessuais, desenvolvidas perante o juiz. O contraditório e a ampla defesa
são elementos inerentes para a caracterização dos meios de prova.

2.2. Colaboração premiada

2.2.1. Conceito e origem

A colaboração premiada é tratada de forma detalhada nos arts. 4º, 5º, 6º e 7º da Lei
12.850/13. Esses dispositivos constituem um regramento geral da colaboração premiada.

Está relacionada à ideia da traição. O Estado acaba interessando-se por essa traição. As
organizações criminosas possuem um caráter coeso muito marcante e o Estado reconhece
que não possui meios de obter informações senão por intermédio de um dos integrantes
desses grupos.

A origem está relacionada ao direito anglo-saxão, principalmente aos EUA e Itália (no
combate à máfia). Utiliza-se a expressão crown witness.

Colaboração premiada nada mais é do que uma técnica especial de investigação ou meio de
obtenção de prova por meio do qual o Estado oferece ao coautor ou partícipe um prêmio
legal, em troca de informações relevantes para a persecução penal. Trata-se de uma
negociação. O Estado é incapaz de resolver o problema da criminalidade e realiza uma troca
com o criminoso, oferecendo prêmios em troca de informações. Os prêmios vão desde uma
causa de diminuição de pena até uma possível extinção da punibilidade pelo perdão judicial.

2.2.2. Distinção entre colaboração premiada e delação premiada

Muitos doutrinadores insistem em utilizar o termo delação premiada. A tendência atual é


utilizar a expressão colaboração premiada.

A expressão colaboração premiada deve ser compreendida como gênero do qual a delação
premiada é uma das espécies. A delação premiada pressupõe que a pessoa incrimine os
comparsas. Fala-se, portanto, em delação quando houver a incriminação de comparsas pelo

449
coautor ou partícipe. O acusado confessa a prática delituosa e incrimina antigos comparsas.
A delação é também denominada “chamamento de corréu”.

Há outras espécies de colaboração premiada. O acusado pode ser útil não apenas
identificando seus comparsas, mas também prestando outras informações relevantes. Ex.:
acusado ajuda com a localização da vítima com sua integridade física preservada. Neste
caso, não há delação e sim colaboração premiada.

A expressão delação premiada deve ser evitada, pois traz em si a ideia pejorativa de traição.

Renato Brasileiro sugere que em provas utilize-se a expressão colaboração premiada caso o
candidato perceba que o examinador faz tal distinção. Contudo, a tendência é que
examinadores mais antigos não façam tal distinção, utilizando as expressões como
sinônimas.

2.2.3. Ética, moral e motivação do colaborador

A colaboração premiada é compatível com a ética e a moral? E a motivação do colaborador,


é importante?

Alguns doutrinadores são contrários à colaboração premiada sob o argumento da


contrariedade do instituto com a ética e a moral. O Estado estaria incentivando a traição,
comportamento antiético e imoral, concedendo um prêmio ao traidor. Tal entendimento
deve ser utilizado em provas de Defensoria Pública.

Renato Brasileiro pondera que tal entendimento não é majoritário. Isso porque falar em
ética e moral dentro de uma organização criminosa soa contraditório. As organizações
criminosas não prezam pela ética e moral. Ex.: integrantes do PCC determinam, de dentro do
presídio, julgamento sumários, execução de policiais etc.

Não há como negar que é perfeitamente possível a colaboração premiada sem qualquer
violação da ética e da moral, que sequer existem dentro de uma organização criminosa.

A motivação do colaborador não interessa. Quando o Estado faz um acordo de colaboração


premiada, interessa unicamente a relevância das informações prestadas pelo criminoso, que
devem ser objetivamente eficazes para atingir um dos resultados previstos em lei. Não
interessa, portanto, se o criminoso está arrependido, quer prejudicar comparsas ou se
corrompeu pelo prêmio oferecido.

2.2.4. Direito ao silêncio

450
O direito ao silêncio está previsto no art. 5º, LXIII, da CR. Tal dispositivo estabelece que o
preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe
assegurada a assistência da família e de advogado.

É um dos desdobramentos do direito à não autoincriminação. Ninguém é obrigado a


colaborar com sua própria destruição.

A colaboração premiada é compatível com o direito ao silêncio, pois o indivíduo confessa e


presta informações, ou seja, opta pelo não exercício desse direito. É a mesma ideia da
confissão. O acusado não é obrigado a confessar, razão pela qual a confissão é compatível
com o direito ao silêncio, desde que o acusado seja informado de que não é obrigado a
produzir prova contra si mesmo.

Portanto, a colaboração premiada é compatível com o direito ao silêncio, desde que o


acusado seja informado de que não é obrigado a produzir prova contra si mesmo.

No acordo de colaboração premiada é obrigatória a presença de um defensor para o


acusado. Essa presença é obrigatória exatamente para que seja assegurado o direito ao
silêncio. Portanto, o acusado será orientado pelo defensor a optar pelo direito ao silêncio ou
colaborar com o Estado.

O art. 4º, § 14 assim dispõe:

Art. 4º (...) § 14. Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de

seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a

verdade.

A Lei estabelece que o indivíduo renuncia ao direito ao silêncio na presença do defensor e


estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade. Poderia o acusado responder por
falso testemunho, se mentir?

Há, ainda, o crime do art. 19 da Lei 12.850/13, já analisado, que trata de imputar falsamente
a prática de crime a pessoa que sabe ser inocente ou divulgar informação falsa sobre a
organização criminosa:

Art. 19. Imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de

infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações sobre a estrutura

de organização criminosa que sabe inverídicas:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Esses dispositivos são compatíveis com o direito ao silêncio?

451
Primeiramente, é importante pontuar que o direito ao silêncio é um direito fundamental e
uma de suas características é a sua indisponibilidade. Ou seja, o indivíduo não pode
renunciar a um direito fundamental. O legislador, portanto, andou mal ao utilizar o verbo
“renunciar”, na medida em que não se pode renunciar a direito fundamental. O colaborador,
em verdade, opta pelo não exercício do direito ao silêncio. Trata-se de impropriedade do
legislador, pois o acusado continua tendo o direito ao silêncio, mas fez uma opção
consentida e informada de que não o exerceria.

O colaborador, obviamente, não responde por falso testemunho porque ele é um dos
coautores ou partícipes e não testemunha do crime.

Em relação ao crime do art. 19, no RE 561.704, o STF entendeu que o direito ao silêncio não
dá ao acusado o direito de praticar o crime de falsa identidade, por não ser um direito
absoluto. É muito comum que a pessoa pratique a falsa identidade para esconder um
passado criminoso. Não há plausibilidade em afirmar que o acusado poderia cometer crimes
em decorrência de seu direito ao silêncio. O acusado, portanto, não é obrigado a produzir
prova contra si mesmo, mas o direito ao silêncio não lhe concede o direito de imputar
falsamente crimes a terceiros inocentes.

Portanto, não há qualquer problema com o crime previsto no art. 19 da Lei 12.850/13.

2.2.5. Previsão legal

Não há como negar que a colaboração premiada já estava inserida no CP, principalmente a
partir da Reforma de 1984. Há, por exemplo, o arrependimento posterior, arrependimento
eficaz, atenuantes de pena para a confissão espontânea, art. 159, § 4º etc.

Até o advento da Lei 12.850/13, não havia sistematização da colaboração premiada, de


forma que seus objetivos variavam conforme a legislação.

Dispositivos legais que tratam da colaboração premiada:

i) art. 8º, parágrafo único, da Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos):

Art. 8º Será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no art. 288 do Código Penal,

quando se tratar de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes

e drogas afins ou terrorismo.

Parágrafo único. O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou

quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços.

452
Nesse artigo, a colaboração visa ao desmantelamento do bando ou quadrilha, agora
denominada associação criminosa, com o prêmio de redução da pena de 1 a 2/3.

ii) art. 159, § 4º, do CP:

Art. 159 (...) § 4º - Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à

autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois

terços. (Redação dada pela Lei nº 9.269, de 1996)

iii) art. 25, §2º, da Lei 7.492/86 (Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional):

Art. 25 (...) § 2º Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou coautoria, o

coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou

judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços. (Incluído pela

Lei nº 9.080, de 19.7.1995)

iv) art. 16, parágrafo único, da Lei 8.137/90 (Lei dos Crimes contra a Ordem Tributária,
Econômica e as Relações de Consumo):

Art. 16. Qualquer pessoa poderá provocar a iniciativa do Ministério Público nos crimes

descritos nesta lei, fornecendo-lhe por escrito informações sobre o fato e a autoria, bem

como indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção.

Parágrafo único. Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou coautoria, o

coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou

judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços. (Parágrafo

incluído pela Lei nº 9.080, de 19.7.1995)

Os dispositivos citados trazem uma colaboração premiada de pouca ou nenhuma relevância


prática, pois o prêmio era apenas uma diminuição da pena de 1 a 2/3. O criminoso não se
sentia estimulado em colaborar com o Estado, haja vista que a traição é punida com pena de
morte no âmbito criminoso.

v) art. 1º § 5º, da Lei 9.613/98 (Lei de Lavagem de Capitais):

Art. 1º (...) § 5º A pena poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em regime

aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer

tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar

espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à

apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à

localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime. (Redação dada pela Lei nº

453
12.683, de 2012)

A Lei 9.613/98 concedeu benefícios mais atrativos. Além da diminuição de pena, pode haver
fixação do regime inicial de cumprimento de pena aberto ou semiaberto,
independentemente do cumprimento dos requisitos previstos no art. 44 do CP.

Faculta-se, ainda, ao juiz, deixar de aplicar a pena (perdão judicial com a consequente
extinção da punibilidade) ou substituí-la por pena restritiva de direitos.

O criminoso autor, coautor ou partícipe precisa colaborar espontaneamente com as


autoridades, prestando informações que conduzam à apuração das infrações penais, à
identificação dos autores, coautores e partícipes ou à localização dos bens, direitos ou
valores objeto do crime.

Cuidado com a conjunção alternativa “ou”. Na antiga Lei de Lavagem de Capitais, esses
requisitos eram cumulativos. A conjunção “ou” indica alternatividade para a concessão do
benefício legal.

A Lei de Lavagem estabelece que a colaboração deve ser espontânea. Para fins de concessão
dos benefícios legais, a colaboração precisa de fato ser espontânea ou basta ser voluntária?
Cuidado, pois voluntariedade e espontaneidade não se confundem.

Espontâneo é algo que parte do indivíduo. O próprio agente deve resolver colaborar, a ideia
deve partir dele. Isso não é necessário para fins de colaboração premiada. O Estado não se
preocupa se o agente recebeu algum tipo de incentivo.

A colaboração, portanto, não precisa ser espontânea, e sim voluntária. Será beneficiado
tanto o indivíduo que espontaneamente resolveu colaborar quanto aquele que resolveu
colaborar após a influência de alguém. O indivíduo somente não poderá ser constrangido a
colaborar.

vi) art. 13 da Lei 9.807/99 (Lei de Proteção à Vítima, às Testemunhas e aos Colaboradores):

Art. 13. Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e

a consequente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha

colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde

que dessa colaboração tenha resultado:

I - a identificação dos demais coautores ou partícipes da ação criminosa;

II - a localização da vítima com a sua integridade física preservada;

III - a recuperação total ou parcial do produto do crime.

454
Parágrafo único. A concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do

beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso.

Essa Lei é de proteção às testemunhas. Por isso, a doutrina entende que a colaboração
premiada nela prevista pode ser usada como regramento geral, e não apenas para
determinado crime, como nos demais dispositivos citados.

vii) art. 41 da Lei 11.343/06 (Lei de Drogas):

Art. 41. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial

e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime e na

recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena

reduzida de um terço a dois terços.

A Lei de Drogas é tímida e traz apenas a diminuição de pena.

viii) art. 86 da Lei 12.529/11 (Crimes contra a Ordem Econômica):

Art. 86. O Cade, por intermédio da Superintendência-Geral, poderá celebrar acordo de

leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de 1

(um) a 2/3 (dois terços) da penalidade aplicável, nos termos deste artigo, com pessoas

físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que

colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa

colaboração resulte:

I - a identificação dos demais envolvidos na infração; e 

II - a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob

investigação.

Art. 87. Nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei nº 8.137, de 27 de

dezembro de 1990, e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais

como os tipificados na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no art. 288 do

Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, a celebração de acordo

de leniência, nos termos desta Lei, determina a suspensão do curso do prazo prescricional

e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência. 

Parágrafo único. Cumprido o acordo de leniência pelo agente, extingue-se

automaticamente a punibilidade dos crimes a que se refere o caput deste artigo.

Trata-se do acordo de leniência, também conhecido como “acordo de brandura” ou “acordo


de doçura”. Nada mais é do que uma espécie de colaboração premiada em crimes contra a
ordem econômica.

455
ix) arts. 4º a 7º da Lei 12.850/13 (Nova Lei de Organizações Criminosas):

Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em

até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos

daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o

processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes

resultados:

I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das

infrações penais por eles praticadas;

II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;

III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;

IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais

praticadas pela organização criminosa;

V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.

A Lei prevê três possíveis prêmios legais: diminuição de pena em até 2/3, substituição por
pena restritiva de direitos e concessão de perdão judicial.

Entretanto, a Lei não determinou para qual crime poderá ser utilizada a colaboração
premiada. Isso porque, atualmente, organização criminosa passou a ser crime, mas o agente
responderá também pelos crimes praticados pela organização. Seria apenas para o crime de
organização criminosa ou também para os crimes praticados pela organização criminosa?

Renato pondera que certamente haverá discussão, mas entende que onde a lei não restringe
não é dado ao interprete fazê-lo, por isso a colaboração premiada poderia ser utilizada em
todos os crimes.

Objetivos:

i) a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações


penais por eles praticadas;

ii) a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;

iii) a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;

iv) a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas
pela organização criminosa;

v) a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada. O legislador não
tratou da integridade psicológica da vítima.

456
Esses objetivos são alternativos. A própria Lei deixa isso claro quando determina que da
colaboração deve advir um ou mais dos resultados:

Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em

até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos

daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o

processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes

resultados:

I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das

infrações penais por eles praticadas;

II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;

III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;

IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais

praticadas pela organização criminosa;

V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.

Claro que se o indivíduo tem mais de uma informação objetivamente eficaz, é interessante
que ele traga todas ao processo, para ser agraciado com o prêmio máximo, que é a
concessão do perdão judicial, com a consequente extinção da punibilidade.

Cuidado para não achar que, prestadas as informações, o indivíduo receberá


necessariamente o prêmio legal. Renato cita o caso de um investigador de polícia que se
associou a criminosos para o cometimento do crime de sequestro. Nesse caso, não há que se
falar em prêmio legal, na medida em que o acusado era um agente do Estado, incumbido
exatamente da investigação de crimes. Para Renato, nessa hipótese, a diminuição de pena
ou extinção da punibilidade seria totalmente descabida.

Art. 4º (...) § 2º Considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público,

a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a

manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela

concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido

previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto-Lei nº

3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).

Alguns doutrinadores entendem que o perdão judicial poderia ser concedido


independentemente da existência do processo. Em consequência disso, o indivíduo sequer
seria processado. Outros entendem que poderia ser concedido no limiar do processo, pois
uma das causas da absolvição sumária é a extinção da punibilidade (art. 397, IV, do CPP).

457
É preciso ter cuidado, todavia, porque o STF possui posicionamento proferido no julgamento
da AP 470 (caso do Mensalão), questão de ordem nº 3, no sentido de que o prêmio da
colaboração premiada não pode ser concedido no início do processo. Por mais que o
indivíduo resolva colaborar, ele terá de ser objeto de denúncia.

Art. 4º (...) § 3º O prazo para oferecimento de denúncia ou o processo, relativos ao

colaborador, poderá ser suspenso por até 6 (seis) meses, prorrogáveis por igual período,

até que sejam cumpridas as medidas de colaboração, suspendendo-se o respectivo prazo

prescricional.

A Lei 12.850/13 prevê a possibilidade de suspensão do oferecimento da denúncia e até


mesmo do processo por até 6 meses, prorrogáveis por igual período. Enquanto o acusado
colabora com o Estado, fica suspenso o oferecimento da denúncia.

Art. 4º (...) § 4o Nas mesmas hipóteses do caput, o Ministério Público poderá deixar de

oferecer denúncia se o colaborador:

I - não for o líder da organização criminosa;

II - for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo.

O MP pode deixar de oferecer denúncia se o colaborador não for o líder da organização


criminosa ou for o primeiro a prestar efetiva colaboração. Verifica-se, nesse dispositivo, que
o prêmio poderá ser concedido no início do processo e que o MP poderá até mesmo deixar
de oferecer denúncia.

2.2.6. Eficácia objetiva da colaboração premiada

Em relação à eficácia objetiva da colaboração premiada, impõe-se a seguinte indagação: as


informações prestadas pelo criminoso precisam ou não ser relevantes? O prêmio é
concedido sem que as intenções subjetivas do agente sejam consideradas. Não basta que o
agente arrependa-se e decida colaborar. O Estado preocupa-se unicamente com a relevância
das informações, que devem ser objetivamente eficazes para atingir um dos objetivos
previstos na lei.

Ex.: acusado indica o local em que se encontra a vítima no momento em que ela ainda se
encontra com vida. Caso a polícia chegue ao local e encontre a vítima morta, o agente não
será beneficiado, haja vista que a vítima não foi encontrada com a integridade física
preservada.

2.2.7. Acordo de colaboração premiada

458
Até o advento da Lei 12.850/13, não havia previsão expressa desse acordo que, no entanto,
era feito na prática.

Na prática, a colaboração premiada é celebrada de maneira informal. Ex.: agente policial


conversa com o criminoso e lhe esclarece do prêmio legal que pode ser concedido caso os
objetivos sejam alcançados, de forma que o criminoso aceita prestar informações relevantes
para a descoberta do produto do crime e identificação dos demais coautores.

Esse acordo informal, entretanto, é deveras perigoso para o criminoso, pois não há
segurança de que os benefícios legais serão de fato levados em consideração pelo juiz. O juiz
sequer participou ou homologou o acordo.

Daí decorre a relevância do acordo de colaboração premiada, celebrado entre o criminoso,


com a presença de seu defensor, e o MP.

Há quem entenda que o delegado de polícia poderia celebrar esse acordo. Renato adverte
que esse posicionamento somente deve ser defendido em provas para delegado. Em outros
concursos, o ideal é defender que o delegado pode sugerir ao criminoso a celebração do
acordo, mas a efetiva celebração deve ser realizada com a presença obrigatória do membro
do MP, titular da ação penal.

O art. 6º dispõe sobre o acordo:

Art. 6º O termo de acordo da colaboração premiada deverá ser feito por escrito e conter:

I - o relato da colaboração e seus possíveis resultados;

II - as condições da proposta do Ministério Público ou do delegado de polícia;

III - a declaração de aceitação do colaborador e de seu defensor;

O defensor deve sempre estar presente quando o acordo for discutido.

IV - as assinaturas do representante do Ministério Público ou do delegado de polícia, do

colaborador e de seu defensor;

V - a especificação das medidas de proteção ao colaborador e à sua família, quando

necessário.

Cuidado, pois o acordo de celebração da colaboração não é condição sine qua non para a
concessão dos benefícios legais. O acordo existe para dar aos envolvidos maior segurança
jurídica, mas não se pode admitir que ao criminoso somente sejam concedidos os prêmios
legais se houver acordo escrito.

2.2.8. Papel do juiz no acordo de colaboração premiada

459
Não se deve permitir que o juiz tenha papel de protagonismo na celebração do acordo, em
razão da garantia da imparcialidade. Não há como negar que haveria graves prejuízos à
imparcialidade do juiz.

O papel do juiz é de distância, exatamente para preservar sua imparcialidade. A Lei foi
categórica nesse sentido:

Art. 4º. (...) § 6º O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a

formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o

investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso,

entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.

O juiz não participa das negociações, das tratativas do acordo. Ou seja, o juiz não deve
conversar com o criminoso e oferecer-lhe um acordo de colaboração premiada, mas é óbvio
que deverá intervir.

Alguns doutrinadores entendem que o juiz jamais deve intervir no acordo. O problema é que
se o juiz não participa em momento algum, a concessão do prêmio no processo poderia
restar inviabilizada (o juiz poderia alegar que o promotor ofereceu o prêmio e que esse não
é o seu entendimento).

Por isso, o art. 4º, § 7º assim determina:

Art. 4º (...) § 7º Realizado o acordo na forma do § 6º, o respectivo termo, acompanhado

das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para

homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade,

podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor.

Portanto, o juiz não participa das tratativas, mas o acordo deverá ser a ele remetido para
homologação. A intervenção do juiz é necessária para fins de homologação, em que ele
deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo, para este fim,
sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor.

O art. 4º, § 8º estabelece que o juiz poderá recusar a homologação do acordo de


colaboração premiada.

Art. 4º (...) § 8º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos

requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto.

2.2.9. Momento para a celebração do acordo de colaboração premiada

460
Não há dúvidas de que a colaboração premiada poderá ser celebrada durante a investigação.
E é nesse momento que ela se revela mais eficaz, pois é na investigação que o Estado precisa
de informações relevantes para o esclarecimento do crime.

Durante o processo de conhecimento também não há problema algum na celebração do


acordo de colaboração premiada.

A pergunta relevante sobre o momento da celebração do acordo é se a colaboração


premiada pode ser celebrada durante a execução criminal, isto é, após o trânsito em julgado
da sentença condenatória.

Até pouco tempo atrás, isso era discussão meramente doutrinária. Ocorre que desde o
advento da Lei 12.683/12, que acrescentou o § 5º ao art. 1º da Lei de Lavagem de Capitais,
isso passou a ser uma realidade.

Art. 1º (...) § 5º A pena poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em regime

aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer

tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar

espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à

apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à

localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime. (Redação dada pela Lei nº

12.683, de 2012)

A Lei 12.683/12 acrescentou a expressão “a qualquer tempo”, isto é, mesmo após o trânsito
em julgado da sentença condenatória. A colaboração premiada pode ser celebrada, assim,
durante a execução criminal. É preciso ter em conta que pode haver a colaboração premiada
após o trânsito em julgado da sentença condenatória, mas as informações ainda assim
devem ser objetivamente eficazes. Um bom exemplo é o criminoso que cumpre pena pelo
crime de lavagem de capitais e decide colaborar para a localização do produto do crime e
das infrações antecedentes.

Durante a execução penal, alguns doutrinadores entendem que a colaboração premiada


exigiria uma revisão criminal. Renato entende que não é caso de revisão criminal, que
pressupõe um erro, devendo a colaboração ser concedida e homologada pelo próprio juiz da
execução.

A própria Lei de Organizações Criminosas traz essa possibilidade:

Art. 4º (...) § 5º Se a colaboração for posterior à sentença, a pena poderá ser reduzida até

a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos

461
objetivos.

A colaboração premiada após o trânsito em julgado pode ser útil para diminuição de pena
ou progressão de regime, ainda que ausentes os requisitos objetivos.

2.2.10. Valor probatório da colaboração premiada

É possível condenar um acusado exclusivamente com base nas informações obtidas com a
colaboração premiada?

Sobre o assunto, a jurisprudência sempre entendeu que isoladamente consideradas, as


informações prestadas pelo criminoso não podem servir para condenar alguém. As
informações poderão ser utilizadas para deflagrar uma investigação ou o oferecimento de
uma denúncia. É o que prevê o § 16 da própria Lei:

Art. 4º. (...) § 16. Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento

apenas nas declarações de agente colaborador.

Trata-se da regra de corroboração. Andrey Borges de Mendonça trata dessa regra. Não basta
que o criminoso confesse a prática delituosa e identifique os demais coautores. Ele deverá,
ainda, trazer fontes de prova aptas a confirmar as informações por ele prestadas. Ex.: agente
indica um coautor e um telefone que ele utiliza para conversar sobre o tráfico, para que a
polícia possa interceptar.

As informações prestadas devem ser confirmadas por outros elementos.

2.3. Ação controlada

2.3.1. Conceito

Ação controlada consiste no retardamento da intervenção do aparato estatal, para que se dê


no melhor momento do ponto de vista da colheita de provas. O Estado já poderia agir para,
por exemplo, efetuar uma prisão em flagrante, mas sabe que, efetuada a prisão em flagrante
naquele momento, teria pouca ou nenhuma eficácia no combate à organização criminosa,
na medida em que poucos elementos de prova seriam colhidos. O Estado retarda a
intervenção do aparato estatal, exatamente para que a intervenção ocorra em um momento
mais eficaz para a colheita de prova.

Ex.: crime de tráfico de drogas. Em Cáceres/MT, um indivíduo acaba de adentrar um ônibus


e o Estado tem a informação de que traz cocaína em sua bagagem. A polícia poderia efetuar
a prisão em flagrante naquele momento. Ocorre que, efetuada a prisão naquele momento,

462
teria pouca eficácia para combater a organização criminosa, pois seria preso apenas um
indivíduo, sem a identificação dos demais componentes da organização criminosa. O Estado
pode, então, utilizar-se da ação controlada: a polícia deixa o indivíduo passar, sob
supervisão, e a prisão é efetuada em momento posterior, subsequente, mais oportuno sob o
ponto de vista da análise do conjunto probatório. No exemplo, a prisão poderia ser feita
quando encontrasse com os demais membros da organização criminosa.

2.3.2. Previsão legal

i) art. 2º da Lei 9.034/95 (antiga Lei de Organizações Criminosas):

Art. 2º Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já

previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas:

(Redação dada pela Lei nº 10.217, de 11.4.2001)

II - a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação

praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida sob

observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais

eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações;

A Lei 9.034/95, revogada pela Lei 12.850/2013, já previa a ação controlada.

ii) art. 4º-B da Lei 9.613/98 (Lei de Lavagem de Capitais):

Art. 4º-B. A ordem de prisão de pessoas ou as medidas assecuratórias de bens, direitos ou

valores poderão ser suspensas pelo juiz, ouvido o Ministério Público, quando a sua

execução imediata puder comprometer as investigações. (Incluído pela Lei nº 12.683, de

2012)

Essa hipótese configura a ação controlada. O juiz, por exemplo, em uma investigação de
lavagem de capitais, poderia determinar o sequestro de bens imediatamente, mas sabe que
isso poderia obstar a localização de outros bens, na medida em que poderiam ser adotadas
medidas para camuflá-los. Retarda-se, portanto, a intervenção, para adotá-la em momento
mais eficaz sob o ponto de vista da colheita de provas.

iii) art. 53 da Lei 11.343/06 (Lei de Drogas):

Art. 53. Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei,

são permitidos, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e ouvido o

Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios: (...)

II - a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou

463
outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro,

com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de

operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível.

Parágrafo único. Na hipótese do inciso II deste artigo, a autorização será concedida desde

que sejam conhecidos o itinerário provável e a identificação dos agentes do delito ou de

colaboradores.

Trata-se de mais uma hipótese de ação controlada.

iv) art.8º da Lei 12.850/13 (Nova Lei de Organizações Criminosas):

Art. 8º Consiste a ação controlada em retardar a intervenção policial ou administrativa

relativa à ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada, desde que mantida

sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento

mais eficaz à formação de provas e obtenção de informações.

A antiga Lei de Organização Criminosa fazia referência apenas ao retardamento da


interdição policial. A nova lei vai além, ao prever que a ação controlada poderá consistir no
retardamento da intervenção policial e administrativa. Ex.: procedimentos administrativos,
como o procedimento de uma corregedoria que está investigando uma infração
administrativa de um servidor.

2.3.3. (Des) necessidade de prévia autorização judicial

A antiga Lei não exigia autorização judicial para a ação controlada. Por isso, alguns
doutrinadores referiam que a ação controlada era descontrolada, pois não havia
necessidade de prévia autorização policial. A polícia levava em frente a ação controlada e
ninguém ficava sabendo disso. A ação controlada, inclusive, era utilizada como falso álibi
para justificar a conduta de policiais corruptos. Não havia controle sobre a ação controlada.

A Lei 9.613/98 estabelece que a ação pode ser suspensa pelo juiz. A Lei 11.343/06 também
exige prévia autorização para a ação controlada.

Renato entende que a necessidade de autorização judicial prévia é um erro, pois a ação
controlada exige rapidez e a autorização judicial pode levar dias para ser analisada. Na visão
de Renato, a Lei 12.850/13 andou bem, pois não prevê a necessidade de prévia autorização
judicial. A Lei prevê apenas que deverá haver prévia comunicação ao juiz competente.

Art. 8º (...) § 1º O retardamento da intervenção policial ou administrativa será

previamente comunicado ao juiz competente que, se for o caso, estabelecerá os seus

464
limites e comunicará ao Ministério Público.

Cuidado, pois a Lei não exige prévia autorização judicial, como faz a Lei 11.343/06. A Lei
12.850/13 apenas diz que o retardamento da intervenção policial ou administrativa será
previamente comunicado ao juiz competente. Não se pode confundir autorização com
comunicação ao juiz.

O melhor entendimento é que a ação controlada continua independendo de prévia


autorização judicial. O que, aliás, é salutar, pois acaba otimizando a utilização dessa técnica
especial de investigação. Exige-se, contudo, comunicação ao juiz competente. O ideal é que
a autoridade policial remeta ofício ao juiz competente comunicando o início da ação
controlada.

A comunicação tem a finalidade de supervisão sobre a ação controlada. Havendo


necessidade, o juiz deverá estabelecer os limites da ação controlada. Ex.: caso de roubo a
casa lotérica em que poderá haver prejuízo à integridade corporal das pessoas.

A ação controlada também é conhecida como flagrante retardado, prorrogado, postergado


ou diferido. É uma exceção à prisão em flagrante obrigatória (flagrante obrigatório é o
executado pelas autoridades policiais).

Cuidado, pois o exemplo de ação controlada da Lei de Lavagem de Capitais não pode ser
chamado de flagrante prorrogado, pois a Lei fala em “ordem de prisão”, ou seja, a prisão é
efetuada com prévia autorização judicial. A única prisão que não precisa de ordem prévia é a
prisão em flagrante. O ideal é entender que a prisão em flagrante continua sendo obrigatória
na Lei de Lavagem. A ação controlada na Lei de Lavagem refere-se a uma possível prisão
preventiva ou temporária.

Conforme já analisado, na Lei 12.850/13 não há necessidade de prévia autorização judicial


para a ação controlada, devendo haver apenas comunicação ao juiz. Questão interessante é
a seguinte: no momento posterior, quando a prisão enfim for efetuada, haverá necessidade
de autorização judicial?

Na ação controlada, a intervenção pode ser retardada, mas a prisão posterior não pode ser
efetuada a qualquer tempo. É preciso ter em conta que a CR estabelece que ninguém será
preso, salvo em flagrante delito ou com prévia ordem judicial. No momento posterior, a
prisão somente poderá ser efetuada pela autoridade policial se o agente estiver em situação
de flagrância ou se existir ordem judicial.

2.3.4. Entrega vigiada

465
Entrega vigiada é a técnica especial de investigação que consiste em permitir que remessas
ilícitas ou suspeitas saiam do território de um ou mais Estados, os atravessem ou neles
entrem, com conhecimento e controle das autoridades, com a finalidade de investigar
infrações e identificar pessoas envolvidas na sua prática.

A Convenção de Palermo, que foi incorporada ao ordenamento jurídico pátrio, prevê a


entrega vigiada.

Ex.: pacote enviado de SP com droga para outra localidade. Ao invés de haver a
interceptação em SP, as autoridades interceptam a droga no local de destino.

Há duas espécies de entrega vigiada: limpa e suja. Na entrega vigiada limpa, há a


substituição do conteúdo da embalagem. A polícia, por exemplo, retira a cocaína da
embalagem e coloca pó de talco em seu lugar, antes que o pacote siga seu caminho normal.
Na suja, a encomenda segue seu destino sem modificação em seu conteúdo.

Na suja, é necessário que a autoridade policial mantenha supervisão.

2.4. Agente infiltrado

2.4.1. Conceito

Agente infiltrado consiste em uma técnica especial de investigação por meio da qual um
agente do Estado é inserido dissimuladamente no seio de uma organização criminosa, com o
objetivo de indicar fontes de prova aptas a desarticulá-la.

É chamado de undercover agent. Tem origem no direito norte-americano.

2.4.2. Previsão legal

A primeira lei que tratou do agente infiltrado foi a revogada Lei de Organização Criminosa.

i) art. 2º da Lei 9.034/95:

Art. 2º Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já

previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas:

(Redação dada pela Lei nº 10.217, de 11.4.2001)

V – infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação,

constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada

autorização judicial. (Inciso incluído pela Lei nº 10.217, de 11.4.2001)

466
A infiltração de agentes poderia ser realizada por agentes de polícia ou de inteligência. No
Brasil, as atividades de inteligência são executadas pela ABIN – Agência Brasileira de
Inteligência. Esse dispositivo era alvo de críticas, pois dentro da persecução penal não
poderia haver infiltração executada por agente de inteligência.

O STJ julgou o HC 149.250, no âmbito da operação Satiagraha, desencadeada pelo delegado


de polícia Protógenes Queiroz, com a participação de integrantes da ABIN, sem autorização
judicial. O STJ entendeu que em se tratando de investigação criminal, não se pode permitir,
sobretudo sem autorização judicial, que agentes da ABIN possam levar adiante
procedimentos típicos de polícia judiciária. O STJ declarou a ilegalidade desse procedimento
investigatório.

ii) art. 53 da Lei 11.343/06 (Lei de Drogas):

Art. 53. Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei,

são permitidos, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e ouvido o

Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:

I - a infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos

especializados pertinentes;

É necessária a autorização judicial. A Lei de Drogas prevê infiltração apenas de agentes de


polícia.

iii) art. 10 da Lei 12.850/13 (Nova Lei de Organizações Criminosas):

Art. 10. A infiltração de agentes de polícia em tarefas de investigação, representada pelo

delegado de polícia ou requerida pelo Ministério Público, após manifestação técnica do

delegado de polícia quando solicitada no curso de inquérito policial, será precedida de

circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial, que estabelecerá seus limites.

A Lei 12.850/13 tratou de forma pormenorizada da infiltração de agentes. O legislador


dispôs sobre a infiltração e regulamentou o seu procedimento.

2.4.3. Atribuição para a infiltração: (im) possibilidade de infiltração de particulares

Na antiga Lei das Organizações Criminosas, agentes de inteligência também poderiam ser
infiltrados. Esse dispositivo foi revogado.

A Lei 12.850/13 estabelece que a atribuição para a infiltração é exclusiva de agentes de


polícia. Agentes de inteligência não possuem mais atribuição para a infiltração.

467
A atribuição depende da natureza do crime investigado. Em tese, a atribuição é somente da
polícia judiciária, civil ou federal. Há quem entenda que a Polícia Militar não poderia realizar
a infiltração. Porém, quando se trata de um crime militar, as polícias militares e as Forças
Armadas têm atribuição de polícia judiciária. Portanto, não há como negar essa
possibilidade.

Particulares podem colaborar como agentes infiltrados? Em uma prova que traga texto de
lei, a resposta deve ser negativa, na medida em que a Lei não faz menção a particulares.

Há, entretanto, alguns doutrinadores que sustentam ser possível que a colaboração
premiada seja utilizada de maneira concomitante com a infiltração. Em um caso concreto,
entendeu-se que seria interessante que o colaborador permanecesse no seio da organização
criminosa, como agente infiltrado, para a descoberta de novas fontes de prova. Seria a única
hipótese, admitida pelo professor Vladimir Aras, de infiltração por particular.

2.4.4. Requisitos para a infiltração

São requisitos para a infiltração

i) prévia autorização judicial do juízo competente:

Essa autorização judicial deverá ser fundamentada e sigilosa. Nessa decisão, o juiz deve
estabelecer os limites da atuação do agente infiltrado, determinando os crimes que poderão
ou não ser praticados pelo agente infiltrado.

É preciso ter cuidado com a teoria do juízo aparente. Na interceptação telefônica essa teoria
fica mais clara, pois a interceptação deve ser autorizada pelo juiz competente. O problema é
que, às vezes, no momento inicial das investigações, o juiz competente aparenta ser um e,
com o prosseguimento das investigações, verifica-se que o crime seria da competência de
outro juiz. Surge o seguinte questionamento: a interceptação decretada por um juiz cuja
competência descobriu-se posteriormente ser de outro juiz é válida? Deverá ser considerada
válida em razão da teoria do juízo aparente.

O juízo competente deve ser verificado de acordo com os elementos probatórios então
existentes.

O mesmo se aplica à infiltração policial. Para a autorização da infiltração, interessam os


elementos de prova existentes à época, ainda que posteriormente a competência seja
alterada.

ii) indícios de infração penal (fumus comissi delicti e periculum libertatis):

468
No momento de decretar a medida, o juiz deve demonstrar que há indícios de infração penal
de que trata o art. 1º da Lei 12.850/13. Cuidado, pois a infiltração pode ser utilizada no
crime de organização criminosa e para os crimes por ela praticados, como também para
infrações penais previstas em tratado internacional de caráter transnacional e organizações
terroristas internacionais.

Veja que a Lei não exige indícios de autoria, mas apenas elementos da probabilidade da
prática de crimes.

iii) indispensabilidade da infiltração:

Trata-se do princípio da proporcionalidade, que se subdivide em necessidade, adequação e


proporcionalidade em sentido estrito. Não deve haver outro procedimento investigatório
menos gravoso, apto a atingir a mesma finalidade no caso concreto. O juiz também deve
sopesar o risco inerente à infiltração policial, pois um agente de polícia passará a agir como
se fosse um criminoso. Haverá risco pessoal e para sua família. Esse risco também deve ser
considerado pelo juiz.

Renato acrescenta um quarto requisito:

iv) concordância do agente de polícia:

Para Renato, a concordância é obrigatória, pois o agente policial não é obrigado a atuar
como integrante de organização criminosa, ainda que o objetivo seja colaborar com o
Estado. A própria Lei estabelece que uma das hipóteses de interrupção da infiltração é a
recusa do agente. O agente tem direito de renunciar ou recusar a atuação infiltrada.

2.4.5. Duração da infiltração

Na interceptação telefônica, o prazo é de 15 dias, renovável por mais 15 dias e prorrogável


sucessivamente, desde que mantida a necessidade. A Lei de Interceptações foi muito tímida,
pois 15 dias é um prazo muito exíguo e a autoridade policial tem de requerer a renovação do
prazo.

A Lei 12.850/13 prevê um prazo mais elástico, de 6 meses, renovável desde que haja
comprovada necessidade:

Art. 10. (...) § 3º A infiltração será autorizada pelo prazo de até 6 (seis) meses, sem

prejuízo de eventuais renovações, desde que comprovada sua necessidade.

469
O prazo limite de seis meses se aplica para cada decisão judicial. Próximo ao final do prazo,
deverá haver nova decisão prorrogando o prazo por até mais 6 meses, e assim
sucessivamente. O que eventualmente for descoberto sem que o prazo tenha sido renovado
será considerado prova ilícita.

2.4.6. Agente infiltrado e agente provocador

Agente infiltrado é um agente de polícia que obtém autorização judicial para ser introduzido
dissimuladamente em uma organização criminosa, de modo a coletar informações
necessárias para o desmantelamento da associação. A atuação do agente infiltrado é inerte,
isto é, o agente não deve incentivar novas práticas delituosas. Deve apenas tomar
conhecimento das que serão praticadas.

Essa atuação caracteriza um flagrante esperado, pois não há ação de provocação da prática
criminosa.

Não se confunde com o agente provocador, que pode ser tanto um particular quanto um
policial. Não depende de prévia autorização judicial e tem papel proativo, induzindo o
criminoso a praticar delitos, e adotando, ao mesmo tempo, precauções para que o crime
não se consume.

Segundo a melhor doutrina, na hipótese do agente provocador, há flagrante preparado ou


delito de ensaio. O flagrante preparado, ao contrário do flagrante esperado, é hipótese de
prisão ilegal que deverá ser relaxada pelo juiz, tão logo seja comunicado da prisão. Aplica-se
a Súmula 145 do STF: não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna
impossível sua consumação.

O agente infiltrado não deve induzir novas práticas delituosas. Deve adotar posicionamento
inerte para a colheita de informações.

2.4.7. Responsabilidade criminal do agente infiltrado

Quando o juiz defere uma autorização para a infiltração do agente, ele deve estabelecer
limites para essa atuação. O agente infiltrado, quando entra na organização criminosa, será
obrigado a praticar crimes, para não levantar suspeitas dos criminosos. Ou seja, o agente
deverá participar da prática de alguns crimes para que as informações sejam obtidas.

O art. 10 da Lei 12.850/13 determina que o magistrado estabeleça limites para a atuação do
agente infiltrado. O problema é que o legislador não diz quais são esses limites.

470
É óbvio que a autorização judicial deve abranger o crime de organização criminosa. Em
relação a outros crimes, a lei silencia. Assim o juiz poderia dar autorização para que o agente
pratique extorsão mediante sequestro?

Renato pondera que, diante do silêncio da lei, o ideal é entender que o juiz poderia autorizar
apenas a prática de crimes de perigo, abstrato ou concreto. Ex.: autorização judicial para que
o agente se infiltre e pratique o crime de tráfico de drogas, além do crime de organização
criminosa. O crime de tráfico é de perigo abstrato e, pelo menos em tese, não resultará na
morte de uma pessoa.

Não se admite, porém, autorização judicial para a prática de crimes de dano pelo agente
infiltrado. Ex.: extorsão mediante sequestro, lesão corporal. Isso porque os fins não
justificariam os meios.

E se, diante da situação fática, o agente infiltrado se veja obrigado a praticar outros crimes,
que não os de perigo, para que sua verdadeira identidade não seja descoberta?

A maioria da doutrina entende que, nesse caso, o agente não responde pelos crimes que
seja obrigado a praticar. Há parte minoritária da doutrina sustentando que nesse caso
haveria uma causa extintiva da punibilidade (o fato seria típico, ilícito e culpável, mas não
seria punível). A melhor posição para concurso é defender que o agente infiltrado não
responde pelo crime em razão de causa excludente da culpabilidade por inexigibilidade de
conduta diversa.

O art. 13 da Lei 12.850/13 estabelece a exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de


conduta diversa, ainda que o legislador tenha falado impropriamente em “não é punível”.

Art. 13. O agente que não guardar, em sua atuação, a devida proporcionalidade com a

finalidade da investigação, responderá pelos excessos praticados.

Parágrafo único. Não é punível, no âmbito da infiltração, a prática de crime pelo agente

infiltrado no curso da investigação, quando inexigível conduta diversa.

O agente infiltrado, ademais, será coagido pelos demais integrantes a praticar os crimes e
não se pode exigir dele conduta diversa. Por isso essa conduta não seria culpável.

2.4.8. Mecanismos de proteção do agente infiltrado

Na legislação anterior não havia qualquer regulamentação acerca dos mecanismos de


proteção do agente infiltrado. A Lei 12.850/13 demonstra preocupação com o agente,
estabelecendo seus direitos no art. 14:

471
Art. 14. São direitos do agente:

I - recusar ou fazer cessar a atuação infiltrada;

A qualquer momento que o agente infiltrado verifique a superveniência de risco, poderá


solicitar ao juiz a suspensão imediata da atuação.

II - ter sua identidade alterada, aplicando-se, no que couber, o disposto no art. 9º da Lei

nº 9.807, de 13 de julho de 1999, bem como usufruir das medidas de proteção a

testemunhas;

A doutrina já sustentava, diante da falta de regulamentação, a aplicação da proteção da Lei


9.807/99 ao agente infiltrado. Dentre as várias medidas previstas nessa lei, havia a alteração
da identidade do indivíduo.

III - ter seu nome, sua qualificação, sua imagem, sua voz e demais informações pessoais

preservadas durante a investigação e o processo criminal, salvo se houver decisão judicial

em contrário;

Não é dado ao juiz revelar a identidade do agente infiltrado. Renato não entende como uma
decisão judicial poderia revelar essas informações. O direito do acusado de acompanhar os
depoimentos não é absoluto e a revelação da identidade do agente infiltrado acarretará em
risco de morte. Trata-se da figura da testemunha anônima. É a testemunha que não tem sua
identidade e qualificação reveladas. A discussão quanto à validade da testemunha anônima
já foi decidida pelo STF no julgamento do HC 90.321, no qual entendeu ser plenamente
possível, desde que haja decisão do juiz no sentido da necessidade de se preservar a
identidade da testemunha.

IV - não ter sua identidade revelada, nem ser fotografado ou filmado pelos meios de

comunicação, sem sua prévia autorização por escrito.

Os meios de comunicação não podem divulgar a identidade do agente infiltrado. O sigilo é


um elemento inerente ao procedimento e à preservação da vida do agente. Há, inclusive, o
crime do art. 20 da Lei 12.850/13, que trata do tema:

Art. 20. Descumprir determinação de sigilo das investigações que envolvam a ação

controlada e a infiltração de agentes:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

2.5. Obtenção de dados cadastrais

A Lei 12. 850/13 passou a regulamentar a obtenção de dados cadastrais:

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Art. 15. O delegado de polícia e o Ministério Público terão acesso, independentemente de

autorização judicial, apenas aos dados cadastrais do investigado que informem

exclusivamente a qualificação pessoal, a filiação e o endereço mantidos pela Justiça

Eleitoral, empresas telefônicas, instituições financeiras, provedores de internet e

administradoras de cartão de crédito.

O delegado e o membro do MP terão acesso, independentemente de autorização judicial,


apenas aos dados cadastrais do investigado.

O art. 15 da Lei 12.850/13 é muito semelhante ao art. 17-B da Lei 9.613/98, com redação
dada pela Lei 12.683/12:

Art. 17-B. A autoridade policial e o Ministério Público terão acesso, exclusivamente, aos

dados cadastrais do investigado que informam qualificação pessoal, filiação e endereço,

independentemente de autorização judicial, mantidos pela Justiça Eleitoral, pelas

empresas telefônicas, pelas instituições financeiras, pelos provedores de internet e pelas

administradoras de cartão de crédito. (Incluído pela Lei nº 12.683, de 2012)

O acesso não depende de autorização judicial. Certamente, o questionamento sobre esse


dispositivo será em relação à intimidade do acusado. Haveria uma exceção à cláusula de
reserva de jurisdição, na medida em que esses dados só poderiam ser obtidos pelo MP e
pela polícia mediante autorização judicial. Esse posicionamento deve ser adotado em provas
de Defensoria.

Renato pondera que não se pode superdimensionar o direito à intimidade. Além disso, o MP
e o delegado somente poderão ter acesso a informações sobre qualificação pessoal, filiação
e o endereço mantidos pela Justiça Eleitoral, empresas telefônicas, instituições financeiras,
provedores de internet e administradoras de cartão de crédito. Essas informações, para
Renato, são de conhecimento público e dizem respeito à identidade da pessoa. Ex.: o MP
não pode, sem autorização judicial, quebrar o sigilo de dados bancários e financeiros.

O art. 17 traz comando para empresas de telefonia:

Art. 17. As concessionárias de telefonia fixa ou móvel manterão, pelo prazo de 5 (cinco)

anos, à disposição das autoridades mencionadas no art. 15, registros de identificação dos

números dos terminais de origem e de destino das ligações telefônicas internacionais,

interurbanas e locais.

Esse dispositivo vem sendo questionado pela doutrina. Paccelli entende que é
inconstitucional, pois dá a impressão de que MP e delegado poderiam ter acesso ao registro

473
de dados telefônicos independentemente de autorização judicial e isso violaria o direito à
intimidade e vida privada.

2.6. Formação do juízo colegiado para o julgamento de crimes praticados por


organizações criminosas

2.6.1. Origem

A formação do juízo colegiado está relacionada aos recentes homicídios de quatro juízes
(Leopoldino Marques do Amaral, Antônio José Machado Dias, Alexandre Martins e Patrícia
Accioli).

A partir do momento em que juízes começam a ser vítimas das organizações criminosas,
surge a ideia do juízo colegiado. A ideia constou do II Pacto Republicano de Estado,
celebrado no ano de 2009.

A ideia básica é que através da criação do juízo colegiado, formado por três magistrados, se
consiga tornar a decisão um pouco mais impessoal. Quando a decisão judicial é proferida por
um único magistrado, é possível que o integrante da organização criminosa queira se vingar
dessa pessoa. O criminoso corporifica sua raiva em uma única pessoa. O juízo colegiado
pretende que essa decisão seja um pouco mais impessoal, despersonalizando a decisão
judicial.

A Lei 12.694/12 prevê o juízo colegiado.

2.6.2. ADI 4.144

A ADI 4.144 foi apreciada em 2012, e se refere a uma Lei estadual de Alagoas. Trata-se da Lei
6.806/07, que criou um juízo colegiado, composto por cinco juízes, para o julgamento das
organizações criminosas.

A Lei federal que tratou do assunto foi a Lei 12.694/12. Porém, muitos estados da federação
já demonstravam preocupação com a matéria, ao criarem varas especializadas para julgar
organizações criminosas.

Um dos juízes do colegiado é o juiz natural que, através de sorteio, convoca outros dois
magistrados.

A ADI 4.144 é importante, pois nela o STF enfrenta a possibilidade de uma lei estadual dispor
sobre o assunto (uma lei estadual prever a criação de juízo colegiado e definir o conceito de
organização criminosa).

474
Segundo o STF, lei estadual não pode dizer o conceito de organização criminosa, ainda que
invocando a Convenção de Palermo, pois isso viola o princípio da legalidade. No HC 96.007, o
STF decidiu que organização criminosa somente pode ser definida por lei federal, aprovada
pelo Congresso Nacional.

O STF decidiu, ainda, que Lei estadual pode dispor sobre a formação do juízo colegiado, pois
o assunto estaria no âmbito da organização judiciária de cada estado.

Por fim, o Tribunal entendeu que não há problema na criação do juízo colegiado, da mesma
forma que existem as Juntas Eleitorais, Turmas Recursais e julgamento pelo Tribunal do Júri,
todos órgãos colegiados. Não há violação ao juiz natural, pois não há prejuízo para a
imparcialidade. Aliás, um magistrado coagido, ameaçado não poderá julgar com
imparcialidade e independência. É importante entender que o juízo colegiado não é a regra,
mas há essa possibilidade, caso seja constatado risco para a integridade física do juiz.

2.6.3. Distinção entre juízo colegiado e juiz sem rosto

Com o advento da Lei, houve quem sustentasse que o legislador teria criado a figura do juiz
sem rosto.

A figura do juiz sem rosto ou secreto foi utilizada na Colômbia e no Peru. Trata-se de um juiz
em relação ao qual não há qualquer conhecimento. A decisão é, inclusive, apócrifa. O juízo
colegiado tem rosto, mas, em vez de um, há três. A Lei criou, portanto, um juízo colegiado,
pois a qualificação dos juízes é conhecida. A única restrição é que não deve haver menção a
eventual voto divergente.

O § 6º do art. 1º da Lei 12.694/12 assim estabelece:

Art. 1º (...) § 6º As decisões do colegiado, devidamente fundamentadas e firmadas, sem

exceção, por todos os seus integrantes, serão publicadas sem qualquer referência a voto

divergente de qualquer membro.  

Portanto, verifica-se que as decisões do colegiado são devidamente fundamentadas.

2.6.4. Requisitos para a formação do juízo colegiado

Art. 1º Em processos ou procedimentos que tenham por objeto crimes praticados por

organizações criminosas, o juiz poderá decidir pela formação de colegiado para a prática

de qualquer ato processual, especialmente:

I - decretação de prisão ou de medidas assecuratórias;

II - concessão de liberdade provisória ou revogação de prisão;

475
III - sentença;

IV - progressão ou regressão de regime de cumprimento de pena;

V - concessão de liberdade condicional;

VI - transferência de preso para estabelecimento prisional de segurança máxima; e

VII - inclusão do preso no regime disciplinar diferenciado.

§ 1º O juiz poderá instaurar o colegiado, indicando os motivos e as circunstâncias que

acarretam risco à sua integridade física em decisão fundamentada, da qual será dado

conhecimento ao órgão correicional.

§ 2º O colegiado será formado pelo juiz do processo e por 2 (dois) outros juízes escolhidos

por sorteio eletrônico dentre aqueles de competência criminal em exercício no primeiro

grau de jurisdição. (...)

i) crimes praticados por organização criminosa:

Pelo menos em tese, não se pode utilizar o juízo colegiado para julgamento do crime de
associação criminosa. Deve-se utilizar qual conceito de organização criminosa, o do art. 2º
da Lei 12.694/12 ou o do art. 1º da Lei 12.850/13?

Há quem defenda que atualmente há dois conceitos de organização criminosa, um utilizado


para a formação do juízo colegiado e outro para a configuração do crime de organização
criminosa.

Renato sustenta que em um ordenamento jurídico não podem existir dois conceitos para o
mesmo instituto. Portanto, se a Lei 12.850/13 é posterior e tratou de maneira diversa, o art.
2º da Lei 12.694/12 foi tacitamente revogado, de forma que o conceito de organização
criminosa deve ser extraído do art. 1º, § 1º, da Lei 12.850/13:

Art. 1º (...) § 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais

pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que

informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer

natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a

4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.

Cuidado, pois a Lei 12.694/12 não foi inteiramente revogada, mas apenas no que diz
respeito ao conceito de organização criminosa.

ii) decisão judicial fundamentada em que deve apontar quais são os riscos à sua integridade
física ou psicológica ou de seus familiares:

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Qualquer ato processual pode ser praticado pelo juízo colegiado. O rol trazido pelo art. 1º da
Lei 12.694/12 é meramente exemplificativo. A formação do colegiado poderá ser feita a
qualquer momento: durante as investigações, o processo ou mesmo na execução penal. Esse
entendimento é extraído dos exemplos de atos trazidos pelo rol do art. 1º.

Há doutrinadores que sustentam que o colegiado deve ser formado a cada ato processual.
Para Renato, esse entendimento viola a necessidade de celeridade processual, de forma que
não é proporcional. Uma vez formado, o colegiado poderá decidir qualquer questão
processual posterior.

O juiz inicialmente competente é mantido no processo e a ele se somam mais dois


magistrados escolhidos por sorteio eletrônico. O juiz, portanto, não escolhe os demais juízes
que comporão o juízo colegiado.

CRIME DE DISCRIMINAÇÃO DOS PORTADORES DO VÍRUS DO HIV E


DOENTES DE AIDS (LEI 12.984/14)

1. Introdução

A Lei 12.984/14 define o crime de discriminação dos portadores do vírus da


imunodeficiência humana (HIV) e doentes de aids.

O art. 3º da CR anuncia ser objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, dentre


outros, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.

O objetivo anunciado está umbilicalmente relacionado com a proteção e promoção da


dignidade da pessoa humana e ao respeito às diferenças, como exigência do pluralismo.

Até o advento da Lei 12.984/14 havia alguns dispositivos trabalhando a punição daqueles
que agem com preconceito.

A Lei 7.716/89, alterada pelas Leis 9.459/97 e 12.288/12, definiu os crimes resultantes de
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, punindo comportamentos
de segregação ou incentivo à segregação. A finalidade da lei é punir a segregação.

No mesmo espírito, o CP, no art. 140, §3º, típica como crime a injúria preconceituosa,
punindo aquele que ofende a dignidade ou decoro da vítima utilizando elementos referentes
a raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

477
O CP pune não a segregação, mas a injúria, a atribuição de qualidades negativas em razão da
etnia, origem etc.

O crime contra a honra, como se percebe, não se confunde com aqueles previstos na Lei
7.716/89.

O crime contra a honra é afiançável, prescritível e de ação penal pública condicionada à


representação. O crime de racismo, por outro lado, é inafiançável, imprescritível e de ação
penal pública incondicionada.

A Lei 12.984/14 procura proibir e punir o preconceito, figurando como vítimas os portadores
do vírus HIV e os doentes de Aids. Portador do vírus HIV é qualquer pessoa infectada pelo
vírus e que na grande maioria das vezes está totalmente saudável. Doente de Aids é a
pessoa na fase da infecção, em que surge várias doenças e infecções oportunistas geradas
pela deficiência do sistema imunológico do doente, resultado da ação do vírus.

Nos vários incisos incriminadores da nova Lei, tem-se condutas típicas de segregação, de
violação do respeito às diferenças e de ofensas à honra do portador de HIV ou doente de
Aids.

Discute-se se os outros ramos do direito não seriam suficientes para coibir o


comportamento incriminado. Já se nota parcela da doutrina criticando a opção legislativa de
criminalizar referidos comportamentos, julgando ter a Casa de Leis ignorado o princípio da
intervenção mínima. De acordo com essa corrente, o direito penal não poderia ter sido
chamado.

Lembram que o direito penal só deve ser aplicado quando estritamente necessário, de modo
que a sua intervenção fica condicionada ao fracasso das demais esferas de controle (direito
penal é subsidiário), observando somente os casos de relevante lesão ou perigo de lesão ao
bem jurídico (direito penal é fragmentário).

Outra corrente, não menos respeitável, aplaude o novel tipo, concluindo que o legislador
nada mais fez do que obedecer mandado constitucional de criminalização previsto (ainda
que implicitamente) no art. 3º, IV, da CR.

O bem jurídico tutelado é a dignidade dos portadores do vírus HIV e doentes de Aids, mais
precisamente o direito de não serem ofendidos ou segregados do meio social em razão da
sua condição de saúde.

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Pergunta-se: e porque não outras doenças (como tuberculosa, malária, hanseníase, câncer
etc.)? Certamente, o legislador se atentou para as estatísticas e o mais discriminado é o
portador do HIV e o doente de Aids.

2. Art. 1º
Art. 1o  Constitui crime punível com reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, as

seguintes condutas discriminatórias contra o portador do HIV e o doente de aids, em

razão da sua condição de portador ou de doente:

I - recusar, procrastinar, cancelar ou segregar a inscrição ou impedir que permaneça como

aluno em creche ou estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou

privado;

II - negar emprego ou trabalho;

III - exonerar ou demitir de seu cargo ou emprego;

IV - segregar no ambiente de trabalho ou escolar;

V - divulgar a condição do portador do HIV ou de doente de aids, com intuito de ofender-

lhe a dignidade;

VI - recusar ou retardar atendimento de saúde.

O art. 1º anuncia condutas dolosas, separadas em seis incisos, indicativas de discriminação. É


imprescindível em qualquer dos incisos, que o sujeito ativo aja movido pelo preconceito em
relação ao portador de HIV ou doente de Aids.

Os três primeiros incisos (I, II e III) buscam coibir obstáculos ou empecilhos colocados de
forma a dificultar ou impossibilitar o ingresso ou a permanência do portador do vírus ou o
doente de Aids em estabelecimentos educacionais de qualquer espécie ou de trabalho, não
importando se públicos ou privados.

O inciso IV trata da segregação (marginalização) no local de trabalho ou de estudo, hipótese


em que a vítima é apartada do convívio dos demais colegas, muitas vezes sob o manto da
falsa justificativa de que à ela (pessoa portadora do vírus ou doente) se está concedendo
tratamento especial.

O inciso V pune a conduta daquele que quer ofender a vítima (animus ofendendi), valendo-
se, para tanto, da divulgação da condição do portador do HIV ou de doente de Aids da
vítima.

Por fim, o inciso VI tipifica a conduta dos profissionais da saúde que recusam ou retardam,
injustificadamente (elemento implícito do tipo), atendimento ao paciente portador do HIV
ou de doente de Aids. Se houver justificativa, não haverá o crime.

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O delito é punido com 1 a 4 anos de reclusão. Portanto, admite suspensão condicional do
processo (art. 89 da Lei 9.099/95). Rogério já imagina doutrina defendendo que o benefício
da Lei 9.099/95 é incompatível com a gravidade do crime que viola a dignidade humana. Se
o legislador não quisesse admitir a suspensão condicional do processo, não teria dado pena
mínima de 1 ano ao crime.

Lembrando que na injúria qualificada pelo preconceito a ação penal é pública condicionada à
representação e no crime de racismo a ação penal é pública incondicionada. A Lei 12.984/14
possui incisos ligados à segregação (racismo) e outros ligados à ofensa (crime contra a
honra). Contudo, todos os incisos são perseguidos mediante ação penal pública
incondicionada.

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