Você está na página 1de 64

O JORNALIVRO DA PANDEMIA

abril×maio×junho×2020

Visões anticapitalistas sobre


os impactos da crise e as
hipóteses revolucionárias
deflagradas pela pandemia
do coronavírus

1
sumário
×estado× Política anticapitalista em tempos de
coronavírus
por David Harvey 04
Bem-vindo ao Estado suicidário
por Vladimir Safatle 08
Guerra pandêmica?
por Acácio Augusto 11

Apocalypse Neoliberal Coordenação editorial Cauê Seignemartin Ameni, Hugo Albuquerque & Manuela Beloni

Realização Autonomia Literária e Panaceia Clube de Livros _ Agradecimentos Guilherme Cienfarani abril 2020
Capa Sobinfluencia _ Ilustrações internas Bicho Coletivo _ Design gráfico Érico Peretta _ Revisão Marcia Ohlson
×vida× Como vencer o capitalismo que se
abastece de desastre?
por Naomi Klein 14
O direito universal à respiração
por Achille Mbembe 16
Coronavírus e a guerra de classes
microbiológica na China
por Coletivo Chuang 19

×público× As contradições mortais dos planos


privados de saúde em uma Era de pestes
por Mike Davis 31
O capitalismo tem seus limites
por Judith Butler 35

×oikonómos× Como enfrentar os impactos econômicos


e sociais do coronavírus no Brasil
por Economistas da UNICAMP 37
Pânico global e incerteza no horizonte
por Álvaro García Linera 44

×entrevistas× “A história também pode se repetir


como tragédia”
com Ailton Krenak 48
A escassez de respiradores expõe a
crueldade do capitalismo neoliberal
com Noam Chomsky 51
Não vamos fazer nada e fingir que
tudo foi apenas um sonho?
com David Graeber 54

×ensaios Sobre a situação epidêmica


filosóficos× por Alain Badiou / Lavrapalavra 56
A religião e a peste
por Giorgio Agamben 59
Não existe solidariedade sem conflito
por Niccoló Barca 60

2
editorial
pela sua caricatura mais trágica e fascista, Jair Bolsonaro,
até respostas heróicas e consequentes como no caso da
Argentina de Alberto Fernández.
O que dizer dos batalhões de médicos de Cuba, a eterna
utopia socialista caribenha, latino-americana e terceiro-
mundista, contrastando com o saqueio de material de
prevenção e tratamento a mando de Trump, cujas tropas e
soldados, tão acostumados a matar e tão pouco habituados a
salvar vidas, conseguem manter uma postura belicosa mesmo
agora – quando, ainda por cima, arrocha sanções e embargos

A pandemia do coronavírus empesteia toda a superfície


da Terra, revelando as contradições de um sistema
socioeconômico brutal, explorador e destruidor do meio-
contra os mesmos cubanos, venezuelanos e iranianos.
E tudo isso gerando uma profunda reflexão e polêmica
entre diversos pensadores, do otimismo de uma Naomi Klein
ambiente. É o devir-real da História: reza a lenda que, certa ao pessimismo de um Giorgio Agamben, passando pela
vez, o grande escritor norte-americano Mark Twain leu seu ponderação militante de um Alain Badiou. Que é do mundo,
próprio obituário em um jornal. Diante do susto, ele convocou que será do mundo?
uma coletiva de imprensa e declarou: Parece-me que as O nosso país, como dito, merece um capítulo à parte, com
notícias sobre a minha morte são manifestamente exageradas. o governo federal sistematicamente negando a gravidade
Digamos que no atual momento, a História tenha feito o da situação, omitindo dados e subnotificando casos,
mesmo, depois de repetidas vezes ter dado provas de que enquanto sabota e confronta prefeitos e governadores que,
seu fim não chegou, ao contrário do que declarou o filósofo surpreendentemente, partem para as políticas de cuidado,
conservador Francis Fukuyama, pelo jeito, desta vez, ela incluso figuras da direita – enquanto, no entanto, Bolsonaro
convocou uma coletiva de imprensa para desmentir os divide o país junto com seu arquiministro Paulo Guedes,
boatos noticiosos. atrasam ajudas sociais e não aparecem com nenhum plano
Vivemos tempos catastróficos, de pandemias e de aporte e salvação da economia.
pandemônios, de resistências e sobrevivências: hoje, pensar O neoliberalismo austericida perde a adesão de muitos
e produzir se tornam necessidades diante de um apocalipse dos seus próceres, mas se torna uma religião fundamentalista
iminente, o qual tem pouco de meramente natural e biológico, entrincheirada no governo. Enquanto Bolsonaro nega a
mas se interrelaciona com um sistema socioeconômico brutal, verdade, violando quarentenas e liberando trilhões para
insalubre e que de tão voltado à guerra e à violência, hoje se os bancos, uma tragédia de proporções desconhecidas
vê em xeque, pois precisa salvar e cuidar – mas não consegue. até mesmo para o Brasil se aproxima: das mortes que se
O fenômeno da pandemia é natural no sentido, apenas e avizinham à quebradeira de uma economia que, a bem da
tão somente, que nossa própria existência social e econômica verdade, já mostrava sinais de debilidade antes da pandemia.
sobre a terra é, ela também, biológica e natural, uma vez que A politização é dada quando o capital revela a sua face,
a técnica e a civilização são a natureza dos humanos – como obrigando trabalhadores a morrerem e a quarentena se
bem pontua a profunda análise do coletivo comunista chinês insurge, também, como necessidade imperiosa de uma greve
Chuang, cujo artigo engrandece esta publicação. viral, que demanda renda universal e relembra a importância
Ainda que o vírus não faça distinção entre ricos e pobres, de um Sistema Único de Saúde (SUS).
seu contágio expõe as fragilidade de uma sociedade de Não há mais tempo. Nem os mortos estão mais em
classes, onde alguns podem não trabalhar e manter suas segurança, como nos lembra Walter Benjamin diante das
rendas, enquanto o cada vez mais precarizado trabalho ameaças fascistas. É tempo para um esforço de antiguerra,
global corre o risco de morrer de fome ao parar. de pensar, escrever e produzir, fazer campanhas, criar redes,
Junto com isso, o que tomamos por humanidade, dar vazão ao conhecimento, mesmo quando não sabemos se
a grande narrativa ocidental que se tornou a narrativa haverá amanhã. E é esta a razão de ser deste jornal que você
universal do mundo globalizado, se vê em um perigo de tem em mãos. Estamos imprimindo a História para que ela
extinção que a coloca, ironicamente, na mesma situação nunca mais seja esquecida.
dos povos indígenas que ela sempre marginalizou,
perseguiu, matou ou deixou morrer.
Nas sábias palavras que um dos maiores intelectuais
indígenas do país, Ailton Krenak, cedeu à esta publicação:
“Quem sabe, quem sempre esteve com o dedo no gatilho
para fazer gente desaparecer não acabe desaparecendo
antes da gente? Porque ao mesmo tempo que nós,
os indígenas, somos a parte da humanidade pronta a
desaparecer, nós também somos a parte da humanidade que
criou anticorpos para entender como habitar outros mundos”.
O risco real do desaparecimento, que antes pertencia
aos que odiávamos, ignorávamos ou, do alto de nossa vã
superioridade, nos compadecíamos é, agora, também nosso,
desvelando um sentimento de urgência e de medo.
A partir daí, respostas variadas de governos ao redor
do planeta dizem mais sobre eles do que sobre o vírus:
desde fechamento dos regimes em Israel e na Hungria,
oportunamente orquestrados por dois governos de extrema-
direita, as “ditaduras do coronavírus”, ou as quedas
de governos como no Kosovo, mas, principalmente, o
negacionismo inconsequente de um Donald Trump, repetido

3
Política anticapitalista em uma economia global que já
estava em péssima condição.
Existem dois aspectos re-
levantes para isso. Primeiro,
tempos de coronavírus Pareceu-me que o modelo
existente de acumulação de
condições ambientais favo-
ráveis ​​aumentam a probabili-
por David Harvey capital já estava com muitos
problemas. Movimentos e
dade de mutações vigorosas.
Por exemplo, é plausível
Tradução Cauê Seigner Ameni protesto estavam ocorrendo esperar que sistemas de su-
em quase todos os lugares primento de alimentos nos
Quarenta anos de neoliberalismo deixaram a população (de Santiago a Beirute), subtrópicos úmidos possam
totalmente exposta e mal preparada para enfrentar uma crise muitos focados no fato de contribuir para isso. Tais
de saúde pública na escala do coronavírus. que o modelo econômico sistemas existem em muitos
dominante não estava funcio- lugares, incluindo na China
nando bem para a maioria da ao sul do Yangtse e o Sudeste
população. Esse modelo neo- Asiático. Em segundo lugar,

A o tentar interpretar,
entender e analisar o
fluxo diário de notícias, te-
e desejos humanos, o desejo
de conhecimento e significa-
do e a busca pela realização
liberal repousa cada vez mais
no capital fictício e em uma
vasta expansão na oferta de
as condições que favorecem
a transmissão rápida através
dos organismos hospedeiros
nho a tendência de localizar em um cenário de mudanças moeda e na criação de dívida. variam muito. Populações de
o que está acontecendo em nos arranjos institucionais, Entretanto, já está enfrentan- alta densidade pareceriam um
dois cenários distintos, mas nas disputas políticas, nos do o problema da demanda alvo fácil para o hospedeiro.
interligados, de como o capi- confrontos ideológicos, nas por ser insuficiente para rea- É sabido que as epidemias de
talismo funciona. O primeiro perdas, nas derrotas, nas lizar os valores que o capital sarampo, por exemplo, apenas
cenário é um mapeamento frustrações e alienações, to- é capaz de produzir. florescem em grandes centros
das contradições internas da das elaboradas em um mun- Como o modelo econômi- populacionais urbanos, mas
circulação e acumulação de do de acentuada diversidade co dominante, com sua legi- morrem rapidamente em re-
capital, à medida que o valor geográfica, cultural, social e timidade decadente e saúde giões pouco populosas.
monetário flui em busca de política. Esse segundo cená- delicada, será que ele pode Conforme os seres huma-
lucro através dos diferentes rio constitui, por assim dizer, absorver e sobreviver aos nos interagem, se movimen-
“momentos” (como Karl minha compreensão prática impactos inevitáveis ​​de uma tam, se disciplinam ou es-
Marx os chama) de produção, do capitalismo global como pandemia? A resposta de- quecem de lavar as mãos, as
realização (consumo), dis- uma formação social distinta, pendia fortemente de quanto formas como as doenças são
tribuição e reinvestimento. enquanto o cenário é sobre tempo a interrupção poderia transmitidas são afetadas.
Este é o arranjo da economia as contradições dentro do durar e se espalhar, pois, Nos últimos tempos, a SARS,
capitalista como uma espiral mecanismo econômico que como Marx apontou, a desva- a gripe aviária e suína pare-
de expansão e crescimento alimenta essa formação so- lorização não ocorre porque cem ter saído da China ou
sem fim. Fica mais compli- cial ao longo de certos cami- as mercadorias não podem do Sudeste Asiático. A China
cado à medida que é anali- nhos dentro da sua evolução ser vendidas, mas porque não também sofreu muito com a
sado, por exemplo, através histórica e geográfica. podem ser vendidas a tempo. peste suína no ano passado,
das rivalidades geopolíticas, Há muito que recusei a implicando no abate em mas-
desenvolvimentos geográ- Espiral produtiva ideia de que a “natureza” sa de porcos e o aumento dos
ficos desiguais, instituições Quando, em 26 de janeiro estivesse fora e separada preços da carne suína. Não
financeiras, políticas estatais, de 2020, li pela primeira vez da cultura, economia e vida digo tudo isso para indiciar
reconfigurações tecnológicas sobre o coronavírus ganhan- cotidiana. Adoto uma visão a China. Existem muitos ou-
e a rede em constante mu- do espaço na China, pensei mais dialética e relacional tros lugares onde os riscos
dança de divisões do trabalho imediatamente nas repercus- da relação metabólica com a ambientais para mutação e
e relações sociais. sões para a dinâmica global natureza. O capital modifi- difusão viral são altos. A gri-
Eu imagino esse modelo da acumulação de capital. ca as condições ambientais pe espanhola de 1918 pode
incorporado, no entanto, em Eu sabia dos meus estudos de sua própria reprodução, ter saído do Kansas e a África
um contexto mais amplo de sobre o modelo econômico mas o faz em um contexto pode ter incubado o HIV /
reprodução social (em lares que bloqueios e interrupções de consequências não inten- AIDS e certamente iniciado
e comunidades), em uma re- na continuidade do fluxo cionais (como as mudanças o Nilo Ocidental e o Ebola,
lação metabólica contínua e de capital resultariam em climáticas) e no contexto de enquanto a dengue parece
em constante evolução com desvalorizações e que, se as forças evolutivas autônomas florescer na América Latina.
a natureza (incluindo a “se- desvalorizações se tornassem e independentes que estão Mas os impactos econômicos
gunda natureza” da urbani- generalizadas e profundas, remodelando perpetuamen- e demográficos da propaga-
zação e do ambiente) e todas isso sinalizaria o início de cri- te as condições ambientais. ção do vírus dependem de
maneira de formações cul- ses. Eu também estava ciente Deste ponto de vista, não fendas e vulnerabilidades
turais, científicas (baseadas de que a China é a segunda existe um desastre verdadei- preexistentes no modelo eco-
no conhecimento), religiosas maior economia do mundo ramente natural. Os vírus nômico hegemônico.
e sociais contingentes que e que, na prática, resgatou o sofrem mutação o tempo Não fiquei indevidamente
as populações normalmente capitalismo global no período todo para ter certeza. Mas as surpreso que o COVID-19
criam no espaço e no tempo. pós-2007–8. Portanto, qual- circunstâncias em que uma tenha sido encontrado ini-
Esses últimos “momentos” quer impacto na economia mutação se torna ameaça- cialmente em Wuhan (embo-
incorporam a expressão ativa chinesa provavelmente teria dora e fatal dependem das ra não seja conhecido onde
das vontades, necessidades sérias consequências para ações humanas. ele se originou). Claramente,

4
os efeitos locais são substan- triunfante do crescimento As autoridades públicas e impostos e subsídios para as

×estado×
ciais e, dado que lá era um chinês foi recebido com ale- os sistemas de saúde foram, empresas e os ricos.
centro de produção sério, gria em certos círculos do em quase todos os lugares, O corporativismo da
provavelmente haveria reper- governo Trump. pegos em flagrante. Quarenta grande indústria farmacêu-
cussões econômicas globais No entanto, histórias de anos de neoliberalismo na tica tem pouco ou nenhum
(embora eu não tivesse ideia interrupções nas cadeias pro- América do Norte e do Sul interesse em pesquisas não
desta magnitude). A grande dutivas globais que passavam e na Europa deixaram o pú- remuneradas sobre doenças
questão era como o contágio por Wuhan começaram a blico totalmente exposto e infecciosas (como toda a ca-
e a difusão poderiam ocorrer circular no noticiário. Estes mal preparado para enfrentar tegoria do coronavírus que
e quanto tempo duraria (até foram amplamente ignorados uma crise de saúde pública são bem conhecidas desde
que uma vacina pudesse ser ou tratados como problemas desse calibre, apesar de sus- a década de 1960). A indús-
encontrada). Experiências pontuais para determinados tos anteriores como a SARS tria farmacêutica raramente
anteriores haviam mostrado produtos ou corporações e o Ebola fornecerem avisos investe em prevenção. Tem
que uma das desvantagens (como a Apple). As desvalo- abundantes e lições convin- pouco interesse em investir
do aumento da globalização rizações foram locais e parti- centes sobre o que seria ne- na prevenção de crises na
é como é impossível impedir culares e não sistêmicas. Os cessário ser feito. Em muitas saúde pública. Adora de-
uma rápida difusão inter- sinais de queda na demanda partes do suposto mundo “ci- senhar curas. Quanto mais
nacional de novas doenças. do consumidor também fo- vilizado”, os governos locais doentes estamos, mais eles
Vivemos em um mundo alta- ram minimizados, embora e as autoridades regionais, ganham. A prevenção não
mente conectado, onde quase empresas como McDonald’s que invariavelmente formam contribui para o valor do
todo mundo viaja. As redes e Starbucks, que tinham a linha de frente da defesa acionista. O modelo de ne-
humanas para potencial di- grandes operações no merca- em emergências de saúde gócios aplicado à provisão
fusão são vastas e abertas. O do interno chinês, precisas- e segurança pública desse de saúde pública eliminou as
perigo (econômico e demo- sem fechar suas portas por tipo, tinham sido privados de capacidades excedentes de
gráfico) era que a interrupção um tempo. A sobreposição financiamento graças a uma enfrentamento que seriam
durasse um ano ou mais. do Ano Novo Chinês com o política de austeridade proje- necessárias em uma emer-
Embora houvesse uma surto do vírus mascarou os tada para financiar cortes de gência. A prevenção não é
queda imediata nos merca- impactos ao longo de janeiro.
dos financeiros quando as A complacência dessa respos-
notícias iniciais foram divul- ta foi mal interpretada.
gadas, foi impressionante As notícias iniciais sobre a
como os mercados atingiram disseminação internacional
novos picos no mês seguinte. do vírus foram ocasionais
As notícias pareciam indicar e episódicas, com um surto
que os negócios estavam nor- grave na Coréia do Sul e em
mais em todos os lugares, ex- alguns outros pontos críti-
ceto na China. Acreditavam cos como o Irã. Foi o surto
que iríamos experimentar italiano que desencadeou a
uma reprise da SARS que primeira reação mais violen-
acabou sendo contida rapi- ta. O colapso do mercado
damente e manteve um baixo financeiro, que começou em
impacto global, apesar de ter meados de fevereiro, oscilou
uma alta taxa de mortalidade um pouco, mas em meados
e criar um pânico desne- de março levou a uma des-
cessário (em retrospecto) valorização líquida de quase
nos mercados financeiros. 30% nas bolsas de valores do
Quando o COVID-19 apa- mundo todo.
receu, a reação dominante A escalada exponencial das
foi descrevê-lo como uma infecções provocou uma sé-
repetição da SARS, tornando rie de respostas muitas vezes
o pânico redundante. O fato incoerentes e às vezes em
de a epidemia ter ocorrido pânico. O presidente Donald
na China, que rápida e impla- Trump fez uma imitação do
cavelmente se moveu para rei Canute diante de uma
conter seus impactos, tam- potencial maré crescente de
bém levou o resto do mundo doenças e mortes. Algumas
a tratar erroneamente o pro- das respostas parecem estra-
blema como algo acontecen- nhas. Ter o Federal Reserve
do “lá” e, portanto, fora do com taxas de juros mais bai-
horizonte (acompanhada por xas diante de um vírus pare-
Sobinfluencia

alguns problemas que sinali- cia estranho, mesmo quando


zam uma visão de xenofobia se reconheceu que a medida
anti-chinesa em certas par- pretendia aliviar os impactos
tes do mundo). O pico que do mercado em vez de impe-
o vírus colocou na história dir o progresso do vírus.

5
nem uma hipótese de traba- em conjunto. Embora as me-
lho suficientemente atraen- didas tenham sido acionadas
te para justificar parcerias alguns dias antes, os modelos
público-privadas. sugerem que muitas mortes
O presidente Trump cor- poderiam ter sido evitadas.
tou o orçamento do Centro Esta é uma informação im-
de Controle de Doenças e portante: em qualquer pro-
dissolveu o grupo de tra- cesso de crescimento expo-
balho sobre pandemias no nencial, existe um ponto de
Conselho de Segurança inflexão além do qual a massa
Nacional no mesmo espí- ascendente fica totalmente
rito que cortou todo o fi- fora de controle (observe
nanciamento de pesquisas, aqui, mais uma vez, o signi-
inclusive sobre as mudanças ficado da massa em relação
climáticas. Se eu quisesse ser à taxa). O fato de Trump ter

bicho coletivo
antropomórfico e metafórico demorado por tantas sema-
sobre isso, concluiria que o nas ainda pode ser oneroso a
COVID-19 é a vingança da muitas vidas.
natureza por mais de qua- Os efeitos econômicos
renta anos de maus-tratos e estão agora fora de controle,
abuso nas mãos de um extra- tanto na China quanto fora aumentaram de US$ 800 condições atuais. O esforço
tivismo neoliberal violento e dela. As interrupções no tra- milhões para US$ 1,4 bilhão em direção ao que André
não regulamentado. balho nas cadeias de produ- entre 2010 e 2018. Gorz descreve como “consu-
Talvez seja sintomático ção das empresas e em certos Essa forma de consu- mismo compensatório” (no
que os países menos neolibe- setores se mostraram mais mismo instantâneo exigiu qual os trabalhadores alie-
rais, China e Coréia do Sul, sistêmicas e substanciais do investimentos maciços em nados deveriam recuperar o
Taiwan e Cingapura, tenham que se pensava inicialmente. infraestrutura de aeroportos ânimo através de um pacote
passado melhor pela pande- O efeito a longo prazo pode e companhias aéreas, hotéis e de férias em uma praia tropi-
mia do que a Itália. Embora ser o de encurtar ou diversi- restaurantes, parques temáti- cal) foi sabotado.
houvesse muitas evidências ficar as cadeias de suprimen- cos e eventos culturais e etc... As economias capitalistas
de que a China lidava mal tos, enquanto se move para Este local de acumulação contemporâneas são 70%
com a SARS, com muita dis- formas de produção menos de capital está agora morto: ou até 80% motivadas pelo
simulação e negação inicial, intensivas de mão-de-obra as companhias aéreas estão consumismo. Nos últimos
desta vez o presidente Xi (com enormes implicações perto da falência, os hotéis quarenta anos, a confiança e
Jinping passou rapidamente para o emprego) e maior estão vazios e o desempre- o sentimento do consumidor
a exigir transparência, tanto dependência de sistemas de go em massa nas indústrias tornaram-se a chave para
nos relatórios quanto nos produção inteligentes. A rup- hoteleira é iminente. Comer a mobilização da demanda
testes, assim como a Coréia tura das cadeias produtivas fora não é uma boa ideia e efetiva e o capital tornou-se
do Sul. Mesmo assim, na implica demitir ou dispensar restaurantes e bares foram cada vez mais orientado pela
China, perdeu-se um tempo trabalhadores, o que diminui fechados em muitos lugares. demanda e pelas necessida-
valioso (apenas alguns dias a demanda final, enquanto Até a comida para viagem des. Essa fonte de energia
fazem toda a diferença). O a demanda por matérias- parece arriscada. O vasto econômica não foi sujeita a
que foi notável na China, no -primas diminui o consumo exército de trabalhadores flutuações violentas (com
entanto, foi o confinamen- produtivo. Esses impactos no na economia de freelancers algumas exceções, como a
to da epidemia à província lado da demanda já teriam e autônomos ou em outras erupção vulcânica da Islândia
de Hubei, com Wuhan no produzido por si só uma leve formas de trabalho precário que bloqueou os vôos transa-
centro. A epidemia não se recessão. estão sendo demitido sem tlânticos por algumas sema-
mudou para Pequim, nem Mas as maiores vulnerabi- meios visíveis de apoio. nas). Mas o COVID-19 não
para o oeste nem para o sul. lidades existiam em outros Eventos como festivais cul- está sustentando uma flutua-
As medidas tomadas para lugares. Os modos de consu- turais, torneios de futebol e ção violenta, mas um colapso
confinar geograficamente mismo que explodiram após basquete, shows, convenções onipotente no coração da
o vírus foram draconianas. 2007–8 caíram com conse- profissionais e de negócios forma de consumismo domi-
Seria quase impossível re- quências devastadoras. Esses e até reuniões políticas em nante nos países mais ricos.
plicar em outros lugares por modos eram baseados na re- torno das eleições estão sen- A forma espiral de acumu-
razões políticas, econômicas dução do tempo de rotativi- do cancelados. Essas formas lação infinita de capital está
e culturais. Os relatórios que dade do consumo. A enxurra- de consumismo experiencial entrando em colapso interior,
saem da China sugerem que da de investimentos em tais “baseadas em eventos” foram de uma parte do mundo para
os tratamentos e as políticas formas de consumo teve tudo encerradas. As receitas dos outra. A única coisa que pode
não foram nada cuidadosos. a ver com a absorção máxima governos locais foram afeta- salvá-lo é um consumismo
Além disso, China e de volumes de capital expo- das. Universidades e escolas em massa financiado pelo go-
Cingapura empregaram seus nencialmente crescentes em estão fechando. verno, evocado do nada. Isso
poderes de vigilância pessoal formas de consumismo rá- Grande parte do modelo exigirá socializar toda a eco-
em níveis invasivos e autori- pida rotatividade. O turismo mais avançado no consu- nomia dos Estados Unidos,
tários. Mas eles parecem ter internacional foi emblemáti- mismo capitalista contem- por exemplo, sem chamar
sido extremamente eficazes co. As visitas internacionais porâneo é inoperável nas isso de socialismo.

6
As linhas de frente Embora os esforços de excessivo e consumo insano, escala necessária. Os pacotes

×estado×
Existe um mito conveniente mitigação estejam conve- alimentando, por sua vez, o de resgate criados em 2008
de que as doenças infeccio- nientemente ocultos na re- monstruoso e a bizarra que- focavam nos bancos, mas
sas não reconhecem classe tórica de que “estamos todos da” de todo o sistema. também envolviam a esta-
social ou outras barreiras juntos nisso”, as práticas, A imprudência desse con- tização da General Motors.
e fronteiras sociais. Como principalmente por parte dos sumo excessivo tem desem- Talvez seja significativo
muitos dizem, há uma certa governos nacionais, sugerem penhado um papel importan- que, diante do desconten-
verdade nisso. Nas epidemias motivações mais sinistras. A te na degradação ambiental. tamento dos trabalhadores
de cólera do século XIX, a classe trabalhadora contem- O cancelamento de voos de e do colapso da demanda
transcendência das barreiras porânea nos Estados Unidos companhias aéreas e a res- do mercado, as três grandes
de classe foi suficientemente (composta predominante- trição radical de transporte e montadoras de Detroit es-
dramática para gerar o nas- mente por afro-americanos, movimentação tiveram con- tejam fechando, pelo menos
cimento de um movimento latino-americanos e mulheres sequências positivas em rela- temporariamente.
público de saneamento e saú- assalariadas) enfrenta a falta ção às emissões de gases de Se a China não pode re-
de que se profissionalizou e de escolha entre contrair a efeito estufa. A qualidade do petir seu papel de 2007–8,
perdurou até os dias de hoje. contaminação em nome de ar em Wuhan está muito me- então o ônus de sair da atual
Se esse movimento foi proje- cuidar e manter os principais lhor, como também ocorre crise econômica agora muda
tado para proteger todos ou recursos da provisão (como em muitas cidades dos EUA. para os Estados Unidos e
apenas as classes altas nem supermercados) abertos ou Os locais de ecoturismo aqui está a ironia final: as
sempre foi uma história clara. ficar desempregada sem be- terão tempo para se recupe- únicas políticas que fun-
Hoje, porém, o diferencial de nefícios (com cuidados de rar das pegadas ambientais. cionarão, tanto econômica
classe e os efeitos e impactos saúde adequados). O pessoal Os cisnes retornaram aos quanto politicamente, são
sociais contam uma histó- assalariado, como eu, podem canais de Veneza. Na medida muito mais socialistas do que
ria diferente. Os impactos trabalhar em casa e receber em que o gosto pelo excesso qualquer coisa que Bernie
econômicos e sociais são fil- seus salários, enquanto os de consumo imprudente e Sanders possa propor e esses
trados através de discrimina- CEOs voam em jatos particu- insensato for reduzido, po- programas de resgate terão
ções “costumeiras” que estão lares e helicópteros para se derá haver alguns benefícios que ser iniciados sob a égide
em toda parte em evidência. isolarem. a longo prazo. Menos mortes de Donald Trump, presumi-
Para começar, a força de As forças de trabalho em no Monte Everest podem ser velmente sob a máscara do
trabalho que deve cuidar do muitas partes do mundo são uma coisa boa. E, embora “make America Great again”.
número crescente de doentes socializadas há muito tempo ninguém diga isso em voz Todos os republicanos que
é altamente seccionada por para se comportarem como alta, o viés demográfico do se opuseram visceralmente
gênero, raça e etnia na maior bons sujeitos neoliberais, o vírus pode acabar afetando ao resgate de 2008 terão que
parte do mundo. Nisso refle- que significa culpar a si mes- as pirâmides etárias, com engolir a seco ou desafiar
te as forças de trabalho ba- mas ou a Deus se algo der efeitos a longo prazo sobre Donald Trump. Este último,
seadas em classe encontradas errado, mas nunca ousar su- os encargos da Previdência se for sagaz, cancelará as elei-
em, por exemplo, aeroportos gerir que o capitalismo pode Social e o futuro da “indús- ções em caráter emergencial
e outros setores logísticos. ser o problema. Mas mesmo tria de assistência médica”. e declarará a origem de uma
Essa “nova classe traba- bons indivíduos que defen- A vida cotidiana diminui e, presidência imperial para sal-
lhadora” está na vanguarda dem o neoliberalismo podem para algumas pessoas, isso var a capital e o mundo dos
e tem o peso de ser a força ver que há algo errado com a será uma bênção. As regras “tumultos e revoluções”.
de trabalho que está com o maneira como esta pandemia sugeridas de distanciamento
maior risco de contrair o vírus está sendo respondida. social podem, se a emer- David Harvey é um ilustre
por meio de seus empregos A grande questão é: quanto gência persistir por tempo professor de Antropologia e
ou de ser demitida sem ter tempo isso vai durar? Pode suficiente, levar a mudanças Geografia no Centro de Pós-
garantias por causa da con- demorar mais de um ano e, culturais. A única forma de Graduação da City University
tenção econômica imposta quanto mais tempo, mais consumismo que quase cer- de Nova Iorque. Seu último
pelo vírus. Há, por exemplo, desvalorização, inclusive da tamente se beneficiará com livro é A Loucura da Razão
a questão de quem pode tra- força de trabalho. Os níveis tudo isso é o que eu chamo Econômica (Boitempo). Esse
balhar em casa e quem não de desemprego quase cer- de economia “Netflix”, que texto foi publicado na Jacobin
pode. Isso aumenta a divisão tamente subirão para níveis atende a “binge watchers” de Brasil.
social, assim como a questão comparáveis ​​aos da década qualquer maneira.
de quem pode se dar ao luxo de 1930 na ausência de inter- Na frente econômica, as
de se isolar ou se colocar em venções estatais maciças que respostas foram condiciona-
quarentena (com ou sem terão que ir contra o mantra das pelo êxodo na crise de
pagamento) em caso de con- neoliberal. As ramificações 2007–8. Isso implicou uma
tato ou infecção. Da mesma imediatas para a economia política monetária ultraflexí-
maneira que aprendi a chamar e para o cotidiano social vel, associada ao resgate dos
os terremotos na Nicarágua são múltiplas. Mas eles não bancos, complementada por
(1973) e na Cidade do México são todos ruins. Na medi- um aumento dramático no
(1995) de “terremotos de clas- da em que o consumismo consumo produtivo conduzi-
se”, o progresso do COVID-19 contemporâneo estava se do pela expansão maciça do
exibe todas as características tornando excessivo, estava investimento em infra-estru-
de uma pandemia de classe, se aproximando do que Marx tura na China. Este último
de gênero e de raça. descreveu como “consumo não pode ser repetido na

7
Bem-vindo ao Estado O espanto, no entanto, não deveria estar lá. Como dizia
Freud: “mesmo a autodestruição da pessoa não pode ser feita
suicidário sem satisfação libidinal”. Na verdade, esse é o verdadeiro
experimento, um experimento de economia libidinal. O
por Vladimir Safatle Estado suicidário consegue fazer da revolta contra o Estado
injusto, contra as autoridades que nos excluíram, o ritual
de liquidação de si em nome da crença na vontade soberana
O governo Bolsonaro reproduz a lógica da guerra no fascismo, e na preservação de uma liderança que deve encenar seu
que não era uma guerra de conquista, mas uma guerra com o ritual de onipotência mesmo quando já está claro como
fim em si mesma em um desejo de autodestruição. Mesmo assim, o sol sua impotência miserável. Se o fascismo sempre foi
há alternativas e precisamos lutar por elas. uma contrarrevolução preventiva, não esqueçamos que
sempre soube transformar a festa da revolução em um ritual
inexorável de auto-imolação sacrificial. Fazer o desejo de
transformação e diferença conjugar a gramática do sacrifício

V ocê é parte de um experimento. Talvez sem perceber,


mas você é parte de um experimento. O destino do
seu corpo, sua morte são partes de um experimento de
da autodestruição: essa sempre foi a equação libidinal que
funda o Estado suicidário.
O fascismo brasileiro e seu nome próprio, Bolsonaro,
tecnologia social, de nova forma de gestão. Nada do que está encontraram enfim uma catástrofe para chamar de sua. Ela
acontecendo nesse país que se confunde com nossa história veio sob a forma de urna pandemia que exigiria da vontade
é fruto de improviso ou de voluntarismo dos agentes de soberana e sua paranoia social compulsivamente repetida
comando. Até porque, ninguém nunca entendeu processos que ela fosse submetida à ação coletiva e à solidariedade
históricos procurando esclarecer a intencionalidade dos genérica tendo em vista a emergência de um corpo social
agentes. Saber o que os agentes acham que estão fazendo é que não deixasse ninguém na estrada em direção ao Hades.
realmente o que menos importa. Como já se disse mais de Diante da submissão a uma exigência de autopreservação
uma vez, normalmente eles o fazem sem saber. que retira da paranoia seu teatro, seus inimigos, suas
Esse experimento do qual você faz parte, do qual te perseguições e seus delírios de grandeza a escolha foi, no
colocaram à força tem nome. Trata-se da implementação entanto, pelo flerte contínuo com a morte generalizada.
de um “Estado suicidário” como disse uma vez Paul Virilio. Se ainda precisássemos de uma prova de que estamos
Ou seja, o Brasil mostrou definitivamente como é o palco lidando com uma lógica fascista de governo, esta seria a
da tentativa de implementação de um Estado suicidário. prova definitiva. Não se trata de um Estado autoritário
Um novo estágio nos modelos de gestão imanentes ao clássico que usa da violência para destruir inimigos. Trata se
neoliberalismo. Agora, é sua face a mais cruel, sua fase de um Estado suicidário de tipo fascista que só encontra sua
terminal. força quando testa sua vontade diante do fim.
Engana-se quem acredita que isto é apenas a já tradicional É claro que tal Estado se funda nessa mistura tão nossa de
figura do necroestado nacional. Caminhamos para além da capitalismo e escravidão, de publicidade de coworking, de
temática da necropolítica do Estado como gestor da morte e rosto jovem de desenvolvimento sustentável e indiferença
do desaparecimento. Um Estado como o nosso não é apenas assassina com a morte reduzida a efeito colateral do bom
o gestor da morte. Ele é o ator contínuo de sua própria funcionamento necessário da economia. Alguns acham
catástrofe, ele é o cultivador de sua própria explosão. Para que estão ouvindo empresários, donos de restaurantes
ser mais preciso, ele é a mistura da administração da morte e publicitários quando porcos travestidos de arautos da
de setores de sua própria população e do flerte contínuo racionalidade econômica vêm falar que pior que o medo da
e arriscado com sua própria destruição. O fim da Nova pandemia deve ser o medo do desemprego.
República terminará em um macabro ritual de emergência de Na verdade, eles estão diante de senhores de escravos que
uma nova forma de violência estatal e de rituais periódicos aprenderam a falar business english. A lógica é a mesma, só
de destruição de corpos. que agora aplicada à toda a população. O engenho não pode
Um Estado dessa natureza só apareceu uma vez na parar. Se para tanto alguns escravos morrerem, bem, ninguém
história recente. Ele se materializou de forma exemplar em vai realmente criar um drama por causa disso, não é mesmo?
um telegrama. Um telegrama que tinha número: Telegrama E o que afinal significa 5.000, 10.000 mortes se estamos
71. Foi com ele que, em 1945, Adolf Hitler proclamou o falando em “garantir empregos”, ou seja, em garantir que
destino de uma guerra então perdida. Ele dizia: “Se a guerra todos continuarão sendo massacrados e espoliados em ações
está perdida, que a nação pereça”. Com ele, Hitler exigia sem sentido e sem fim enquanto trabalham nas condições
que o próprio exército alemão destruísse o que restava de mais miseráveis e precárias possíveis?
infraestrutura na combalida nação que via a guerra perdida. A história do Brasil é o uso contínuo desta lógica. A
Como se esse fosse o verdadeiro objetivo final: que a nação novidade é que agora ela é aplicada a toda a população.
perecesse pelas suas próprias mãos, pelas mãos do que ela Até bem pouco tempo, o país dividia seus sujeitos entre
mesma desencadeou. Esta era a maneira nazista de dar “pessoas” e “coisas”, ou seja, entre aqueles que seriam
resposta a uma raiva secular contra o próprio Estado e contra tratados como pessoas, cuja morte provocaria luto,
tudo o que ele até então havia representado. Celebrando sua narrativa, comoção e aqueles que seriam tratados como
destruição e a nossa. Há várias formas de destruir o Estado coisas, cuja morte é apenas um número, uma fatalidade
e uma delas, a forma contrarrevolucionária, é acelerando em da qual não há razão alguma para chorar. Agora, chegamos
direção a sua própria catástrofe, mesmo que ela custe nossas à consagração final desta lógica. A população é apenas o
vidas. Hannah Arendt falava do fato espantoso de que aqueles suprimento descartável para que o processo de acumulação
que aderiam ao fascismo não vacilavam mesmo quando eles e concentração não pare sob hipótese alguma.
próprios se tornavam vítimas, mesmo quando o monstro É claro que séculos de necropolítica deram ao Estado
começava a devorar seus próprios filhos. brasileiro certas habilidades. Ele sabe que um dos segredos

8
do jogo é fazer desaparecer os corpos. Você retira números Não, essas possibilidades não existem. There is no alternative:

×estado×
de circulação, questiona dados, joga mortos por coronavírus será necessário repetir mais uma vez?
em outra rubrica, abre covas em lugares invisíveis. Essa violência é a matriz do capitalismo brasileiro. Quem
Bolsonaro e seus amigos vindos dos porões da ditadura pagou a ditadura para criar aparatos de crimes contra a
militar sabem como operar com essa lógica. Ou seja, a velha humanidade na qual se torturava, estuprava, assassinava
arte de gerir o desaparecimento que o Estado brasileiro fazia desaparecer cadáveres? Não estavam lá dinheiro de
sabe fazer tão bem. De toda forma, there is no alternative. Itaú, Bradesco, Camargo Correa, Andrade Gutierrez, Fiesp,
Esse era o preço a pagar para que a economia não parasse, ou seja, todo o sistema financeiro e empresarial que hoje tem
para que os empregos fossem garantidos. Alguém tinha que lucros garantidas pelos mesmos que veem nossas mortes
pagar pelo sacrifício. A única coisa engraçada é que sempre como um problema menor?
são os mesmos que pagam. A verdadeira questão é outra, a Na época do fascismo histórico, o Estado suicidário
saber: Quem nunca paga pelo sacrifício enquanto prega o mobilizava-se através de uma guerra que não podia parar.
evangelho espúrio do açoite? Ou seja, a guerra fascista não era uma guerra de conquista.
Pois, vejam que coisa interessante. Na República Ela era um fim em si mesmo. Como se fosse um “movimento
Suicidária Brasileira não há chance alguma de fazer o sistema perpétuo, sem objeto nem alvo” cujos impasses só levam a
financeiro verter seus lucros obscenos em um fundo comum uma aceleração cada vez maior. A ideia nazista de dominação
para o pagamento de salários da população confinada, nem não está ligada ao fortalecimento do Estado, mas a um
de enfim implementar o imposto constitucional sobre movimento em movimento constante. Hannah Arendt falará
grandes fortunas para ter a disposição parte do dinheiro que da “essência dos movimentos totalitários que só podem
a elite vampirizou do trabalho compulsivo dos mais pobres. permanecer no poder enquanto estiverem em movimento
e transmitirem movimento
a tudo o que os rodeia”.
Uma guerra ilimitada que
significa a mobilização total
de todo efetivo social, a
militarização absoluta em
direção a uma guerra que se
torna permanente. Guerra,
no entanto, cuja direção
não pode ser outra que a
destruição pura e simples.
Só que o Estado brasileiro
nunca precisou de uma
guerra porque ele sempre
foi a gestão de uma guerra
civil não declarada. Seu
exército não serviu a
outra coisa que se voltar
periodicamente contra sua
própria população. Esta é a
terra da contrarrevolução
preventiva, como dizia
Florestan Fernandes. A pátria
da guerra civil sem fim, dos
genocídios sem nome, dos
massacres sem documentos,
dos processos de acumulação
de capital feitos através de
bala e medo contra quem se
mover. Tudo isso aplaudido
por um terço da população,
por seus avós, seus pais,
por aqueles cujos circuitos
de afetos estão presos
nesse desejo inconfesso do
sacrifício dos outros e de
si há gerações. Pobres dos
que ainda acreditam que é
possível dialogar com quem
estaria nesse momento
aplaudindo os agentes da SS.
Alternativas existem, mas
Marcelo Fidler

se elas forem implementadas


serão outros afetos que
circularão, fortalecendo

9
aqueles que recusam tal lógica fascista, permitindo enfim mundo que recusa seguir as recomendações de combate à
que eles imaginem outro corpo social e político. Tais pandemia: ele será objeto de um cordão sanitário global, de
alternativas passam pela consolidação da solidariedade um isolamento como foco não controlado de proliferação de
genérica que nos faz sentir em um sistema de mútua uma doença da qual os outros países não querem nunca mais
dependência e apoio, no qual minha vida depende da vida partilhar. Ser objeto de um cordão sanitário global deve ser
daqueles que sequer fazem parte do “meu grupo”, que realmente algo muito bom para a economia nacional.
estão no “meu lugar”, que tem as “minhas propriedades”. Enquanto isso, nós lutamos com todas as forças para
Esta solidariedade que se constrói nos momentos mais encontrar algo que nos faça acreditar que a situação
dramáticos lembra aos sujeitos que eles participam de não é assim tão ruim, que tudo se trata de derrapadas e
um destino comum e devem se sustentar coletivamente. destemperos de um insano. Não, não há insanos nessa
Algo muito diferente do: “se eu me infectar, é problema história. Esse governo é a realização necessária de nossa
meu”. Mentira atroz, pois será, na verdade, problema do história de sangue, de silêncio, de esquecimento. História de
sistema coletivo de saúde, que não poderá atender outros corpos invisíveis e de capital sem limite. Não há insanos. Ao
porque precisa cuidar da irresponsabilidade de um dos contrário, a lógica é muito clara e implacável. Isso só ocorre
membros da sociedade. Mas se a solidariedade aparece porque quando é necessário radicalizar sempre tem alguém
como afeto central, é a farsa neoliberal que cai, esta mesma nesse país a dizer que essa não é ainda a hora. Diante da
farsa que deve repetir, como dizia Thatcher: “não há essa implementação de um Estado suicidário só nos restaria uma
coisa de sociedade, há apenas indivíduos e famílias”. Só greve geral por tempo indeterminado, uma recusa absoluta
que o contágio, Margareth, o contágio é o fenômeno mais em trabalhar até que esse governo caia. Só nos restaria
democrático e igualitário que conhecemos. Ele nos lembra, queimar os estabelecimentos dos “empresários” que cantam
ao contrário, que não há essa coisa de indivíduo e família, a indiferença de nossas mortes. Só nos restaria fazer a
há a sociedade que luta coletivamente contra a morte de economia parar de vez utilizando todas as formas de contra-
todos e sente coletivamente quando um dos seus se julga violência popular. Só nos restaria parar de sorrir, porque
viver por conta própria. agora sorrir é consentir. Mas sequer um reles pedido de
Como disse anteriormente, alternativas existem. Elas impeachment é assumido por quem diz fazer oposição. No
passam por suspender o pagamento da dívida pública, que seria difícil não lembrar dessas palavras do evangelho:
por taxar enfim os ricos e fornecer aos mais pobres a “Se o sal não salga, de que serve então?” Deve servir só para
possibilidade de cuidar de si e dos seus, sem se preocupar nos fazer esquecer do gesto violento de recusa que deveria
em voltar vivo de um ambiente de trabalho que será foco de estar lá quando tentam nos empurrar nossa própria carne
disseminação, que será a roleta russa da morte. Se alguém servida a frio.
soubesse realmente fazer conta nas hostes do fascismo,
ele lembraria o que acontece com um dos únicos países do Vladimir Safatle professor livre-docente do Departamento de
Filosofia da Universidade de São Paulo, professor convidado
das universidades de Paris VII, Paris VIII, Toulouse, Louvain
e Stellenboch. É um dos coordenadores do Laboratório de
Pesquisas em Teoria social, Filosofia e psicanálise (Latesfip/
USP). Este texto foi publicado originalmente no site da
n-1edições.

10
Guerra pandêmica? disciplinar dos corpos, controle intensivo de territórios e

×estado×
produção espacial de lugares de confinamento. Isso justifica
o controle total da circulação de pessoas e sua divisão no es-
por Acácio Augusto paço como forma de contenção da contaminação e a necessi-
dade de sacrifício coletivo. Todos obedecem em nome da sal-
As ameaças à vida livre em meio à narrativa bélica do “inimigo vação pública e cada um pode ser isolado e disciplinado por
invisível” no país onde Forças Armadas, bancos, milícias e meio de uma “anatomia política do detalhe” sobre os corpos.
grandes empresas parasitam o Estado Sabemos que as tecnologias disciplinares há muito ce-
deram espaço para as tecnologias políticas da sociedade de
controle. No entanto, elementos do efeito disciplinar que se
buscava na cidade pestilenta ainda são produzidos, sobre-
tudo a abertura de um campo de capilaridade para exercício
A linguagem..., a linguagem..., dizia meu avô — disse Renzi
dos poderes. Como observa Foucault:
—, essa frágil e enlouquecida matéria sem corpo é uma tênue
fibra que entrelaça as pequenas arestas e os ângulos superfi-
“contra a peste que é mistura, a disciplina faz valer seu poder
ciais da vida solitária dos seres humanos porque ela os amar-
que é de análise. (...) Atrás dos dispositivos disciplinares se
ra, como não? Sim, e os liga, mas só por um instante, antes
lê o terror dos ‘contágios’, da peste, das revoltas, dos crimes,
de voltarem a afundar nas mesmas sombras em que estavam
da vagabundagem, das deserções, das pessoas que aparecem
mergulhados quando nasceram e berraram pela primeira vez
e desaparecem, vivem e morrem na desordem. (...) No fundo
sem ser ouvidos, numa remotíssima sala branca, e de onde,
dos esquemas disciplinares, a imagem da peste vale por todas
outra vez no escuro, lançarão em outra sala branca seu último
as confusões e desordens; assim como a imagem da lepra, do
grito antes do fim, sem que sua voz tampouco chegue, de certo,
contato a ser cortado, está no fundo do esquema de exclusão.
a ninguém. [Ricardo Piglia. Anos de formação: O diário
(...) A divisão constante do normal e do anormal, a que todo
de Emilio Renzi]
indivíduo é submetido, leva até nós, e aplicando-os a objetos

A
totalmente diversos, a marcação binária e o exílio dos leprosos;
s autoridades governamentais e de organizações in-
a existência de todo um conjunto de técnicas e instituições que
ternacionais, como o governo brasileiro e a ONU,
assumem como tarefa medir, controlar e corrigir os anormais,
insistem na retórica da guerra ao vírus para se referir às
faz funcionar os dispositivos disciplinares que o medo da peste
ações para conter a pandemia da COVID-19, declarada
chamava”.
oficialmente no dia 11 de março de 2020 pela Organização
Mundial da Saúde. Isso é, também, um atentado contra a
vida. Não contra a vida em geral, a Ideia de Vida, mas con-
tra a vida real de cada um, a vida livre.
Então, se você, leitor, não é patrão, empresário, político,
militar ou governante, não caia nesse conto, não use a me-
táfora da guerra para se referir a uma luta que é pela vida de
cada um e não pela morte de um inimigo invisível e intangí-
vel. Além dessa retórica da guerra não fazer sentido, ela ape-
nas atende aos interesses dos que almejam o controle social
e político total antes, durante e após a pandemia. A guerra,
como sempre foi para esses senhores, é a saúde do Estado.
Uma definição clássica de guerra diz que ela é um “con-
flito armado, público e justo”. Portanto, uma guerra segue
uma espécie de roteiro que, mesmo sujeito às intempéries
do acaso e às investidas de variados interesses, possui uma
forma específica. Há objetivos definidos, um inimigo decla-
rado, etapas a serem cumpridas, planos de ação e hierarquia
dos agentes, gente treinada para matar, ciência de combate,
espionagem e neutralização etc.. Ela é a realização de um
teatro sangrento, regulado racionalmente e distribuído no
espaço. E mesmo que a chamada guerra clássica tenha se
metamorfoseado e hoje leve nomes como “conflito de baixa
intensidade”, “guerra de quarta geração” ou “estados de vio-
lência”, ela segue produzindo um banho de sangue e uma pi-
lha de cadáveres humanos tomados como inimigos (os trei-
nados para a morte do outro lado), e isso não tem nada a ver
com um vírus, tampouco com uma situação social e política
nomeada com pandemia. Ao menos não deveria ter.
O uso de analogias e metáforas militares para se referir
às ações sanitárias não é novo, trata-se de algo mais ou me-
nos generalizado na linguagem moderna. Em Vigiar e punir,
Michel Foucault demonstra como a tecnologia política dis-
ciplinar, vinculada aos modernos saberes médico, militar e
criminológico, segue o modelo da peste (muito mais que da
Sobinfluencia

guerra) como condição ideal de sua realização. E aí não se


está exatamente em situação de guerra, mas de repartição

11
Insistir na metáfora da guerra é insistir no fomento de
uma guerra interna contra e entre as pessoas, do Estado
contra todos e cada um. E, assim, perde-se de saída. Por dois
motivos: o primeiro é factual, pois pressupõe que o vírus
está fora, quando está dentro. Logo, como conter a “invasão”
de algo que já está entre nós e que habita invisível e virtual-
mente cada um dos corpos? O outro motivo é ético-político:
médicos e demais trabalhadores da saúde não são soldados,
Mesmo com as metamorfoses do poder disciplinar, no- ao menos não deveriam ser. Novamente, trata-se de convo-
tem que não é exatamente de guerra que se está falando. car ao sacrifício. Mobilizar a linguagem da guerra contra um
Poderia se falar de guerra interna. De qualquer maneira, não inimigo, já que o vírus não declarou guerra a ninguém, só
trata-se de fazer operar o controle e a divisão dos corpos aumenta a conflituosidade social, sobretudo entre os “alista-
para exercício do poder divisionário e analítico. E as au- mentos voluntários” de pessoas que se sentirão autorizadas a
toridades continuam dizendo que estamos em guerra. Em dizer como o outro (vizinhos, por exemplo) deve se compor-
texto publicado no dia 22 de março na Folha S. Paulo, o tar durante a pandemia, fazendo das pessoas reais e visíveis,
secretário geral da ONU, António Guterres, pontifica que virtuais infectados ou vetores do vírus, os reais inimigos.
“a COVID-19 é o nosso inimigo comum. Temos de declarar Essa imagem, criada pelas autoridades e pelos os que gover-
guerra a este vírus. Isso significa que os países têm a res- nam, não apenas corrói a solidariedade social – essa sim efi-
ponsabilidade de acelerar, reforçar e ampliar a sua ação”. ciente na contenção e mitigação dos efeitos do vírus – como
Reiterar que estamos em guerra é o prenúncio de que mor- vai elegendo pessoas e grupos como alvos. Nesse momento
tes serão inevitáveis e sacrifícios serão necessários. entram os exércitos e as polícias como elementos “neces-
Isso vale também para os inúmeros militares que ocupam sários”, agentes da ordem unida que, suspostamente, estão
o governo brasileiro, a começar pelo Ministro-Chefe da Casa atuando de forma “enérgica” para o bem de todos.
Civil, General Braga Neto, que a cada comunicado insiste na Desta maneira, os controles sanitário-securitários são
necessidade de operações de guerra para conter a pandemia. justificados como medidas duras, mas necessárias, medidas
No Brasil, o envolvimento das Forças Armadas na “guerra ao de exceção para uma situação sem precedentes, novamente,
vírus” não se restringe ao militares reformados que ocupam uma guerra. Mas a verdade é que as autoridades são aponta-
cargos civis no governo do Covarde 17 ou Capitão Corona, das como solução de um problema que elas mesmos criaram
como vem sendo chamado o presidente da República. No ao usarem a retórica da guerra e ao se colocarem como única
dia 18 de março de 2020, o Ministério da Defesa publicou forma de conter o vírus, alçado aos status de inimigo mortal.
no Diário Oficial da União a Portaria Nº 1.232 GM/MD para E isso não é o pior, pois essa lógica se espalha entre os que se
“Aprovar a Diretriz Ministerial de Planejamento nº 6/GM/ sentem autorizados a fazer “o que for necessário”. Se espa-
MD, de 18 de março de 2020, que regula o emprego das lha, porque os cidadãos em geral se sentem alistados nessa
Forças Armadas em todo o território nacional para apoio guerra fictícia, ou melhor, fabricada pela retórica da guerra.
às medidas deliberadas pelo Governo Federal voltadas para E como o vírus é invisível, quem vira o inimigo a ser comba-
a mitigação das consequências da pandemia COVID-19, na tido? Virtualmente, qualquer um ou qualquer grupo social.
forma do anexo a esta Portaria”. Neste anexo, dentre ou- Exemplos não faltam. Quando no Brasil a epidemia nem
tras diretrizes, consta como possibilidades de atuação das havia se instalado, já corriam relatos de hostilidades contra
Forças Armadas: “b) Empregue os meios de Defesa Biológica, pessoas com traços asiáticos, com as medidas de isolamento
Nuclear, Química e Radiológica (DBNQR), para descon- social já em curso, há relatos de cidadãos-polícia que até ovo
taminação de material, em coordenação do Estado-Maior atiraram em pessoas que estavam sozinhas – sem contato
Conjunto das Forças Armadas; (...) f) Apoie à triagem de social, portanto – andando de bicicleta na rua. E assim, esse
pessoas com suspeitas de infecção para posterior encami- inimigo pode ser a China, como insiste o presidente dos EUA
nhamento aos hospitais.” Por meio do discurso da guerra se Donald Trump e seus asseclas da familícia fascista brasileira
empreende uma operação de guerra de fato, e esta atinge não que no momento ocupa o Palácio do Planalto; pode ser o
ao vírus, mas os cidadãos. imigrante, como foi na Itália; pode ser o morador de rua em

12
qualquer parte do planeta; alguém que supostamente desres- funcionários dos Correios, trabalhadores autônomos, profis-

×estado×
Sobinfluencia

peitou a quarentena etc. Em resumo: qualquer um, menos sionais de serviços domésticos e demais trabalhadores que são
os que produziram essa situação. O campo para o exercício coagidos a trabalhar sem o devido equipamento de proteção ou
do racismo de Estado se amplifica consideravelmente, in- mesmo com remuneração reduzida. O que passa então? O que
clusive para além das instituições estatais. Muitos, por sua passa é que ao falar de guerra, deixa-se claro que não se trata
própria condição, serão entregues à morte e, como já foi dito de conter a epidemia, mas de manter e expandir o controle das
por diversas autoridades no Brasil, mortes serão necessárias ruas, das vias de comunicação, da circulação de bens, pessoas
para que a “vida volte ao normal e o impacto econômico seja e mercadorias. Ainda que em meio a isso também se contenha,
mitigado”. Ademais, como a epidemia é antes uma situação de forma regulada, o espalhamento do vírus. Como sabemos, o
social e política e não um fato biológico, sabemos que ela poder é logístico. A retórica da guerra é isso: o meio pelo qual
atingirá diferencialmente a depender da classe, etnia e gêne- antes, durante e depois da pandemia, governos de todo planeta
ro de quem estiver em meio a ela. vão justificar as milhares de mortes e buscar manter o controle
É impressionante como mobilizar essa linguagem de da logística no planeta. Neste ponto fica evidente porque a mo-
guerra e sacrifício faz com que militares, políticos, gestores, bilização militar, que não ocorreu apenas no Brasil, se impõe
empresários e corporações multinacionais caridosas (bancos como tão necessária: os militares são reconhecidamente espe-
e empresas de tecnologia computo-informacional, sobretu- cialistas em logística
do), se tornem, magicamente, os heróis e salvadores de uma Os Estados e as corporações multinacionais possuem inte-
condição que eles mesmo produziram. Bancos já anunciam resses próprios que são antagônicos aos da vida de cada pessoa,
em suas propagandas novas possibilidades de endividamento especialmente da vida livre. Quando eles chamarem, não se
“para atravessar a crise”; corporações de tecnologia com- aliste nessa guerra fabricada. A melhor maneira de lidar com a
puto-informacionais foram imediatamente inundadas com situação é pelo autocuidado, o apoio mútuo, a ciência não auto-
dados de vidas que voluntariamente se transferiam para o ritária, a ação direta e a defesa da vida. Ficar à mercê das auto-
universo online, das atividades laborais aos encontros sociais. ridades é entregar a vida aos que, desde sempre, apenas jogam
E como vemos acontecer no Brasil, onde a conduta fascista com ela. O vírus não é um inimigo, ele é apenas mais um dos
grassava muito antes do espalhamento do vírus, a emergên- vários agentes infecciosos que nos atravessam ao longo da vida.
cia de um inimigo intangível pronto a se tornar a fonte de O COVID-19, em especial, pode matar, não se trata de diminuir
todo mal, abriu ainda mais o campo de variadas formas de esse truísmo, mas de compreender que ele não é um inimigo.
exploração e de exercício de autoritarismos. O Estado, sim, além de parasita, é um inimigo da vida livre. As
Posso estar errado, pois não sou especialista em ques- corporações, sim, são inimigas que já tomam a situação de pan-
tões médicas, mas tudo que li sobre o controle do vírus em demia como uma via de expandir seus controles e criar novas
países que o receberam muito antes do Brasil informa que formas de exploração e extração de lucratividades e dividendos.
a testagem em massa e o uso de máscaras adequadas, além Como cantou, no final dos anos 1970, a banda anarcopunk
dos cuidados com higiene e com os grupos mais frágeis, Crass: “eles nos devem uma vida”. Não entregue a sua a eles.
são as principais medidas de contenção e/ou mitigação da Como também colocam esses inventores do punk em seu ma-
epidemia. Curiosamente, faltam máscaras e os testes, até nifesto inicial: “não há autoridade a não ser você mesmo”. O
o momento, demoram a aparecer. Será que é muito difícil Estado e as corporações planetárias só se interessam por sua
um esforço excepcional (ah!, a economia essa deusa mo- vida na medida em que você está disponível a servir, na medi-
derna que senta ao lado do deus Mercado!) para produção da em que se entrega à servidão voluntária. A vida não é um
de máscaras e testes em massa? Porque são tão rápidos fato biológico e não pode estar disponível aos medidores que
em expandir os controles eletrônicos, os monitoramentos as contabilizam em bancos de dados estatísticos e georrefe-
mútuos, as declarações de estado de sítio, a imposição do renciados do nascimento à morte. Neste momento, nada mais
home office, mas tão lentos para produção ou compra de humano do que temer pela própria vida e pela vida de seus
testes e máscaras? As informações disponíveis dão conta entes queridos. Mas é sempre bom lembrar que a distribuição
que há uma saturação da produção e que os principais for- dessas mortes anunciadas não se dará de forma igualitária e
necedores de testes para COVID-19 e EPIs (Equipamentos que uns serão mais matáveis e que outros. Isso é intolerável.
de Proteção Individual) estão sendo monopolizados pela Mas, sobretudo, é urgente se perguntar desde já, diante desse
nação mais rica e poderosa do planeta, os Estados Unidos. quadro de guerra: qual vida queremos viver durante e depois
Mesmo que seja esta uma justificativa incontornável, fica da pandemia?
explícito como no capitalismo a produção e reprodução de Vida em servidão não é vida, mas sobrevida.
mercadorias se sobrepõe a vida das pessoas, pois a capaci-
dade tecnológica de produção existe, a limitação que se im- Acácio Augusto é professor no Departamento de Relações
põe é uma limitação de mercado. Não é uma coincidência Internacionais da UNIFESP e coordenador do LASInTec.
que, além dos militares, os maiores propagadores da retóri- Pesquisador no Nu-Sol/PUC-SP e professor no Programa de
ca da guerra sejam os economistas. Sejam eles funcionários Pós-Graduação em Psicologia Institucional da UFES. Autor de
de Estados e representantes de empresas ou das bolsas de Política e polícia: cuidados, controles e penalizações de jovens,
valores, sejam os comentaristas da imprensa escrita ou te- Rio de Janeiro: Lamparina, 2013. Este texto apareceu pela
levisa, todos repetem em uníssono que o plano de recupe- primeira vez no site da n-1 edições.
ração deve ser uma ação de economia de guerra.
As notícias em todo planeta também informam que o
distanciamento social é necessário neste momento para
conter o espalhamento da doença. No entanto, governos
declaram quarentena e/ou estado de sítio, mas não investem
em testes e equipamentos de proteção, como as máscaras.
Falta proteção até para as equipes de médicos e enfermeiros!
Para não falar em entregadores e motoristas de aplicativos,

13
Como vencer o As ideias disponíveis no mo-
mento. Friedman, um dos
mais ainda com a pandemia?
Parece que a pandemia está
capitalismo que se mais ferrenhos defensores do
livre mercado, estava errado
sendo terceirizada. O pri-
meiro movimento do FED
abastece de desastre? em muitos aspectos. Mas ele
tinha razão em um ponto.
(Sistema de Reserva Federal)
foi despejar 1,5 trilhão de dó-
por Naomi Klein Em tempos de crises, ideias
que pareciam impossíveis, de
lares nos mercados financei-
ros, e muito mais vem por aí.
Transcrito por Marcia Ohlson repente se tornam possíveis. Mas se você é um traba-
Mas quais ideias? As justas lhador, especialmente se
Para evitar a doutrina de choque após a pandemia do coronavírus, e compreensivas, feitas para não tiver carteira assinada,
precisamos aproveitar a brecha da crise para redesenhar a política, que a maior quantidade de é provável que você seja
como os movimentos fizeram após a Grande Depressão em 1930. pessoas se mantenha segura prejudicado. Se precisar de
e saudável? Ou as predató- um médico, possivelmente
rias, voltadas a enriquecer ninguém ajudará você a pa-

P assei duas décadas estu-


dando as transformações
que acontecem sob a cober-
vitórias importantes para
suspender os despejos du-
rante a pandemia. A Irlanda
ainda mais aqueles que já são
ricos de forma inimaginável,
deixando as pessoas vulnerá-
gar as despesas, se você não
tiver plano. E se você quiser
seguir as recomendações
tura de um desastre. Aprendi anunciou seis semanas de veis ainda mais fragilizadas? para ficar em casa, também
que podemos contar com pagamentos emergenciais é possível que você não seja
uma coisa: durante momen- de desemprego a todos os O capitalismo do coronaví- pago. Claro, você precisa
tos de mudança cataclísmica, trabalhadores que, de repen- rus. E como vencê-lo. pagar o aluguel, boletos, des-
o anteriormente impensável te, se vêem desempregados, A economia mundial está en- pesas médicas, educacionais,
de repente se torna realidade. incluindo trabalhadores in- calhando diante de uma onda cartão de crédito e financia-
Nas últimas décadas, essa dependentes. E, apesar das de choques. Em meio ao pâ- mentos. Os resultados são
mudança foi principalmente alegações do candidato presi- nico generalizado, lobistas de previsíveis: muitas pessoas
para o pior – mas nem sem- dencial dos EUA, Joe Biden, todos os tipos estão tirando a doentes não podem deixar
pre foi esse o caso. E não pre- durante o recente debate poeira das ideias que tinham de trabalhar, o que significa
cisa continuar no futuro. de que a pandemia não tem à disposição. Trump quer mais pessoas contraindo e
Este vídeo é sobre as ma- nada a ver com a proposta suspender impostos sobre espalhando o vírus. E sem
neiras pelas quais a crise da do Medicare for All, muitas folhas de pagamento, o que um amplo socorro financeiro
COVID-19, ainda em desen- pessoas estão subitamente poderia quebrar a previdên- para os trabalhadores, pode-
volvimento, já está refazen- percebendo que a ausência cia social, dando a desculpa mos esperar mais falências e
do nosso senso do possível. de uma rede de assistência de cortá-la ou privatizá-la mais pessoas em situação de
Os governos ao redor do social em funcionamento ex- totalmente. Uma ideia que rua. Conhecemos bem essa
mundo estão explorando a põem as vulnerabilidades ao existe há muito tempo. Ideias história. Em 2008, a última
crise para fazer resgates cor- vírus em muitas frentes. disponíveis nos dois partidos.
porativos sem restrições e Essa crise do coronavírus Também há ideias para so-
reversões regulatórias. – como as anteriores – pode- correr alguns dos mais ricos e
O secretário do Tesouro ria muito bem ser o catalisa- mais tóxicos setores da nossa
norte-americano, Steven dor para ajudar os interesses economia. Socorro financeiro
Mnuchin, está se movendo dos mais ricos da sociedade, para empresas de fracking
para revogar regulamentos incluindo os responsáveis (fraturamento hidráulico
financeiros que foram intro- por nossas vulnerabilidades para extrair combustíveis
duzidos após o último grande atuais, enquanto oferece líquidos e gasosos do subso-
colapso financeiro, como quase nada para a maioria lo), sem falar de empresas de
parte da Lei Dodd-Frank1 de dos trabalhadores, acabando cruzeiro, companhias aéreas
2010. A China, por sua vez, com os pequenos negócios e hotéis, das quais Trump
está indicando que relaxará de família e pequenas em- pode se beneficiar pessoal-
os padrões ambientais para presas. Mas, como este vídeo mente. O que é um grande
estimular sua economia, o mostra, muitos já estão se problema, pois, o vírus não
que acabaria com o grande afastando – e essa história é a única crise que enfrenta-
benefício que a crise pro- ainda não foi escrita. mos. Há também o colapso
duziu até agora: uma queda Transcrição do vídeo: climático, e essas indústrias
acentuada na letal poluição que estão sendo socorridas
do ar naquele país. “Apenas uma crise - real pelo nosso dinheiro são res-
Mas essa não é a história ou percebida como real - ponsáveis por essa crise.
toda. Nos Estados Unidos, produz mudança de fato. Trump também tem se
também vimos a organização Quando essa crise ocorre, reunido com os planos de
nas cidades e Estados ganhar as ações dependem de saúde privados. As mesmas
ideias que estão disponí- empresas responsáveis por
1 A Lei Dood-Frank de reforma de Wall veis no momento”. muitos norte-americanos não
Street determinou normas para deter- Milton Friedman poderem pagar pela assistên-
minar excessos do setor financeiro dos
Estados Unidos que resultaram na crise
cia que necessitam. Quais as
de 2008 - 2009. chances deles não lucrarem

14
vez que vimos um colapso uma crise catalise um tipo “Que todas as pessoas E com Washington em um

×vida×
financeiro global, a péssima de salto evolutivo. Pense nos tenham direito a tratamen- momento repentino de
ideia de socorro irrestrito a anos 1930, quando a Grande to médico, que todos os grandes estímulos, é a hora
grandes empresas foi levada Depressão levou ao New desassistidos tenham pro- perfeita para estímulos que
a cabo, e pessoas em todo Deal. Nos EUA e em outros teção, cancelamento das debatemos há anos. Estou
o mundo pagaram o preço. lugares, governos começam a dívidas estudantis, se você falando do “Green New
Isso também era previsível. tecer uma malha de proteção estiver doente, que você Deal”. Em vez de socorrer
Há trinta anos, escrevi o social, para que na próxima não seja penalizado se não indústrias poluentes do sécu-
livro “A doutrina do choque: grave crise, haja programas tiver uma renda”. lo passado, deveríamos esti-
ascensão do capitalismo de como a previdência social, mular as limpas que vão nos
desastre”, que descreve uma que protejam as pessoas. Há uma semana, muitas dar segurança no próximo
tática brutal e recorrente dos Veja, nós sabemos qual é o dessas ideias foram rejeita- século.
governos de direita. Depois plano de Trump. Uma dou- das por serem consideradas Se a história nos ensina
de um evento traumático, trina de choque pandêmico radicais. Agora elas come- uma coisa, é que momentos
uma guerra, um golpe de com as mais perigosas ideias çam a parecer a única forma de crise são muito voláteis.
Estado, um ataque terrorista, à disposição: de privatizar a razoável de sair dessa crise e Ou perdemos muito espaço,
uma crise de mercado ou um previdência a fechar frontei- prevenir as futuras. somos enganados pelas elites
desastre natural, eles explo- ras, e encarcerar ainda mais e pagamos o preço por déca-
ram a confusão das pessoas. imigrantes. É possível que “Há uma coisa que ajuda a das, ou conquistamos vitórias
Suspendem a democracia. ele tente inclusive cancelar explicar a diferença entre progressistas que pareciam
Impõem políticas radicais as eleições! os teste do coronavírus na impossíveis semanas antes.
de “livre mercado” que en- Mas o fim dessa história Coreia do Sul e nos EUA. Não é hora de nos abalarmos.
riquecem o 1% mais rico em ainda não foi escrita. É ano A Coreia do Sul, como O futuro será determinado
detrimento dos pobres e da de eleições. Movimentos Canadá e países europeus, por aqueles dispostos a lutar
classe média. Mas aqui vai sociais e políticos insur- tem um sistema único de com mais gana por ideais que
uma lição da minha pesquisa: gentes já se mobilizaram. E saúde. Isso torna mais fácil eles tornaram disponíveis.
choques e crises nem sempre como nos anos 1930, temos a mobilização, e as pessoas
seguem a doutrina do cho- um monte de outras ideias sabem o que devem fazer. “Apenas uma crise - real
que. Portanto, é possível que disponíveis. Há um direcionamento ou percebida como real -
único para realizar os tes- produz mudança de fato.
tes”. (CNN) Quando essa crise ocorre,
as ações dependem de
ideias que estão disponí-
veis no momento. Acredito
que essa seja nossa prin-
cipal função: desenvolver
alternativas às políticas
vigentes, mantê-las vivas
e disponíveis até que o
politicamente impossível
se torne politicamente
inevitável.”
Milton Friedman

Naomi Klein é correspondente


Sênior para o The Intercept e
a primeira a ocupar a cátedra
patrocinada Gloria Steinem
de estudos de mídia, cultura
e feminismo na Universidade
Rutgers. Este texto foi
transcrito pela Marcia Ohlson e
publicado, como vídeo, no site
do The Intercept Brasil.
Sobinfluencia

15
O direito universal
à respiração
por Achille Mbembe
Não poderá haver alívio senão à custa de uma gigantesca
ruptura, produto de uma ação radical derradeira.
O futuro da humanidade precisa garantir, para sobreviver,
o futuro da biosfera.

S e a COVID-19 é a expressão espectacular do impasse pla-


netário no qual a humanidade se encontra, então trata-se,
nada mais nada menos, de recompormos uma Terra habitá-
vel, e assim ela poderá oferecer a todos uma vida respirável.
Seremos capazes de redescobrir a nossa pertença à mesma
espécie e o nosso inquebrável vínculo à totalidade do vivo?
Talvez esta seja a derradeira questão antes de que, para sem-
pre, a porta se feche.
Algumas pessoas enunciam já um “pós-COVID-19”. Por
que não? No entanto, para a maioria de nós, especialmente
nas zonas do mundo em que os sistemas de saúde foram
devastados por anos de negligência organizada, o pior ainda
está para vir. Na ausência de camas hospitalares, máquinas
respiratórias, testes em quantidade, máscaras, desinfectantes
à base de álcool e de outros dispositivos de quarentena para
quem já foi atingido, infelizmente prevemos que muitos não
passarão pelo buraco da agulha.

A política do vivo Humanidade errante


Há algumas semanas, perante o tumulto e a consternação Nestes tempos púrpuros — assumindo que a característica
que se anunciava, tentamos descrever estes nossos tempos. que distingue os tempos é a sua cor — talvez devamos, por
Tempos sem garantia ou promessa, num mundo cada vez conseguinte, começar por prestar homenagem a todos os que
mais dominado pelo medo do seu próprio fim. Mas, ainda, já nos deixaram. Uma vez atravessada a barreira dos alvéolos
tempo caracterizado por “uma desigual redistribuição da pulmonares, o vírus infiltrou-se na circulação sanguínea. De
vulnerabilidade” e por “novos e ruinosos compromissos com seguida atacou os órgãos e outros tecidos, começando pelos
formas de violência tão futuristas quanto arcaicas”. E, pior, mais expostos.
tempo de brutalismo. Seguiu-se uma inflamação sistémica. Aqueles que antes
Além das suas origens no movimento arquitectónico de do ataque já apresentavam problemas cardiovasculares, neu-
meados do século XX, definimos brutalismo como o pro- rológicos ou metabólicos, ou patologias ligadas à poluição,
cesso contemporâneo “pelo qual o poder enquanto força sofreram os mais furiosos ataques. Sem fôlego e privados de
geomórfica é atualmente constituído, se exprime, se recon- máquinas respiratórias, alguns partiram repentinamente, sem
figura, age e se reproduz”. É feito pela “fratura e fissura, qualquer possibilidade de se despedirem. Os restos mortais
“pela acumulação de barris”, “pela perfuração” e pelo “es- foram imediatamente cremados ou enterrados. Em solidão.
vaziar de matéria orgânica”, por fim, pelo que chamamos de Disseram-nos para nos livrarmos deles o mais rápido possível.
“esgotamento”. Já que vamos por aí, por que não adicionar a estes e estas
A este propósito, assinalamos os modos moleculares, pessoas, todas as outras, que prefazem dezenas de milhões,
químicos e até radioativos desses processos: “Não será a to- vítimas de HIV, cólera, malária, ébola, de vírus nipah, febre
xicidade, isto é, a multiplicação de produtos químicos e re- tifóide, febre amarela, zica, chikungunya, todo o tipo de
síduos perigosos uma dimensão estrutural do presente? Tais cancros, epizootias e outras pandemias zoonóticas, como a
substâncias e resíduos não atacam apenas a natureza e o am- peste suína ou a febre catarral ovina (ou língua azul), e todas
biente (ar, solo, água, cadeias alimentares), mas igualmente as epidemias imagináveis e​​ inimagináveis que
​​ devastaram,
os corpos expostos ao chumbo, ao fósforo, mercúrio, berílio, durante séculos, povos sem nome em terras distantes. Isto
aos fluidos refrigerantes”. sem contar com substâncias explosivas e outras guerras pre-
De fato, nos referimos aos “corpos vivos expostos à exaus- datórias e de ocupação que mutilam e dizimam dezenas de
tão física e a todo o tipo de riscos biológicos, muitas vezes milhares e atiram para os caminhos do êxodo outras cente-
invisíveis”. No entanto, falámos de vírus (quase 600.000, nas de milhares de pessoas. A humanidade errante.
transportados por todos os tipos de mamíferos) apenas me- Além disso, como esquecer o desmatamento intensivo, os
taforicamente, no capítulo dedicado aos “corpos-fronteira”. mega-incêndios e a destruição de ecossistemas, a ação ne-
De resto, o que estava em causa era, de novo, a própria polí- fasta das empresas que poluem e destroem a biodiversidade,
tica do vivo como totalidade. E o coronavírus é obviamente o e hoje em dia — uma vez que o confinamento faz parte de
seu nome. nossa condição — as multidões que habitam as prisões do

16
mundo e outras pessoas cuja vida é despedaçada contra mu- Ele regressa sob a forma angustiante de uma enorme man-

×vida×
bicho coletivo

ros e outras técnicas de criar fronteiras, sejam os inúmeros díbula, veículo de contaminação, vetor de pólen, de esporos
check points que pontuam vários territórios, ou os mares, e de bolor.
oceanos, desertos e tudo o mais? Saber que não estamos sós nessa provação, ou de que se-
Ontem e anteontem, tratava-se apenas de aceleração, de remos muitos a escapar, trará apenas um vão conforto. E se
redes tentaculares de conexão abrangendo todo o globo, da assim não for é porque nunca aprendemos a viver com o que
inexorável mecânica da velocidade e da desmaterialização. é vivo, a preocuparmo-nos verdadeiramente com os danos
Era no computacional que se supunha residir tanto o futu- causados pelo homem nos pulmões da Terra e no seu orga-
ro dos humanos e da produção material como o destino do nismo. Numa palavra, nunca aprendemos a morrer. Com o
vivo. Lógica omnipresente, com a ajuda da circulação a alta advento do Novo Mundo e, alguns séculos mais tarde, a apa-
velocidade e a memória em massa, bastaria “transferir para rição das “raças industrializadas”, nós escolhemos, numa es-
um duplo digital todas as habilitações dos vivos” e pronto. O pécie de vicariato ontológico, delegar a nossa morte noutrem
estágio supremo da nossa breve história na Terra, o humano e fazer da própria existência um grande repasto sacrificial.
poderia por fim ser transformado em dispositivo plástico. O Em breve deixará de ser possível delegar a morte nou-
caminho fora traçado para a realização do velho projeto de trem. O outro não morrerá mais em nosso lugar. Não sere-
extensão infinita do mercado. mos apenas condenados a assumir, sem mediação, a nossa
No meio da intoxicação geral, é neste rumo dionisíaco, des- própria morte. Haverá cada vez menos possibilidades de
crito aliás em Brutalisme, que o vírus vem estancar-se sem, no adeus. Aproxima-se a hora da autofagia e, com ela, o fim da
entanto, o interromper definitivamente, mesmo quando tudo comunidade, porque dificilmente haverá comunidade digna
fica na mesma. Agora, porém, vive-se a asfixia e a putrefacção, desse nome se dizer adeus, isto é, fazer a memória do vivo,
amontoamento e cremação de cadáveres, numa palavra, a deixar de ser possível.
ressurreição de corpos vestidos, de vez em quando, com a sua Pois a comunidade, ou melhor, o em-comum, não assenta
mais bela máscara funerária e viral. Para os seres humanos, a apenas na possibilidade de dizer adeus, isto é, de ter um en-
Terra estaria prestes a transformar-se numa roda dentada, a contro único com os outros e a honrá-lo de novo. O em-co-
Necrópole universal? Até onde terá de chegar a propagação de mum assenta também na possibilidade da partilha sem con-
bactérias de animais selvagens entre os humanos se, na rea- dição e de, a cada vez, recuperar qualquer coisa de absoluta-
lidade, a cada vinte anos, são cortados quase cem milhões de mente intrínseca, ou seja, de incomensurável, incalculável, e
hectares de floresta tropical (pulmões da Terra)? por isso sem preço.
Desde o início da revolução industrial no Ocidente que
cerca de 85% das áreas húmidas foram drenadas. À medida O digital, novo buraco na terra causado pela explosão
que continua inabalável a destruição de habitats, as popula- Manifestamente, o céu não deixa de escurecer. Presa no ciclo
ções humanas com saúde precária são quase diariamente ex- vicioso da injustiça e das desigualdades, uma boa parte da
postas a novos agentes patogénicos. Antes da colonização, os humanidade está ameaçada pela grande asfixia, ao mesmo
animais selvagens, principais reservatórios de patogénicos, tempo que prolifera o sentimento de que o nosso mundo
estavam confinados a ambientes onde somente viviam popu- alivia. Se, nestas condições, ele existir no dia seguinte, não
lações isoladas. Foi o caso, por exemplo, dos últimos países poderá ser à custa de alguns, sempre os mesmos, como na
silvicultores do mundo, os da Bacia do Congo. Antiga economia. Deverá ser para todos os habitantes da
Atualmente, as comunidades que viviam e dependiam de Terra, sem distinção de espécie, raça, sexo, cidadania, reli-
recursos naturais nesses territórios têm sido expropriadas. gião ou qualquer outra marca de diferenciação. Em outras
Expulsas em nome da venda de terras por regimes tirânicos palavras, não poderá haver alívio senão à custa de uma gigan-
e corruptos, e pela concessão de grandes cedências estatais a tesca ruptura, produto de uma imaginação radical.
consórcios agroalimentares, deixaram de conseguir manter a Não basta tapar o buraco. No meio da cratera é preciso
sua autonomia alimentar e energética que, durante séculos, tudo inventar, a começar pelo social. Pois quando trabalhar,
lhes permitiu viver em equilíbrio com a mata. armazenar, informar-se, manter o contato, nutrir e conservar
as ligações, conversar e trocar, beber juntos, celebrar o culto
Nunca aprendemos a morrer ou organizar funerais, não pode ter lugar senão por inter-
Nestas condições, uma coisa é preocupante: a morte de ou- postas telas, é tempo de tomar consciência de que estamos
tro, ao longe. Outra, é de súbito tomar consciência da pró- cercados de anéis de fogo por todo o lado. Em grande medi-
pria putrescibilidade, de viver na vizinhança da própria mor- da, o digital é o novo buraco que a explosão criou na terra.
te, de contemplá-la enquanto possibilidade real. À partida, é Trincheira, entranhas e paisagem lunar ao mesmo tempo,
esse o terror suscitado pelo confinamento a muita gente, a é o bunker onde homem e mulher isolados são convidados
obrigação de, por fim, responder pela sua vida. a refugiar-se. Acredita-se que, através do digital, o corpo, a
Responder aqui e agora pela nossa vida sobre a Terra com carne e os ossos, o corpo físico e mortal, se liberte do peso e
outros (incluindo os vírus) e pelo nosso nome em comum: da inércia. No fim desta transfiguração, poder-se-á finalmen-
é isto que o momento patogénico impõe à espécie humana. te atravessar o espelho, resgatados à corrupção biológica e
Momento patogénico, mas também momento catabólico restituídos ao universo sintético dos fluxos. Ilusão porque,
por excelência, o da decomposição dos corpos, da triagem do mesmo modo que dificilmente haverá humanidade sem
e da eliminação de todo o tipo de detritos-de-homens — a corpo, também a humanidade não conhecerá a liberdade fora
“grande separação” e o grande confinamento, em resposta da sociedade ou da dependência da biosfera.
à surpreendente propagação do vírus e em consequência da
extensiva digitalização do mundo. Guerra contra o vivo
Não importa o quanto nos tentemos livrar dele. No final, É preciso, portanto, começar de novo, se, para as necessida-
tudo nos traz de volta ao corpo. Tentamos enxertá-lo em ou- des da nossa própria sobrevivência, for imperativo devolver a
tros aparelhos, fazer um corpo-objecto, um corpo-máquina, tudo o que é vivo (incluindo a biosfera) o espaço e a energia
um corpo digital, um corpo ontofánico. de que necessitam. Na sua versão noturna, a modernidade

17
foi, do princípio ao fim, uma interminável guerra travada Coda
contra os vivos. Ela está longe de acabar. A sujeição ao digital O processo foi tentado mil vezes. Podemos recitar de olhos
é uma das modalidades dessa guerra. Conduz diretamente ao fechados as principais acusações. Quer se trate da destruição
empobrecimento e à dissecação de áreas inteiras do planeta. da biosfera, do resgate dos espíritos pela tecnociência, da
É de temer que, após esta calamidade, longe de santificar desintegração das resistências, dos reiterados ataques contra
todas as formas do estar vivo, o mundo infelizmente não evi- a razão, da crescente cretinice das mentes, da ascensão dos
te um novo período de tensão e brutalidade. No plano geo- determinismos (genéticos, neural, biológico, ambiental), os
político, a lógica da força e do poder continuará a prevalecer. perigos para a humanidade são cada vez mais existenciais.
Na ausência de infraestruturas comuns, uma feroz divisão do De todos estes perigos, o maior será que toda a forma
globo irá se acentuar e as segmentações irão se intensificar. de vida se torne impossível. Entre aqueles que sonham em
Muitos Estados procurarão reforçar as suas fronteiras na es- transferir a nossa consciência para máquinas e aqueles que
perança de se proteger da exterioridade. Vão lutar igualmen- estão persuadidos de que a próxima mutação da espécie re-
te por reprimir a sua violência constitutiva, que irão descar- side na emancipação da nossa pandilha biológica, a diferença
regar, como de costume, nos mais vulneráveis entre os seus. é insignificante. A tentação eugenista não desapareceu. Pelo
A vida atrás das telas e em enclaves protegidos por segurança contrário, ela está na base dos recentes progressos das ciên-
privada será a norma. cias e da tecnologia.
Na África, em particular, e bem dentro das regiões do Sul Entretanto, esta quarentena surge repentinamente, não da
do mundo, a extracção consumidora de energia, a expansão história, mas de algo ainda difícil de entender. Por ser força-
agrícola e a predação, razão de ser da venda de terras e da da, esta interrupção não é um feito da nossa vontade. É, de
destruição de florestas, continuarão sem entrave. A alimen- diversas formas, simultaneamente imprevista e imprevisível.
tação e o arrefecimento de chips e super-computadores de- Ora, é de uma interrupção voluntária, consciente e plena-
pende disso. O fornecimento e o encaminhamento de recur- mente consentida que precisamos, de outro modo pouco
sos e de energia, necessários à infraestrutura da computação restará. Restará somente uma série ininterrupta de aconteci-
planetária, serão feitos à custa de uma maior restrição da mentos imprevistos.
mobilidade humana. Manter o mundo à distância será a nor- Se, a COVID-19 é a expressão espectacular do impasse pla-
ma, para poder expulsar para o exterior todo o tipo de riscos. netário em que se encontra a humanidade, então não se trata
Porém, como não ataca a nossa precariedade ecológica, esta senão, nem mais nem menos, de recompormos uma Terra
visão catabólica do mundo, inspirada em teorias de imuniza- habitável, porque ela oferecerá a todos a possibilidade de
ção e de contágio, não permitirá sair do impasse planetário uma vida respirável. Trata-se, pois, de recuperar os recursos
em que nos encontramos. do nosso mundo com o fim de forjar novas terras. A huma-
nidade e a biosfera estão ligadas. Uma não tem futuro sem a
Direito fundamental à existência outra. Seremos capazes de redescobrir o nosso pertencimen-
Podemos dizer que a propriedade principal das guerras trava- to à mesma espécie e o nosso inquebrável vínculo à totali-
das contra o vivo era cortar o fôlego. Enquanto entrave maior dade dos seres vivos? Talvez esta seja a derradeira questão,
à respiração e à reanimação dos corpos e dos tecidos huma- antes que a porta se feche para sempre.
nos, a COVID-19 inscreve-se na mesma trajetória. Em que
consiste a respiração senão na absorção de oxigénio e na re- Achille Mbembe é um filósofo e historiador camaronês,
jeição de dióxido de carbono, ou na troca dinâmica entre san- professor de história e ciência política na Universidade de
gue e tecidos? Mas ao ritmo com que segue a vida na Terra, Witwatersrand (África do Sul) e na Universidade de Duke (EUA).
e tendo em conta o que ainda resta da riqueza do planeta, Este texto foi publicado em seu blog e reproduzido no Brasil
estaremos assim tão longe do momento em que haverá mais pela n-1 edições.
dióxido de carbono para inalar do que oxigénio a inspirar?
Antes deste vírus, a humanidade já estava ameaçada de as-
fixia. Se tiver de haver uma guerra, deverá ser, em consequên-
cia, não contra um vírus em particular, mas contra tudo o que
condena a grande maioria da humanidade ao sufocamento
prematuro de respiração, tudo o que afeta fundamentalmente
as vias respiratórias, tudo o que, na longa duração do capi-
talismo, confinou segmentos inteiros de populações e raças
inteiras a uma respiração difícil, ofegante, a uma vida pesada.
Mas para daí sair é preciso ainda compreender a respiração,
para lá de aspectos puramente biológicos, como aquilo que
nos é comum e que, por definição, escapa a qualquer cálculo.
Falamos, assim, de um direito universal de respiração.
Simultaneamente acima do chão e nosso chão comum,
o direito universal à respiração não é quantificável. Não é
apropriável. É um direito relativo à universalidade, não ape-
nas de cada membro da espécie humana, mas do vivo na sua
totalidade. É preciso então compreendê-lo como um direito
fundamental à existência. Enquanto tal, não pode ser confis-
cado e, por isso, escapa a toda a soberania, uma vez que re-
capitula o princípio soberano em si. Ele é, além do mais, um
direito originário de habitação da Terra, um direito próprio
da comunidade universal dos habitantes da Terra, humanos e
não-humanos.

18
Coronavírus e a guerra global, uma vez que foram os não se reúnam, não causem

×vida×
anos em que o crescimento caos ”, dizia uma manchete
de classes microbiológica chinês foi impulsionado pela
canalização de fundos de in-
no Guangming Daily, jornal
dirigido pelo departamento
na China vestimento para projetos de
infraestrutura e construção
de propaganda do Partido
Comunista Chinês. Hoje, as
por Coletivo Chuang de imóveis. Wuhan não ape-
nas alimentou essa bolha com
amplas avenidas novas de
Wuhan e os brilhantes edi-
Tradução Amauri Gonzo sua superoferta de materiais fícios de aço e vidro que as
de construção e engenheiros coroam estão todos frios e
Coletivo comunista chinês apresenta, como observador civis, mas também, ao fazê-lo, vazios, à medida que o inver-
“privilegiado”, uma análise afiada sobre o capitalismo e tornou-se uma cidade em ex- no diminui com o Ano Novo
o estouro da pandemia dentro da complexa realidade no país. pansão imobiliária. De acordo Lunar e a cidade entra em es-
com nossos próprios cálculos, tagnação sob a constrição da
em 2018-2019, a área total de- ampla quarentena. Isolar-se é
A fornalha relacionadas à construção da dicada aos canteiros de obras um bom conselho para qual-
A cidade de Wuhan é conhe- China. Sua paisagem é marca- em Wuhan era equivalente quer pessoa na China, onde
cida coloquialmente como da pelos altos fornos de res- ao tamanho da ilha de Hong o surto do novo coronavírus
uma das “quatro fornalhas” friamento lento das fundições Kong como um todo. (recentemente renomeado
da China por seu verão remanescentes de ferro e aço Mas agora a fornalha que para “SARS-CoV-2” e sua
opressivamente úmido e pertencentes ao Estado, agora impulsiona a economia chi- doença “COVID-19”) matou
quente, compartilhado com atormentadas pela superpro- nesa pós-crise parece, bem quase três mil pessoas1 – mais
Chongqing, Nanjing e, alter- dução e forçadas a uma nova como aquelas encontradas do que seu antecessor, a
nadamente, Nanchang ou e contenciosa rodada de do- em suas fundições de ferro e epidemia de SARS em 2003.
Changsha, todas agitadas wnsizing, privatização e rees- aço, estar esfriando. Embora Todo o país está bloquea-
e antigas, localizadas perto truturação geral – resultando esse processo já estivesse em do, como ocorreu durante
ou ao longo do vale do rio em várias grandes greves e andamento, a metáfora não
Yangtzé. Das quatro, no en- protestos nos últimos cinco é mais simplesmente econô-
1 Nesta edição brasileira, mantivemos os
tanto, Wuhan, é literalmente anos. A cidade é essencial- mica, pois a cidade outrora números relativos aos casos como estão
cheia de fornalhas: o enorme mente a capital da construção movimentada está fechada no texto original. Diante da velocidade em
complexo urbano atua como da China, o que significa que por mais de um mês, suas que tais números mudam no momento
em que preparamos a edição, nos pareceu
uma espécie de núcleo para desempenhou um papel parti- ruas esvaziadas por ordem inútil fazer atualizações aqui. Até porque
as indústrias siderúrgicas, de cularmente importante no pe- do governo: “A maior contri- os novos números, pelo menos até agora,
concreto e outras indústrias ríodo após a crise econômica buição que você pode dar é: não mudam o sentido do texto.
reprodução

19
a SARS. As escolas estão fe- por veículos de imprensa con- ”para o PCCh, apesar de mal
chadas e as pessoas seguem servadores e interesses mili- haver poeira de levante no
trancadas em suas casas no tares – à propensão do povo ar. Mas o cerne da verdade
país inteiro. Quase toda a ati- chinês a consumir alimentos para essas previsões está na
vidade econômica parou no “sujos” ou “estranhos”, uma compreensão das dimensões
feriado do Ano Novo Lunar vez que o surto de vírus está econômicas da quarentena –
em 25 de janeiro, mas a pausa ligado a morcegos ou cobras algo que dificilmente poderia
foi estendida por um mês para vendidos em um “mercado passar batido para jornalistas
conter a propagação da epi- úmido2” semi-ilegal especiali- com carteiras de ações mais
demia. As fornalhas da China zado em animais selvagens e espessas que seus crânios.
parecem ter parado de quei- raros (embora essa não seja a Porque o fato é que, apesar
mar ou, pelo menos, foram sua fonte definitiva). Ambas do pedido do governo pelo
reduzidas a leves braseiros. as teorias da conspiração exi- isolamento, as pessoas em
De certa forma, porém, a ci- bem o óbvio interesse militar breve poderão ser forçadas
dade se tornou outro tipo de e orientalismo comuns aos a se “reunir” para atender às
fornalha, pois o coronavírus relatos ocidentais sobre a Chi- necessidades de produção.
queima sua população maci- na, e vários artigos apontaram De acordo com as últimas
çamente, como uma febre em esse fato básico. Mas mesmo estimativas, a epidemia des-
grande escala. essas respostas tendem a se de já fará com que o PIB da
A responsabilidade do surto concentrar apenas em ques- China caia para 5% neste ano,
foi apontada, incorretamente, tões sobre como o vírus é abaixo da taxa de crescimen-
em tudo, desde a liberação percebido na esfera cultural, to de 6% no ano passado, a serei pago? Vou conseguir
conspiratória e/ou acidental gastando muito menos tempo menor em três décadas. Al- pagar o aluguel? Quem é
de uma cepa de vírus do Ins- investigando a dinâmica mui- guns analistas disseram que responsável por tudo isso?
tituto Wuhan de Virologia – to mais brutal que se esconde o crescimento no primeiro De uma maneira estranha,
uma alegação duvidosa divul- sob o frenesi da mídia. trimestre pode cair 4% ou a experiência subjetiva é
gada pelas mídias sociais, par- Uma variante um pouco menos, e que isso pode arris- semelhante à de uma greve
ticularmente pelas postagens mais complexa da questão car uma recessão global de em massa – mas que, em seu
paranoicas de Hong Kong e algum tipo3. Uma questão an- caráter não espontâneo, de
Taiwan no Facebook, mas 2 Mercado que vende produtos frescos:
teriormente impensável está cima para baixo e, especial-
agora sustentada no Ocidente verduras, legumes e carnes. colocada: o que realmente mente em sua hiperatomi-
acontece com a economia zação involuntária, ilustra
global quando a fornalha chi- os enigmas básicos do nosso
nesa começa a esfriar? próprio presente político
Na própria China é difícil estrangulado tão claramente
prever a trajetória final des- quanto as verdadeiras greves
se evento, mas o momento de massa do século anterior
já trouxe um raro processo elucidaram as contradições
coletivo de questionar e de sua época. A quarentena,
aprender sobre a sociedade. então, é como uma greve
A epidemia já infectou di- oca de suas características
retamente cerca de 80.000 comunais, mas mesmo assim
pessoas (na estimativa mais capaz de causar um choque
conservadora), mas provocou profundo na psique e na eco-
um choque na vida cotidiana nomia. Somente esse fato já a
reprodução

do capitalismo em 1,4 bilhão, torna digna de reflexão.


presos em um momento de É claro que surgem as
autorreflexão precária. Este especulações sobre a queda
compreende pelo menos as momento, embora cheio de iminente do PCCh. Uma
consequências econômicas, medo, fez com que todos bobagem previsível, afinal
mesmo quando exagera para fizessem perguntas profun- tais especulações têm sido
efeito retórico as possíveis das ao mesmo tempo: O que um dos passatempos favo-
repercussões políticas. Aqui vai acontecer comigo? Meus ritos de revistas como a The
encontramos os suspeitos de filhos, família e amigos? Te- New Yorker e The Economist.
costume, variando de políti- remos comida suficiente? Eu Enquanto isso, os protoco-
cos cuja carreira se resume a los normais de supressão da
insuflar o militarismo ameri- 3 Neste momento em que preparamos
mídia estão em andamento,
cano aos tipinhos tomadores esta edição brasileira, os números da nos quais artigos de opinião
de latte agarrados a suas atividade econômica chinesa foram abertamente racistas publi-
ainda mais rebaixados. A produção
bolsas de pérola do haute-li- cados em grandes veículos
industrial caiu 13,5% nos dois primeiros
beralismo: agências de im- meses de 2020. A Goldman Sachs são combatidos por um
prensa, da National Review revisou sua previsão de crescimento enxame de textões de rede
ao New York Times, já suge- da economia chinesa de 5,5 % para social polemizando contra o
3%. https://economia.uol.com.br/
riram que o surto pode trazer noticias/redacao/2020/03/19/impactos- orientalismo e outras facetas
uma “crise de legitimidade economicos-coronavirus-china.htm da ideologia. Mas quase toda

20
reprodução
a como a sociedade organiza quais essas doenças evoluem. As paisagens rurais de

×vida×
sua produção (porque os Para além das quatro forna- muitos dos países mais
dois não são, de fato, sepa- lhas, então, encontra-se uma pobres são agora caracte-
rados). Ao mesmo tempo, é fornalha mais fundamental rizadas pelo agronegócio
um lembrete de que o único subjacente aos centros in- desregulamentado pres-
comunismo que merece esse dustriais do mundo: a panela sionado contra as favelas
nome é aquele que inclui o de pressão evolutiva criada periurbanas. A transmissão
potencial de um naturalis- pela agricultura e urbaniza- descontrolada em áreas
mo totalmente politizado. ção capitalistas. Isso fornece vulneráveis aumenta a va-
Segundo, também podemos o meio ideal através do qual riação genética com a qual
usar esse momento de iso- pragas cada vez mais devasta- o H5N1 pode evoluir carac-
lamento para nossa própria doras nascem, transformam- terísticas específicas para
reflexão sobre o estado -se, são induzidas a saltos a infecção em humanos.
atual da sociedade chinesa. zoonóticos e, em seguida, Ao se espalhar por três
Algumas coisas só ficam agressivamente vetorizadas continentes, o H5N1, em
claras quando tudo para de através da população huma- rápida evolução, também
repente, e uma desaceleração na. A isso se soma processos entra em contato com uma
desse tipo não pode deixar igualmente intensivos que variedade crescente de
de tornar visíveis as tensões ocorrem nas margens da ambientes socioecológicos,
anteriormente obscurecidas. economia, onde cepas “sel- incluindo combinações
A seguir, exploraremos essas vagens” são encontradas localmente específicas
a discussão permanece no duas questões, mostrando por pessoas pressionadas a dos tipos de hospedeiros
nível da representação – ou, não apenas como a acumu- incursões agroeconômicas prevalecentes, modos de
na melhor das hipóteses, das lação capitalista produz tais cada vez mais extensivas so- criação de aves e medidas
políticas de contenção e das pragas, mas também como o bre os ecossistemas locais. de saúde animal5.
consequências econômicas momento da pandemia é um O coronavírus mais recente,
da epidemia – sem se apro- caso contraditório de crise em suas origens “selvagens” É claro que essa expansão é
fundar nas questões de como política, tornando visível e sua súbita disseminação impulsionada pelos circuitos
essas doenças são produzi- para as pessoas os potenciais por um núcleo fortemente globais de mercadorias e
das em primeiro lugar, muito e dependências invisíveis do industrializado e urbanizado pelas migrações regulares de
menos distribuídas. Mesmo mundo ao redor deles, ofe- da economia global, repre- trabalho que definem a geo-
isso, no entanto, não é su- recendo também mais uma senta as duas dimensões da grafia econômica capitalista.
ficiente. Agora não é hora desculpa para a extensão dos nossa nova era de pragas O resultado é “um tipo de
de um simples exercício do sistemas de controle de for- político-econômicas. seleção demoníaca crescen-
“Scooby-Doo Marxista” de ma ainda mais profunda na A ideia básica aqui é desen- te”, através da qual o vírus
tirar a máscara do vilão para vida cotidiana. volvida mais minuciosamen- apresenta um número maior
revelar que, sim, de fato, era te por biólogos como Rob de caminhos evolutivos em
o capitalismo que estava cau- A produção de pragas Wallace, cujo livro de 2016 um tempo mais curto, per-
sando o coronavírus o tempo O vírus por trás da epide- Big Farms Make Big Flu apon- mitindo que as variantes
todo! Isso não seria mais mia atual (SARS-CoV-2) foi, ta largamente para a conexão mais bem adaptadas supe-
sutil do que comentaristas como o antecessor de 2003 entre o agronegócio capitalis- rem as demais.
estrangeiros caçando possi- SARS-CoV, bem como a gripe ta e a etiologia de epidemias Mas esse é um argumento
bilidades de uma mudança aviária e gripe suína antes recentes que variam da SARS fácil, e já é comum na grande
de regime. É claro que o ca- dele, gestado no nexo entre a ao Ebola4. Essas epidemias imprensa: o fato de a “globa-
pitalismo é o culpado – mas economia e a epidemiologia. podem ser fracamente agru- lização” possibilitar a disse-
como exatamente a esfera Não é por acaso que muitos padas em duas categorias, a minação de tais doenças mais
socioeconômica interage desses vírus assumiram o primeira originada no núcleo rapidamente – embora aqui
com a biológica e que tipo nome de animais: a disse- da produção agroeconômica com um acréscimo impor-
de lições mais profundas po- minação de novas doenças e a segunda nas fronteiras tante, observando como esse
dem ser tiradas de toda essa para a população humana agrícolas. Ao traçar a disse- processo de circulação tam-
experiência? acontece através da chama- minação do H5N1, também bém estimula o vírus a sofrer
Nesse sentido, o surto da transferência zoonótica, conhecido como gripe aviá- mutações mais rapidamente.
apresenta duas oportunida- que é uma maneira técnica ria, ele resume vários fato- A questão real, porém, vem
des de reflexão: primeiro, é de dizer que essas infecções res-chave geográficos para antes: antes da circulação,
uma abertura instrutiva na saltam dos animais para os aquelas epidemias que se ori-
qual podemos revisar ques- humanos. Esse salto de uma ginam no núcleo produtivo: 5 Big Farms Make Big Flu: Dispatches on
tões substanciais sobre como espécie para outra é condi- Infectious Disease, Agribusiness, and the
a produção capitalista se cionado por questões como 4 Muito do que explicaremos nesse Nature of Science, Monthly Review Press,
relaciona com o mundo não proximidade e regularidade trecho é simplesmente um resumo 2016. p. 52
dos argumentos de Wallace, voltados
humano em um nível mais do contato, que constroem para uma audiência mais geral e sem a
fundamental – como, em o ambiente em que a doença necessidade de “debater” com outros
resumo, o “mundo natural”, é forçada a evoluir. Quando biólogos através da exposição de uma
incluindo seus substratos argumentação rigorosa e extensa
essa interface entre humanos
pesquisa. Para aqueles que contestariam
microbiológicos, não pode e animais mudam, também as evidências básicas, nos referimos ao
ser entendido sem referência mudam as condições nas trabalho de Wallace e seus compatriotas.

21
aumentando a resiliência de A crescente monocultura prazo das populações huma-
tais doenças, a lógica básica genética de animais do- nas por meio barreiras geo-
do capital ajuda a pegar cepas mésticos remove qualquer gráficas e essas doenças, in-
virais previamente isoladas obstáculo imunológico dependentemente, já haviam
ou inofensivas e a colocá-las disponível para retardar ganhado sua virulência via
em ambientes hipercompeti- a transmissão de novos redes mercantis pré-capita-
tivos que favorecem os traços patógenos. Tamanhos e listas e a urbanização precoce
específicos que causam epi- densidades populacionais na Ásia e na Europa. Se olhar-
demias, como ciclos rápidos maiores facilitam maiores mos para a Inglaterra, onde o
de vida viral, a capacidade taxas de transmissão. Tais capitalismo surgiu primeiro
de salto zoonótico entre condições de densida- no campo, através da expul-
espécies transportadoras e de deprimem a resposta são em massa de camponeses
a capacidade de evoluir rapi- imunológica. O alto ren- da terra, que passou a ser
damente para novos vetores dimento, parte de qual- dedicada às monoculturas
de transmissão. Essas cepas quer produção industrial, de gado, vemos os primei-
tendem a se destacar precisa- fornece um suprimento ros exemplos dessas pragas
mente por causa de sua viru- continuamente renovável distintamente capitalistas.
lência. Em termos absolutos, de organismos suscetíveis, Três pandemias diferentes
parece que o desenvolvimen- o combustível para a evo- ocorreram na Inglaterra do
to de cepas mais virulentas lução da virulência.7 século XVIII, abrangendo os
teria o efeito oposto, já que períodos de 1709-1720, 1742-
matar o hospedeiro mais E, é claro, cada uma dessas História e Etiologia 1760 e 1768-1786. A origem de
rápido proporciona menos características é uma conse- Pragas são em larga medida cada uma foi gado importado
tempo para a propagação do quência da lógica da concor- uma sombra da industriali- da Europa, infectado pelas
vírus. O resfriado comum é rência industrial. Em particu- zação capitalista, enquanto pandemias pré-capitalistas
um bom exemplo desse prin- lar, a acelerada taxa de “pro- também agem como seu normais que se seguiram às
cípio, geralmente mantendo dutividade” em tais contextos arauto. Os casos óbvios da guerras. Mas na Inglaterra
baixos níveis de intensidade tem uma dimensão biológica varíola e outras pandemias o gado começou a se con-
que facilitam sua ampla dis- acentuada: “Assim que os introduzidas na América centrar de novas maneiras,
tribuição pela população. animais industriais atingem do Norte são um exemplo e a introdução do estoque
Mas, em certos ambientes, a o volume certo, são mortos. muito simples, uma vez que infectado atingiria a popula-
lógica oposta faz muito mais As infecções por influenza sua intensidade foi aprimo- ção de maneira muito mais
sentido: quando um vírus residentes precisam atingir rada pela separação de longo agressiva do que na Europa
tem numerosos hospedeiros seu limiar de transmissão ra-
da mesma espécie mantidos pidamente em qualquer des-
em proximidade, e especial- ses animais [...] Quanto mais
mente quando esses hospe- rápido o vírus é produzido,
deiros já têm ciclos de vida maior o dano ao animal.”8 Iro-
mais curtos, o aumento da nicamente, a tentativa de su-
virulência se torna uma van- primir esses surtos através do
tagem evolutiva. abate em massa – como nos
Novamente, o exemplo da recentes casos de peste suína
gripe aviária aqui é inequí- africana que resultaram na
voco. Wallace ressalta que perda de quase um quarto do
os estudos demonstraram suprimento mundial de carne
que “não há cepas endêmicas suína – podem ter o efeito não
altamente patogênicas [da intencional de aumentar ain-
gripe] em populações de aves da mais essa pressão de sele-
selvagens, a fonte reservató- ção, induzindo assim a evolu-
ria inicial de quase todos os ção de cepas hipervirulentas.
subtipos de gripe”6. Em vez Embora esses surtos tenham
disso, as populações domes- ocorrido historicamente
ticadas reunidas em fazendas em espécies domesticadas,
industriais parecem exibir muitas vezes após períodos
uma clara relação com esses de guerra ou catástrofes am-
surtos, por razões óbvias: bientais que pressionam mais
as populações de gado, o au-
mento da intensidade e viru-
6 Ibid., p. 56
lência de tais doenças seguiu
inegavelmente a expansão da
produção capitalista.

7 Ibid., pp. 56-57

8 Ibid., p. 57
reprodução

22
continental. Não é por aca- assim ajudando a limpar as fosse limitado e possibilitou a ideologia automática da

×vida×
so, então, que os surtos se coisas após a devastação. a disseminação das potências maioria das pessoas quando
concentraram nos grandes Mas este exemplo da terra coloniais europeias por todo confrontadas com as dimen-
laticínios de Londres, que natal do capitalismo também o continente. sões políticas de algo como
proporcionaram ambientes deve ser acompanhado de Além de induzir perio- as epidemias de coronavírus
ideais para a intensificação uma explicação dos efeitos dicamente crises agrícolas ou SARS. Mas os trabalha-
do vírus. que as práticas agrícolas e produzir as condições dores têm pouco controle
Por fim, os surtos foram capitalistas tiveram em sua apocalípticas que ajudaram sobre as condições em que
contidos por meio de abate periferia. Enquanto as pan- o capitalismo a ultrapassar trabalham. Mais importante,
precoce seletivo e em menor demias de gado da Inglaterra suas fronteiras iniciais, essas embora condições insalubres
escala, combinado com a capitalista inicial estavam pragas também assombraram saiam da fábrica para a mesa
aplicação de práticas médicas contidas, os resultados em o proletariado do próprio nú- devido à contaminação de ali-
e científicas modernas – em outros lugares foram muito cleo industrial. Antes de re- mentos, essa contaminação
essência semelhantes à forma mais devastadores. O exem- tornar aos muitos exemplos é realmente apenas a ponta
como essas epidemias são plo com o maior impacto his- mais recentes, vale a pena do iceberg. Tais condições
combatidas atualmente. Esta tórico é provavelmente o do notar uma vez mais que sim- são a norma para aqueles
é a primeira instância do que surto de peste bovina na Áfri- plesmente não há nada exclu- que trabalham ou vivem em
se tornaria um padrão cla- ca que ocorreu na década de sivamente chinês no surto de assentamentos proletários
ro, imitando o das próprias 1890. A data em si não é coin- coronavírus. As explicações próximos, e essas condições
crises econômicas: colapsos cidência: a peste bovina ator- sobre por que tantas epide- induzem declínios na saúde
cada vez mais intensos que mentou a Europa com uma mias parecem surgir na Chi- da população que fornecem
parecem colocar todo o intensidade que acompanhou na não são culturais, é uma condições ainda melhores
sistema em um precipício, de perto o crescimento da questão de geografia econô- para a disseminação das mui-
mas que são superados por agricultura em larga escala, mica. Isso é bastante claro se tas pragas do capitalismo.
meio de uma combinação apenas controlada pelo avan- compararmos a China com Tomemos, por exemplo, o
de sacrifício em massa que ço da ciência moderna. Mas o os EUA ou a Europa, quando caso da gripe espanhola, uma
limpa o mercado / população final do século XIX viu o auge estes eram polos de produção das epidemias mais mortais
e de uma intensificação dos do imperialismo europeu, global e emprego industrial da história. Esse foi um dos
avanços tecnológicos – nesse simbolizado pela coloniza- em massa.10 E o resultado primeiros surtos de influenza
caso, as práticas médicas mo- ção da África. A peste bovina é essencialmente idêntico, H1N1 (em relação aos surtos
dernas somadas às novas va- foi trazida da Europa para a com os mesmos recursos. A mais recentes de gripe suína
cinas, muitas vezes chegando África Oriental com os italia- mortandade de animais no e aviária), e supunha-se que
tarde demais, mas mesmo nos, que buscavam alcançar campo se encontrou na cida- ele fosse de alguma forma
outras potências imperiais de com a falta de saneamento qualitativamente diferente de
colonizando o Chifre da Áfri- básico e contaminação gene- outras variantes de influen-
ca9 através de uma série de ralizada. Isso se transformou za, dado seu alto número de
campanhas militares. Essas no foco dos primeiros esfor- mortos. Embora isso pareça
campanhas em geral fracas- ços liberal-progressistas de verdadeiro em parte (devido
saram, mas a doença se espa- reformas nas áreas da classe à capacidade da gripe espa-
lhou pela população local de trabalhadora, simbolizados nhola de induzir uma reação
gado e finalmente chegou à pela recepção do romance de exagerada do sistema imuno-
África do Sul, onde devastou Upton Sinclair The Jungle (A lógico), revisões posteriores
a economia agrícola capita- Selva , de 1906), originalmen- da literatura e da pesquisa
lista da colônia, matando até te escrito para documentar histórica em epidemiologia
o rebanho na propriedade do o sofrimento dos trabalha- descobriram que o vírus pode
infame supremacista branco dores imigrantes no setor de não ter sido muito mais vi-
Cecil Rhodes. O efeito histó- frigoríficos, mas adotado por rulento do que outras cepas.
rico foi decisivo: matando de liberais mais ricos preocupa- Em vez disso, sua alta taxa de
80 a 90% de todo o gado, a dos com violações sanitárias mortalidade provavelmente
praga resultou em uma fome e com as condições geral- foi causada principalmente
sem precedentes nas socie- mente insalubres em que por desnutrição generalizada,
dades predominantemente seus próprios alimentos eram superlotação urbana e con-
pastoris da África Subsaa- preparados. dições de vida geralmente
riana. Esse despovoamento Esse ultraje liberal à “su- insalubres nas áreas afetadas,
foi seguido pela colonização jeira”, com todo o seu racis- o que incentivou não apenas
invasiva da savana pelo espi- mo implícito, ainda define o a disseminação da gripe em
nheiro, que criou um habitat que podemos pensar como si, mas também o cultivo de
para a mosca tsé-tsé, que car- superinfecções bacterianas
rega a doença do sono e im- 10 Isso não quer dizer que as sobre a infecção viral inicial.
comparações dos EUA com a China
pede o pastoreio de animais. hoje também não sejam esclarecedoras.
Em outras palavras, a alta
Isso garantiu que o repovoa- Como os EUA possuem seu próprio taxa de mortalidade da gripe
mento da região após a fome setor agroindustrial, eles próprios espanhola, embora retra-
contribuem enormemente para a
tada como uma aberração
produção de novos vírus perigosos,
9 Região no leste da África que inclui sem mencionar infecções bacterianas imprevisível característica
Etiópia, Somália, Eritreia e Somalilândia. resistentes a antibióticos. dessa cepa do vírus, foi

23
reprodução
incrementada pelas condi- Era de ouro qualidade e alto valor, feitas
ções sociais. Em paralelo, a Os paralelos com o atual com os mais altos padrões
rápida disseminação da gripe caso chinês são salientes. do mercado global, como
foi possibilitada pelo comér- A COVID-19 não pode ser iPhones e chips de compu-
cio global e pela guerra glo- entendida sem levar em con- tador. Mas os bens voltados
bal, naquele momento volátil sideração as maneiras pelas para o consumo no mercado
envolvendo os imperialismos quais as últimas décadas de doméstico têm padrões abis-
que sobreviveram à Primeira desenvolvimento da China malmente baixos, causando
Guerra Mundial. E encontra- no e através do sistema ca- escândalos regulares e pro-
mos novamente uma história pitalista global moldaram o funda desconfiança pública.
agora familiar de como uma sistema de saúde do país e o Os muitos casos fazem um
cepa mortal de influenza foi estado da saúde pública em eco inegável ao The Jungle de
produzida: embora a origem geral. A epidemia, por mais Sinclair, e a outras narrativas
exata ainda seja um pouco nova que seja, é, portanto, da “Era de Ouro America-
obscura, é agora amplamente semelhante a outras crises de na”. O maior caso recente,
aceito que ela se originou em saúde pública que surgiram o escândalo do leite com
suínos ou aves domésticas, antes, que tendem a ser pro- melamina de 2008, deixou
provavelmente no Kansas . duzidas quase com a mesma uma dúzia de bebês mortos e
O tempo e a localização são regularidade que as crises dezenas de milhares de hos-
notáveis, pois os anos que se econômicas e a serem vistas pitalizados (embora talvez
seguiram à guerra foram uma de maneira semelhante na centenas de milhares tenham
espécie de ponto de inflexão imprensa popular – como se sido afetados). Desde então,
para a agricultura americana, fossem aleatórias, eventos vários escândalos abalaram o
que viu a ampla aplicação de do tipo “cisne negro”, total- público com regularidade: em
métodos de produção cada mente imprevisíveis e sem 2011, quando o óleo recicla-
vez mais mecanizados, quase precedentes. A realidade, no do de caixas de gordura foi
fabris. Essas tendências só entanto, é que essas crises de encontrado em restaurantes
se intensificaram na década saúde seguem seus próprios de todo o país, ou em 2018,
de 1920, e a aplicação em padrões caóticos e cíclicos quando vacinas defeituosas no campo da educação básica
massa de tecnologias como de recorrência, tornados mataram várias crianças e, e da alfabetização, foram
a ceifeira-debulhadora indu- mais prováveis por
​​ uma série um ano depois, quando de- substanciais o suficiente
ziu ao mesmo tempo uma de contradições estruturais zenas foram hospitalizadas para que até os críticos mais
gradual monopolização e construídas na natureza da quando receberam vacinas severos do país precisassem
um desastre ecológico, cuja produção e da vida prole- falsas contra o HPV. Histó- reconhecê-los. A esquistos-
combinação resultou na crise tária no capitalismo. Muito rias mais brandas são ainda somose, que assolou o país
do Dust Bowl11 e na migração parecido com o caso da gripe mais desenfreadas, compon- por séculos, foi praticamente
em massa que se seguiu. A espanhola, o coronavírus foi do um cenário familiar para exterminada em grande parte
concentração intensiva de originalmente capaz de se es- qualquer pessoa que vive na das áreas que costumava ata-
gado que marcaria as fazen- palhar rapidamente por causa China: mistura instantânea car, apenas para retornar com
das industriais posteriores de uma degradação geral dos de sopa em pó “reforçada” vigor quando o sistema socia-
ainda não havia surgido, mas cuidados básicos de saúde com sabão para manter os lista de saúde começou a ser
as formas mais básicas de entre a população em geral. custos baixos, empresários desmantelado. A mortalidade
concentração e produção in- Mas justamente porque essa que vendem porcos que mor- infantil despencou e, apesar
tensiva que já haviam criado degradação ocorreu em meio reram de causas misteriosas da fome que acompanhou o
epidemias de gado em toda a a um crescimento econômico para aldeias vizinhas, as fre- Grande Salto para a Frente,
Europa eram agora a norma. espetacular, foi ocultada por quentes e detalhadas conver- a expectativa de vida saltou
Se as epidemias de gado in- trás do esplendor das cidades sas sobre qual restaurante de de 45 para 68 anos entre 1950
glesas do século XVIII foram cintilantes e das grandes fá- esquina vai te deixar doente. e o início dos anos 1980. A
o primeiro caso de uma praga bricas. A realidade, no entan- Antes da incorporação imunização e as práticas sa-
pecuária distintamente capi- to, é que os gastos com bens peça por peça do país ao sis- nitárias gerais se espalharam
talista e o surto de peste bo- públicos, como assistência tema capitalista global, servi- e as informações básicas
vina da África dos anos 1890 médica e educação na China, ços como assistência médica sobre nutrição e saúde pú-
foi o maior dos holocaustos permanecem extremamente na China eram prestados blica, bem como o acesso a
epidemiológicos do imperia- baixos, enquanto a maioria (principalmente nas cidades) medicamentos rudimentares,
lismo, a gripe espanhola pode dos gastos públicos foi dire- sob o sistema danwei de se- eram gratuitas e estavam dis-
ser entendida como a primei- cionada à infraestrutura de guro-saúde vinculado a em- poníveis para todos. Enquan-
ra das pragas do capitalismo tijolo e concreto – pontes, presas ou (principalmente, to isso, o sistema de médicos
no proletariado. estradas e eletricidade barata mas não exclusivamente no descalços ajudou a distribuir
para a produção. campo) por clínicas de saúde conhecimento médico fun-
Enquanto isso, a qualidade locais compostas por muitos damental, embora limitado,
11 Tempestades de areia que assolaram dos produtos do mercado “médicos descalços”, todos a uma grande parte da popu-
os Estados Unidos na década de 1930,
interno costuma ser peri- prestados como um serviço lação, ajudando a construir
provocadas principalmente pelas
práticas da agricultura mecanizada. gosamente ruim. Durante gratuito. Os sucessos da as- um sistema de saúde robusto
décadas, a indústria chinesa sistência de saúde da era so- e de baixo para cima em
produziu exportações de alta cialista, como seus sucessos condições de grave pobreza

24
apenas 22% dos trabalhado- cinco vezes maior que a ren-

×vida×
res migrantes tinham seguro da per capita (US$ 60.200).
médico básico. A falta de Antes de ser fechado em 2016
contribuições para o sistema e de seus criadores serem
de seguro social não é, no presos, o agora extinto pro-
entanto, simplesmente um jeto de Lu Yuyu e Li Tingyu
ato maldoso de patrões indi- para acompanhar a agitação
vidualmente corruptos, mas social no país através de um
é explicada em grande parte blog registrou pelo menos
pelo fato de que as margens algumas greves e protestos
de lucro reduzidas não dei- por trabalhadores médicos
xam espaço para benefícios todos os meses em que fun-
sociais. Pelos nossos próprios cionou. Em 2015, o último
cálculos, descobrimos que ano inteiro com dados me-
cobrar o seguro social não ticulosamente coletados,
pago em um centro industrial houve 43 desses eventos. Eles
como Dongguan reduziria os também registraram dezenas
lucros industriais pela meta- de “incidentes de tratamento
de e levaria muitas empresas médico [protesto]” a cada
à falência. Para compensar mês, liderados por familiares
as enormes lacunas, a China de pacientes, com 368 regis-
instituiu um minguado es- trados em 2015.
quema médico suplementar Sob tais condições de de-
para cobrir aposentados e sinvestimento público em
trabalhadores independentes, massa do sistema de saúde,
que pagam apenas algumas não é de surpreender que
centenas de iuanes por pes- a COVID-19 tenha se espa-
soa anualmente, em média. lhado tão facilmente. Com-
material. Vale lembrar que milhões de trabalhadores mi- Esse sistema médico dila- binado ao fato de que uma
tudo isso ocorreu em um grantes, para os quais o direi- pidado produz suas próprias doença transmissível surge
momento em que a China to a assistência médica básica tensões sociais aterradoras. na China a cada 1-2 anos, as
era mais pobre, per capita, do evapora completamente Vários profissionais de saú- condições parecem prepara-
que um país médio da África quando eles deixam suas de são mortos a cada ano e das para que essas epidemias
Subsaariana hoje. cidades de origem (de onde, dezenas são feridos por ata- continuem. Como no caso da
Desde então, uma com- sob o sistema hukou, eles ques de pacientes raivosos gripe espanhola, as condições
binação de negligência e são residentes permanentes, ou, mais frequentemente, geralmente ruins de saúde
privatização degradou subs- independentemente da sua dos familiares de pacien- pública entre a população
tancialmente esse sistema ao localização real, o que signi- tes que morreram sob seus proletária ajudaram o vírus a
mesmo tempo em que a rápi- fica que os recursos públicos cuidados. O ataque mais ganhar corpo e, a partir daí,
da urbanização e a produção não podem ser acessados ​​em recente ocorreu na véspera a se espalhar rapidamente.
industrial desregulamentada outro local). de Natal, quando um médico Mas, novamente, não é ape-
de bens domésticos e pro- Aparentemente, o sistema em Pequim foi esfaqueado nas uma questão de distribui-
dutos alimentares tornaram de saúde público deveria ter até a morte por um homem ção. Também temos que en-
a necessidade de uma assis- sido substituído no final dos que acreditava que sua mãe tender como o próprio vírus
tência médica universalizada, anos 1990 por um sistema havia morrido devido a foi produzido.
sem mencionar a regulamen- mais privatizado (embora maus cuidados no hospital.
tação sobre alimentos, medi- gerenciado pelo Estado), Uma pesquisa com médicos
camentos e segurança, mais no qual uma combinação descobriu que 85% deles já
necessária do que nunca. de contribuições de em- sofreram violência no local
Hoje, os gastos públicos em pregadores e empregados de trabalho, e outra, de 2015,
saúde da China são de US$ proporcionaria assistência disse que 13% dos médicos na
323 per capita, segundo dados médica, pensões e seguro de China foram agredidos fisi-
da Organização Mundial da habitação. Mas esse sistema camente no ano anterior. Os
Saúde. Esse número é baixo, de seguro social sofreu com médicos chineses atendem
mesmo entre outros países pagamentos insuficientes quatro vezes o número de
de “renda média”, e é cerca sistemáticos, a ponto de as pacientes por ano que aten-
de metade do que é gasto por contribuições supostamente dem os médicos dos EUA,
Brasil, Bielorrússia e Bulgá- “necessárias” por parte dos enquanto recebem menos
ria. A regulamentação é míni- empregadores serem muitas de US$ 15.000 por ano – em
ma ou inexistente, resultan- vezes simplesmente ignora- comparação, isso é menor
do em vários escândalos do das, deixando a esmagadora que a renda per capita do
tipo mencionado acima. En- maioria dos trabalhadores a país (16.760 dólares), en-
quanto isso, os efeitos dessa pagar do próprio bolso. De quanto nos EUA um salário
negligência são sentidos com acordo com a última esti- médio de um médico (cerca
mais força pelas centenas de mativa nacional disponível, de US$ 300.000) é quase

25
Não há mais região Os dois não são totalmente de doenças previamente ambiental com a qual a flo-
selvagem separados, é claro, mas pa- isoladas, ao mesmo tempo resta interrompe as cadeias
No caso do surto mais re- rece ser o segundo caso que que esses animais se torna- de transmissão”. A realidade,
cente, a história é menos melhor descreve o surgimen- rão alvos de mercantilização, então, é que é impróprio
direta do que os casos de to da epidemia atual12. Nesse já que “até as espécies de pensar nessas áreas como
gripe suína ou aviária, que caso, o aumento da demanda subsistência mais selvagens a “periferia” natural de um
estão tão claramente asso- de corpos de animais selva- estão sendo inseridas em ca- sistema capitalista. O capi-
ciados ao núcleo do sistema gens para consumo, uso mé- deias de valor agroeconômi- talismo já é global e totali-
agroindustrial. Por um lado, dico, ou (como no caso dos cas”. Da mesma forma, essa zante. Ele não tem mais um
as origens exatas do vírus camelos e MERS) uma va- expansão empurra os huma- limite ou uma fronteira com
ainda não estão totalmente riedade de funções cultural- nos para mais perto desses alguma esfera natural e não
esclarecidas. É possível que mente significativas constrói animais e desses ambientes, capitalista para além dele, e,
tenha se originado de por- novas cadeias globais de mer- o que “pode aumentar
​​ a in- portanto, não há uma grande
cos, um dos muitos animais cadorias de bens “selvagens”. teração (e transbordamento) cadeia de desenvolvimento
domesticados e selvagens Em outros, cadeias de valor entre populações não huma- em que os países “atrasados”
que são traficados no “mer- agroecológicas pré-existentes nas selvagens e a ruralidade sigam os que estão à frente
cado úmido” de Wuhan, que se estendem sobre esferas recém-urbanizada”. Isso dá em uma progressiva “cadeia
parece ser o epicentro do antes “selvagens”, alterando aos vírus mais oportunida- de valor”, nem qualquer “vas-
surto. O caso, então, seria ecologias locais e modifican- des e recursos para sofrerem tidão selvagem” capaz de ser
semelhante aos outros cita- do a interação entre o huma- mutações de uma maneira preservada como algum tipo
dos. A maior probabilidade, no e o não humano. que permita infectar seres de condição pura e intoca-
no entanto, parece apontar Wallace é claro a respei- humanos, aumentando a da. Em vez disso, o capital
para o vírus originário de to disso, explicando várias probabilidade de transborda- apenas subordinou as áreas
morcegos ou possivelmente dinâmicas que criam doen- mento biológico. A geografia longe das aglomerações urba-
cobras, que geralmente são ças piores a despeito dos da própria indústria nunca nas, totalmente subsumidas
recolhidos na natureza. Mes- próprios vírus já existirem é tão claramente urbana ou nas cadeias globais de valor.
mo aqui, porém, existe uma em ambientes “naturais”. A rural, da mesma forma que a Os sistemas sociais resultan-
relação, já que o declínio na expansão da produção indus- agricultura industrial mono- tes – incluindo tudo, desde
disponibilidade e segurança trial em si “pode ​​empurrar polizada faz uso de fazendas um suposto “tribalismo” até
da carne de porco devido ao alimentos silvestres cada vez de grande porte e de peque- o ressurgimento das religiões
surto da febre suína africana mais capitalizados para longe nos agricultores: “na pequena fundamentalistas antimoder-
fez com que o aumento da da paisagem primária, esca- propriedade de um granjeiro nas – são produtos totalmen-
demanda de carne tenha sido vando uma variedade maior [ligado, como fornecedor, à te contemporâneos e quase
atendido com frequência por de patógenos potencialmente indústria agropecuária] ao sempre estão de fato conec-
esses mercados úmidos que protopandêmicos”. Em ou- longo da borda da floresta, tados aos mercados globais,
vendem carne de caça “selva- tras palavras, à medida que a um alimento animal pode pe- na maior parte das vezes
gem”. Mas, sem a conexão di- acumulação de capital inclui gar um patógeno antes de ser diretamente. O mesmo pode
reta da agricultura industrial, novos territórios, os animais enviado de volta para uma ser dito dos sistemas bioló-
pode-se dizer que os mesmos serão empurrados para áreas unidade de processamento gico-ecológicos resultantes,
processos econômicos têm antes apartadas, onde entra- no anel externo de uma gran- uma vez que as áreas “selva-
alguma cumplicidade nesse rão em contato com cepas de cidade”. gens” são realmente imanen-
surto em particular? O fato é que a esfera “na- tes a essa economia global,
A resposta é sim, mas tural” já está subordinada tanto no sentido abstrato de
12 A seu modo, esses dois caminhos
de uma maneira diferente. da produção pandêmica espelham o a um sistema capitalista dependência do clima e dos
Novamente, Wallace aponta que Marx chama de subsunção “real” totalmente globalizado que ecossistemas relacionados,
não apenas uma, mas duas e “formal” na esfera da produção conseguiu alterar as bases quanto no sentido direto de
propriamente dita. Na subsunção real,
rotas principais pelas quais o o próprio processo real de produção
do sistema climático global e estarem conectados às mes-
capitalismo ajuda a gestar e é modificado através da introdução devastar tantos ecossistemas mas cadeias de valor globais.
desencadear epidemias cada de novas tecnologias capazes de pré-capitalistas13 que o que Esse fato produz as con-
intensificar o ritmo e a magnitude
vez mais mortais: a primei- da produção – semelhante à maneira
sobrou não funciona mais dições necessárias para a
ra, descrita acima, é o caso como o ambiente industrial mudou as como antigamente. Aqui re- transformação de cepas virais
diretamente industrial, no condições básicas da evolução viral, side outro fator causal, uma “selvagens” em pandemias
de modo que novas mutações são vez que, segundo Wallace,
qual os vírus são gerados em globais. Mas a COVID-19 não
produzidas a um ritmo mais intenso e
ambientes industriais que fo- com maior vigor. Na subsunção formal, todos esses processos de é a pior delas. Um exemplo
ram totalmente subsumidos que precede a subsunção real, essas devastação ecológica redu- perfeito do princípio básico
dentro da lógica capitalista. novas tecnologias ainda não foram zem “o tipo de complexidade – e do perigo global –– é o
implementadas. Em vez disso, as formas
Mas a segunda rota é o caso de produção anteriormente existentes Ebola. O vírus Ebola14 é um
indireto, que ocorre através são simplesmente reunidas em novos 13 É um equívoco equiparar esses caso claro de um reservatório
da expansão e extração capi- locais que têm alguma interação com ecossistemas com um estado “pré- viral existente sendo derra-
o mercado global, como no caso de humano”. A China é um exemplo
talistas nas áreas ainda não trabalhadores manuais sendo colocados perfeito, pois muitas de suas paisagens
mado na população humana.
cultivadas, onde vírus ante- em uma oficina que vende seu produto naturais aparentemente “primitivas”
riormente desconhecidos são com lucro – e isso é semelhante à foram, de fato, o produto de períodos 14 Tecnicamente, este é um termo
maneira pela qual os vírus produzidos muito mais antigos de expansão genérico para cinco vírus distintos, o
colhidos da fauna selvagem
em ambientes “naturais” são trazidos da humana, que exterminaram espécies mais mortal dos quais é chamado de
e distribuídos ao longo dos fauna selvagem e introduzidos na fauna que antes eram comuns no continente vírus Ebola, anteriormente chamado de
circuitos globais de capital. doméstica pelo mercado global. asiático, como os elefantes. vírus do Zaire.

26
As evidências atuais sugerem ocorreram precisamente

×vida×
que os hospedeiros de ori- quando a expansão das in-
gem são várias espécies de dústrias primárias deslocou
morcegos nativos da África ainda mais os povos que ha-
Ocidental e Central, que bitam as florestas, perturban-
agem como portadores, mas do os ecossistemas locais. De
não são afetados pelo vírus. fato, isso parece ser verdade
O mesmo não ocorre com não só para os casos mais
outros mamíferos selvagens, recentes, pois, como explica
como primatas e antílopes, Wallace, “todo surto de Ebola
que contraem periodicamen- parece conectado a mudan-
te o vírus e sofrem surtos ças no uso capitalista da ter-
rápidos e de alta fatalidade. ra, incluindo o primeiro surto
O ebola tem um ciclo de vida em Nzara, Sudão, em 1976,
particularmente agressivo onde uma fábrica financiada
quando ataca fora de suas pelos britânicos começou a
espécies-reservatórios. Atra- tecer algodão local”. Da mes-
vés do contato com qualquer ma forma, os surtos de 2013
um desses hospedeiros sel- na Guiné ocorreram logo
vagens, os humanos também após um novo governo ter
podem ser infectados, com começado a abrir o país aos
resultados devastadores. mercados globais e vender
Várias epidemias importan- grandes extensões de terra a
tes ocorreram, e a taxa de conglomerados internacio-
mortalidade para a maioria nais do agronegócio. A indús-
foi extremamente alta, quase tria de óleo de palma, notória

reprodução
sempre superior a 50%. O por seu papel no desmata-
maior surto registrado, que mento e destruição ecológica
continuou esporadicamen- em todo o mundo, parece ter
te de 2013 a 2016 em vários sido particularmente culpa- ecossistemas. Isso geral- residentes indígenas – que
países da África Ocidental, da, pois suas monoculturas mente deixa os pobres do haviam sido levados a tais
registrou 11.000 mortes. A devastam as robustas redun- campo sem opção a não ser atividades justamente por
taxa de mortalidade para dâncias ecológicas que aju- avançar mais na floresta, ao causa da violenta repressão
os pacientes hospitalizados dam a interromper as cadeias mesmo tempo em que seu que enfrentaram daqueles
nesse surto foi de 57 a 59%, e de transmissão e ao mesmo relacionamento tradicional mesmos paramilitares duran-
muito mais alta para aqueles tempo literalmente atraem com esse ecossistema é inter- te a guerra16. O padrão desde
sem acesso a hospitais. Nos as espécies de morcegos que rompido. O resultado é que a então foi reproduzido em
últimos anos, várias vacinas servem como um reservató- sobrevivência depende cada todo o mundo, aplaudido por
foram desenvolvidas por em- rio natural para o vírus15. vez mais da caça de animais postagens de mídia social em
presas privadas, mas lentos Enquanto isso, a venda de selvagens ou da colheita de países de alta renda comemo-
mecanismos de aprovação e grandes extensões de terra flora e madeira locais para rando a execução (muitas ve-
rigorosos direitos de proprie- para empresas agroflorestais venda nos mercados globais. zes capturada pelas câmeras)
dade intelectual se combina- comerciais implica tanto o Essas populações tornam-se de “caçadores ilegais” por
ram com a falta generalizada deslocamento de habitan- alvos da ira das organizações forças de segurança suposta-
de infraestrutura de saúde tes originários das florestas ambientalistas globais, que mente “verdes”17.
para produzir uma situação quanto a ruptura de suas as condenam como “caça-
em que as vacinas pouco fize- formas locais de produção dores cruéis” e “madeireiros 16 Ver: Megan Ybarra, Green Wars:
ram para impedir a epidemia e colheita dependentes dos ilegais” responsáveis ​​pelo Conservation and Decolonization in the
mais recente, centrada na desmatamento e destruição Maya Forest, University of California
Press, 2017.
República Democrática do 15 Para o caso da África Ocidental,
ecológica que foi justamente,
Congo (RDC) e agora o surto especificamente, ver: RG Wallace, em primeiro lugar, o que as 17 Certamente é incorreto sugerir que
mais duradouro. R Kock, L Bergmann, M Gilbert, L levou a tais ações. Frequente- toda a caça furtiva é realizada pela
Hogerwerf, C Pittiglio, R Mattioli and mente, o processo toma um população rural pobre local, ou que
Na melhor das hipóteses,
R Wallace, “Did Neoliberalizing West todas as forças de guarda florestal nas
a doença é com frequência African Forests Produce a New Niche rumo muito mais sombrio, florestas nacionais de diferentes países
apresentada como se fosse for Ebola,” International Journal of Health como na Guatemala, onde os operam da mesma maneira que os
algo como um desastre natu- Services, Volume 46, Number 1, 2016. paramilitares anticomunistas antigos paramilitares anticomunistas,
Para uma visão mais ampla da conexão mas os confrontos mais violentos
ral. Mas, pior, é também com entre as condições econômicas e o
remanescentes da guerra civil e todos os casos mais agressivos de
frequência atribuída às prá- Ebola, como tal, ver: Robert G. Wallace do país foram transformados militarização das florestas parecem
ticas culturais “impuras” dos and Rodrick Wallace (Eds), Neoliberal em forças de segurança “ver- seguir essencialmente esse padrão. Para
Ebola: Modelling Disease Emergence from uma ampla visão geral do fenômeno,
pobres que vivem na floresta. Finance to Forest and Farm, Springer,
des”, encarregadas de “pro- consulte a edição especial de 2016 da
Mas o momento desses dois 2016. E para a afirmação mais direta teger” a floresta do narco- Geoforum (69) dedicada ao tópico. O
grandes surtos (2013-2016 do caso, ainda que menos acadêmica, tráfico, da caça e da extração prefácio pode ser encontrado aqui:
veja o artigo de Wallace, link acima: ilegal de madeira. Essas eram Alice B. Kelly and Megan Ybarra,
na África Ocidental e 2018
“Neoliberal Ebola: the Agroeconomic “Introduction to themed issue: ‘Green
até o presente na RDC) não Origins of the Ebola Outbreak,” as únicas atividades econô- Security and Protected Areas’”,
é uma coincidência. Ambos Counterpunch, 29 July 2015. micas disponíveis para seus Geoforum, Volume 69, 2016. pp. 171-175.

27
A contenção como teriam nenhuma obrigação as redes de logística de cida- (ver, por exemplo, a resposta
exercício de estadismo material de cumprir. Tanto a de para cidade continuassem a furacões nos EUA). Mas,
A COVID-19 chamou a aten- propaganda chinesa quanto sendo interrompidas, pois por outro lado, isso repete
ção global com uma força a ocidental enfatizaram a qualquer governo local pa- um padrão comum nas leis
sem precedentes. É claro que real capacidade repressiva da rece capaz de simplesmente chinesas, segundo o qual o
os meios de comunicação quarentena, a primeira nar- impedir que trens ou cami- Estado central, sem estru-
disseminaram o pânico do rando-a como um caso de in- nhões de carga passem por turas eficientes de comando
Ebola, da gripe aviária e da tervenção governamental efi- suas fronteiras. E essa inca- formais e executáveis que se
SARS. Mas algo sobre essa caz em uma emergência e a pacidade básica do governo estendam até o nível local,
nova epidemia gerou um tipo segunda como mais um caso chinês o forçou a lidar com deve confiar em uma combi-
diferente de impacto. Em de ação totalitária por parte o vírus como se fosse uma nação de pedidos amplamen-
parte, isso é quase certamen- do distópico Estado chinês. A insurgência, representando te divulgados para que fun-
te devido à escala espetacular verdade não dita, no entanto, uma guerra civil contra um cionários e cidadãos locais se
da resposta do governo chi- é que a própria violência da inimigo invisível. mobilizem e uma série de pu-
nês, resultando em imagens repressão significa uma inca- O mecanismo estatal na- nições posteriores aos piores
também espetaculares de pacidade mais profunda no cional realmente começou respondedores (enquadradas
megacidades esvaziadas que Estado chinês, que ainda está a funcionar em 22 de janei- como repressão à corrup-
contrastam tanto com a ima- em construção. ro, quando as autoridades ção). A única resposta verda-
gem normal que a mídia faz Isso por si só nos permite atualizaram as medidas de deiramente eficiente pode ser
da China como superlotada e vislumbrar a natureza do resposta a emergências em encontrada em áreas especí-
superpoluída. Essa resposta Estado chinês, mostrando toda a província de Hubei ficas em que o Estado central
funcionou também como como ele está desenvolvendo e disseram ao público que concentra a maior parte de
mais uma fonte para as habi- técnicas novas e inovadoras tinham autoridade legal para seu poder e atenção – nesse
tuais especulações a respeito de controle social e de res- criar instalações de quarente- caso, Hubei e, mais especifi-
do suposto e iminente colap- posta a crises, capazes de na, bem como para “coletar” camente, Wuhan. Na manhã
so político ou econômico do serem implantadas mesmo qualquer pessoal, veículos e de 24 de janeiro, a cidade já
país, um impulso extra nas em condições em que as má- instalações necessárias para sofria um eficaz e completo
contínuas tensões da guerra quinas básicas do Estado são a contenção da doença ou bloqueio, sem trens entran-
comercial com os Estados escassas ou inexistentes. Ao para estabelecer bloqueios e do ou saindo, quase um mês
Unidos. Isso combina com a mesmo tempo, essas condi- controlar o tráfego (assim, após a detecção da nova cepa
rápida disseminação do ví- ções oferecem uma imagem autorizar um fenômeno cuja do coronavírus. As autorida-
rus, dando a ele o caráter de ainda mais interessante ocorrência independente era des nacionais declararam que
uma ameaça imediatamente (embora mais especulativa) conhecida). Em outras pala- funcionários de saúde têm a
global, apesar de sua relativa de como a classe dominante vras, a implantação total dos autorização para examinar e
baixa taxa de mortalidade18. (mesmo em países com Es- recursos estatais começou colocar em quarentena qual-
Em um nível mais pro- tados bem robustos) pode na verdade com um apelo quer pessoa a seu critério.
fundo, no entanto, o que reagir quando uma crise ge- a esforços voluntários em Além das principais cidades
parece mais fascinante sobre neralizada e uma insurreição nome dos habitantes locais. de Hubei, dezenas de outras
a resposta do Estado chinês ativa causarem avarias seme- Por um lado, um desastre tão cidades da China, incluindo
é a maneira como ela foi lhantes. O surto viral foi, em grande sobrecarregaria a ca- Pequim, Guangzhou, Nan-
realizada, através da mídia, todos os aspectos, auxiliado pacidade de qualquer estado jing e Shangai, lançaram
como uma espécie de ensaio por conexões ruins entre
melodramático para a mobi- todos os níveis do governo:
lização total da contrainsur- repressão dos médicos “de-
gência doméstica. Isso nos dá nunciantes” por autoridades
insights reais sobre a capa- locais contra os interesses do
cidade repressiva do Estado governo central, mecanismos
chinês, mas também enfatiza ineficazes de notificação hos-
a incapacidade mais profun- pitalar e condições extrema-
da desse Estado, revelada por mente precárias de prestação
sua necessidade de depender de cuidados de saúde básicos
tanto de uma combinação são apenas alguns exemplos
de medidas massivas de pro- . Enquanto isso, diferentes
paganda implementadas em governos locais voltaram ao
todas as facetas da mídia e da normal em ritmos diferentes,
boa vontade da mobilização quase completamente fora do
de habitantes locais que não controle do Estado central
(exceto em Hubei, o epicen-
tro). No momento da escrita
18 De longe a menos letal de todas deste texto, parece quase
as doenças mencionadas aqui, seu
alto número de mortes tem sido o inteiramente aleatório quais
resultado de sua rápida disseminação portos estão operando e
para um grande número de hospedeiros quais localidades reiniciaram
humanos, resultando em um número
elevado de mortes absolutas, apesar de
a produção. Mas essa quaren-
ter uma taxa de mortalidade mais baixa. tena-gambiarra fez com que
reprodução

28
bloqueios de severidade va- e agressivas espelham os expressou amplamente nas via Twitter em Hong Kong20.

×vida×
riável nos fluxos de pessoas e casos extremos de contrain- mesmas plataformas. O vídeo mostra um grupo
mercadorias dentro e fora de surgência, lembrando mais A morte do Dr. Li Wen- de pessoas que parecem ser
suas fronteiras. claramente as ações da ocu- liang, um dos primeiros a de- médicos ou socorristas , com
Em resposta ao chamado pação militar-colonial em nunciar os perigos do vírus, equipamentos de proteção
de mobilização do Estado lugares como a Argélia ou, em 7 de fevereiro, abalou os completa, tirando uma foto
central, algumas localidades mais recentemente, a Pales- cidadãos presos em suas ca- com a bandeira chinesa. A
adotaram suas próprias ini- tina. Nunca antes eles foram sas em todo o país. Li foi um pessoa que gravou o vídeo
ciativas severas e estranhas. realizados nessa escala, nem dos oito médicos procurados explica que o grupo costuma
A mais assustadora delas em megacidades desse tipo, pela polícia por espalhar “in- ir lá todos os dias para essas
pode ser encontrada em qua- que abrigam grande parte da formações falsas” no início sessões fotográficas. O vídeo
tro cidades da província de população do mundo. A con- de janeiro, antes de contrair segue os homens enquanto
Zhejiang, onde trinta milhões duta da repressão oferece en- o próprio vírus. Sua morte tiram o equipamento de pro-
de pessoas receberam passa- tão um tipo estranho de lição provocou a ira de internautas teção e ficam conversando e
portes locais, permitindo que para aqueles que desejam e uma declaração de pesar fumando, até usando um dos
apenas uma pessoa por fa- uma revolução global, uma das autoridades de Wuhan. jalecos para limpar o carro.
mília saia de casa a cada dois vez que é, essencialmente, As pessoas estão começando Antes de partir, um dos ho-
dias. Cidades como Shen- um processo de reação a seco a ver que o estado é formado mens despeja sem cerimônia
zhen e Chengdu ordenaram levado a cabo pelo Estado. por funcionários e burocra- o traje de proteção em uma
que cada bairro fosse isolado tas desonestos que não têm lata de lixo próxima, sem se
e permitiram que quarteirões Incapacidade ideia do que fazer, mas ainda dar ao trabalho de enfiá-lo no
inteiros de apartamentos Essa restrição específica tentam fazer cara de mau19. fundo, onde não será visto.
ficassem em quarentena por se beneficia de seu caráter Esse fato foi revelado essen- Vídeos como este se espa-
14 dias mesmo que apenas aparentemente humanitário, cialmente quando o prefeito lharam rapidamente antes
um único caso do vírus fosse com o Estado chinês capaz de Wuhan, Zhou Xianwang, de serem censurados – pe-
confirmado. Enquanto isso, de mobilizar um número foi forçado admitir na televi- quenos rasgos no véu fino do
centenas de pessoas foram maior de habitantes locais são estatal que seu governo espetáculo sancionado pelo
detidas ou multadas por para ajudar no que é, essen- atrasou a divulgação de infor- Estado.
“espalhar boatos” sobre a cialmente, a nobre causa de mações críticas sobre o vírus Em um nível mais fun-
doença, e alguns que fugiram estrangular a propagação após a ocorrência do surto. A damental, a quarentena
da quarentena foram presos e do vírus. Mas, como é de própria tensão causada pelo também começou a mostrar
sentenciados a longos perío- se esperar, essas restrições surto, combinada com a ten- a primeira onda de reverbe-
dos de prisão – e as próprias também sempre saem pela são induzida pela mobiliza- rações econômicas na vida
prisões agora estão passando culatra. A contrainsurgência ção total do estado, começou pessoal das pessoas. O lado
por um surto grave, devido à é, afinal, um tipo desespe- a revelar à população em ge- macroeconômico disso tem
incapacidade das autoridades rado de guerra conduzida ral as profundas fissuras que sido amplamente divulgado,
de isolar indivíduos doentes, apenas quando formas mais estão por trás do retrato fino com uma queda maciça no
mesmo em um ambiente lite- vigorosas de conquista, apa- que o governo pinta de si. Em crescimento chinês apontan-
ralmente projetado para faci- ziguamento e incorporação outras palavras, condições do uma nova recessão global,
litar o isolamento. Esses ti- econômica se tornam im- como essas expuseram as in- especialmente quando acom-
pos de medidas desesperadas possíveis. É uma ação cara, capacidades fundamentais do panhada de estagnação con-
ineficiente e de retaguarda, Estado chinês a um número tínua na Europa e uma queda
traindo a incapacidade mais crescente de pessoas que an- recente em um dos principais
profunda de qualquer poder teriormente teriam aceitado índices de saúde econômica
encarregado de implantá-lo a propaganda do governo nos EUA, mostrando um de-
– sejam eles interesses colo- sem questionamentos. clínio repentino na atividade
niais franceses, o declinante Se procurássemos um úni- comercial. Em todo o mundo,
império americano ou outros. co símbolo para expressar o as empresas chinesas e aque-
O resultado da repressão é caráter básico da resposta do las mais dependentes das
quase sempre uma segunda Estado, seria algo como um redes de produção chinesas
insurgência, ensanguentada vídeo filmado por um mora- estão agora analisando suas
pelo esmagamento da primei- dor de Wuhan e compartilha- cláusulas de “força maior”,
ra e ainda mais desesperada. do com a Internet ocidental que permitem atrasos ou
Aqui, a quarentena dificil- cancelamento das respon-
mente espelhará a realidade 19 Em uma entrevista em podcast, sabilidades decorrentes
da guerra civil e da contrain- Au Loong Yu, citando amigos no de ambas as partes em um
surgência. Mas mesmo neste continente, diz que o governo de
Wuhan está efetivamente paralisado
contrato comercial quando
caso, a repressão saiu pela pela epidemia. Au sugere que a
culatra à sua maneira. Com crise não está apenas destruindo o
grande parte do esforço do tecido da sociedade, mas também a 20 O vídeo em si é real, mas vale a pena
máquina burocrática do PCCh, que notar que Hong Kong tem sido um foco
estado focado no controle só se intensificará à medida que o especial de atitudes racistas e teorias de
da informação e na propa- vírus se espalhar e se tornar uma crise conspiração direcionadas aos habitantes
ganda constante distribuída intensificada para outros governos locais do continente e ao PCCh, muito do
em todo o país. A entrevista é de Daniel que é compartilhado nas mídias sociais
por todos os aparelhos de Denvir, do The Dig, publicado em 7 de por Hong Kong sobre o vírus deve ser
mídia possíveis, a agitação se fevereiro. cuidadosamente verificado.

29
esse contrato se torna “im- seus salários normais e, em mais duras do poder estatal, contágio é social. Portanto,
possível” de se executar. seguida, podem retornar à e segundo como uma adver- não é de surpreender que a
Embora improvável naquele linha de produção. As empre- tência sobre a ameaça que única maneira de combatê-
momento, a mera perspectiva sas com menos capital não ainda é representada por -lo em um estágio tão tardio
causou uma cascata de de- têm essa opção, e a tentativa respostas locais descoorde- seja travar um tipo surreal
mandas para a produção ser do governo de oferecer novas nadas e irracionais quando o de guerra contra a própria
restaurada em todo o país. A linhas de crédito barato para mecanismo do Estado central sociedade. Não se reúnam,
atividade econômica, no en- empresas menores prova- é sobrecarregado. não causem caos. Mas o caos
tanto, apenas reviveu em um velmente terá pouco efeito Estas são lições importan- também pode aumentar
padrão de retalhos, com tudo no longo prazo. Em alguns tes para uma época em que de forma isolada. Como as
já funcionando sem proble- casos, parece que o vírus sim- a destruição causada pela fornalhas de todas as fun-
mas em algumas áreas e ain- plesmente acelera tendências acumulação interminável se dições esfriam para brasas
da indefinidamente parado pré-existentes de realocação estendeu tanto para cima suavemente crepitantes e
em outras. No momento de de fábricas, já que empresas no sistema climático global depois para cinzas frias como
escrita deste texto, 1º de mar- como a Foxconn expandem quanto para baixo nos subs- a neve, os muitos pequenos
ço se tornou a data provisória a produção no Vietnã, Índia tratos microbiológicos da desesperos não podem deixar
marcada pelas autoridades e México para compensar a vida na Terra. A certeza é que de escapar dessa quarentena
nacionais para que todas as desaceleração. tais crises se tornarão mais para suavemente desabar
áreas fora do epicentro do comuns. Como a crise secu- em um caos maior que pode

reprodução
surto voltem ao trabalho. lar do capitalismo assume um dia, como esse contágio
Mas outros efeitos foram um caráter aparentemente social, se provar difícil de
menos visíveis, embora sem não econômico, novas epi- conter.
dúvida muito mais impor- demias, fomes, inundações e
tantes. Muitos trabalhadores outros desastres “naturais” Chuang é um coletivo
migrantes, incluindo aqueles serão usados ​​como justifi- comunista chinês formado
que permaneceram em suas cativa para a extensão do por intelectuais e ativistas,
cidades de trabalho no Festi- controle estatal, e a resposta alguns dentro do país,
val da Primavera ou puderam A Guerra Surreal a essas crises funcionará cada outros exilados. Este texto,
retornar antes da implemen- Enquanto isso, a desajeitada vez mais como uma opor- intitulado originalmente
tação dos vários bloqueios, resposta inicial ao vírus, a tunidade de exercitar ferra- como “Contágio Social”, foi
agora estão presos em um dependência do Estado de mentas novas e não testadas traduzido por Amauri Gonzo e
limbo perigoso. Em Shen- medidas particularmente para contrainsurgência. Uma disponibilizado gratuitamente
zhen, onde a grande maioria punitivas e repressivas para política comunista coerente pela editora Veneta. Para ter
da população é de migrantes, controlá-lo e a inabilidade do deve compreender esses dois o livro de graça, acesse o site
os moradores relatam que o governo central de coordenar fatos juntos. No nível teó- da editora.
número de pessoas sem-teto efetivamente as localidades rico, isso significa entender
começou a subir. As pessoas para conciliar a produção e a que a crítica ao capitalismo
que aparecem nas ruas agora quarentena simultaneamente é empobrecida sempre que é
não são sem-teto há muito indicam que uma profunda separada das ciências exatas.
tempo, pelo contrário, pa- incapacidade permanece no Mas, no nível prático, implica
recem ter sido literalmente coração da maquinaria do também que o único projeto
despejadas ali sem ter para Estado. Se, como argumenta político possível hoje é aque-
onde ir – ainda vestindo rou- nosso amigo Lao Xie, a ên- le capaz de se orientar em
pas relativamente bonitas, fase do governo Xi tem sido um terreno definido por um
desconhecendo onde melhor a “construção do Estado”, desastre ecológico e micro-
dormir ao ar livre ou obter parece que muito trabalho a biológico generalizado e de
comida. Vários prédios da esse respeito ainda precisa operar nesse estado perpétuo
cidade viram um aumento de ser feito. Ao mesmo tempo, de crise e atomização.
pequenos furtos, principal- se a campanha contra a CO- Em uma China em qua-
mente de alimentos entre- VID-19 também pode ser lida rentena, começamos a vis-
gues à porta dos moradores como um combate contra lumbrar tal paisagem, pelo
que ficaram em casa durante uma insurgência, é notável menos em seus contornos:
a quarentena. No geral, os que o governo central te- ruas vazias no final do in-
trabalhadores estão perden- nha apenas a capacidade de verno cobertas por uma fina
do salários à medida que a fornecer uma coordenação camada de neve, impertur-
produção está paralisada. Os eficaz no epicentro de Hubei bada, os rostos iluminados
melhores cenários durante e que suas respostas em ou- por celulares espiando pelas
as paradas de trabalho são as tras províncias – até lugares janelas, barricadas ocasionais
quarentenas de dormitório, ricos e respeitáveis como formadas por algumas pou-
como as impostas na fábrica Hangzhou – permaneçam cas enfermeiras ou policiais
da Foxconn em Shenzhen, descoordenadas e desespe- ou voluntários ou simples-
onde novos retornados ficam radas. Podemos tomar isso mente atores pagos encarre-
confinados em seus quartos de duas maneiras: primeiro, gados de levantar bandeiras
por uma semana ou duas, re- como uma lição sobre a fra- e dizer para você colocar sua
cebem cerca de um terço de queza subjacente às bordas máscara e voltar para casa. O

30
As contradições mortais Em segundo lugar, assim como as influenzas sazonais, o

×público×
vírus está sofrendo mutações à medida que atravessa popu-
dos planos privados lações dotadas de diferentes composições etárias e condi-
ções de saúde. A variedade que os estadunidenses têm mais
de saúde em uma Era probabilidade de acabar pegando já é ligeiramente diferente
daquela identificada no surto original em Wuhan. As futuras
de pestes mutações do vírus podem tanto ser benignas quanto alterar
a distribuição de virulência, que atualmente cresce verti-
por Mike Davis ginosamente a partir dos cinquenta anos de idade A “gripe
corona” de Trump representa no mínimo um perigo mortal
Tradução Artur Renzo ao quarto dos estadunidenses que são de idade, possuem sis-
temas imunes fracos ou problemas respiratórios crônicos.
À medida que o coronavírus se espalha rapidamente pelo mundo, Em terceiro lugar, mesmo se o vírus permanecer estável
ultrapassando nossa capacidade de combatê-lo, o “inimigo e sofrer poucas mutações, é possível que seu impacto sobre
invisível” revela o inevitável: um capitalismo global impotente cortes etários mais jovens difira radicalmente em países
diante de uma crise biológica. Precisamos urgentemente de uma pobres e entre grupos de alta pobreza. Considere a expe-
infraestrutura de saúde pública internacional. riência global da gripe espanhola de 1918-19, que, estima-se,
matou cerca de 1-2% da humanidade. Nos Estados Unidos
e na Europa Ocidental, o vírus original do H1N1 teve maior
índice de letalidade em jovens adultos, e a explicação que

O coronavírus é o velho filme que temos assistido repe-


tidas vezes desde que o livro Zona Quente, de Richard
Preston, nos introduziu em 1995 ao demônio exterminador
geralmente se dá para tanto é que seus sistemas imunes re-
lativamente mais fortes acabavam reagindo com demasiada
intensidade à infecção e atacavam células pulmonares, o que
nascido em uma misteriosa caverna de morcegos na África acarretava uma pneumonia viral e um choque séptico. Mais
Central e conhecido como Ebola. Aquele foi apenas o pri- recentemente, contudo, alguns epidemiologistas levantaram
meiro de toda uma sucessão de novas doenças irrompendo a hipótese de que adultos mais velhos podem ter adquirido
no “campo virgem” (esse é o termo adequado) dos sistemas “memória imune” por conta de um surto anterior ocorrido
imunes inexperientes da humanidade. Depois do vírus da na década de 1890, o que teria os protegido. De todo modo,
Ebola, logo se seguiu a influenza aviária, que os humanos é sabido que o vírus original da H1N1 encontrou um nicho
pegaram em 1997, e a SARS, que surgiu no final de 2002. Em privilegiado em acampamentos do exército e em trincheiras
ambos os casos, a doença surgiu primeiro em Guangzhou, o de batalha, onde ele ceifou a vida de dezenas de milhares de
polo manufatureiro mundial.
Hollywood, é claro, abraçou com tudo esses surtos e pro-
duziu uma série de filmes para nos provocar e amedrontar –
Contágio (2001), dirigido por Steven Soderbergh, se destaca
pela precisão científica e pela sua espantosa antecipação do
caos atual.) Além dos filmes e dos inúmeros romances lú-
gubres, centenas de livros de milhares de artigos científicos
responderam a cada surto, muitos deles sublinhando o esta-
do deplorável da prevenção e preparação emergencial global
de se detectar e reagir a tais doenças novas.

Caos numérico
Assim, o coronavírus atravessa nossa porta da frente como
um monstro já familiar. Sequenciar seu genoma (aliás muito
semelhante ao de sua irmã, a amplamente estudada SARS)
foi moleza. Ainda nos faltam, no entanto, os pedaços mais
vitais de informação. À medida que os pesquisadores tra-
balham noite e dia para conseguir caracterizar o surto, eles
enfrentam três enormes desafios. Em primeiro lugar, a con-
tinuada escassez de kits para diagnóstico da infecção viral,
especialmente nos Estados Unidos e na África, tem impedi-
do a projeção de estimativas precisas de parâmetros-chave,
tais como a taxa de reprodução, o tamanho da população
infectada e a quantidade de infecções de caráter benigno.
O resultado vem sendo um completo caos numérico.
Alguns países, contudo, dispõem de dados mais confiá-
veis a respeito do impacto do vírus em certos grupos. E as
informações são muito assustadoras. A Itália, por exemplo,
registra uma espantosa taxa de mortalidade de 23% entre as
pessoas maiores de 65 anos de idade; na Inglaterra, a cifra
atualmente se encontra no patamar dos 18% para esse grupo.
A “gripe corona” que Trump menospreza representa um
perigo sem precedentes para populações geriátricas, com
bicho coletivo

um potencial saldo de mortalidade na casa dos milhões.

31
jovens soldados. Esse tornou-se um fator importantíssimo

reprodução
na batalha entre os impérios. Chegou-se a atribuir o colapso
da grande ofensiva alemã na primavera de 1918, e portanto o
resultado da guerra, ao fato de que os Aliados, em contraste
com seu inimigo, tinham condições de reabastecer seus exér-
citos doentes com tropas estadunidenses recém-chegadas.
Já a gripe espanhola em países mais pobres teve um perfil
diferente. Raramente se leva em conta que 60% da mor-
talidade global (e isso representa ao menos 20 milhões de
mortes) ocorreu em Punjabi, Pompéia, e em outras partes da
Índia Ocidental, onde exportações de grão para a Inglaterra
e práticas brutais de requisição coincidiram com uma seca
generalizada. A escassez alimentar que resultou disso levou
milhões de pobres à beira da fome. Essas populações torna-
ram-se vítimas de uma sinistra sinergia entre subnutrição,
que suprimia sua resposta imune à infecção, e surtos desen-
freados de pneumonias virais e bacterianas. Em outro caso
semelhante, o Irã sob ocupação inglesa, tendo passado por
muitos anos de seca, cólera e escassez alimentar, além de um
surto generalizado de malária, precondicionou a morte de,
estima-se, um quinto da população.
Essa história – especialmente as consequências desconhe-
cidas das interações com subnutrição e infecções existentes
– deveria nos alertar que o COVID-19 pode tomar um cami-
nho diferente e mais letal nas favelas densas e insalubres da
África e do Sul Asiático. Com casos agora sendo reportados
em Lagos, Kigali, Addis Ababa e Kinshasa, ninguém sabe (e
nem saberá por um bom tempo por conta da ausência de
testes para diagnóstico) de que forma ele pode entrar em
sinergia com as condições locais de saúde e as doenças da
região. O perigo desse fenômeno para as populações pobres
de todo o mundo vem sendo quase completamente ignorado taxa de ocupação de 90% significava que os hospitais não ti-
por jornalistas e governos ocidentais. O único artigo publi- nham mais a capacidade de absorver um influxo de pacientes
cado que li nesse sentido argumenta que por conta do fato em situações de epidemia e de emergência médica.
da população urbana da África ser a mais jovem do mundo, Hospitais privados e de caridade fechando as portas e
a pandemia deve produzir lá apenas um impacto ameno. À carências de enfermagem, igualmente provocados pela
luz da experiência de 1918, essa não passa de uma extrapola- lógica de mercado, devastaram os serviços de saúde em
ção tola. Assim como a suposição de que a pandemia, assim comunidades mais pobres e em áreas rurais, transferindo o
como a gripe sazonal, irá recuar diante de climas mais quen- fardo para hospitais públicos subfinanciados e instalações
tes. (Tom Hanks acabou de pegar o vírus na Austrália, onde médicas do Departamento de Assuntos de Veteranos dos
ainda é verão.) EUA. Se as condições do atendimento emergencial em tais
instituições já são incapazes de dar conta de infecções sa-
Um Katrina médico zonais, como esperar que elas deem conta de uma iminente
É possível que daqui a um ano vejamos com admiração o sobrecarga de casos críticos?
sucesso da China em conter a pandemia, e que fiquemos No novo século, a medicina emergencial continuou a so-
horrorizados com o fracasso dos EUA. (Estou aqui fazendo frer reduções no setor privado por conta do imperativo de
a suposição heróica de que a declaração da China de que a se preservar o “valor dos acionistas”, buscando o aumento
taxa de transmissão está diminuindo rapidamente é mais ou de dividendos e lucros de curto prazo, e no setor público por
menos precisa.) A incapacidade de nossas instituições de meio de austeridade fiscal e reduções nos orçamentos esta-
manter fechada a Caixa de Pandora, é claro, não é surpresa duais e federais de prevenção e preparação emergencial. O
para ninguém. Desde o ano 2000 temos repetidamente visto resultado disso é que há apenas 45.000 leitos de UTI dispo-
colapsos na linha de frente do atendimento de saúde. níveis para lidar com a avalanche projetada de casos graves
Tanto a temporada de gripe de 2009 quanto a de 2018, por e críticos de coronavírus. (Em comparação, os sul coreanos
exemplo, sobrecarregaram hospitais em todo o país, expondo dispõem de três vezes mais leitos por milhar do que os esta-
a chocante escassez de leitos hospitalares depois de vinte dunidenses.) De acordo com uma investigação feita pela USA
anos de cortes na capacidade de internação movidos pela Today “apenas oito estados teriam leitos hospitalares sufi-
maximização dos lucros (a versão do setor hospitalar para a cientes para tratar os 1 milhão de americanos de sessenta ou
gestão de inventário just-in-time). A crise remonta à ofensiva mais anos de idade que podem adoecer de COVID-19”.
corporativa que levou Reagan ao poder e converteu lideran- Ao mesmo tempo, os Republicanos vem rechaçando todos
ças do Partido Democrata em seus porta-vozes neoliberais. os esforços de reconstruir as redes de segurança destruídas
De acordo com A Associação Hospitalar Estadunidense, o pelos cortes orçamentários da recessão de 2008. Os departa-
número de leitos hospitalares sofreu um espantoso declínio mentos municipais e estaduais de saúde – a primeira (e vital)
de 39% entre 1981 e 1999. O objetivo era elevar os lucros linha de defesa – dispõem hoje de equipes 25% menores do
através de um aumento no “censo” (calculado a partir do nú- que crise financeira doze anos atrás. Além disso, ao longo
mero de leitos ocupados). Mas o objetivo da gerência de uma da última década o orçamento dos Centros de Controle e

32
Prevenção de Doenças caiu 10% em termos reais. Desde a Partido Republicano se recusaram a implementar a Affordable

×público×
coroação de Trump as insuficiências fiscais só se exacerba- Care Act, que expande o Medicaid aos trabalhadores pobres.
ram. O New York Times recentemente noticiou que “21% É por isso que um em cada quarto texanos, por exemplo, não
dos departamentos municipais de saúde registraram redu- dispõe de cobertura e só pode contar com a sala emergencial
ções nos seus orçamentos para o ano fiscal referente a 2017.” do hospital municipal se precisar se tratar.
Trump também fechou o escritório de pandemia da Casa As contradições mortais dos planos privados de saúde
Branca, uma diretoria instituída pelo Obama depois do surto em uma Era de pestes são talvez mais visíveis no setor de
de Ebola em 2014 para garantir uma resposta nacional rápida enfermagem domiciliar e cuidado assistido, que administra
e bem-coordenada para novas epidemias. 2,5 milhões de estadunidenses de idade – muitos deles de-
Estamos nas fases iniciais de um Katrina médico. Ao de- pendentes de Medicare. A situação há muito constitui um
sinvestirmos em prevenção e preparação emergencial médica escândalo nacional. Trata-se de um setor altamente competi-
no exato momento em que todas as avaliações de peritos re- tivo, capitalizado em salários baixos, falta de pessoal e cortes
comendam uma expansão generalizada dessas capacidades, ilegais de custos. De acordo com o New York Times, 380.000
nos encontramos em uma situação em que nos faltam tanto pacientes de casas de repouso morrem a cada ano por conta
suprimentos elementares quanto funcionários públicos de da negligência dessas instalações diante de procedimentos
saúde e leitos emergenciais. As reservas nacionais e regionais básicos de controle de infecções. Muitas dessas casas de
de mantimentos hospitalares vêm sendo armazenadas em repouso – particularmente em estados do Sul do país – cal-
condições muito inferiores às orientações epidemiológicas. culam ser mais barato arcar com as multas por violações sa-
Por isso, a débacle de kits para testes de diagnóstico coin- nitárias do que contratar funcionários adicionais e treiná-los
cidiu com uma escassez crítica de equipamentos protetivos adequadamente.
básicos para trabalhadores de saúde. Não é de surpreender que o primeiro epicentro de trans-
As enfermeiras militantes, nossa reserva nacional de missão comunitária foi o Life Care Center, uma casa de
consciência social, estão garantindo que todos nós com- repouso em Kirkland, situada nos subúrbios de Seattle.
preendamos os graves perigos provocados pelo armazena- Conversei com Jim Straub, um velho amigo que é líder sin-
mento inadequado de mantimentos protetivos essenciais dical nas casas de repouso da região de Seattle e está atual-
tais como máscaras faciais N95. Elas também nos lembram mente escrevendo um artigo a respeito do tema para o The
que os hospitais tornaram-se ambientes ideais para micro- Nation. Ele caracterizou a instalação como “sendo uma das
-organismos super-resistentes a antibióticos, tais como o C. piores equipadas em de quadro de funcionários em todo o
Difficile, que podem tornar-se seríssimos agentes mortais Estado” e descreveu a totalidade do sistema de casas de re-
secundários em alas hospitalares superlotadas. Ainda mais pouso de Washington como “o mais subfinanciado do país
vulneráveis porque invisíveis são as centenas de milhares de – um oásis absurdo de sofrimento de austeridade em um mar
trabalhadoras de lares de repouso e as equipes de enferma- de dinheiro da indústria de tecnologia de ponta.”
gem domiciliar, operando em condições de sub-remunera- Além disso, ele assinalou ainda que os oficiais de saúde pú-
ção e sobrecarga de trabalho. blica estavam ignorando o fator crucial que explica a rápida
taxa de transmissão da doença do Life Care Center para dez
A divisão de classes outras casas de repouso nas proximidades: “trabalhadores
O surto expôs instantaneamente a marcada divisão de clas- de casas de repouso situadas no mercado imobiliário mais
ses no atendimento de saúde, que a Nossa Revolução colo- caro dos Estados Unidos via de regra trabalham em mais de
cou na agenda nacional. Em suma: quem dispõe de um bom um emprego, geralmente atendendo em múltiplas casas de
plano de saúde e também tem condições de trabalhar ou repouso.” Ele diz que as autoridades foram incapazes de des-
lecionar de casa está confortavelmente isolado, contanto que cobrir os nomes e as localizações desses segundos empregos
siga com prudência as diretrizes de segurança. Funcionários e assim perderam todo e qualquer controle sobre a disse-
públicos e outros grupos de trabalhadores sindicalizados que minação do COVID-19. E até agora ninguém está propondo
gozam de uma cobertura decente terão de fazer escolhas difí- compensar a remuneração de trabalhadores expostos para
ceis, optando entre renda e proteção. Enquanto isso, milhões que eles permaneçam em casa.
de trabalhadores de baixa renda do setor de serviços, traba- Agora, como nos alerta o exemplo de Seattle, mais de-
lhadores agrícolas, desempregados e sem teto estão sendo zenas, talvez centenas, de casas de repouso em todo o país
atirados aos lobos. deverão se tornar pontos de foco do coronavírus e seus fun-
Mesmo se Washington eventualmente der conta de re- cionários, muitos deles recebendo o salário mínimo, optarão
solver o fiasco dos testes e fornecer um número adequado racionalmente por permanecer em casa a fim de protegerem
de kits para diagnóstico, aqueles que não dispõem de plano suas famílias. Numa situação dessas, o sistema poderia en-
de saúde ainda terão de pagar médicos ou hospitais para trar em colapso – e ninguém há de esperar que a Guarda
que estes apliquem os testes. As contas médicas familiares Nacional venha cuidar da reposição dos coletores de urina.
gerais vão disparar, ao mesmo tempo em que milhões de
trabalhadores estão perdendo seus empregos e os planos de Solidariedade internacional
saúde fornecidos pelos empregadores. Poderia haver defe- A cada passo de seu avanço mortal, a pandemia promove
sa mais forte e mais urgente da proposta de se estender o uma defesa de uma política de cobertura universal e ausência
Medicare para todos? remunerada no trabalho. Enquanto Biden se concentra em
Mas, como todos sabemos, cobertura universal em qual- arranhar a popularidade de Trump, os progressistas preci-
quer sentido minimamente eficaz requer provisão universal sam se unir, como propõe Bernie, para vencer a convenção
de ausências remuneradas por motivo de saúde. Quarenta e com sua pauta de Medicare para Todos. Juntos, os delega-
cinco por cento da força de trabalho atualmente tem esse di- dos de Bernie Sanders e Elizabeth Warren têm um papel a
reito negado: essas pessoas são portanto virtualmente com- desempenhar no Fiserv Forum em Milwaukee em meados
pelidos a transmitirem a infecção ou abrirem mão da renda de julho, mas o resto de nós possui uma tarefa igualmente
mensal. Da mesma forma, quatorze estados governados pelo importante nas ruas, começando agora com lutas contra

33
despejos, demissões e empregadores que se recusam a com- progressista que é simétrico ao novo nacionalismo de direita.
pensar trabalhadores ausentes (Está com medo de contágio? Tendemos a falar apenas da classe trabalhadora estaduni-
Permaneça a dois metros de distância do próximo manifes- dense e da história radical dos Estados Unidos (talvez nos
tante e você ainda garante uma imagem mais poderosa para a esquecendo que Eugene V. Debs era um internacionalista até
TV. Mas precisamos reivindicar as ruas.) o último fio de cabelo). Às vezes isso passa perto de uma ver-
Como sabemos, a cobertura universal é apenas um pri- são de esquerda do bordão “América em Primeiro Lugar”.
meiro passo. É desapontador, para dizer o mínimo, que nos Diante dessa pandemia, os socialistas devem aproveitar
debates das primárias do Partido Democrata nem Sanders toda ocasião para lembrar os outros da urgência da soli-
nem Warren chamaram atenção para como as grandes corpo- dariedade internacional. Concretamente, precisamos mo-
rações farmacêuticas [Big Pharma] abriram mão de investir bilizar nossos amigos progressistas e seus ídolos políticos
em pesquisa e desenvolvimento de novos antibióticos e anti- a fim de reivindicar um aumento massivo na produção de
virais. Das dezoito maiores empresas farmacêuticas, quinze kits para diagnóstico, equipamentos de segurança e medica-
abandonaram totalmente o campo. Medicamentos cardíacos, mentos vitais para serem distribuídos gratuitamente a paí-
tranquilizadores viciantes e tratamentos para impotência ses pobres. Cabe a nós garantir que o Medicare para todos
masculina são alguns dos produtos mais lucrativos do setor, torne-se tanto uma política externa quanto uma política
e não a defesa contra infecções hospitalares, doenças emer- doméstica nos EUA.
gentes e doenças letais tradicionais dos trópicos, como a ma-
lária. A vacina universal para a influenza – isto é, uma vacina Mike Davis é um escritor americano, ativista político, teórico
voltada para as partes imutáveis das proteínas de superfície urbano e historiador. Ele é mais conhecido por suas investigações
do vírus – já é uma possibilidade há décadas, mas não é lu- de poder e classe social em sua terra natal no sul da Califórnia.
crativa o suficiente para ser considerada prioridade. Este artigo foi publicado originalmente na revista Jacobin Brasil.
À medida que a revolução dos antibióticos retrocede, ve-
lhas doenças deverão reaparecer ao lado de novas infecções e
os hospitais se converterão em ossuários. Até mesmo alguém
como Trump pode esbravejar oportunisticamente contra
os custos absurdos dos medicamentos de prescrição. O que
precisamos, no entanto, é de uma visão mais audaciosa vol-
tada para quebrar os monopólios farmacêuticos e fornecer
ao público uma produção de medicamentos vitais. (As coisas
já foram assim um dia: durante a Segunda Guerra Mundial,
o exército convocou Jonas Salk e outros pesquisadores para
desenvolverem a primeira vacina de gripe.) Como escrevi
quinze anos atrás em meu livro O monstro bate à nossa porta:
a ameaça global da gripe aviária:

“O acesso a medicamentos vitais, incluindo vacinas, antibió-


ticos e antivirais, deveria ser um direito humano, universal-
mente disponível a preço zero. Se os mercados não tiverem
condições de fornecer incentivos para produzir tais drogas de
maneira barata, então os governos e as organizações sem fins
lucrativos deveriam assumir a responsabilidade por sua manu-
fatura e distribuição. A sobrevivência dos pobres deve sempre
ser prioridade sobre os lucros do grande complexo farmacêuti-
co [Big Pharma].”

A atual pandemia expande o argumento: a organização ca-


pitalista agora parece estar biologicamente insustentável na
ausência de uma infraestrutura verdadeiramente internacio-
nal de saúde pública. Mas tal infraestrutura jamais existirá
enquanto movimentos de pessoas não quebrarem o poder
das grandes corporações farmacêuticas e de um sistema de
atendimento à saúde organizado em função do lucro.
Isso exige um projeto socialista independente para a so-
brevivência humana, que vai além de um Segundo New Deal.
Desde a época do movimento Occupy, os progressistas vem
colocado a luta contra a desigualdade econômica e de renda
na ordem do dia, um grande feito. Mas agora os socialistas
precisam dar o próximo passo e, tendo as indústrias farma-
cêutica e de saúde como alvos imediatos, lutarem pela pro-
priedade social e a democratização do poder econômico.
Mas precisamos ter uma avaliação honesta de nossas
fraquezas políticas e morais. Por mais que tenho visto com
entusiasmo a evolução à esquerda de uma nova geração e o
bicho coletivo

retorno da palavra “socialismo” ao discurso político, há um


elemento perturbador de solipsismo nacional no movimento

34
O capitalismo tem clube), o fortalecimento de tantas vezes em um estado

×público×
políticas nacionais e o fecha- de completa exasperação
seus limites mento de fronteiras (atitude
muitas vezes acompanhada
que não podemos nem ficar
surpresos. Isso não significa
por Judith Butler de xenofobia), e a chegada
de empreendedores ávidos
que nossa raiva diminui com
cada nova instância de auto-
Tradução Artur Renzo para capitalizar em cima do -engrandecimento antiético
sofrimento global, tudo isso ou criminoso. Se ele tivesse
Ao contrário dos humanos, o coronavírus não discrimina atesta a velocidade com a êxito no seu esforço de com-
suas vítimas. Para superar a pandemia, precisamos resgatar qual a desigualdade radical prar uma potencial vacina
a mesma arma para superar as fissuras do capital: – o que inclui nacionalismo, e restringir seu uso apenas
igualdade e solidariedade. supremacia branca, violência aos cidadãos estaduniden-
contra as mulheres e contra ses, será que ele acredita que
as populações queer e trans esses cidadãos aplaudiriam
– e a exploração capitalista seus esforços, extasiados

O imperativo de isola-
mento coincide com
um novo reconhecimento
Quais são as consequên-
cias dessa pandemia no que
encontram formas de repro-
duzir e fortalecer seus pode-
diz respeito à reflexão sobre res no interior das zonas de
com a ideia de estarem livres
de uma ameaça mortífera
quando outros povos não
de nossa interdependência igualdade, interdependência pandemia. Isso não deve ser estão? Será que eles realmen-
global no novo tempo e es- global e nossas obrigações surpresa nenhuma. te adorariam esse grau de
paço da pandemia. Por um uns com os outros? O vírus A política do atendimento desigualdade social radical,
lado, somos solicitados a não discrimina. Poderíamos de saúde nos EUA traz isso à de excepcionalíssimo ameri-
nos recolhermos em uni- dizer que ele nos trata com tona de maneira particular. cano, e validariam sua forma
dades familiares, espaços igualdade, nos colocando Um cenário que já podemos “brilhante” (a palavra é dele)
compartilhados de moradia, igualmente diante do risco de imaginar é a produção e co- de fechar um negócio? Será
ou domicílios individuais, adoecer, perder alguém pró- mercialização de uma vacina que ele imagina que boa par-
privados de contato social e ximo e de viver em um mun- eficaz contra a COVID-19. te das pessoas pensa que é
relegados a esferas de rela- do marcado por uma ameaça Claramente ávido para mar- o mercado que deve decidir
tivo isolamento. Por outro iminente. Por conta da forma car pontos políticos que como a vacina será desen-
lado, estamos diante de um pela qual ele se move e ata- poderão garantir sua reelei- volvida e distribuída? Seria
vírus que transpõe tranqui- ca, o vírus demonstra que a ção, Donald Trump já tentou sequer concebível no interior
lamente as fronteiras, com- comunidade humana é igual- comprar (com dinheiro) do mundo dele insistir em
pletamente alheio à própria mente precária. Ao mesmo direitos exclusivos para os uma preocupação mundial de
ideia de território nacional. tempo, contudo, o fracasso EUA a uma vacina de uma saúde que deveria transcen-
por parte de certos Estados empresa alemã, a CureVac, der a racionalidade de mer-
ou regiões em se prepararem financiada pelo governo ale- cado numa hora destas? Ele
adequadamente de antemão mão. O Ministro da Saúde está certo em supor que nós
(os EUA talvez sejam agora o alemão, que certamente não também vivemos no interior
membro mais notório desse deve ter ficado nada con- dos parâmetros de um mun-
tente, confirmou à imprensa do imaginado desses?
alemã que a oferta foi de fato Mesmo se tais restrições
feita. Um político alemão, com base em cidadania na-
Karl Lauterbach, comentou: cional não se aplicarem, nós
“A venda exclusiva aos EUA certamente veremos os ricos
de uma possível vacina pre- e os plenamente assegurados
cisa ser evitada a todo custo. correrem para garantir aces-
Capitalismo tem limites”. so a qualquer vacina dessas
Suponho que ele estava ques- quando ela se tornar dispo-
tionando o “uso exclusivo” nível, mesmo que o modo
e não ficaria nem um pouco de distribuição só garanta
mais satisfeito com a mesma que apenas alguns terão esse
provisão caso ela se aplicasse acesso e outros serão aban-
exclusivamente aos alemães. donados a uma precariedade
Assim esperamos, porque po- continuada e intensificada. A
demos imaginar um mundo desigualdade social e econô-
no qual vidas europeias são mica garantirá a discrimina-
valorizadas acima de todas as ção do vírus. O vírus por si só
outras – vemos esse tipo de não discrimina, mas nós hu-
valoração se desenrolando manos certamente o fazemos,
violentamente nas fronteiras moldados e movidos como
da União Europeia. somos pelos poderes casados
Não faz sentido recolo- do nacionalismo, do racismo,
car novamente a questão, da xenofobia e do capita-
o que Trump estava pensan- lismo. Parece provável que
do? A questão foi levantada passaremos a ver no próximo

35
ano um cenário doloroso no de viver em sociedade com comprometida com todas as Judith Butler é professora
qual algumas criaturas hu- os outros? Para mobilizar o vidas, com o desmantelamen- Maxine Elliot dos
manas afirmam seu direito consenso popular em torno to do domínio do mercado Departamentos de Retórica e
de viver ao custo de outras, de uma noção dessas, tanto sobre o atendimento médico, de Literatura Comparada, além
reinscrevendo a distinção Sanders quanto Warren te- que distingue entre quem é de codiretora do Programa de
espúria entre vidas passíveis riam que convencer o povo digno e quem pode ser facil- Teoria Crítica, da University of
e não passíveis de luto, isto americano de que queremos mente abandonado à doença California, em Berkeley. Este
é, entre aqueles que devem viver em um mundo no qual e à morte – por um breve texto foi publicado no blog da
ser protegidos contra a morte nenhum de nós recusa aten- momento essa ideia estava Boitempo.
a qualquer custo e aqueles dimento de saúde a nenhum viva. Passamos a entender a
cujas vidas são consideradas dos outros. Em outras pala- nós mesmos de maneira dife-
não valerem o bastante para vras, teríamos que estar de rente à medida que Sanders
serem salvaguardadas contra acordo quanto a um mundo e Warren apresentavam
a doença e a morte. social e econômico no qual é essa outra possibilidade.
Tudo isso ocorre sob o radicalmente inaceitável que Compreendemos que talvez
pano de fundo da disputa alguns tenham acesso a uma seria possível começarmos a
presidencial estadunidense vacina que pode salvar suas pensar e atribuir valor para
na qual as chances de Bernie vidas enquanto a outros é além dos termos que o capi-
Sanders emplacar a nomea- negado esse acesso com base talismo nos apresenta.
ção do Partido Democrata no fato de não terem condi- Mesmo que Warren não
parecem agora ser muito ções de pagar ou de garantir seja mais candidata, e que
remotas, embora não sejam o plano de saúde capaz de Sanders dificilmente recu-
estatisticamente impossíveis. bancar isso. pere seu embalo eleitoral,
As novas projeções que co- Um dos motivos pelos devemos ainda nos pergun-
locam Joe Biden claramente quais votei em Sanders tar, especialmente agora,
como o candidato favorito na primária de Califórnia, por que nós como um povo
são devastadoras nestes junto com a maioria dos ainda nos opomos à ideia de
tempos precisamente por- Democratas lá registrados, é tratar todas as vidas como se
que tanto Sanders quanto que ele, junto com Warren, elas tivessem o mesmo va-
Elizabeth Warren defendiam abriram uma forma de rei- lor? Por que alguns ainda se
a pauta do “Medicare for All”, maginar nosso mundo como entusiasmam com a ideia de
um programa abrangente de se ele fosse organizado por que Trump buscaria garantir
saúde pública que garantiria um desejo coletivo por igual- uma vacina que resguardaria
atendimento básico de saúde dade radical, um mundo no as vidas americanas (como
para todas as pessoas no país. qual nós nos unimos a fim ele as define) antes de todas
Tal programa acabaria com as de insistir que os materiais as demais? A proposta de
empresas de plano de saúde exigidos para a vida, incluin- uma saúde pública e univer-
organizadas em função do do o cuidado médico, seriam sal revigorou um imaginário
mercado que regularmente igualmente disponíveis in- socialista nos EUA – um
abandonam pessoas doentes, dependentemente de quem imaginário que agora precisa
exigem delas despesas mé- somos ou se dispomos dos esperar para poder se realizar
dicas adicionais literalmente meios financeiros para tanto. como uma política social e
impagáveis, e perpetuam Essa política teria estabeleci- como compromisso público
uma hierarquia brutal en- do solidariedade com outros neste país.
tre as pessoas asseguradas, países comprometidos com Infelizmente, na Era da
as não-asseguradas e as a saúde pública universal, e pandemia, nenhum de nós
“inasseguráveis”. teria assim estabelecido uma pode esperar. É preciso agora
A abordagem socialista de política transnacional de que se mantenha vivo esse
Sanders diante da saúde pú- atendimento médico com- ideal nos movimentos sociais
blica pode ser descrita mais prometido com a realização ancorados menos na cam-
apropriadamente como uma dos ideais da igualdade. As panha presidencial do que
perspectiva social democrata, novas pesquisas eleitorais na luta de longo prazo que
não substancialmente dife- que agora restringem a es- temos pela frente. Essas vi-
rente daquela que Elizabeth colha nacional entre Trump sões corajosas e apaixonadas,
Warren apresentou nas fases e Biden surgem precisa- ridicularizadas e rejeitadas
iniciais de sua campanha. No mente no momento em que por “realistas” capitalistas,
entender dele, a cobertura a pandemia paralisa a vida já tiveram destaque suficien-
médica constitui um “direito cotidiana, intensificando a te na mídia, já mobilizaram
humano”, e com isso ele quer precariedade dos sem-teto, atenção o bastante, para
dizer que todo ser humano dos não-assegurados e dos deixar cada vez mais pes-
tem direito ao tipo de aten- pobres. A ideia de que tal- soas – algumas pela primeira
dimento de saúde que ele vez pudéssemos nos tornar vez – desejando um mundo
precisar. Mas por que não um povo que deseja ver um transformado.
compreendê-la como uma mundo no qual a política Com sorte, conseguiremos
obrigação social, que decorre de saúde seja igualmente manter vivo esse desejo.

36
Como enfrentar os 2008 o esforço dos Bancos nações. A supply chains estão

×oikonómos×
Centrais visava “salvar” as se rompendo pelo impacto da
impactos econômicos grandes instituições financei-
ras e normalizar o mercado
pandemia na Ásia e Europa,
viagens internacionais estão
e sociais do coronavírus de crédito (através da injeção
massiva de liquidez e compra
sendo limitadas com o fecha-
mento de fronteiras e medi-
no Brasil de ativos privados “podres”),
sendo capaz de reverter a cri-
das protecionistas estão sen-
do tomadas principalmente
Economistas da UNICAMP apontam as principais se e evitar a queda mais acen- em relação a produtos e
consequências que a crise do coronavírus causará ao país. tuada da produção, a atuação equipamentos médicos, com
E, diferentemente do governo Bolsonaro, demonstram que das autoridades monetárias a proibição de exportação de
é possível minimizar os impactos na economia e proteger os na atual crise apenas é capaz máscaras e respiradores. A
mais vulneráveis, o emprego e a renda dos trabalhadores. de adiar o colapso do merca- guerra do petróleo protago-
do de crédito, sem ter nenhu- nizada pela Arábia Saudita e
ma capacidade de normalizar Rússia também é um exem-
a atividade produtiva. plo dessa interdependência,
Não é por acaso que a que afeta diretamente as

E m 11 de março de 2020
a Organização Mundial
de Saúde (OMS) declarou
recente discurso, o presi- cada novo anúncio de medi-
dente da França, Emmanuel das de expansão da liquidez
Macron, reiterou a analogia e compra de ativos pelas
cadeias produtivas e as em-
presas do setor de energia,
sendo particularmente nega-
a pandemia de COVID-19, do momento atual com uma autoridades monetárias, os tiva para países dependentes
doença causada por um novo guerra. Do ponto de vista mercados aprofundam suas da renda do petróleo.
coronavírus e que pode ser econômico, no entanto, essa perdas patrimoniais, com os Por se tratar de uma crise
assintomática até causar sín- comparação não é adequada. investidores fugindo em de- com origem na paralisação da
dromes respiratórias graves, Em uma guerra, o potencial sespero dos títulos privados, esfera produtiva, sua verda-
levando a óbito. Temos uma produtivo de uma economia sem nenhuma perspectiva deira saída ocorrerá apenas
crise epidemiológica pela é totalmente utilizado, alcan- de valorização ou geração de quando a situação sanitária
frente, mas também uma çando-se o pleno emprego dividendos, e correm para os for controlada ou houver
singular crise econômica voltado para o atendimento títulos públicos. algum tratamento ou vacina
que pode ser mais ou menos das necessidades do conflito. eficaz para o vírus, possibili-
grave e duradoura em função O cenário atual é o oposto Geopolítica e cadeia tando a retomada da produ-
das medidas emergenciais de de uma guerra: mundo afora, produtiva ção em condições normais.
política econômica tomadas. podemos observar a absoluta Outra grande particularidade Enquanto isso, o gigantesco
Após negligenciar o gravidade desmobilização dos fatores desta crise reside no campo esforço dos bancos centrais
da crise, o governo Bolsonaro de produção das principais geopolítico. Como apontado para manter os mercados
resolveu se mexer. potências produtivas globais, por Henry Farrell e Abraham financeiros e de crédito fun-
Este artigo, escrito por com quedas acentuadas na Newman em 2020, a globali- cionando se esvai, já que a
economistas da Centro de produção industrial e de ser- zação mostrará sua face per- perspectiva de geração de
Estudos de Conjuntura e viços. Os impactos econômi- versa: a interdependência im- receitas e lucros das empre-
Política Econômica (IE/ cos na demanda, na produção posta pelas cadeias globais de sas é cadente, tornando os
UNICAMP), busca analisar a e no mercado financeiro são valor, em prol de uma maior mercados voláteis.
atual crise em três aspectos visíveis apesar dos poucos especialização e eficiência,
fundamentais: sua natureza, meses da disseminação da oculta uma imensa vulne-
seus impactos e as medidas COVID-19 em âmbito mun- rabilidade para empresas e
possíveis de enfrentamento dial e há expectativas que o
de seus efeitos econômicos, impacto seja de longo prazo,
sociais e sanitários. Também provocando uma profunda
buscamos analisar como a recessão em diversos países
crise atual irá afetar a dinâ- ainda em 2020.
mica da economia global e da A primeira grande parti-
economia brasileira em par- cularidade da crise atual é
ticular, enterrando definiti- que ela tem início no mundo
vamente qualquer projeto de real, na esfera produtiva, para
desenvolvimento que busque posteriormente impactar
minimizar ou prescindir da os mercados financeiro e de
participação estatal. crédito. É o oposto da crise
de 2008, que teve início no
A natureza da crise e mercado de crédito imobiliá-
suas particularidades. rio norte-americano e logo
Acrise econômica provo- se espalhou para o conjunto
cada pela disseminação do do setor financeiro para fi-
coronavírus é de natureza nalmente atingir a economia
distinta dos momentos de real. Neste caso, a ordem dos
bicho coletivo

crise costumeiramente ob- fatores interfere diretamente


servados no capitalismo. Em no resultado: enquanto em

37
As necessárias medidas de mas apenas a política fiscal crise anunciadas por este visível em um primeiro mo-
distanciamento social agra- terá a capacidade de salvar a Ministério. mento é o impacto na saúde,
vam a queda na demanda em economia “real” e promover Em países como o Brasil, em especial dos idosos e dos
diversos setores que também a retomada, uma vez que a com uma moeda periférica indivíduos com Doenças
serão impactados no lado da crise sanitária seja superada. com baixa liquidez, uma crise Crônicas Não-Transmissíveis
oferta dada a queda na produ- Neste sentido, os dilemas do como a atual tem impactos (DCNT). Um estudo preli-
tividade e à provável falência momento atual devem ser diretos no mercado finan- minar que parte do princípio
de empresas. Nesse sentido, a prioridade dos governos e ceiro, além das disputas em de que 40% da população do
a resolução da crise econô- todos os esforços devem ser torno do preço do petróleo. Brasil será infectada. Além
mica não depende apenas da voltados para a contenção A desvalorização cambial se disso, há de se considerar
recuperação das condições de danos, com orçamento acelerou rapidamente com que embora na média na-
de funcionamento normal ilimitado para a saúde e um o surto, saindo de R$ 4,39 cional o Sistema Único de
do mercado financeiro, mas grande pacote fiscal que pro- por dólar em 25 de fevereiro, Saúde (SUS) cumpra, no
da manutenção da renda das mova a “estatização” tempo- quando ocorreu o primeiro limite, a recomendação da
empresas e das famílias em rária dos fluxos de renda, ou caso confirmado, para R$ 5 Organização Mundial da
um momento de absoluta pa- seja, a garantia por parte do por dólar no dia 16 de março. Saúde (OMS) de ter o mí-
ralisação dos fluxos. Estado para parte da renda No curto prazo é possível nimo de um leito de UTI (a
das empresas e famílias. que ocorra um excesso de ser utilizado para os casos
Política anti-austeridade Ao mesmo tempo é funda- demanda inicial para abas- mais graves da doença) para
para frear a crise mental começar a planejar o tecimento em momento de cada 10 mil habitantes, 17 das
Diversos governos já perce- pós-crise, quando a emergên- quarentena como acontece 27 Unidades da Federação
beram que, diante deste ce- cia sanitária for superada. Em na Europa, com a corrida aos não chegam a isso, sendo os
nário, a única saída é a utili- primeiro lugar, será preciso mercados, provocando de- piores índices no Nordeste,
zação mais intensa da políti- reconstruir instrumentos sabastecimentos. Por outro Norte e Centro-Oeste.
ca fiscal. Mesmo economistas públicos de coordenação do lado, a restrição de oferta e Há de se considerar tam-
historicamente identificados investimento, uma vez que alta do dólar podem impactar bém que o Brasil já enfrenta
com políticas de austeridade o setor privado tende a sair o preço de alguns bens essen- endemias como a dengue,
e redução do endividamen- muito frágil do ponto de vista ciais e, em um cenário de am- surtos de sarampo e DCNT
to público, como Gregory financeiro, mais endividado pliação do desemprego, pode sob grave subfinanciamento.
Mankiw e Alberto Alesina, já e com menores receitas. Em ocorrer aumento da vulnera- Assim, uma disseminação rá-
se pronunciaram a favor de segundo lugar, será preciso bilidade social, contribuindo pida do vírus no país levaria
uma forte expansão fiscal, pensar em reconstituir os na restrição de demanda e à sobrecarga do sistema de
sem maiores preocupações mecanismos de financiamen- retroalimentando o processo saúde, por isso a tônica em
com os níveis de déficit e dí- to do Estado, promovendo de crise. Esse cenário impac- “achatar a curva”. Ou seja,
vida pública neste momento. reformas tributárias centra- ta diretamente no financia- reduzir ao máximo a velo-
O combate aos efeitos das em altas rendas e grandes mento das empresas. cidade de disseminação do
econômicos e sociais da crise patrimônios. Por fim, essas Quanto à atuação da po- vírus para que o sistema de
exigirá uma das operações duas mudanças conjugadas lítica fiscal, há perspectiva saúde dê conta da demanda.
fiscais mais ousadas da his- abrirão espaço para repen- de que caia a arrecadação, já
tória recente do capitalismo, sar o modelo de capitalismo que parte das receitas do go- Sem aula, emprego e
já que não se trata apenas de que prevaleceu mesmo após verno são ligadas à atividade aposentadoria
uma medida anticíclica de a crise de 2008, ainda que econômica como tributos Em outras áreas, como edu-
recuperação dos níveis de abalado em suas estruturas sobre o consumo, a produ- cação e na ciência e tecnolo-
investimento e crescimento, e crescentemente incapaz de ção, a renda e o trabalho. gia, o impacto na interrupção
mas de uma verdadeira esta- promover o crescimento eco- Existem ainda as restrições de aulas e em pesquisas
tização dos fluxos de renda nômico e a inclusão social. impostas pelas regras fiscais científicas pode ter efeitos
(salário e receita das empre- para a realização de políticas duradouros, não só para as
sas) por um período de pelo Os impactos econômi- anticíclicas essenciais para o famílias que precisam se
menos alguns meses. Além cos e sociais no Brasil enfrentamento de crises. A organizar para cuidar das
disso, será preciso ampliar a Na contramão do que o regra de superávit primário, crianças (quando o caso),
oferta de crédito através das restante do mundo tem a “regra de ouro” e a Emenda mas para o desenvolvimento
instituições públicas, já que colocado, o Ministério da Constitucional 95 limitam de pesquisas que podem in-
não existe maneira de obri- Economia, avalia que os cho- drasticamente a capacidade clusive ajudar a lidar com a
gar as instituições privadas a ques trazidos pelo coronaví- do governo de elevar gastos pandemia. Apesar de, por um
aceitar tal risco em um mo- rus no Brasil são “temporá- necessários para a manu- lado a interrupção de aulas
mento de tamanha instabili- rios e devem ser revertidos”. tenção da ordem social e minimizar o contágio por
dade e incerteza. Em um momento de forte econômica. Cabe ressaltar a reduzir o contato social, por
Em suma, a natureza incerteza, o governo erra ao importância do Estado em outro poderia ampliar o con-
particular da atual crise dimensionar a gravidade, ex- momentos de crise seja pe- tato de crianças e idosos, ele-
econômica exigirá uma res- tensão e impacto desta crise las suas funções alocativa, vando o perigo de contágio
posta bastante diversa da na sociedade brasileira, des- distributiva e estabilizadora para o grupo de maior risco
utilizada ao longo da crise considerando a estrutura de ou para garantia de todos os (acima de 60 anos).
de 2008. A política mone- desigualdade e informalidade direitos. Quanto ao mercado de
tária no máximo será capaz no país. Este erro se reflete Sobre os impactos sociais trabalho, o impacto da pan-
de adiar a crise de crédito, nas medidas de combate à da epidemia no Brasil, o mais demia no Brasil pode ser

38
brutal e duradouro, com a Nacional do Sistema Social para suavizar movimentos do Educação e da Saúde”.

×oikonómos×
redução da atividade econô- (INSS), tanto para pensão e mercado financeiro. Se em todo o mundo foram
mica levando a um aumento aposentadoria quanto para Para além do anúncio de apresentados ousados paco-
da desocupação (que hoje requerer o Benefício de quantitative easing e de cortetes fiscais, no Brasil o crédito
atinge cerca de 11,9 milhões Prestação Continuada (BPC). de juros, Itália, Alemanha, extraordinário no valor de R$
de pessoas) e aumento da Reino Unido, Estados 5,099 bilhões não representa
pobreza, considerando que Recomendações econô- Unidos, Espanha, Argentina, recursos novos, mas remane-
no trimestre de novembro micas internacionais Chile e Coréia do Sul apre- jamento orçamentário dentro
de 2019 a janeiro de 2020 a Face à pandemia, o Fundo sentaram programas colos- do Ministério da Educação e
taxa de informalidade atingiu Monetário Internacional sais de aumento do gasto do Ministério da Saúde.
40,7% da população ocupada, (FMI) recomenda aos países público visando o enfrenta- No dia seguinte, sábado,
representando 38,3 milhões ampliar urgentemente os mento da crise em suas di- 14 de março, o Ministro da
de trabalhadores informais. gastos com saúde e buscar mensões sanitárias, econômi- Economia, Paulo Guedes,
Estes trabalhadores (e seu medidas de apoio aos mais cas e sociais. Esses governos novamente sob pressão da
consumo) estão ainda mais vulneráveis. Ainda, segundo mostram que “preocupar-se sociedade civil, anunciou
vulneráveis a uma redução a instituição, a política fiscal
com as finanças públicas sem maiores detalhamentos
da atividade econômica e, precisa urgentemente apoiar num momento desses é ao algumas medidas econômicas
mesmo doentes, podem indivíduos e empresas afe- mesmo tempo perverso e para minimizar os efeitos
ser forçados a continuar a tados durante a pandemia. contraproducente: gastar na sociedade da COVID-19:
trabalhar para se sustentar. Caso os danos econômicos muito pouco é uma ameaça i) Antecipação da primeira
Em situação similar estarão sejam mais duradouros, o maior à prosperidade do que parcela do 13º de aposenta-
os Microempreendedores FMI aponta que serão ne- gastar muito”. (tab.) dos e pensionistas do INSS
Individuais (MEIs) e os tra- cessários estímulos fiscais Síntese das medidas anun- para abril, com estimativa
balhadores intermitentes. adicionais para evitar danos ciadas por governos de países de antecipação de gastos no
Além destes trabalhadores, as econômicos de longo prazo. selecionados. montante de R$ 23 bilhões;
pequenas e médias empresas, Na mesma tônica, o Banco ii) Suspensão por 120 dias
em especial do setor de ser- Mundial recomenda que Omissão, atraso e pouca da prova de vida dos benefi-
viços, devem ser fortemente países em desenvolvimento ousadia no Brasil ciários do INSS, para evitar
afetadas. ampliem gastos com saúde, Após falas públicas minimi- ida às agências; iii) Isenção
Com este agravamento da fortaleçam as redes de prote- zando os avisos da OMS e de imposto de importação
questão social, a demanda à ção social com transferência negligenciando a quantidade sobre produtos médicos hos-
previdência social e à assis- de renda e atendimento de de novos casos, o governo pitalares até o fim do ano;
tência social deve aumentar. saúde gratuito para os mais Bolsonaro, por fim, publi- iv) Desembaraço aduaneiro
Cabe lembrar que ambos vulneráveis, apoiem o se- cou a Medida Provisória nº de produtos de uso médico
sistemas já estão sobrecarre- tor privado com crédito no 924, em 13 de março, que hospitalar.
gados, com filas no Programa curto prazo, isenções fiscais “abre crédito extraordinário No que tange à política
Bolsa Família e no Instituto ou subsídios, além de atuar em favor do Ministério da monetária, na segunda-feira,
16 de março, foram anun-
ciadas duas medidas ex-
traordinárias pelo Conselho
Monetário Nacional (CMN).
A primeira facilita a renego-
ciação de operações de crédi-
tos para empresas e famílias
a fim de ajustar seus fluxos
de caixa e a segunda medida
amplia a folga de capital dos
bancos permitindo mais es-
paço e segurança para man-
terem suas concessões de
crédito podendo até mesmo
ampliá-los.
O governo esperou cinco
dias desde a declaração da
OMS para anunciar, de fato,
um pacote de medidas para
minimizar os efeitos da “co-
ronacrise”. O pacote apre-
sentado pelo ministro pro-
mete injetar R$ 147,3 bilhões
na economia e segue a estru-
tura de três eixos: i) atenção
à população mais vulnerável
(R$ 83,4 bilhões); ii) manu-
tenção do emprego (R$ 59,4

39
bilhões); e iii) combate à pouco dinheiro novo na eco- que não recebem benefícios E agora, o que fazer?
pandemia (R$ 4,5 bilhões). nomia. Tanto a apresentação do governo, como Bolsa A rápida disseminação do
Duas medidas anunciadas da MP 924/20 de crédito Família. Esse valor é muito vírus e seu potencial de-
do primeiro eixo antecipam extraordinário, quanto o pa- inferior ao salário mínimo vastador sobre a vida de
despesas do 2º semestre para cote de medidas de Guedes (R$1.045,00) e obviamente milhões de pessoas tornam
o 1º semestre de 2020: i) avançam pouco quando com- insuficiente para a manuten- imprescindíveis respostas
Antecipação da segunda par- paradas a iniciativas no âm- ção básica das milhões de urgentes e potentes por parte
cela do 13º de aposentados bito internacional e também pessoas que se ficaram sem do Estado. A inação mata e o
e pensionistas do INSS para quando observada a estru- renda durante a fase aguda mundo inteiro parece estar
maio, valor estimado pelo tura do mercado de trabalho da crise. A medida anunciada criando um consenso em tor-
governo de R$ 23 bilhões; ii) atual no Brasil, com seu alto por Paulo Guedes somaria no de uma agenda prioritária
Antecipação do pagamento nível de informalidade e com um valor de R$ 15 bilhões, para desaceleração da propa-
do abono salarial para o mês a incapacidade do Estado de que seriam aplicados ao lon- gação do vírus e sustentação
de junho, estimativa de R$ proteger a população em pe- go de 3 meses. da renda de famílias e empre-
12,8 bilhões. ríodos de choques adversos. Ao final do mesmo dia, o sas no período de pandemia.
Para o primeiro eixo, Tanto foi que dois dias governo anunciou que será Uma função fundamental do
Guedes anunciou uma es- depois, na quarta-feira, 18 encaminhada ao Congresso governo é zelar pelo bem-estar
pécie de fusão entre o PIS/ de março, em nova coletiva Nacional por meio de uma de seu povo. Levando em conta
PASEP e o FGTS. Serão de imprensa o Presidente, Medida Provisória a possibi- a experiência internacional e
transferidos R$ 21,5 bilhões Bolsonaro, e seu Ministro da lidade que empresas cortem as dificuldades de uma crise,
do PIS/ PASEP parados nas Economia, Guedes, apresen- em até 50% a jornada e os defendemos ações em três
contas de beneficiários que taram novas medidas para salários de trabalhadores grandes frentes integradas: saú-
ainda não reclamaram o be- diminuir o diferencial em re- em meio ao avanço da cri- de, com o objetivo imediato de
nefício para o fundo comum lação ao conjunto de medidas se. Segundo o Ministério achatar a curva de dissemina-
com o FGTS. O Programa adotadas nos demais países, da Economia a medida vem ção do vírus para tentar com-
Bolsa Família (PBF) terá porém, se mostrando ainda no sentido de manutenção patibilizar com a capacidade
reforço de até R$ 3,1 bilhões insuficientes para enfrentar a do trabalho, um dos eixos do sistema de saúde, além de
para ampliação de um mi- crise que se aproxima. que tem sido mais caro ao buscar ampliar sua capacidade
lhão de famílias no número Para lidar com o grave governo. Pelas regras men- atual; assistência, para mini-
de beneficiários para o pro- diagnóstico da queda da cionadas, as empresas devem mizar os graves efeitos sociais
grama de remanejamento de renda dos trabalhadores in- continuar pagando pelo me- do isolamento principalmente
renda – que, no entanto, já formais, o governo anuncia nos o salário mínimo. A me- às camadas mais vulnerá-
tem fila estimada de 3,5 mi- uma renda complementar de dida poderá durar enquanto veis; Política Fiscal e Política
lhões de famílias. R$ 200,00 por mês para fa- estiver em vigor o estado de Monetária, para viabilizar o
O segundo eixo, grosso mílias inscritas no CadÚnico calamidade. (tab. 2) combate a essa crise singular.
modo, adiam arrecadação do
Estado do primeiro semestre
de 2020 para o segundo. Fica
adiado o recolhimento de
PIS e Cofins das empresas
do setor aéreo até junho des-
te ano. Haverá diferimento
do prazo de pagamento do
FGTS e da parte da União
no Simples Nacional por 3
meses. Serão implementadas
também medidas de simpli-
ficação para contratação e
renegociação de crédito para
as empresas.
Em linha com as medidas
de remanejamento de re-
cursos, o terceiro eixo retira
recursos do DPVAT para o
SUS. O eixo conta também
com desonerações tempo-
rárias de IPI para bens im-
portados e produzidos inter-
namente listados que sejam
necessários ao combate ao
coronavírus.
Diante do cenário de
medidas apresentadas pelo
Ministério da Economia é
(tab. 2) síntese das medidas anunciadas pelo ministério da economia
importante evidenciar que há

40
Saúde 5% de casos mais graves das mês, todo cidadão brasileiro Essa é uma medida de curto

×oikonómos×
P Liberação de recursos pessoas doentes. terá acesso, enquanto durar prazo, que precisa ser discu-
ilimitados, conforme plane- P Reforço do quantitativo de a crise sanitária, a uma renda tida ainda no ano de 2020,
jamento e demanda, para a profissionais de saúde, com de pelo menos de 1 salário uma vez que a revogação do
saúde. Conforme aponta- contratação de mais profis- mínimo, seja ele trabalhador Teto altera a elaboração das
do no estudo do Imperial sionais nacionais e busca de formal ou aposentado, que já leis orçamentárias para 2021
College sobre necessidade de profissionais de outros países possuem acesso a no mínimo e o PLDO já está em trami-
ampla testagem (Ferguson que possam apoiar no trata- essa renda, ou desocupado, tação no Congresso. Ainda,
et al., 2020), devem ser rea- mento das pessoas doentes. desalentado, informal, tra- de acordo com o Conselho
lizados investimentos em A garantia de equipamentos balhadores intermitentes e Nacional de Saúde (link),
ampla produção e compra de de proteção individual (EPI) Microempreendedores indi- a área de saúde perderá R$
testes, além de mecanismos para os profissionais de saú- viduais (MEIs). 400 bilhões no período de
de distribuição no território de deve ser uma prioridade. P A fila do Bolsa Família vigência da emenda.
nacional, pontos de testa- P Atendimento das pessoas deve ser zerada, novas famí- P Adiamento e/ou abono
gem, canais de monitora- no SUS sem impedimentos lias que atendam os crité- no pagamento de impostos e
mento e acompanhamento burocráticos como: neces- rios devem incorporadas e tarifas de serviços públicos,
das pessoas para adoção das sidade de recadastramento, deve ocorrer o aumento do pelo prazo que durar a crise
medidas de isolamento e carteira do SUS, comprovan- benefício. sanitária, com os custos sen-
quarentena de quem esteja te de endereço ou outro. P A fila do INSS, espe- do arcados pelo Estado.
doente. O modelo coreano No longo prazo: cialmente para acessar o
pode servir de referência. P Garantia de recursos para Benefício de Prestação No longo prazo:
P A ampla desigualdade social acompanhamento das pes- Continuada (BPC), também P Rever o conjunto das re-
que marca o Brasil se reflete soas com sequelas decorren- deve ser zerada, já que é uma gras fiscais atualmente exis-
também nas possibilidades tes da Covid-19. Já existem renda assistencial paga a ido- tentes no Brasil. A EC 95,
para isolar doentes. A exis- estudos mostrando perda da sos e pessoas com deficiên- combinada à LRF e à Regra
tência de grande população capacidade pulmonar, não cia em condição de misera- de Ouro, criou o conjunto
em situação de rua e de se sabe ainda se temporária bilidade e que está em torno regras fiscais mais rígido do
grande parte da população ou permanente, que requer de dois milhões de pessoas. mundo, impedindo a atuação
em condição de moradia pre- tratamento com fisioterapia P No médio/longo prazo, a do Estado e reduzindo segui-
cária, como as favelas, ou de respiratória (Galileu, 2020). experiência da renda emer- damente os investimentos
domicílios sem separação de P Retomada das medidas de gencial durante a crise pode públicos e os recursos para
cômodos pode inviabilizar financiamento para a rea- vir a servir para a elaboração as áreas sociais (Rossi e
a contenção do vírus e oca- lização do direito à saúde de um programa de renda Dweck, 2016). É fundamental
sionar ampla contaminação universal, integral, pública. de cidadania universal, vol- substituir esse arcabouço fis-
intra-familiar e entre vizi- Todas as medidas que re- tada principalmente para cal complexo, contraditório
nhos, uma vez que muitas duziram o orçamento para trabalhadores informais e e ultrapassado por uma regra
habitações são aglomeradas o SUS minaram também desempregados. simples, que permita ações
umas nas outras. Esse cenário sua capacidade instalada. A Política fiscal anticíclicas, preveja a amplia-
exige a criação de espaços pandemia de Covid-19 pro- P Alteração da meta de re- ção do investimento público
de isolamento de suspeitos e vou como serviços públicos sultado primário, por meio e do gasto fiscais com alto
doentes com casos mais leves de saúde são essenciais não de projeto de lei que altere o multiplicador e contemple a
e moderados, sem demanda apenas na oferta de serviços, Projeto de Lei de Diretrizes estabilização da dívida públi-
de hospitalização. A China mas no manejo coordenado Orçamentárias para 2020, ca no longo prazo.
adotou atuação nesse sentido. de ações de vigilância em conforme já executado em P Abandonar a propos-
P O baixo quantitativo e má saúde. anos anteriores, não sendo ta de PEC 186/2019 (“PEC
distribuição em território Assistência e Previdência assim necessário decretar Emergencial”) enviada pelo
nacional dos leitos hospi- P Durante o período em que estado de calamidade públi- governo ao Congresso, que
talares e de UTI como já durar a crise sanitária, o ca previsto no art. 65 da Lei visa promover um ajuste fis-
apontado demanda amplia- Estado brasileiro deve garan- de Responsabilidade Fiscal cal ainda maior, uma vez que
ção dos leitos, seja por meio tir a renda dos cidadãos mais (LRF). impactará negativamente os
de criação, contratação ou vulneráveis, em particular P Abertura de crédito ex- serviços públicos, como saú-
nacionalização de leitos do aqueles que recebem bene- traordinário volumoso de, e a possibilidade de cres-
setor privado para regula- fícios e estão inscritos no baseado nas projeções de cimento do PIB (Domingues
ção única, como realizou a CadÚnico, mas também dos gastos das medidas propos- et al., 2020). Apenas como
Espanha. trabalhadores informais e/ tas para as ações sanitárias, exemplo anedótico, é im-
P Igualmente, diante da ou MEIs. Nesse sentido, será assistenciais, econômicas e portante recordar que caso
baixa quantidade de venti- fundamental, até como in- outras necessárias para lidar a “PEC emergencial” esti-
ladores disponíveis nacio- centivo para as pessoas man- com a Covid-19 e seus efei- vesse em vigência, ela seria
nalmente, será necessário terem o isolamento social tos, conforme previsto no § responsável por impedir os
realizar manutenção nos e permanecerem em casa, 3º do art. 167 da CF. tímidos esforços do gover-
respiradores já existentes um auxílio mensal no valor P Revogação da Emenda no no combate a atual crise
na rede e que estão parados, máximo de 1 salário mínimo, Constitucional 95/2016 para (Ribeiro, 2020).
compra e/ou produção, além já considerando o valor de lidar com efeitos prolonga- P Repensar as formas de fi-
dos insumos relacionados, eventuais benefícios recebi- dos da crise sanitário-econô- nanciamento do Estado, com
para atender os em torno de dos. Ou seja, ao final de cada mica decorrente da Covid-19. destaque para a estrutura

41
tributária, que além de com- e Solidária”, via Emenda Política monetária e de necessidades de liquidez do
plexa e ineficiente, é uma das Substitutiva Global 178 crédito sistema bancário e finan-
maiores fontes de desigual- (Brasil, 2019). P Concessão de crédito com ceiro, se valendo de todos
dade no Brasil. Será preciso P No imediato pós crise, será prazos longos por parte os instrumentos dos quais
discutir uma verdadeira fundamental ampliar o inves- dos bancos públicos, com dispõe para manter o fun-
reforma tributária, que não timento público, priorizando juros baixos e algum perío- cionamento adequado do
apenas simplifique a estrutu- a retomada de obras paradas, do de carência para famí- mercado e das instituições
ra de impostos e contribui- que exigem menor tempo de lias e empresas que assim financeiras.
ções, mas contribua para a planejamento e aprovação. necessitarem. P Fortalecimento do BNDES
equidade de renda, regional O espaço fiscal obtido com a P Capitalização dos bancos tanto para dar conta da de-
e para a transição ecológica. ampliação da meta de déficit públicos, tendo em vista que manda por capital de giro,
Atualmente, a única proposta e os créditos extraordinários a maior parte da demanda quanto para o financiamento
em tramitação no Congresso deve contemplar a necessi- por crédito se concentrará da retomada da economia
Nacional que dialoga com dade de retomar esses in- sobre eles. no momento imediatamente
essa perspectiva é a chamada vestimentos tão logo a crise P O Banco Central deve posterior ao fim da dimensão
“Reforma Tributária Justa sanitária permita. permanecer atento às sanitária da crise.

síntese das medidas propostas no curto prazo (2020)

síntese das medidas propostas no médio/longo prazo

42
Reformulação da obrigado a coordenar a reto- setores econômicos inteiros será preciso tanto retomar

×oikonómos×
economia mundial mada da atividade econômica a eles relacionados. As em- o nível de atividade, quanto
Mesmo que medidas adequa- ao mesmo tempo em que presas estatais, com destaque repensar a estrutura tribu-
das de combate à pandemia precisará reconstituir suas para a Petrobras e Eletrobras, tária, de forma a dar conta
sejam tomadas e se mostrem bases de financiamento so- além dos Bancos Públicos, do renovado papel estatal na
capazes de minimizar seus lapadas pela crise. também podem se mostrar dinâmica econômica.
efeitos sociais e econômicos, Saindo de cinco anos importantes na retomada do A pandemia coloca em xe-
a economia mundial deve consecutivos de governos e investimento, aumentando que a forma de organização
sair muito diferente do que reformas neoliberais, o Brasil sua capacidade de induzir o da economia brasileira com
adentrou na crise. A recupe- foi aos poucos desmontando investimento produtivo total. as privatizações, condução
ração econômica no pós-crise os instrumentos de interven- A reorganização do con- das políticas econômicas
exigirá muito mais do que a ção do Estado na economia. junto de regras fiscais atual- com regras fiscais inadequa-
mera normalização das con- Prosseguir na agenda fra- mente existentes por uma das, precarização do mercado
dições financeiras e de crédi- cassada da austeridade e das regra fiscal simples e exequí- de trabalho e vulnerabilidade
to. Dada a fragilidade do se- reformas neoliberais é irrea- vel, com característica anticí- social. Repensar o caminho e
tor privado, o Estado terá um lista diante do cenário que se clica e que abra espaço para alterar a estratégia de desen-
papel decisivo na retomada encontrará a economia brasi- a expansão do investimento volvimento, adequando-a ao
da atividade econômica, seja leira no pós-crise. público e dos gastos sociais novo capitalismo que surgirá
como investidor direto, seja Será preciso recuperar com elevado multiplicador, após a “coronacrise”, será o
como indutor ou financiador a capacidade de atuação e será fundamental no momen- grande desafio das próximas
do investimento. coordenação do Estado, se to de retomada da economia décadas.
Ao mesmo tempo, como valendo dos instrumentos já no pós-crise.
de praxe em momentos pós- existentes e eventualmente Por fim, será fundamental Esse artigo foi escrito por
-crise, veremos uma enorme criando novos instrumentos a readequação da estrutura Guilherme Mello, Camila
pressão dos mercados finan- de planejamento e execução de financiamento do Estado de Caso, Grazielle
ceiros acerca da dinâmica do de políticas públicas que se através de uma ampla refor- David, Ana Luíza Matos
endividamento dos Estados mostrarem necessários. As ma tributária. O financia- de Oliveira, Ana Paula
pressionando as curvas de redes de serviços públicos, mento das despesas através Guidolin, Julio Cesar
juros dos títulos de longo como saúde, educação, trans- da expansão da relação dívi- Nascimento, Ricardo
prazo para cima, clamando porte, habitação, saneamen- da/PIB será a marca do curto Gonçalves, Tiago Seixas e
continuamente por cortes de to, assistência, cultura, ciên- prazo, mas deverá ser subs- foi publicado originalmente na
gastos e redução da partici- cia e inovação, serão polos tituído por uma perspectiva revista Jacobin Brasil.
pação estatal na economia. organizadores fundamentais de estabilização dessa razão
Nesse sentido, o Estado será para o desenvolvimento de ao longo do tempo. Para isso,

43
Pânico global e incerteza político-econômico foi e é
uma fraude coletiva para o
tem a menor possibilidade
de unir vontades sociais para
no horizonte rédito de poucos ou as socie-
dades ainda não entendem as
enfrentar a adversidade glo-
bal, por outro lado, o Estado
por Álvaro García Linera “virtudes” do mundo global,
ou seja, se a realidade não
vem conseguindo isso. É
como se a “mão invisível” de
acomoda a retórica, o que Adam Smith não fosse ape-
A pandemia do coronavírus expos o fracasso da globalização
está falhando é a realidade e nas inútil para o cuidado da
capitalista que, ao gerar mais desigualdades, enfraqueceu os
não a retórica sobre essa rea- humanidade, mas mais peri-
mecanismos de proteção e assistência criados ao longo de
lidade. A verdade é que não gosa do que a própria pande-
décadas pelos diferentes Estados nacionais.
há resposta globalizada a um mia. A globalização até agora
drama global e já existe uma funciona como uma maneira
sentença histórica sobre um de aumentar os lucros pri-
momento nefasto. vados das grandes empresas

E ntramos em tempos
paradoxais típicos de
uma sociedade mundial
e um nevoeiro de suspeita
sobre o outro próximo, por-
tador da doença, quer incu-
É definitivamente um
enorme fracasso da globali-
zação, como foi construído
do mundo; por outro lado, é
inútil promover a proteção
das pessoas.
em transição. Tempos de bar-se no espírito da época. até agora e, acima de tudo, o A epidemia da COVID-19
instabilidade geral em que discurso político que a acom- não é a primeira global.
os horizontes compartilha- As vergonhas da panhava e as ideologias nor- Outras já apareceram desde o
dos são diluídos e ninguém globalização mativas que a apoiavam. início do mercado mundial no
sabe se o que virá amanhã E o paradoxo resulta do fato Obviamente, se os merca- início do século XVI, durante
é a repetição do agora, ou de que, em momentos de dos de ações são globalizados, a colonização da América,
uma nova ordem social mais exaltação da globalização mas a proteção social não é; quando a varíola reduziu en-
preocupada com o bem-estar dos mercados financeiros, se as cadeias de suprimentos tre 70 e 80% da população
das pessoas... ou o abismo. A cadeias de suprimentos, são globalizadas, mas a livre indígena originária; houve ou-
contingência angustiante do cultura de massa e redes, circulação de pessoas não é; tras, em diferentes partes do
futuro é a única certeza. os principais cuidados que se as redes sociais são globa- planeta, como infecções por
Agora não estamos enfren- são implantados diante de lizadas, mas os salários ou as cólera, gripe russa no século
tando os eventos aleatórios uma doença globalizada seja oportunidades não são, a glo- XIX, gripe espanhola, gripe
regulares da vida cotidiana, o isolamento individual. É balização é mais um álibi para aviária, HIV, recentemente
como, por exemplo, quando como uma confissão de der- alguns países e algumas pes- SARS 1, H1N1 e outros.
pegamos um metrô para ir rota desses mercados globais soas imporem seu domínio, As doenças globais emer-
ao trabalho e não podíamos e de seus sacerdotes diante poder e cultura, do que uma gem dos modos formais e
prever quem encontraríamos da necessária persistência verdadeira integração univer- reais de manipulação da
no vagão ou se chegaríamos dos Estados, saúde pública e sal de realizações humanas natureza à racionalidade da
a tempo. A incerteza atual famílias como núcleos essen- para o benefício de todos. produção comercial que fra-
é mais profunda, é o desti- ciais de sociabilidade e prote- É uma maneira mutilada tura os processos, regulados
no, porque na verdade não ção. Portanto, é até grotesco de globalizar a sociedade que, na transmissão de doenças
se sabe quando se voltará a ver os profetas do livre co- ao gerar mais desigualdades entre diferentes espécies
pegar o metrô, se terá um mércio e do “estado mínimo”, e injustiças, enfraquece os animais. Manipulação formal,
emprego para ir ou, no ex- que ontem exigiram derrubar mecanismos de proteção e quando a pequena econo-
tremo, se estaremos vivos. as fronteiras nacionais e se assistência criados ao longo mia agrária é pressionada a
O que é hoje é, portanto, um livrar dos “caros” sistemas de de décadas pelos diferentes aprofundar-se cada vez mais
colapso absoluto do horizon- direitos sociais (saúde, edu- Estados nacionais. nas florestas e áreas ecologi-
te das sociedades em que a cação, aposentadoria e ou- Hoje vemos que os mer- camente autossustentáveis
aleatoriedade do futuro é de tros), sair agora para aplaudir cados financeiros não curam para mercantilizar a flora e
tal natureza que tudo o que o fechamento profilático das doenças globais, apenas in- a fauna; manipulação real,
se possa imaginar, incluindo fronteiras e exigir do Estado tensificam seus efeitos nos quando a produção total-
nada, poderia acontecer. medidas mais drásticas para mais fracos. Hoje, vemos mente capitalista impõe nas
Um pequeno vírus, das servir aos cidadãos e revitali- que o livre comércio levou a florestas ilimitados modos
centenas de milhares que zar as economias nacionais. um declínio nas condições de trabalho agrícola exten-
existem, está fazendo com Que a euforia globalizante de igualdade semelhantes sivamente articulados nos
que mais de 2,6 bilhões de como destino final da huma- às do início do século XX. mercados de commodities. Em
pessoas suspendam suas ati- nidade se apega apenas ao Segundo Thomas Piketty, ambos os casos, a interface
vidades regulares, que uma confinamento individual e o 1% dos mais ricos dos entre animais selvagens e
grande parte do trabalho que a única organização po- Estados Unidos, que em 1975 seres humanos que foi gra-
com o qual as pessoas re- lítica prevalecente diante do concentravam 20% da pro- dualmente regulada ao longo
produzem suas condições de surgimento de uma doença priedade de todos os bens de séculos através da difusão
existência esteja paralisada e global, resultante do curso imobiliários, profissionais e em pequenas comunidades,
que os governos implemen- da globalização, somente o financeiros, em 2018 aumen- agora é comprimida em dias
tem Estados de exceção na Estado, fala de uma farsa sem taram sua participação em ou semanas em gigantescos
possibilidade de promover o atenuantes. Algo está erra- até 40% , semelhante ao ano conglomerados humanos,
isolamento social. Um pânico do com esse paradoxo: ou a de 1920. Hoje sabemos que explodindo em infecções ma-
global tomou conta da mídia globalização como projeto nenhuma instituição global ciças e devastadoras.

44
Por trás de cada pandemia apaixonado pela superiorida- diante da pandemia e da re- Quanto tempo durará esse

×oikonómos×
há uma maneira de definir a de histórica fingida do livre cessão econômica. retorno ao Estado, é difícil
riqueza social como acumu- mercado. E agora que a re- Nessas circunstâncias, o saber. O que está claro é que,
lação privada ilimitada de cessão global está ocorrendo, Estado aparece como uma durante muito tempo, nem
dinheiro e bens materiais, ela se apresenta como órfã comunidade de proteção as plataformas globais, nem a
e que, portanto, transforma e sem responsabilidade. E o contra os riscos de morte mídia, nem os mercados fi-
a natureza, com seus com- sucateado Estado após anos e crise econômica. Embora nanceiros, nem os proprietá-
ponentes de seres vivos e de austeridade que tentará seja verdade que o destino rios de grandes corporações
inanimados, em uma simples atenuar os terríveis custos de muitos deve depender da terão a capacidade de articu-
massa de matéria-prima sociais de uma orgia econô- decisão de poucos que mono- lar demandas e compromis-
suscetível de ser processada, mica de poucos. polizam as decisões estatais, so moral semelhantes aos
depredada e financeirizada. e é por isso que Karl Marx Estados. Isso significa que o
É uma maneira cega de pro- Retorno do Estado falou de uma “comunidade retorno a formas idênticas
duzir mais e mais dinheiro, Certamente, testemunhamos ilusória”, essas decisões terão de bem-estar ou estado de
mas impotente para produzir e testemunharemos uma rea- que ser eficazes para criar um desenvolvimento de décadas
uma maneira global de pro- valiação geral do Estado, tan- corpo coletivo unificado em atrás não é possível porque
teger as pessoas, muito me- to em sua função de proteção sua determinação de superar existem interdependências
nos a natureza. O resultado social quanto econômico- as adversidades, desde que técnico-econômicas que não
é uma ordem dominante da -financeira. Diante de novas consiga dialogar com as pro- podem mais voltar atrás para
sociedade que não entende doenças globais, pânico e fundas esperanças das classes erguer sociedades egocên-
que sua maneira compulsiva recessões econômicas, ape- mais baixas. tricas no mercado interno e
de devorar a natureza no al- nas o Estado tem capacidade Até a recessão global en- salários regulares. Mas, sem
tar do lucro é uma maneira organizacional e legitimida- contra no Estado nacional a um Estado social preocupado
de devorar a si mesma. de social para defender os única realidade social capaz com o cuidado com as condi-
O fato de os mercados e cidadãos. de reorganizar a flecha tem- ções de vida das populações,
instituições globais agora Por enquanto, apenas o poral do fluxo de riqueza continuaremos condenados
se esconderem das legiti- Estado, sob sua abrangente dos países para adiantar para a repetir esses contratempos
midades do Estado para forma gramsciana de aparato todos hoje o que se produzirá globais que quebram bru-
tentar conter os demônios administrativo e sociedade amanhã, a fim de impulsionar talmente as sociedades e as
destrutivos que essa forma civil politizada e organiza- a renda do trabalho, o consu- deixam à beira do precipício
de globalização desencadeou da, pode guiar as vontades mo interno, a geração de em- histórico.
é a confirmação de um du- sociais em direção a ações prego e o crédito produtivo.
plo fracasso: as instituições comuns e sacrifícios compar-

varzea
globais propõem respostas tilhados que exigirão políti-
globais viáveis para proteger cas públicas de atendimento
a saúde de pessoas de todos
os países; e mercados globais
para evitar o colapso econô-
mico global acelerado pela
pandemia.
A estagnação econômica
dos últimos anos é agora
seguida pela recessão glo-
bal, ou seja, uma diminuição
nas economias locais que
levará ao fechamento viral
de empresas, à demissão de
milhões de trabalhadores, à
destruição da poupança fami-
liar, ao aumento da pobreza
e sofrimento social. E mais
uma vez os sacerdotes da
globalização, insuflados em
sua mesquinharia, cruzam
os braços esperando que os
Estados nacionais gastem
suas últimas reservas, hipote-
quem o futuro de pelo menos
duas gerações para conter a
raiva popular e temperar o
desastre que os arquitetos da
globalização causaram.
Quando a força global era
evidente, ela tinha muitos
sacerdotes, cada um mais

45
As formas emergentes de E se o uso de big data for com outras corporeidades. É lições desse tipo de globali-
Estado deverão combinar transferido dos cuidados como se a pele e o corpo fos- zação mesquinha que não se
uma reavaliação do merca- médicos da sociedade para sem forças produtivas da so- importa nem com as pessoas
do interno, proteção social a contra-insurgência social, ciedade em geral e de formas comuns nem com a natureza
estendida aos assalariados, enfrentaremos uma nova fase de comunidade em particu- comum; e talvez o pavor se
não assalariados e formas hí- da biopolítica agora transfor- lar, começando pela família, torne um estado permanente
bridas de trabalho autônomo, mada em política de dados, a nacional e mundial. na convivência social.
políticas profundas de demo- da gestão disciplinar da vida Um like no Facebook é Os seres humanos são
cratização da propriedade e nas fábricas, centros de de- uma convergência fechada de seres globais por natureza e
decisões sobre o futuro, com tenção e os sistemas de saúde inclinações que não produz merecemos um tipo de glo-
a articulação controlada de público passam a controlar o nada de novo, a não ser o balização que vai além dos
diferentes cadeias de supri- algorítmico de todos os atos aumento contábil de adesões mercados e fluxos financei-
mentos globais, o controle da vida, começando com a his- anônimas. Em vez disso, uma ros. Precisamos de uma glo-
radical dos fluxos financei- tória de seus deslocamentos, assembléia é uma construção balização do conhecimento,
ros e ações imediatas para seus relacionamentos, suas social-corporal permanente assistência médica, trânsito
proteger o meio ambiente escolhas pessoais, seus gostos, de conhecimentos práticos e de pessoas, salário dos traba-
planetário. seus pensamentos e até suas experiências comuns. lhadores, atenção à natureza,
prováveis ações futuras, agora A inquietação e o senti- igualdade entre mulheres e
Os perigos do Estado convertido em dados de al- mento de mutilação com os homens, direitos dos povos
pós-COVID gum algoritmo que “mede” a quais as pessoas reagem ao indígenas, ou seja, globaliza-
Outro dos paradoxos da “periculosidade” das pessoas; confinamento necessário ção da igualdade social em
época da bifurcação aleatória hoje perigo médico; amanhã e temporário revelam que todas as áreas da vida, que é a
como a atual é o risco de um perigo cultural; depois de o corpo não é apenas um única coisa que enriquece hu-
retorno pervertido do Estado amanhã perigosos políticos. receptáculo desajeitado de manamente a todos. Até que
na forma de keynesianismos um cérebro capaz de dar um isso aconteça, como um trân-
invertidos e um totalitarismo A irredutibilidade do salto à virtualidade absolu- sito para a globalização dos
de big data voltado para a corpo ta. Não, o corpo não é uma direitos sociais, é essencial
contenção de classes perigo- A realidade é que o corpo, as caixa de neurônios organiza- um Estado social plebeu que
sas. Se o retorno do Estado linhas do corpo no espaço- dos; o corpo é a extensão do não proteja apenas a popula-
é usar dinheiro público, isto -tempo social sempre foram cérebro da mesma maneira ção mais fraca, que expanda
é, para sustentar as taxas o destino obsessivo de todas que o cérebro é a extensão a saúde pública, os direitos
de rentabilidade de alguns as relações de poder e hoje do corpo e, portanto, os me- trabalhistas e reconstrua
proprietários de grandes em- é absolutamente assim. Os canismos de conhecimento, metabolismos mutuamente
presas, não estamos diante códigos da sociedade estão invenção, afeto e ação social vivificantes com a natureza;
de um Estado social protetor, gravados na pele do corpo e é são atividades integrais de mas que também democra-
mas um Estado patrimonia- por isso que o mais estranho todo o corpo em conexão tize cada vez mais a riqueza
lista usurpado por uma aris- no confinamento é a ausência com outros corpos, com material e o poder sobre ela,
tocracia empresarial, como do próximo, a linguagem dos toda a humanidade e toda a portanto, também a política,
já aconteceu durante todo o corpos que falam conosco e natureza. O corpo é, portan- a maneira de tomar decisões
período neoliberal que nos nos educam sem nos cons- to, um lugar privilegiado de que devem ir cada vez mais
trouxe a esse momento de cientizarmos dele. conhecimento social e pro- de baixo para cima e cada vez
colapso social. Assim, parece que tam- dução da sociedade. O fato menos de cima para baixo,
bém estamos enterrando na de os limites da virtualidade em um tipo de Estado inte-
angústia do confinamento global forçada trazerem à gral que permite que a asso-
o aspecto técnico da utopia luz o valor das experiências ciatividade molecular demo-
liberal do individualismo do corpo também é outro crática da sociedade irradie
auto-suficiente que buscava dos paradoxos do tempo sobre o próprio Estado.
substituir a realidade social ambíguo. E enquanto essa
pela realidade virtual. É que experiência angustiante pro-
os corpos e suas interações vavelmente será esquecida
são, e continuarão sendo, em alguns anos, muitos vão
essenciais para a criação da para as ruas com o pescoço
sociedade e da humanidade. dobrado em direção ao te-
Agora sabemos que empre- lefone celular, mas poderão
gos virtuais importantes e fazê-lo porque as pessoas
crescentes, como o “tele- estão lá, à mão, interagindo
trabalho” não são o modo consigo mesmas, através dos
predominante de geração de olhares e gestos do corpo,
riqueza para as nações; que embora nossa consciência
a força de trabalho é sempre esteja em algum diálogo do
uma composição de esforço Whatsapp. Mas também é
físico e mental; que as socie- provável que o desespero
dades nacionais estão parali- pelo encontro com os outros
sadas se não houver atividade se repita repetidamente,
humana corporal interagindo se não soubermos tirar as

46
Universidade em tempos conhecimentos locais é es- intelectual, em nossos países, e a universidade pública, em

×oikonómos×
de caos planetário sencial para produzir coisas por outro lado, existe uma particular, ajudar a formular
Finalmente, a universidade novas; mas o que acontece ânsia, às vezes exagerada, as questões do colapso moral
pública faz parte do Estado; é em cada país não é a valida- de conhecer a produção entre dominantes e domina-
uma de suas instituições mais ção empírica do que outros acadêmica de outros países, dos, e ajudar a tornar visíveis
importantes na formação teorizaram em outros luga- especialmente se eles são as ferramentas do autoco-
de múltiplas legitimidades res, muito menos o “desvio” dominantes. Isso, que em nhecimento social, é provável
estatais e não estatais: uni- temporário de um destino princípio é uma chatice, facil- que, em meio a contingência
versaliza a educação regular, que deve ser anexado mais mente pode ser uma grande do futuro, se reforce o curso
distribui bens educacionais cedo ou mais tarde. vantagem se adicionarmos sustentado nas atividades da
na sociedade, constrói capila- Precisamos ter a audácia uma paixão incontrolável comunidade, solidariedade
ridades para o surgimento de de produzir novos conhe- por nós mesmos, incluindo o e igualdade, único lugar em
novos negócios e, acima de cimentos, novas estruturas próprio continente. Isto é o que os subordinados podem
tudo, produz conhecimento conceituais que tornem que poderíamos finalmente emancipar-se de sua condi-
social e modos de integração inteligíveis esse furacão de chamar de produção de co- ção subordinada.
intelectual, lógica e moral da eventos anteriormente ine- nhecimento universal muito Somente assim o horizonte
sociedade com o Estado. xistentes, capazes de dialogar mais poderosa do que muitos que emerge, seja ele qual for
Nos tempos neoliberais, com esquemas conceituais conhecimentos regionalistas ou o nome que você deseja
juntamente com o colapso do produzidos em outras partes e localistas dominantes que atribuir, será seu; aquele que
estado social, as elites adota- do mundo e, também, de ex- hoje fingem ser universais a sociedade é capaz de dar a
ram formas externas de legi- plicar melhor, com categorias simplesmente por causa do si mesma; e pelo qual vale a
timação, as tecnocracias das mais lógicas, o que acontece efeito, em teoria, da posição pena arriscar tudo o que so-
universidades do norte, os aqui e o que também acon- economicamente dominan- mos até hoje.
consultores de organizações tece nessas outras áreas do te no planeta dos lugares
internacionais que se dedica- planeta. Hoje é um momento onde esse conhecimento é Álvaro García Linera foi
ram a criar uma liturgia em excepcional para as ciências produzido. vice-presidente da Bolívia de
torno dos benefícios da ex- sociais, devido à natureza ex- O conhecimento social, o 2006 até o golpe em 2019,
propriação de bens, recursos cepcional de tudo o que vem ressurgimento do Estado e ao lado do presidente Evo
públicos e terceirização do acontecendo em todos os lu- os tempos de incerteza estra- Morales. Este texto foi lido na
superávit econômico nacio- gares e em todas as áreas da tégica nas sociedades abrem conferência inaugural do ciclo
nal. Isso trouxe uma cadeia experiência social. um espaço infinito de possi- acadêmico das carreiras de
de desprezo colonial pelo A sociedade latino-ameri- bilidades de criatividade so- Sociologia e Antropologia do
conhecimento local e pelas cana ao longo de sua história cial, compromissos políticos Instituto de Estudos Sociais
universidades públicas. passada e atual deu exemplos e a implantação de ferramen- Superiores, da Universidade
Nenhuma sociedade é de audácia política e social tas acadêmicas capazes de Nacional de San Martín, em
capaz de definir seu destino incomparável para desafiar contribuir para a autorrefle- 30 de março, na Argentina, e
sem produzir conhecimento várias relações de poder, xão da sociedade e impactar foi publicado e traduzido para
de si mesma e do mundo. produzir novas combinações em políticas públicas. o português pelo portal Carta
Por esse motivo, as univer- institucionais, elevar formas O mundo está preso em Maior.
sidades hoje têm um duplo de ação coletiva de vanguar- um turbilhão de múltiplas
desafio: expandir sua capa- da, muitas das quais servem crises ambientais, econômi-
cidade de gerar seu próprio como exemplos ou referen- cas, médicas e políticas que
conhecimento, ou seja, não te de outras sociedades do liquefazem todas as previsões
apenas repetir e difundir mundo; e o mesmo deve sobre o futuro; e a pior parte
o que outros fizeram em acontecer com a produção é que isso traz um risco imi-
outras partes do mundo. de conhecimento e teoria nente de impor “soluções”
Certamente o acesso a outros social. Isso já está acontecen- nas quais as classes subordi-
do, apenas precisamos ver nadas estão sujeitas a maio-
mais de perto o que acontece res dificuldades do que já são
em nosso horizonte interno hoje toleradas. Mas a condi-
como fonte de conhecimento ção de subordinação social
universal. ou nacional também tem nes-
Além disso, temos uma te turbilhão planetário um
maneira mais plural e um momento de suspensão ex-
tanto cosmopolita de pro- cepcional da adesão ativa às
ceder intelectualmente. decisões e caminhos propos-
Diferentemente das acade- tos pelas elites dominantes. A
mias dos países centrais em inquietação planetária devido
que cada universidade de à fragilidade dos horizontes
prestígio e cada intelectual a que se apegar também é
de renome, que praticam das crenças dominantes,
um desprezo silencioso pelo com as quais o senso comum
que é produzido em outras se torna poroso, desejando
nações, em uma espécie de novas certezas. E se, aí, o
vergonhoso nacionalismo pensamento crítico, em geral,

47
“A história também pode Lévi-Strauss deu um cutucão nos outros antropólogos ao
dizer que: “é claro que eles têm história, mas outra história”.
se repetir como tragédia” Surge uma chave entre o entendimento da história e as memó-
rias que esses povos carregam, que são o guia de sua continui-
entrevista com Ailton Krenak dade e de sua potência de reprodução cultural.
A captura daquele momento que a questão indígena se co-
por Hugo Albuquerque e Jean Tible munica com o sentido mais amplo de uma história que estava
no fim, mas ao mesmo tempo misturava tudo. O anúncio da
Um dos principais intelectuais indígenas no país falou com globalização colocou todo mundo num liquidificador gigante:
nossa equipe sobre catástrofe climática, crise do capitalismo, não faz mais diferença se você está na Turquia, na África ou
surgimento do marxismo e a possibilidade de imaginarmos na América do Sul. A banalização do mal sobre a vida de povos
outros mundos por meio da tradição de resiliência de todos os de variados lugares ganha o mesmo nivelamento, mas também
povos minoritários no mundo. um ponto em comum.
É por isso que começam a se constituir espaços de discussão,
fóruns e tribunais internacionais, como o Tribunal Internacional
Bertrand Russel, que reconheceu que o Brasil cometeu genocí-

E m 1987, durante a Assembleia Constituinte, um gesto


chamou a atenção do mundo e entrou para a história:
Ailton Krenak foi à tribuna discursar e enquanto falava, ele
dio contra seus indígenas, graças a denúncia do nosso primeiro
deputado indígena Mário Juruna em 1980. A situação se escan-
carou para o mundo inteiro. Revelando outras ocultações, a pior
pintava seu rosto com a tinta negra de jenipapo, que ex- delas é de que “não haveria mais indígena no Brasil”.
pressa o luto para o seu povo, para denunciar o descaso dos O Eduardo Viveiros de Castro gosta de exemplificar esse
deputados constituintes com os indígenas, os quais foram período com aquele episódio do embaixador brasileiro, que
perseguidos, dizimados e tiveram suas terras tomadas e pri- estava em Paris, quando Lévi-Strauss estava preparando sua
vatizadas pelo empreendimento colonial branco, desaguando primeira viagem ao Brasil. Eis que o embaixador pergunta o
em um Estado genocida e explorador. que ele viria fazer no Brasil e ele responde: “eu vou conhecer
Ailton, com aquele gesto poderoso, decisivo para a aprova- os indígenas, entender melhor a situação deles”. O diplomata
ção do sistema de proteção ao índio, questionava a opressão responde: “ah que pena, você vai ter de fazer outra coisa, pois
de séculos contra os indígenas e, sobretudo, de seu povo, os acabaram os índios no Brasil”.
Krenak, que quase foi totalmente dizimado no século XX, após Lévi-Strauss veio mesmo assim e deu no que deu: a chave
sofrerem séculos com uma repressão particularmente cruel, abriu a tranca e mostrou que não apenas os indígenas não
mesmo para os padrões coloniais luso-brasileiros. tinham acabado no Brasil como, também, demonstrou que o
Os Krenak — “cabeça da terra” ou “cabeça na terra”, em Brasil não tinha conseguido acabar com os indígenas.
virtude de seus ritos e de sua relação com a terra e, também, A constatação de que o Estado brasileiro tentou acabar com
de um importante líder –, como o próprio Ailton sublinha, já os indígenas, mas não conseguiu, gerou uma enorme discus-
testemunharam a história com muitos outros nomes, mas ele são: o que restou dos indígenas no Brasil se misturou com
corresponde a um número de famílias e grupos denominados a realidade de outros povos minoritários no mundo, dando
anteriormente como “aimorés” — pela forma como os tupi abertura para iniciativas como a Declaração Internacional dos
os chamavam — ou, mais comumente, pela denominação Direitos dos Povos Indígenas do Mundo de 2007.
hostilizante e pejorativa dada pelos brancos durante o pe- A gente saiu do trato jurídico com o Estado brasileiro para
ríodo colonial e início da história brasileira independente: um trato jurídico internacional. A questão que estava na rota
“botocudos”. do desaparecimento manifestou-se de uma maneira tão sur-
Hoje, Ailton Krenak sublinha que a volta dos militares preendente que interveio a história mundial. E os indígenas
ao poder demonstra que a “história pode se repetir como que eram um povo sem história, voltaram à cena, de uma for-
tragédia” e que, antevendo o que resultaria na crise atual, “a ma tão determinada, como se tivessem reconhecendo seu des-
minha observação da história é que ela é cheia de surpresas. tino de ser testemunha da sua própria história, mas também
Quando algumas nações parecem estar surfando no bem-es- testemunha da história do branco.
tar, vem uma tragédia e muda tudo. E lembra que “ao mesmo Hoje, eu acredito que no mundo inteiro, os povos indígenas
tempo que nós, os indígenas, somos a parte da humanidade da Nova Zelândia, Austrália, África, Brasil e Canadá são as tes-
pronta a desaparecer, nós também somos a parte da huma- temunhas mais duras que os Estados nacionais colonialistas
nidade que criou anticorpos para entender como habitar ou- têm diante de si. Se a gente entender os indígenas não como
tros mundos. Quem sabe, quem sempre esteve com o dedo a invenção do português, mas com uma constatação de que
no gatilho para fazer gente desaparecer não acabe desapare- grande parte da humanidade foi excluída da narrativa, todos os
cendo antes da gente?”. Confira a entrevista completa. excluídos ficam na condição de indígenas.
Talvez aquilo que tem sido mencionado como devir-índio
A questão indígena foi eclipsada e a lua é algo muito caro seja a ideia mais ampla que inclui todos aqueles que não fazem
à sua cultura, com o chamado “fim da história”. Como parte do trato do Estado. Que não são constituídos dentro do
enxergar o paradoxo de vocês terem arrancado do Estado contrato social dos Estados nacionais, pois, transbordam essas
esse arbítrio absoluto sobre os indígenas na Constituição beiradas para outras maneiras de estar no mundo. Isso possi-
de 1988? bilita aquilo que a gente chama de cosmovisão: e isso está para
Eu vejo isso assustado como um truque desses fenômenos da além da interpretação geográfica ou geopolítica do mundo,
história. E pensar, por exemplo, que a ideia de que esses po- porque estabelece rotas de contato com outras esferas. Não
vos originários não teriam história, que esses povos são fora só com a ideia de um continente ou de um país ou um planeta,
da história. Toda a literatura e talvez até os Tristes Trópicos que são rotas alimentadas por uma cosmovisão.
de Claude Lévi-Strauss, que ele publicou em 1955, dizia que A terra, enfim, é um dos nossos sítios, mas a capacidade de
os índios não têm história. recriar a vida que essas memórias e esses povos tão plurais têm

48
no mundo inteiro habitam também outras dimensões. Suas confiantes demais no que está vindo. A cada instante pode

×entrevistas×
narrativas, sua expressão para além da circunstância material abrir diante da gente um abismo. Não é para a gente ficar
da vida, criam mundos, subjetividades. É uma potência sub- paranoico diante de um mundo em parafuso, mas é para ficar
jetiva tão maravilhosa que ela quase que admite que se esse alerta feito um escoteiro sabendo que pode aparecer de qual-
mundo acabar, essa humanidade que nós estamos anuncian- quer canto da história uma monstruosidade.
do, ela é capaz de recriar mundos para si. Mas ela sempre foi A minha observação da história é que ela é cheia de sur-
excluída do mundo. presas. Quando algumas nações parecem estar surfando
no bem-estar, vem uma tragédia e muda tudo. Seja com o
Uma vez como tragédia, a outra como farsa. Esses aparato das guerras seja aquilo que é atribuído à natureza.
militares que exterminaram, que confinaram vocês em Estamos diante de uma monumental tragédia climática.
campos de concentração, militarizando-os, colocando Quando chamamos ela de climática, estamos reduzindo num
Krenaks contra Krenaks, estão de volta ao poder. termo coisas que têm um desdobramentos que nem conse-
Como é para vocês isso? guimos sequer relacionar.
A história pode se repetir como tragédia. Eu tenho dificulda- Isso afeta a sobrevivência humana, tanto no sentido do
des de ler essas manobras. Eu tenho dificuldades de compa- suprimento de nossas necessidades de abrigo, alimentação
rar esses períodos e fazer uma leitura sobre o que vem, pois, e cuidado, onde todos nós, não importa de que lugar você
o imprevisto tem uma capacidade de intervir na nossa expe- esteja, estamos na mesma canoa. Podemos dizer que a canoa
riência vivida, que faz a gente suspeitar disso que seria um pode afundar, mas tem uma parte que está blindada, pensa
futuro imediato e próximo. que está ou pelo menos vai lutar para continuar assim.
Mas pensar que teremos pela frente uma farsa pode ser um Quando pensamos nos povos minoritários, até nisso te-
erro. Se nós formos informados que a história não se repete, mos o risco do equívoco. Pois, depois que a ONU convocou
ou se repete como farsa, nós podemos cair num engano e a Declaração Internacional dos Direitos dos Povos Indígenas
sermos surpreendidos por uma tragédia. Se a gente olhar a concluiu que tem uma população indígena estimada no pla-
história no final do século XX, ver o que foi a transição entre neta hoje de 400 milhões, o que não é pouco.
a polaridade capitalismo vs comunismo, queda do Muro de Mesmo considerando algum equívoco ou manipulação
Berlim, União Europeia para, agora, cair em um momento no nessas estatísticas, há uma boa parte da população planetária
qual ocorre o fim do trato que russos e norte-americanos fize- que está vulnerável, do ponto de vista de todas as relações
ram, quanto à mitigação de suas hostilidades mútuas, me pare- institucionais, os que as torna as vítimas em potencial de
ce que não estamos diante de uma farsa, mas de uma tragédia uma catástrofe ambiental ou política.
muito mais ampla e grave do que a gente teve no século XX. Assim, quando atinamos com essa ideia de vulnerabilida-
Eu suspeito muito desse tempo que nós estamos vivendo. de, ficamos diante de uma equação muito curiosa: porque ao
Eu estou mais desconfiado que o Guimarães Rosa pelo que mesmo tempo que nós, os indígenas, somos a parte da huma-
vem pela frente. Ele sempre alerta a gente para não ficarmos nidade pronta a desaparecer, nós também somos a parte da
humanidade que criou anticorpos para entender como habi-
tar outros mundos. Quem sabe, quem sempre esteve com o
dedo no gatilho para fazer gente desaparecer não acabe desa-
parecendo antes da gente?

Com alguma sorte sim. E esse intermezzo democrático faz


algum sentido para os Krenak?
O pacto colonial só serve para ele mesmo. Ele não abre
perspectiva com o mundo dos excluídos. Ele só serve para si
mesmo como uma autoajuda. As experiências controladas de
democracia no mundo, elas são só isso mesmo: experiências
controladas. Elas são eventos que se expandem para além
dos limites cogitados pelo capitalismo.
As corporações, já faz muito tempo, capturaram esse lugar
de assembleia, de decisão sobre como a governança do mun-
do será feita e, assim, passaram a nomear meros gerentes.
Esses caras que ocupam os mandatos de presidente e primei-
ro-ministro, em diferentes lugares do mundo, são, em geral,
ex-CEOs ou gerentes de uma dessas corporações. Então, isso
é uma escolinha. Eles se preparam para dar um próximo pas-
so para integrar a vida política e social dos povos de acordo
com o programa de suas corporações.
Das minhas leituras de alguma produção dos pensadores
ocidentais eu, criticamente, entendo que eles estão dando
voltas em torno dessa mesma questão: os limites dessa liber-
dade que o mundo ocidental concede aos povos. Os eventos
da história comprovam isso.
Enquanto foi interessante para as potências europeias ter
escravidão no mundo, a periferia era o lugar dessa produção
de escravos. Tinha uma parcela da humanidade que estava
totalmente excluída de tudo, inclusive de sua própria huma-
nidade, reduzidos a mera peças num jogo.

49
Quando o ocidente decidiu abrir mais um círculo, mais Estou cada vez mais observando que isso não é uma ex-
uma camada de circulação, ele aliviou na questão da escravi- periência apenas dos Krenak, mas de muitos povos ao redor
dão para transformar essas pessoas em clientes e trabalhado- do mundo: os curdos, os ciganos e muitos povos de matriz
res. E o mundo do trabalho se expandiu para que aquela gen- africana pelo mundo — e é provável que a maior parte da po-
te que era escrava agora pudesse virar “classe trabalhadora”. pulação do continente africano vá estar em outras partes, em
Foi isso que o marxismo descobriu: aquela gente que veio virtude do complô colonialista.
do mundo sem direito algum e agora eram convertidos em
trabalhadores, e que podia aspirar uma participação ativa Ailton Krenak é um líder indígena, ambientalista e escritor
num mundo com igualdade. Como se você estivesse pregan- brasileiro. É considerado uma das maiores lideranças do
do uma nova religião para um mundo pagão, que ansiava um movimento indígena brasileiro, possuindo reconhecimento
novo credo. Então tivemos uma engajamento enorme no internacional. Essa entrevista foi publicada no site da
mundo inteiro de gente que buscou ampliar os espaços de Jacobin Brasil.
autonomia e liberdade dessas relações.
As crises dessas relações ficou tão aguda, que ela implodiu
por dentro: o mundo do trabalho está implodido, por uma
disrupção que gera coisas como o empreendedorismo. É uma
reinvenção do sistema para criar uma nova válvula para esses
corpos em movimento poderem seguir a experiência, satura-
da, de um planeta superpopuloso, que, se essas pessoas não
tiverem um programa para rodar, elas vão entrar em colapso.
Então precisa sempre abrir uma janela para daqui mais um
pouco. É uma improvisação em cima de improvisação.
Por isso eu questionei a ideia da repetição como farsa.
Ninguém controla o próximo episódio. E não temos um nú-
mero de pessoas, em quantidade suficiente, interessadas e
preocupadas em pensar alternativas. Nós perdemos a capaci-
dade de produzir pessoas com essa qualidade. Nós estamos
nos tornando um mundo ordinário.
Eu me atrevo a dizer que acabou a produção de pensamen-
to sobre o tempo que vivemos, com a potência de interferir
no curso da história em que vivemos. Nós não temos mais
grandes pensadores, grandes “estadistas” — aquela ideia do
“estadista”, que é uma coisa sempre limitada, uma vez que o
Estado entrou em colapso faz tempo.

E no fim a sabedoria do diabo não é fingir que não existe?


O próprio capital no sentido de desmontar o trabalho
como a gente conhecia como forma de controlar melhor.
É, exatamente, fingir que não existe e deixar o circo pegar
fogo.

Voltando aos tempos atuais, os Krenak depois do eco-


cídio do Rio Doce pelo rompimento da barragem de
Mariana. Como está sendo a resistência dos Krenak neste
instante?
A resistência nunca muda. Resiste quando são 23 famílias.
Resiste quando são 8 famílias. Resiste quando são 100 fa-
mílias. Resiste. A célula tem a capacidade de reproduzir.
Enquanto ela tem capacidade de se reproduzir com qualida-
de, ela sempre vai contrariar essa tendência de entropia, de
desaparecimento. Ela vai criar e recriar mundo.
É como se nós fossemos chapados por eventos negativos
recorrentes. Isso te torna muito desconfiado em relação ao
futuro. Mas como também temos uma matriz cultural funda-
da numa outra perspectiva, na qual o futuro não é amanhã,
cresce também a resistência — e eu tenho a impressão, que
a palavra resiliência talvez seja a melhor palavra para nossa
experiência.
A resiliência não é a mera resistência a um evento em si,
mas sim a capacidade interna de se reconfigurar diante do
momento. É mais ou menos o que o camaleão faz, quando
muda de lugar e luz para se reconfigurar e aumentar a sua
potência.

50
A escassez de # O surto da nova doença neoliberal na ordem capi-

×entrevistas×
do coronavírus se espa- talista incontida e na forma
respiradores expõe a lhou pela maior parte do
mundo, com os EUA tendo
distorcida construída pelo
mercado.
crueldade do capitalismo agora mais casos de infec-
ção do que qualquer outro
A profundidade da patolo-
gia é revelada claramente por
neoliberal país, incluindo a China,
onde o vírus se originou.
uma das mais dramáticas - e
assassinas - falhas: a falta
entrevista com Noam Chomsky São desenvolvimentos de respiradores, que é um
surpreendentes? dos principais gargalos no
Tradução César Locatelli A escala da praga é sur- enfrentamento da pandemia.
preendente, realmente O Departamento de Saúde e
O mundo forjado por Margareth Tatcher e Ronald Reagen nos
chocante, mas não seu apa- Serviços Humanos previu o
anos 80 se desmantelou em meio a pandemia, enquanto outros
recimento. Nem o fato de os problema e contratou uma
países, como Cuba, estão oferecendo auxílio médicos
EUA terem o pior histórico pequena empresa para pro-
de resposta à crise. duzir respiradores baratos e
Os cientistas têm alerta- fáceis de usar.

O COVID-19 tomou o
mundo de assalto.
em que “não há lucro em
se impedir uma catástro-
Centenas de milhares de pes- fe futura”, ressalta Noam
do para uma pandemia há
anos, insistentemente desde
Mas então a lógica capita-
lista interveio. A empresa foi
a epidemia de SARS [Severe comprada por uma grande
soas estão infectadas (possi- Chomsky nesta entrevista Acute Respiratory Syndrome - corporação, a Covidien, que
velmente muitas vezes mais exclusiva. Chomsky é profes- Síndrome Respiratória Aguda desativou o projeto e, em
que os casos confirmados), a sor emérito de lingüística no Grave] de 2003, também cau- 2014, sem que nenhum res-
lista de mortos cresce expo- Massachusetts Institute of sada por um vírus semelhan- pirador tivesse sido entregue
nencialmente e as economias Technology (MIT) e leciona te ao coronavírus, para o qual ao governo, os executivos da
capitalistas paralisaram-se, na Universidade do Arizona. vacinas foram desenvolvidas, Covidien disseram, a funcio-
com uma recessão global pra- É autor de mais de 70 livros mas não avançaram além do nários da agência federal de
ticamente inevitável. sobre linguística, conflitos ar- nível pré-clínico. Aquela era pesquisa biomédica, que eles
A pandemia havia sido mados, política, mídia e filo- a hora de começar a imple- queriam sair do contrato, de
prevista muito antes de seu sofia. Na entrevista a seguir, mentar sistemas de resposta acordo com três ex-funcioná-
aparecimento, mas as ações ele discute como o próprio rápida para um surto e de rios federais. Os executivos
preparatórias foram barra- capitalismo neoliberal está preparar a capacidade so- reclamavam que não era sufi-
das pelos imperativos cruéis por trás da malograda res- bressalente que seria neces- cientemente lucrativo para a
de uma ordem econômica posta dos EUA à pandemia. sária. Também poderiam ter empresa.
sido tomadas iniciativas para A lógica neoliberal então
desenvolver defesas e modos interveio, ditando que o go-
de tratamento para uma pro- verno não poderia agir para
vável recorrência de um vírus superar a falha grosseira
associado. do mercado, que agora está
Mas a compreensão cien- causando estragos. Como o
tífica não é suficiente. Tem New York Times gentilmente
que haver alguém para pegar colocou a questão: “Os es-
a bola e correr com ela. Essa forços paralisados para criar
opção foi barrada pela pato- um novo lote de respirado-
logia da ordem socioeconô- res baratos e fáceis de usar
mica contemporânea. Os si- destacam os perigos de pro-
nais do mercado eram claros: jetos terceirizados, a cargo
não há lucro em evitar uma de empresas privadas, com
catástrofe futura. O governo implicações críticas de saúde
poderia ter entrado em cena, pública; seu foco na maximi-
mas isso é impedido pela zação de lucros nem sempre
doutrina reinante: “O gover- é consistente com a meta do
no é o problema”, disse-nos governo de se preparar para
Ronald Reagan com seu sor- uma crise futura”.
riso ensolarado, o que signifi- Deixando de lado a reve-
ca que a tomada de decisões rência ritualística ao governo
tem que ser entregue ainda benigno e seus objetivos
mais plenamente ao mundo louváveis, o comentário é
dos negócios, que é devotado suficientemente verdadei-
ao lucro privado e é livre de ro. Podemos acrescentar,
influência daqueles que pos- também, que o foco na ma-
sam estar preocupados com ximização dos lucros “nem
o bem comum. Os anos que sempre é consistente” com
se seguiram injetaram uma a esperança de “sobrevi-
dose extra de brutalidade vência da humanidade”,
reprodução

51
tomando emprestado a frase
de um memorando vazado
do JPMorgan Chase, o maior
banco dos EUA, alertando
que “a sobrevivência da hu-
manidade” está em risco em
nosso curso atual, incluindo
os próprios investimentos
do banco em combustíveis
fósseis. Desta maneira, a
Chevron cancelou um proje-
to rentável de energia susten-
tável, porque há mais lucro
a ser alcançado através da
destruição da vida na Terra.
A ExxonMobil se absteve de
fazê-lo, porque, em primeiro
lugar, nunca havia inicia-
do tal projeto, tendo feito
cálculos mais racionais de
lucratividade.
E com razão, de acordo
com a doutrina neoliberal.
Como Milton Friedman e longe o seu maior crime -, de seu desempenho lamen- da crise e isso mostra apenas
outros luminares neoliberais o maior crime da história tável. A técnica é bem arqui- a superfície da malevolência
nos instruíram, a tarefa dos quando consideramos as tetada, assim como a prática Trumpiana.
gerentes corporativos é ma- consequências. de desdobrar mentiras tão É tentador jogar a culpa
ximizar os lucros. Qualquer No início de janeiro, ha- rapidamente que o próprio em Trump pela resposta
desvio dessa obrigação moral via poucas dúvidas sobre conceito de verdade desapa- desastrosa à crise. Mas se es-
destruiria os alicerces da o que estava acontecendo. rece. Aconteça o que acon- peramos evitar futuras catás-
“vida civilizada”. Em 31 de dezembro, a China tecer, Trump tem certeza de trofes, devemos olhar além
Haverá recuperação da cri- informou a Organização que seus fiéis seguidores o dele. Trump assumiu o cargo
se da COVID-19, a um custo Mundial da Saúde (OMS) da desculparão. Quando você em uma sociedade doente,
grave e possivelmente hor- disseminação de uma doença dispara flechas aleatoriamen- atingida por 40 anos de neo-
rendo, principalmente para com sintomas semelhantes te, é provável que algumas liberalismo, com raízes ainda
os pobres e mais vulneráveis. à pneumonia com etiologia atinjam o alvo. mais profundas.
Mas não haverá recuperação desconhecida. Em 7 de janei- Para coroar essa tragédia A versão neoliberal do
do derretimento das camadas ro, a China informou à OMS impressionante, em 10 de capitalismo está em vigor
de gelo polares e de outras que os cientistas tinham fevereiro, quando o vírus desde Reagan e Margaret
consequências devastadoras identificado a fonte como varria o país, a Casa Branca Thatcher, tendo começado
do aquecimento global. Aqui um coronavírus e tinham divulgou sua proposta de or- pouco antes deles. Não deve
também a catástrofe resulta sequenciado o genoma, que çamento anual, que estendia ser necessário detalhar suas
de uma falha de mercado - eles disponibilizaram para o ainda mais os cortes acentua- consequências sombrias. A
neste caso, de proporções mundo científico. Durante ja- dos em todos os principais generosidade de Reagan com
verdadeiramente sísmicas. neiro e fevereiro, a inteligên- setores do governo relacio- os super-ricos têm relevância
O governo foi amplamente cia dos EUA tentou ser ou- nados à saúde (na verdade, direta com os dias de hoje,
advertido sobre uma prová- vida por Trump, mas falhou. praticamente qualquer coisa pois outro resgate bilionário reprodução

vel pandemia. Na verdade, As autoridades informaram à que pudesse ajudar as pes- está em andamento. Reagan
uma simulação de alto nível imprensa que “eles simples- soas) enquanto aumentava rapidamente suspendeu a
foi executada muito recente- mente não conseguiam que o financiamento para o que proibição de paraísos fiscais
mente, em outubro passado. ele fizesse nada a respeito. E é realmente importante: os e outros dispositivos para
Donald Trump reagiu, du- o alerta vermelho já estava militares e o muro. transferir a carga tributária
rante seus anos no cargo, da piscando”. Um dos efeitos é o cho- para o público, e também au-
maneira com a qual nos acos- Trump não ficou calado, cante atraso e limitação na torizou recompras de ações
tumamos: cortando finan- no entanto. Ele emitiu uma aplicação de testes, bem - um dispositivo para aumen-
ciamentos e desmantelando série de pronunciamentos abaixo de outros, tornando tar os valores das ações e en-
todas as partes relevantes do confiantes, informando ao impossível implementar riquecer a gestão corporativa
governo, e implementando público que era apenas uma estratégias bem-sucedidas e os mais ricos (que detêm a
assiduamente as instruções tosse; que ele tem tudo sob de se testar e rastrear, que maioria das ações), ao tempo
de seus amigos empresários controle; que ele receberia impediram a epidemia de sair em que solapa a capacidade
para eliminar as normas que nota 10 pela forma como li- do controle nas sociedades produtiva da empresa.
impedem os lucros enquanto daria com a crise; que é mui- que funcionam. Até os me- Tais mudanças políticas
salvam vidas - e liderando to sério, mas ele sabia que lhores hospitais carecem de têm enormes consequências,
a corrida para o abismo da era uma pandemia antes de equipamento básico. Os EUA na casa dos dezenas de tri-
catástrofe ambiental, de mais ninguém; e todo o resto agora são o epicentro global lhões de dólares. Geralmente,

52
a política tem sido projetada de Vijay Prashad: “Não vol- “O sistema inteiro poderia alertas foram atendidos,

×entrevistas×
para beneficiar uma mino- taremos à normalidade, ser financiado com menos incluindo democracias não
ria minúscula enquanto o porque o problema era a recursos financeiros do que o
menos vibrantes que as do
restante se debate. É assim normalidade”. montante que os empregado- Ocidente. A Europa, basica-
que chegamos a ter uma res e as famílias pagam pelos
mente, protelou, mas alguns
sociedade em que 0,1% da # Contudo, mesmo agora, prêmios de assistência médi-países europeus agiram. A
população detém 20% da com o país em meio a uma ca, combinados com as aloca-Alemanha parece manter o
riqueza e a metade inferior emergência de saúde pú- ções governamentais existen-recorde global entre as me-
tem patrimônio líquido ne- blica, diferente de tudo o tes. Essa mudança dos cuida-nores taxas de mortalidade,
gativo e vive de salário em que vimos em muito tempo, dos de saúde para um paga- graças a instalações de saúde
salário. Enquanto os lucros o público continua sendo dor único proporcionaria o e capacidade de diagnóstico
cresceram e os salários dos informado de que o aten- maior alívio para as famílias
sobressalentes e resposta
CEOs dispararam, os salários dimento universal à saúde de baixa renda. Além disso, rápida. O mesmo parece ser
reais estagnaram. Como os não é realista. O neolibe- estimamos que, garantir o verdade na Noruega. A reação
economistas Emmanuel Saez ralismo é o único respon- acesso à assistência médica de Boris Johnson no Reino
e Gabriel Zucman mostram sável por essa perspectiva a todos os norte-americanos,Unido foi vergonhosa. Os
em seu livro “The Triumph peculiarmente única sobre salvaria mais de 68.000 vidas
EUA de Trump aparecem na
of Injustice”, os impostos são cuidados de saúde? e 1,73 milhão de anos de vida
retaguarda.
basicamente os mesmos em É uma história complicada. por ano em comparação com A resposta da Alemanha
todos os grupos de renda, ex- Para começar, por muito o status quo.” a favor da população, entre-
ceto no topo, onde declinam. tempo, as pesquisas mos- Mas isso aumentaria os tanto, não se estendeu além
O sistema de saúde foram traram atitudes favoráveis impostos. E parece que mui- de suas fronteiras. A União
reprodução privatizados para terem fins em relação à assistência uni- tos norte-americanos pre- Europeia provou ser tudo
lucrativos nos EUA, isso tem versal à saúde, às vezes um ferem gastar mais dinheiro, menos uma união. No entan-
sido um escândalo inter- apoio muito forte. Nos últi- desde que não pague impos- to, as sociedades europeias
nacional, com o dobro das mos anos de Reagan, cerca de tos (acidentalmente matando enfermas pediram socorro
despesas per capita do que 70% da população pensava dezenas de milhares de pes- o outro lado do Atlântico.
outras sociedades desen- que a assistência médica soas todos os anos). Essa é E a superpotência cubana
volvidas e com alguns dos garantida deveria estar na uma indicação reveladora do estava novamente pronta
piores resultados. A doutrina Constituição e 40% pensava estado da democracia esta- para ajudar com médicos e
neoliberal desferiu outro que já estava - a Constituição dunidense, como as pessoas equipamentos.
golpe, introduzindo medidas é considerada o repositório o experimentam; e de outra Enquanto isso, seu vizinho
empresariais de eficiência: de tudo o que está obviamen- perspectiva, a força do siste-
dos EUA estava cortando
serviço pontual e um sistema te certo. Houve referendos ma doutrinário criado pelo a ajuda à saúde no Iêmen,
sem gorduras. Qualquer dis- mostrando alto apoio à assis- poder empresarial e seus ser-
onde ajudara a criar a pior
rupção e o sistema entra em tência universal à saúde - até vidores intelectuais. O ataque
crise humanitária do mundo,
colapso. O mesmo se aplica o início da ofensiva através neoliberal intensificou essee aproveitava a oportuni-
à frágil ordem econômica de propaganda empresarial, elemento patológico da cul- dade da devastadora crise
global forjada em princípios alertando para a pesada, se tura nacional, mas as raízesda saúde para reforçar suas
neoliberais. não astronômica, carga tri- são muito mais profundas e sanções cruéis e garantir o
Este é o mundo que Trump butária, da mesma forma que são ilustradas de várias ma-máximo sofrimento entre
herdou. Para aqueles preo- vimos recentemente. Então o neiras, um tópico que vale os inimigos. Cuba é a vítima
cupados em reconstruir uma apoio popular desaparece. muito a pena perseguir. mais antiga, desde os dias
sociedade viável dos destro- Como sempre, há um ele- das guerras terroristas de
ços que restarão desta crise, mento de verdade na propa- # Enquanto alguns países John F. Kennedy e estrangu-
é bom atender ao chamado ganda. Os impostos aumen- europeus estão se saindo lamento econômico, mas so-
taram, mas as despesas totais melhor do que outros no breviveu milagrosamente.
deverão cair acentuadamen- manejo da disseminação A característica distintiva
te, como mostra o registro da COVID-19, os países nas respostas não parece ser
de alguns países. Quanto? que parecem ter tido maior democracias versus autocra-
Existem algumas estimativas sucesso nessa tarefa estão cias, mas sociedades funcio-
sugestivas. principalmente fora do uni- nais versus disfuncionais.
Uma das principais revis- verso neoliberal ocidental.
tas médicas do mundo, The São eles: Cingapura, Coreia Essa entrevista foi publicada
Lancet (Reino Unido), publi- do Sul, Rússia e China. originalmente na revista digital
cou recentemente um estudo Esse fato nos diz algo so- Truth Out e publicado no portal
estimando que a assistência bre os regimes capitalistas da Carta Maior.
universal à saúde nos EUA ocidentais?
“provavelmente levará a uma Houve várias reações à pro-
economia de 13% nas des- pagação do vírus. A própria
pesas nacionais em saúde, China parece tê-la contro-
equivalente a mais de US$ lado, pelo menos por en-
450 bilhões anualmente (com quanto. O mesmo se aplica
base no valor do dólar de aos países da periferia da
2017)”. O estudo continua: China, onde os primeiros

53
“Não vamos fazer nada David Graeber: Aqui, na Grã Bretanha, o governo listou uma
seleção das profissões sistematicamente relevantes — aqueles
e fingir que tudo foi que trabalham nesses cargos e que podem continuar envian-
do seus filhos à escola, para serem cuidados. A lista chama
apenas um sonho?” a atenção pela incrível ausência de consultores de gestão
e de administradores de fundos de investimento! Aqueles
entrevista com David Graeber que mais ganham dinheiro, nem aparecem. A regra básica é:
quanto mais útil é o trabalho, pior ele é pago. Uma exceção
Tradução Simone Paz são, obviamente, os médicos. Mas mesmo assim você poderia
argumentar: no tocante à saúde, a equipe de limpeza nos hos-
Com a quarentena causada pelo coronavírus parte da pitais contribui tanto quanto os médicos, e grande parte do
população está descobrindo que pode trabalhar em casa, sem progresso nos últimos 150 anos veio de uma melhor higiene.
os controles burocráticos, e outros trabalhadores precarizados,
como profissionais da saúde pública ou motoboys de delivery, ×Na França, os empregados dos supermercados — que
se tornaram essenciais. são, especificamente, os mais expostos — agora recebem
um pagamento extra, graças a uma medida do governo.
Os mercados não conseguem regular isso sozinhos…

S erá que o Occupy Home Office vai chegar ao Occupy


Wall Street? Um telefonema com o antropólogo e crí-
tico do capitalismo, David Graeber, que se encontra em
É porque o mercado não é tão baseado assim na oferta e
demanda, como sempre nos disseram: quem faz e em qual
quantidade é uma questão de poder político. A crise atual
Londres e que acredita que nossa vida laboral e nosso sis- deixa ainda mais claro que meu salário não depende de quão
tema econômico nunca mais serão os mesmos depois da útil é a minha profissão.
crise do coronavírus.
×Essa é a questão que você trabalha em seu livro Bullshit
× Zeit Online: Senhor Graeber, de repente, fazer home Jobs [“Empregos de Merda”, em livre tradução]: muitos
office se tornou possível e os caixas dos supermercados dos trabalhos essenciais são mal pagos, enquanto fun-
passaram a ser sistematicamente relevantes. Será que cionários bem remunerados costumam questionar se
a crise do corona está virando nosso mundo laboral de seus trabalhos em escritórios fazem algum sentido ou se
cabeça pra baixo pra sempre? eles estão apenas fazendo um “trabalho de merda”.

bicho coletivo

54
O que eu considero importante é: que eu nunca pensaria ×Isso seria, na realidade, uma visão da situação atual,

×entrevistas×
em contradizer uma pessoa que sente que realiza uma con- certo?
tribuição importante com seu trabalho. Porém, em meu li- Sim. A única questão é: quando a crise acabar, as pessoas
vro, eu dei voz a pessoas que não sentem isso: pessoas que, vão fingir que foi só um sonho? Situações semelhantes fo-
às vezes, estão profundamente frustradas porque gostariam ram observadas após a crise de 2008. Por algumas semanas,
de contribuir com o bem coletivo. Mas, para conseguir o todo mundo dizia “oh! tudo o que pensávamos que era ver-
dinheiro que precisam para sustentar suas famílias, preci- dade não é!”. Questões fundamentais finalmente surgiram:
sam realizar trabalhos que não servem para qualquer um. o que é o dinheiro? o que são dívidas? Mas, em algum mo-
As pessoas me contavam: “eu trabalhava como professor mento, você, do nada, decide: “Chega disso por ora. Vamos
de pré-escola, era um trabalho incrível, importante e que fingir que nada aconteceu. Vamos refazer tudo de novo do
me fazia sentir realizado, mas com o qual eu não conseguia mesmo jeito!” E a política neoliberal e o setor financeiro
pagar minhas contas. E agora trabalho para algum sub-em- continuaram. É por isso que é tão importante que não es-
presário que fornece informações sobre seguros de saúde. queçamos daquilo que finalmente admitimos para nós mes-
Codifico alguns formulários o dia todo, ninguém lê meus mos em tempos de crise — por exemplo, quais empregos
relatórios, mas ganho vinte vezes mais”. são sistemicamente importantes e quais não.

×O que acontece com esses funcionários de escritório David Graeber é um anarquista, antropólogo e professor no
que estão em seus empregos de merda, mas agora a par- Colégio Goldsmith da Universidade de Londres. Anteriormente
tir de suas casas, por causa do coronavírus? foi professor associado na Universidade de Yale. Graeber
Algumas pessoas entram em contato comigo e me falam: participa ativamente em movimentos sociais e políticos, no
eu sempre desconfiei que pudesse fazer meu trabalho em Fórum Econômico Mundial de 2002 e o movimento Occupy
duas horas semanais, mas agora percebo que realmente é Wall Street. Ele é membro do Industrial Workers of the World
assim. Porque assim que você passa a trabalhar em casa, as e faz parte do comitê da Organização Internacional para uma
reuniões que não agregam nada, por exemplo, geralmente já Sociedade Participativa (em inglês: International Organization
não são mais feitas. for a Participatory Society). Este texto foi publicado pelo Zeit.

×Depois da crise financeira de 2008, você se envolveu


com o movimento de protesto Occupy Wall Street, in-
cluindo ativistas que passaram a ocupar um parque
perto da Bolsa de Nova York. A crise do coronavírus po-
deria produzir um movimento de esquerda semelhante?
Um Occupy Home Office?
Se acontecer, o mote será algo como: ocupe o apartamento
em que você mora e não pague mais o aluguel. Agora, fa-
la-se muito nas greves de aluguéis, porque as pessoas não
conseguem mais pagar o aluguel, devido à crise do corona-
vírus. E o verdadeiro ponto é dar suporte aos trabalhadores
mais importantes, sistematicamente, e que não receberam
o equipamento necessário para realizar seu trabalho com
segurança. É de nosso interesse que os trabalhadores da
saúde e os entregadores de delivery tenham equipamentos
de proteção.

×Ao mesmo tempo, nesta crise aprendemos com muita


clareza o papel central do trabalho para nossa socieda-
de: não interessa a quantidade de lugares que as pes-
soas deixam de visitar, elas sempre deverão continuar
trabalhando.
Você percebe isso nas restrições no transporte público: se
você o fecha, primeiro aos fins de semana, você não poderá
mais ir ao parque. Mas Deus não permite que você não pos-
sa mais trabalhar! Embora tenhamos percebido há tempos
que grande parte do trabalho não precise ser realizado no
escritório.

55
Sobre a situação imperativo “ficar em casa”
também deve encontrar e
um prolongamento indefini-
do do mal.
epidêmica e a única lição propor meios para aqueles
que quase não têm “casa” ou
Parece que o desafio da
epidemia está em toda parte
que a COVID pode ensinar mesmo coisa alguma, para
que possam encontrar um
dissipando a atividade in-
trínseca da Razão, obrigando
por Alain Badiou abrigo seguro. Pode-se ima-
ginar, neste caso, uma requi-
os sujeitos a voltar a esses
tristes efeitos – misticismo,
Tradução Daniel Alves Teixeira sição geral dos hotéis. fabulação, oração, profecia e
É verdade que esses deve- maldição – que eram comuns
Devemos tirar proveito desse interlúdio epidêmico e até do res são cada vez mais urgen- na Idade Média quando a
isolamento – inteiramente necessário – para trabalhar em novas tes, mas, pelo menos no exa- praga varria a terra.
figuras da política, no progresso transnacional de um terceiro me inicial, eles não exigem Como resultado, me sinto
estágio do comunismo. grandes esforços analíticos um pouco compelido a reunir
ou a constituição de uma algumas ideias simples. Eu
nova maneira de pensar. as chamaria alegremente de

D esde o início, pensei que


a situação atual, carac-
terizada por uma pandemia
dessa identificação, após a
epidemia de SARS 1, que se
espalhou pelo mundo na pri-
Mas estou lendo e ouvin-
do tantas coisas, inclusive
em meus círculos imediatos,
cartesianas.
Comecemos então definin-
do o problema, que em outros
viral, não era particular- mavera de 2003. Na época, que me desconcertam tanto lugares foi tão mal definido e
mente excepcional. Desde a ela foi chamada “a primeira pela confusão que elas ma- portanto tão mal tratado.
pandemia (viral) da AIDS e doença desconhecida do sé- nifestam como por sua total Uma epidemia é complexa
passando pela gripe aviária, o culo XXI”. É claro então que inadequação à situação – em pelo fato de ser sempre um
vírus Ebola e o vírus SARS 1 – a epidemia atual não é de última análise simples – em ponto de articulação entre
sem mencionar várias gripes, forma alguma o surgimento que nos encontramos. determinações naturais e
o aparecimento de cepas de de algo radicalmente novo Essas declarações peremp- sociais. Sua análise comple-
tuberculose que os antibió- ou sem precedentes. É a se- tórias, apelos patéticos e ta é transversal: é preciso
ticos não podem mais curar, gunda deste tipo neste sécu- acusações enfáticas assumem apreender os pontos nos
ou mesmo o retorno de sa- lo e pode ser situada como a formas diferentes, mas todos quais as duas determina-
rampo – nós sabemos que o primeira descendente. Tanto compartilham um curioso ções se cruzam e extrair as
mercado mundial, combina- é assim que a única críti- desprezo pela formidável consequências.
do com a existência de vastas ca séria que hoje pode ser simplicidade e ausência de Por exemplo, é provável
zonas submedicadas e a falta dirigida às autoridades em novidade da atual situa- que o ponto de apoio inicial
de disciplina global em rela- questão de previsão é não ter ção epidêmica. Alguns são da atual epidemia seja encon-
ção às vacinas necessárias, financiado, após a SARS 1, a desnecessariamente servis trado nos mercados da pro-
produz inevitavelmente epi- pesquisa que teria disponibi- diante dos poderes existen- víncia de Wuhan. Os merca-
demias graves e devastadoras lizado ao mundo da medicina tes, que na verdade estão dos chineses são conhecidos
(no caso da AIDS, vários instrumentos genuínos de simplesmente fazendo o que por sua sujeira perigosa e por
milhões de mortes). Além do ação contra a SARS 2. são obrigados pela natureza seu gosto irreprimível pela
fato de que a atual situação Portanto, não achei que do fenômeno. Outros invo- venda ao ar livre de todos os
de pandemia está tendo um houvesse algo a ser feito cam o planeta e sua mística, tipos de animais vivos, empi-
enorme impacto no antes além de tentar, como todo o que não ajuda em nada. lhados uns sobre os outros.
confortável chamado mundo mundo, me isolar em casa, Alguns colocam toda a cul- Daí o fato de que, em deter-
ocidental – um fato em si e nada a ser dito além de pa no infeliz Macron, que minado momento, o vírus se
mesmo desprovido de qual- incentivar todos os demais simplesmente está fazendo, encontrou presente, em uma
quer significado novo, provo- a fazer o mesmo. A adesão e não pior do que outro, forma animal em si mesma
cando antes lamentos duvi- a uma disciplina rigorosa seu trabalho como chefe de herdada dos morcegos, em
dosos e revoltas idiotas – não nesse ponto é ainda mais Estado em tempos de guerra um ambiente popular muito
vi porque, além das medidas necessária pois fornece su- ou epidemia. Outros fazem denso e em condições de hi-
de proteção óbvias e do tem- porte e proteção fundamen- tom e choram por um evento giene rudimentar.
po que o vírus levaria para tal para todos aqueles que fundador de uma revolução A trajetória natural do ví-
desaparecer na ausência de estão mais expostos: toda a sem precedentes, cuja rela- rus de uma espécie para outra
novos alvos, era necessário equipe médica, é claro, que ção com o extermínio de um transita então para a espécie
subir no cavalo alto. está diretamente na frente e vírus permanece opaca – algo humana. Como exatamente?
Além disso, o verdadeiro que deve poder confiar em pelo qual nossos “revolucio- Ainda não sabemos, e apenas
nome da epidemia em an- uma disciplina firme, inclusi- nários” não estão propondo estudos científicos nos dirão.
bicho coletivo

damento deve sugerir que, ve por parte dos infectados; nenhum novo meio. Alguns Vamos, de passagem, criticar
em certo sentido, estamos mas também todos os mais afundam no pessimismo apo- todos aqueles que circulam
lidando com um “nada frágeis, como os idosos, es- calíptico. Outros estão frus- fábulas tipicamente racistas
de novo sob o sol con- pecialmente aqueles em ca- trados porque o “eu primei- on-line, respaldadas por ima-
temporâneo”. Esse nome sas de repouso; assim como ro”, a regra de ouro da ideo- gens falsificadas, segundo as
verdadeiro é SARS 2, que todos aqueles que precisam logia contemporânea, neste quais tudo decorre do fato de
é “Síndrome Respiratória trabalhar e correr o risco de caso é desprovida de inte- os chineses comerem morce-
Aguda Grave 2”, um nome contágio. A disciplina daque- resse, não fornece socorro e gos quando ainda estão quase
que sinaliza a “segunda vez” les que podem obedecer ao pode até parecer cúmplice de vivos.…

56
Esse trânsito local entre elo – primeiro por uma razão em pelo menos sete estados populares, como é de se es-

×ensaios filosóficos×
espécies animais que final- arcaica, depois moderna – en- diferentes. E, no entanto, perar, mas à própria burgue-
mente chega aos seres huma- tre uma interseção sociedade- os poderes políticos perma- sia, restrições consideráveis,
nos é o ponto de origem de -natureza em mercados mal necem essencialmente de tudo para salvar o capitalis-
toda a questão. Depois disso, conservados que seguiram tipo nacional. E a rivalidade mo local. Algumas indústrias
simplesmente opera um costumes mais antigos, por entre imperialismos, anti- são quase nacionalizadas
dado fundamental do mundo um lado, e uma difusão plane- gos (Europa e EUA) e novos em prol de uma produção
contemporâneo: a ascensão tária deste ponto de origem (China, Japão…), exclui qual- desenfreada de armamentos
do Capitalismo de Estado sustentado pelo mercado quer processo que conduza a que não gera imediatamente
Chinês à posição imperial, ou mundial capitalista e sua de- um estado mundial capitalis- nenhuma mais-valia mone-
seja, uma presença intensa e pendência de mobilidade rá- ta. A epidemia também é um tária. Muitos burgueses são
universal no mercado mun- pida e incessante, por outro. momento em que a contradi- mobilizados como oficiais e
dial. De onde inúmeras redes Depois disso, entramos no ção entre economia e política expostos à morte. Os cien-
de difusão, evidentemente estágio em que os estados se torna flagrante. Mesmo os tistas trabalham noite e dia
antes que o governo chinês tentam localmente reprimir países europeus não estão para inventar novas armas.
fosse capaz de isolar comple- essa difusão. Observemos de conseguindo prontamente Inúmeros intelectuais e artis-
tamente o ponto de origem, passagem que essa determi- ajustar suas políticas diante tas são compelidos a fornecer
qual seja, uma província nação permanece fundamen- do vírus. propaganda nacional, etc.
inteira com 40 milhões de talmente local, enquanto a Preso a essa contradição, Diante de uma epidemia,
habitantes – algo que final- epidemia é antes transversal. os estados nacionais tentam esse tipo de reflexo estatista
mente conseguiu fazer, mas Apesar da existência de al- enfrentar a situação epidê- é inevitável. É por isso que,
tarde demais para impedir a gumas autoridades transna- mica, respeitando o máximo ao contrário do que alguns
epidemia de se espalhar – e cionais, é claro que são os possível os mecanismos do dizem, as declarações de
os aviões e os navios – da estados burgueses locais que Capital, embora a natureza do Macron ou do primeiro-
existência global. estão na linha de frente. risco os obrigue a modificar o -ministro Edouard Philippe
Considere um detalhe Tocamos aqui em uma estilo e as ações do poder. sobre o retorno do estado de
revelador do que chamo de grande contradição do mun- Sabemos há muito tempo “bem-estar”, de gastos para
dupla articulação de uma do contemporâneo. A eco- que, no caso de uma guerra apoiar as pessoas fora do
epidemia: hoje, a SARS 2 foi nomia, incluindo o processo entre países, o Estado deve trabalho ou para ajudar os
sufocada em Wuhan, mas de produção em massa de impor, não apenas às massas trabalhadores independentes
há muitos casos em Xangai, objetos manufaturados, está
principalmente devido a pes- sob a égide do mercado mun-
soas, geralmente chinesas, dial – sabemos que a simples
procedentes do exterior. A montagem de um telefone
China é, portanto, um local celular mobiliza trabalho e
no qual se pode observar o recursos, inclusive minerais,

57
cujas lojas foram fechadas, imaginado, o surgimento de guerras do passado apenas terceiro estágio do comu-
exigindo 100 ou 200 bilhões uma pandemia desse tipo desencadearam revoluções nismo após o brilhante mo-
dos cofres do estado e até o na França, exceto talvez por em dois casos, que podem mento de sua invenção e o
anúncio de “nacionalizações” alguns cientistas isolados. ser denominados “outliers” – interessante, mas no limite
– nada disso é surpreendente Muitos provavelmente pen- em relação às potências im- derrotado – estágio de sua
ou paradoxal. Segue-se que saram que esse tipo de coisa periais da época: Rússia e experimentação estatista.
a metáfora de Macron, “es- era para a África escura ou China. No caso russo, isso Também precisaremos
tamos em guerra”, é correta: para a China totalitária, mas ocorreu porque o poder cza- passar por uma crítica rigo-
em guerra ou epidemia, o não para a Europa democrá- rista era, em todos os senti- rosa de todas as perspectivas
estado é compelido, às vezes tica. E certamente não são dos, e foi por muito tempo, segundo as quais fenômenos
ultrapassando o curso natu- os esquerdistas – ou gilets retrógrado, inclusive como como epidemias podem fun-
ral de sua natureza de classe, jaunes ou mesmo os sindi- um poder potencialmente cionar sozinhos na direção de
a adotar práticas mais auto- calistas – que gozam de um adaptado ao nascimento algo politicamente inovador.
ritárias e mais geralmente direito particular de defender de um capitalismo genuíno Além da transmissão geral
direcionadas, para evitar uma esse ponto e de continuar a naquele imenso país. E con- de dados científicos sobre a
catástrofe estratégica. fazer barulho sobre Macron, tra ela existia, na forma dos epidemia, uma carga política
Essa é uma consequên- seu alvo irrisório nos últimos bolcheviques, uma vanguarda só será carregada por novas
cia inteiramente lógica da tempos. Eles também não ti- política moderna, fortemen- afirmações e convicções re-
situação, cujo objetivo é nham absolutamente previs- te estruturada por líderes lativas a hospitais e saúde
sufocar a epidemia – para to isso. Pelo contrário, com a notáveis. No caso chinês, a pública, escolas e educação
vencer a guerra, emprestando epidemia já a caminho vindo guerra revolucionária interna igualitária, atendimento a
mais uma vez a metáfora de da China, eles multiplicaram, precedeu a guerra mundial, e idosos e outras questões
Macron – com a maior cer- até muito recentemente, as- o Partido Comunista Chinês desse tipo. Somente estes
teza possível, mantendo-se sembleias descontroladas e já estava, em 1940, à frente podem talvez ser articulados
dentro da ordem social esta- manifestações barulhentas, o de um exército popular que com um balanço das perigo-
belecida. Isso não é motivo que deveria desqualificá-los havia sido experimentado e sas fraquezas sobre as quais a
de riso, é uma necessidade hoje, quem quer que sejam, testado. Por outro lado, em situação atual lançou luz.
imposta pela difusão de um de condenar em voz alta os nenhum poder ocidental a De passagem, é preciso
processo letal que cruza a atrasos dos poderes existen- guerra desencadeou uma re- mostrar publicamente e sem
natureza (daí o papel pree- tes em tomar todas as medi- volução vitoriosa. Mesmo no medo que as chamadas “mí-
minente dos cientistas no das necessárias contra o que país derrotado em 1918, na dias sociais” demonstraram
assunto) e a ordem social está acontecendo. Verdade Alemanha, a insurreição es- mais uma vez que são acima
(de onde a intervenção auto- seja dita, nenhuma força partaquista foi rapidamente de tudo – além de seu papel
ritária, e não poderia ser de política na França realmente esmagada. em engordar os bolsos dos
outra forma, do Estado). tomou essa medida antes do A lição a ser tirada disso é bilionários – um lugar para a
É inevitável que algumas estado macroniano. clara: a epidemia em anda- propagação da paralisia men-
lacunas maciças apareçam Do lado desse Estado, a mento não terá, como epide- tal dos fanfarrões, rumores
no meio desse esforço. situação é do tipo em que o mia, nenhuma consequência descontrolados, a descoberta
Considere a falta de máscaras Estado burguês deve expli- política dignas de nota em um de “novidades” antediluvia-
protetoras ou o despreparo citamente, publicamente, país como a França. Mesmo nas, ou mesmo obscurantis-
em termos da duração do fazer prevalecer interesses supondo que nossa burguesia mo fascista.
isolamento hospitalar. Mas que, em certo sentido, são – à luz dos slogans incômo- Não vamos dar credibilida-
quem pode realmente se mais gerais do que os da bur- dos, frágeis e difusos – acre- de, mesmo e especialmente
gabar de ter “previsto” esse guesia, enquanto preserva dite que chegou o momento em nosso isolamento, exceto
tipo de coisa? Sob certos as- estrategicamente, no futuro, de livrar-se de Macron, isso às verdades controláveis
pectos, o estado não impediu a primazia dos interesses de de modo algum representará pela ciência e às perspectivas
a situação atual, é verdade. classe dos quais esse estado qualquer mudança digna de fundamentadas de uma nova
Podemos até dizer que, ao representa a forma geral. Em nota. Os candidatos “politi- política, de suas experiências
enfraquecer, década após outras palavras, a conjuntura camente corretos” já estão localizadas e de seus objeti-
década, o sistema nacional obriga o Estado a adminis- esperando nos bastidores, vos estratégicos.
de saúde, junto com todos os trar a situação, integrando assim como os defensores da
setores do estado que aten- o interesse da classe cuja forma mais mofada de um Alain Badiou é um filósofo,
dem ao interesse geral, agiu autorização representativa “nacionalismo” tão obsoleto dramaturgo e novelista francês
como se nada parecido com ela possui com os interesses quanto repugnante. nascido no Marrocos. É
uma pandemia devastadora mais gerais, devido à existên- Quanto aos que desejam conhecido por sua militância
pudesse afetar nosso país. cia interna de um “inimigo” uma mudança real nas con- maoísta, por sua defesa do
Nesta medida, o estado é que é ele próprio geral – em dições políticas deste país, comunismo e do trabalhadores
muito culpado, não apenas tempos de guerra este pode devemos tirar proveito desse estrangeiros em situação
em seu veste de Macron, mas ser um invasor estrangeiro, interlúdio epidêmico e até irregular na França. Este texto
no de todos os que vieram enquanto na situação atual é do isolamento – inteiramen- foi traduzido por Daniel Alves
antes dele pelo menos nos o vírus SARS. te necessário – para traba- Teixeira e publicado no blog
últimos trinta anos. Esse tipo de situação lhar em novas figuras da comunista do Lavrapalavra.
No entanto, é correto (guerra mundial ou epidemia política, no projeto de novos
observar aqui que ninguém mundial) é especialmente locais da política, e no pro-
havia previsto, ou mesmo “neutra” no nível político. As gresso transnacional de um

58
A religião e a peste

reprodução

×ensaios filosóficos×
por Giorgio Agamben
Tradução Pedro Levi Bismarck e
Luhuna Carvalho
Estamos vivendo o colapso evidente de qualquer convicção
ou fé comum. Precisamos estar atentos pois é do medo que
surgem a tirania do Leviatã.

A s reflexões que se seguem não dizem respeito à


epidemia, mas ao que podemos compreender das
reacções dos homens frente a ela. Trata-se, isto é, de reflectir
sobre a facilidade com que uma sociedade inteira aceitou
sentir-se contaminada, isolar-se em casa e suspender as suas
condições normais de vida, as suas relações de trabalho, de
amizade, de amor e até mesmo as suas convicções religiosas
e políticas. Porque não tiveram lugar, como era possível
imaginar e como habitualmente sucede nestes casos,
protestos e oposições?
A hipótese que gostaria de sugerir é que de alguma forma,
ainda que inconscientemente, a peste já existia, e que,
evidentemente, as condições de vida das pessoas tinham-se
tornado tais que foi suficiente um sinal repentino para que
estas surgissem pelo que eram – isto é, intoleráveis, como
uma peste. E este, de certa maneira, é o único fato positivo
que pode ser extraído da atual situação: é possível que, mais
tarde, as pessoas comecem a se perguntar se o modo como
viviam era o certo.
E aquilo sobre o qual não devemos deixar de refletir é a
necessidade de religião em situações como esta. É indício
de tal, no discurso insistente da mídia, a terminologia
tomada de empréstimo ao vocabulário escatológico que, para
descrever o fenómeno, usa obsessivamente, sobretudo na
imprensa norte-americana, a palavra “apocalipse” e invoca,
explicitamente, o fim do mundo. É como se a necessidade
religiosa, que a Igreja já não está em condições de satisfazer,
procurasse às escuras um outro lugar de consistência e
o encontrasse naquilo que é, de fato, a religião do nosso
tempo: a ciência.
Esta, como qualquer religião, pode produzir superstição
e medo ou ser usada para disseminá-los. Nunca antes se Uma outra coisa sobre a qual devemos pensar é o colapso
assistiu ao espectáculo, típico das religiões nos momentos de evidente de qualquer convicção ou fé comum. Dizem que
crise, de opiniões e prescrições diferentes e contraditórias, os homens não acreditam em nada – exceto na existência
que vão desde a posição minoritária herética (também biológica nua que deve ser salva a qualquer custo. Mas sobre
representada por cientistas de prestígio) daqueles que o medo de perder a vida só uma tirania pode ser fundada, só
negam a seriedade do fenómeno até ao discurso ortodoxo o monstruoso Leviatã com a sua espada desembainhada.
dominante que o afirma e, no entanto, diverge radicalmente Por isto – quando a emergência, a peste, for declarada
na forma de lidar com ele. terminada, se isso alguma vez acontecer –, não penso que,
E, como sempre nesses casos, alguns especialistas pelo menos para aqueles que mantiveram o mínimo de
conseguem garantir o favor do monarca, que, tal como na lucidez, seja possível voltar a viver como antes. E esta é
época das disputas religiosas que dividiam o cristianismo, talvez hoje a coisa mais desesperante – mesmo que, como
toma partido de acordo com os seus interesses por uma já foi dito, “só a quem já não tem esperança, foi alguma vez
corrente e impõe a sua medida. dada a esperança”.

Giorgio Agamben é filósofo e ficou conhecido por seus


livros sobre “Estado de exceção”. Este texto foi publicado
originalmente no site da Quodlibet.

59
Não existe solidariedade diversa, revelando coisas
que antes estavam
sem conflito escondidas. Fisher diria
que ela permite “Se
por Niccoló Barca recuperar de um certo
tipo de paralisia metal”.
Tradução Manuela Beloni Mas isso não significa
necessariamente uma
Nas últimas décadas, a narrativa de que “não há alternativa” mudança. Na maioria das
se tornou hegemônica e as crises deixaram de ser o momento vezes, as crises servem
esperado pelos revolucionários e transformaram-se numa para legitimar aquilo
oportunidade para silenciar as lutas. Será esse o caso novamente que a antecipava. O caos
mesmo que a pandemia esteja provando que nossos programas transforma a ordem em
que, até ontem, eram impensáveis estão sendo implantados em algo a ser desejado.
questão de horas para salvar o maior número de vidas? É tarefa da mídia manter
essa fábula de pé. Assim
como em 2008 a busca
pelas maçãs podres serviu

A crise sempre foi


um objeto de
desejo para a esquerda.
como uma oportunidade, como objetivo para salvar
um Estado de exceção a
ser usado em benefício
o sistema financeiro de
uma crítica estrutural, a
A sua inevitabilidade próprio. Na Rússia após suposta universalidade
garantia uma abertura a queda do Muro de dessa crise serve para
a possibilidades Berlin isso funcionou ocultar os interesses
revolucionárias, perfeitamente: a riqueza econômicos que ditam
inspirando otimismo gerida por poucos em sua administração e as
em todos aqueles que nome de uma coletividade desigualdades que ela
estavam acostumados com foi, de um dia ao outro, expõe. Stuart Hall dizia
a derrota. Mesmo anos transferida para as mãos que o processo através do
depois dos ensinamentos de poucos para ser usada qual a grande imprensa
Karl Marx terem perdido em função de si mesmos. dá significado aos eventos
a centralidade, cada crise Nova Orleans, destruída presume e constrói a ideia
era usada para escrever pelo furacão Katrina, de uma sociedade baseada é reforçada e a oligarquia
epitáfios sobre o fim do se transformou em um no consenso. Existimos se declara democrática.
capitalismo. “Dessa vez é enorme laboratório de enquanto sociedade “Estamos todos no mesmo
para valer”. privatização dessa mesma porque compartilhamos de barco”. Assim, um retorno
“Não foi dessa vez”. escola. A crise econômica paradigmas culturais que a normalidade é simulado
Como dizia Mark Fisher, permitiu ao Fundo nos permitem interpretar em uma Itália com mais
sobre a crise de 2008. Monetário Internacional a realidade de maneira de 5 milhões de pessoas
Longe de provocar o e ao Banco Mundial a comum. No interior dessa em situação de pobreza
fim do capitalismo, a imposição de uma relação sociedade aquilo que nos absoluta, onde todos os
crise reafirmou o mantra de dependência colonial une é sempre maior do que dias 3 pessoas morrem no
central do realismo ao mundo. aquilo que nos divide; o local de trabalho, onde
capitalista: “There is Áquila, 2009: “Nessa consenso deriva do fato de 1 casa em cada 4 está
no Alternative – Não madrugada, às 3:32 eu ria que não existem conflitos vazia e os sem-teto se
há alternativa”. Tomar deitado na minha cama”. e interesses entre classes e multiplicam. Eles querem
o controle dos bancos? («Stamattina alle 3:32 grupos sociais, e que para nos convencer de que o
Impensável. Transferir o ridevo dentro al letto» qualquer dissidência existe medo de ficar sem comida
dinheiro público para o – foi a frase ouvida em um veículo legal a ser ou sem-teto – a miséria
bolso de alguns poucos? uma conversa telefônica resolvido. de uma vida de incertezas
Por que não? entre Francesco Maria Nas páginas dos – sejam sintomas de
Não nos demos De Vito Piscicelli e um grandes jornais, na TV, uma emergência e não a
conta de que, no meio tal de Gagliardi, sobre o nas palavras dos grandes emergência em si.
tempo, o capital havia terremoto que atingiu e influencers (sinal de uma Enquanto isso pequenos
se especializado na devastou Áquila, cidade crise de legitimidade e grandes gestos,
gestão da crise. Milton italiana, na madrugada da classe política); em voluntariado e flash mobs
Friedman dizia aos seus de 06 de abril de 2009, todos os lugares se nos fazem lembrar o valor
Chicago Boys: “Se querem deixando mais de 300 apela abertamente ou de um tecido social que
forçar uma mudança mortos e 1.600 feridos). nas entrelinhas para um está sob o ataque das
comecem uma crise”. Cada crise abre uma senso de solidariedade privatizações nos últimos
No Chile dos anos 70 fenda nos pilares já nacional por uma crise 30 anos. A Confederação
essas palavras foram danificados de nossa que não faz distinção de Geral da Indústria Italiana
usadas ao pé da letra. Em sociedade. De vez em classe ou de raça. A ideia reluta em fazer o mínimo
outros lugares a crise foi quando essa fenda nos da suposta paridade entre indispensável para
tratada simplesmente apresenta uma perspectiva governantes e governados garantir a segurança dos

60
reprodução
Isso não significa entregar- 100 mil pessoas. No

×ensaios filosóficos×
se ao derrotismo, mas ao fim, foi aberto um
contrário, compreender espiral de crescimentos
essa crise pelo que ela e bem estar estatal
é: um aviso trágico, mas sem precedentes para
sempre um aviso. certas forças políticas,
Cada crise abre um reforçando retóricas
terreno de luta entre nacionalistas e xenófobas:
forças que nenhuma uma combinação de
“solidariedade nacional” progressismo econômico
pode conciliar, entre um e conservadorismo social
capital cada vez mais que deveria fazer disparar
experiente na gestão da os alarmes a qualquer um
crise e uma maioria de que tenha um mínimo
pessoas para as quais cada de memória histórica.
crise não representam A aposta, como sempre,
mais do que um novo tipo é alta; se não se oferece
de sacrifício. Mas, há um uma leitura alternativa
mês atrás, alguma coisa para a crise e como sair
mudou. Os programas dela seremos obrigados a
que, até ontem, eram olhar para trás e admitir:
impensáveis estão sendo “Mais uma vez ‘não foi pra
implantados em questão valer’”.
de horas porque existe
uma vontade política para Niccoló Barca é jornalista
implantá-los. O Estado freelancer e colabora com
está entrando em jogo a Jacobin Itália. Estuda no
em todos os lugares, Departamento de Mídia e
resolvendo problemas comunicação da Universidade
de Goldsmiths, Londres.
que o mercado havia
Pesquisa movimentos sociais
prometido resolver.
e participação política.
Estamos nos lembrando
próprios trabalhadores. para o COVID-19 estaria do valor dos bens públicos
A Amazon e a Whole Foods a um estágio bem mais e da importância de vários
pedem para que seus avançado se os fundos trabalhos – enfermeiros,
empregados “saudáveis” para o estudo da SARS não operários – degradados
doem suas licenças tivessem sido cortados por um sistema que
médicas aos contagiados. após a passagem desta recompensa quem “faz
Companhias cheias última epidemia. A cura por si” e pune que faz pela
de dinheiro demitem dos doentes seria menos coletividade.
seus funcionários, pois, caótica se os números de Uma certa paralisia
este é o momento de leitos – de 9,22 para cada cerebral está se
competir e ganhar dos 1000 habitantes em 1980 desfazendo, mas não
adversários que estão para 2,5 de hoje na Itália parece ter uma força
em pior situação. Nos – não houvessem sido política capaz de
céus voam somente os reduzidos. colher na sua essência
jatos privados dos super Corremos o risco de, a potencialidade dessa
ricos. Maria Elena Boschi de novo, nos agruparmos crise e de articular suas
convida não sei quem a em volta de um corpo contradições. As apostas,
arrumar os buracos pelas ensanguentado em um como sempre, são altas.
ruas de Roma. “Já que lado da rua enquanto o O medo do outro, o
nós já estamos em casa culpado pelo acidente pedido por segurança, o
mesmo…”. foge sem ser notado. sentimento de traição em
A mesma lógica E enquanto estamos relação a União Europeia:
proeminente da observando alguém já a direita soberana
exploração que dita esses destruiu e reconstruiu a saberá desfrutar desses
comportamentos está na rua, o bairro, a cidade. O sentimentos a seu próprio
base da incapacidade de fechamento das fronteiras, favor?
gerir a pandemia, onde os o exército pelas cidades, as No meio tempo, a crise
mortos são vendidos como corridas ao supermercado: das pequenas empresas
um fenômeno natural, quem pensa que são em todos os lugares dará
enquanto, na verdade, momentos excepcionais oportunidade aos gigantes
são consequências de ainda não tem muito claro de ampliar ainda mais seus
decisões políticas. A o futuro de emergências monopólios; nos últimos
pesquisa de uma vacina climáticas que nos espera. dias a Amazon contratou

61
Livros para ler na quarentena!

autonomialiteraria.com.br
n-1edicoes.org
boitempoeditorial.com.br

62
A REVOLUÇÃO NÃO
SERÁ STREMADA
Leia literatura e análises no impresso, o melhor antídoto
contra as fake news e as milícias digitais.
63

Você também pode gostar