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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

Thaís Mendes Geraldini


Matrícula: 55930

Inferências sobre o Instituto Municipal de Educação e Pesquisas


a partir da biografia Relógio do Tempo

História da Cultura: teoria e historiografia

Linha de pesquisa: Poder, Cultura e Saberes

Profa. Dra. Mariana Villaça

Guarulhos
2016
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1
TRAJETÓRIA INDIVIDUAL E CONCEITO DE INTELECTUAL: APROXIMAÇÕES 1
“BIOGRAFIA MODAL” E “REDE DE SOCIABILIDADE”: UMA POSSIBILIDADE DE
ANÁLISE A PARTIR DO LIVRO RELÓGIO DO TEMPO 3
CONSIDERAÇÕES FINAIS 10
BIBLIOGRAFIA 12
Introdução
Dentro dos conceitos e debates que envolvem a História da Cultura, as que chamaram
mais atenção foram os embates entre as contribuições sociológicas de Pierre Bourdieu para a
área de História, bem como o conceito de “intelectual”, e as possibilidades de entrecruzá-lo
com a “trajetória” de um indivíduo. Por me concentrar na História da Educação e ter como
objeto de pesquisa o Instituto Municipal de Educação e Pesquisas – IMEP -, as temáticas
citadas acima pareciam levar para caminhos convergentes.
A título de apresentação, o IMEP foi criado na cidade de São Paulo no ano de 1969
com o objetivo de promover a integração do ensino primário e o secundário. Procurando
acabar com o funil representado pelo exame de admissão entre o ensino primário e o ensino
ginasial, o Instituto deveria fazer sua formação de professores que iriam levar esse novo
modelo de ensino para as demais escolas municipais da capital utilizando-se, para tanto,
classes experimentais de aplicação. A experiência do Instituto, porém, durou apenas três anos,
vindo a ser transformado numa escola logo após a promulgação da lei de reforma do ensino –
nº 5692 de 1971, a Escola Municipal Celso Leite Ribeiro Filho.
Uma das documentações mais intrigantes deste momento da pesquisa diz respeito ao
livro Relógio do Tempo: perfil biográfico do educador Paulo Nathanael Pereira de Souza,
escrito por Yvonne Capuano. Acredito que por meio deste documento seja possível inferir
sobre o funcionamento interno do instituto, partindo da memória de um de seus principais
agentes.
Para este intento, recorrerei às concepções de “biografia”, de Pierre Bourdieu e
Giovanni Levi e entrecruzando com o conceito de “intelectual”, a partir da interpretação de
Jean-François Sirinelli.

Trajetória individual e conceito de intelectual: aproximações


Um autor me parece essencial para discutir o uso da biografia pela história, bem como
seu uso pelas historiadoras e pelos historiadores. É Pierre Bourdieu, em “A ilusão biográfica”,
que percorre a problemática de se escrever uma biografia, como se esta pudesse abarcar o
todo da vida de uma pessoa.
Advertindo, mas também dando bases para se fazer uma história sem cair na armadilha
de achar que um relato narra a ordem como as coisas realmente aconteceram, Bourdieu
ressalta que
O relato, seja ele biográfico ou autobiográfico, como o do investigado que „se entrega‟ a um
investigador, propõe acontecimentos que, sem terem se desenrolado sempre em estrita

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sucessão cronológica (quem já coligiu historias de vida sabe que os investigados perdem
constantemente o fio da estrita sucessão do calendário), tendem ou pretendem organizar-se
em sequencias ordenadas segundo relações inteligíveis (BOURDIEU, 1996, p. 184).
Isto porque, assim como a escrita biográfica escolhe determinados acontecimentos da vida, a
pessoa investigada também faz uma escolha a partir da sua própria memória. De certa forma,
esta teoria da “ilusão biográfica” se aproxima da forma como trabalhamos a história oral.
Tomando de empréstimo as palavras de Alessandro Portelli:
Um informante pode relatar em poucas palavras experiências que duraram longo tempo ou
discorrer minuciosamente sobre breves episódios. Estas oscilações são significativas,
embora não possamos estabelecer uma norma geral de interpretação: apoiar-se em um
episódio pode ser um caminho para salientar sua importância, mas também pode ser uma
estratégia para desviar a atenção de outros pontos mais delicados (PORTELLI, 1997, p.
29).
Condensando estes dois pensamentos, é possível pensar que a narrativa de um sujeito
se define a partir, também, do seu interlocutor, investigador ou entrevistador. Afinal, este
também carrega consigo suas dúvidas e anseios. Isto faz com que o relato oral seja uma forma
de o entrevistado revisitar seu passado: o que fez e/ou o que pensou ter feito num determinado
momento.
A resposta de Pierre Bourdieu para o impasse da biografia está nas ideias de
“paisagem” ou “construção do espaço” (p. 190), ou seja, no que ele entende por “trajetória”
do sujeito. É neste momento que ele faz uso do conceito de “campo”: “o sentido dos
movimentos que conduzem de uma posição a outra evidentemente se define na relação
objetiva entre sentido e valor, no momento considerado, dessas posições num espaço
determinado” (BOURDIEU, 1996, p. 190).
Apesar de concordar com o conceito de “trajetória” trazido por este autor, fica clara
sua idéia de que os sujeitos são condicionados e restritos em suas ações pelo “campo” em que
podem ou podiam atuar. Isso pode dificultar a interpretação de um relato oral, à medida que o
sujeito fica delimitado num espaço. Sem descartar as contribuições do sociólogo francês,
vejo a possibilidade de relacionar o conceito de “trajetória” ou paisagem, com o contexto
histórico do sujeito.
Levando em consideração o trabalho do historiador francês Jean-François Sirinelli
sobre a história dos intelectuais, penso ser razoável intersectar os conceitos de dois grupos
aparentemente antagônicos, quais sejam os da Teoria do Campo (Pierre Bourdieu) e o do
contextualismo clássico (Jean-François Sirinelli e Roger Chartier) para problematizar a
biografia e deixar mais clara a importância de um trabalho consciente de história oral ao longo
da minha pesquisa.

2
Sendo assim, me parece plausível relacionar a “trajetória” com os “itinerários” de um
intelectual. De acordo com Sirinelli, tentar definir o que é um intelectual seria um falso
problema. Para definir este conceito, é preciso “fechar a lente” (p. 243), ou seja, fazer um
recorte, destituir a ideia de “gênio” e pensar o sujeito em seu próprio tempo, sua “rede de
sociabilidade”, sua “geração” e, portanto, sua conjuntura determinada. Como ele se torna uma
autoridade em determinado assunto e ganha autonomia, a qual seria instituída pela mídia e
pela imprensa.
Todo grupo de intelectuais organiza-se também em torno de uma sensibilidade ideológica
ou cultural comum e de afinidades mais difusas, mas igualmente determinantes, que
fundam uma vontade e um gosto de conviver. São estruturas de sociabilidade difíceis de
apreender, mas que o historiador [ou historiadora] não pode ignorar ou subestimar
(SIRINELLI, 2003, p. 248).
Não pretendo trabalhar com um grupo de intelectuais, e sim somente tentar visualizar
o educador Paulo Nathanael Pereira de Souza enquanto um intelectual que esteve à frente da
criação de um instituto na cidade de São Paulo no final dos anos de 1960. Compreendo que, a
partir do seu relato de memória seja praticável desenvolver inferências sobre o funcionamento
do instituto: entrever os motivos que levaram para sua transformação em uma escola, bem
como a difusão de suas práticas, as quais influenciaram a reforma educacional de 1971.

“Biografia modal” e “rede de sociabilidade”: uma possibilidade de análise a


partir do livro Relógio do Tempo
Antes de passar propriamente para a análise do livro Relógio do Tempo, é relevante
explicar o contexto de criação do instituto e como o sujeito aqui elencado, o professor Paulo
Nathanael Pereira de Souza se engendra nesta trama.
O Instituto Municipal de Educação e Pesquisas, o IMEP, foi criado em 1969 a partir
da prescrição da Lei de Diretrizes e Bases de 1961 e tinha entre seus objetivos a formação de
professores que deveriam atuar nas escolas municipais, bem como o desenvolvimento de
classes experimentais que integrassem o ensino primário ao ginasial num único ciclo
formativo de oito anos, abolindo os exames de admissão e possibilitando o acesso público e
gratuito ao ensino formal para crianças e jovens na faixa dos sete aos quatorze anos de idade.
A criação do Instituto era apresentada pelo Departamento do Ensino Municipal como uma
atitude pioneira frente às prerrogativas do ensino do Estado em tempos de reforma
educacional, mas também vinha na esteira de um lento processo de ampliação da
escolarização do ensino secundário que remete aos anos 1940 pelo menos no Estado e,
especificamente, na cidade de São Paulo.

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A frente desta criação e de alguns cursos que teriam sido dados para a formação
docente dentro do instituto estava o professor Souza. Ele é formado em economia, mas
também lecionou história durante sua carreira docente. Durante o período de 1969 e 1971
esteve à frente de cargos de direção de ensino tanto do município de São Paulo quanto do
Estado. Após sua passagem pelo Departamento Municipal, sua carreira na área educacional
deu continuidade ao se tornar Conselheiro Estadual de Educação por São Paulo. Foi também
membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) por São Paulo. Foi Presidente
do Centro do Professorado Paulista (CPP) e presidente da Comissão de Moral e Civismo de
São Paulo (1971 apud MARTINS, 2000, p. 201).
Atualmente, o educador exerce a função de “Patrono Acadêmico” dos Corretores de
Imóveis no Sindicato dos Corretores de Imóveis no Estado de São Paulo (Sciesp). Esta
mudança de área de atuação pode parecer intrigante e repentina, mas também abre brechas
para explicar suas omissões com relação ao instituto investigado na pesquisa.
Para poder inferir sobre isto, é necessário recorrer à análise do livro a partir de sua
materialidade: quem o escreveu e quando, quantas páginas possui, como foi feita a
organização de seu sumário, que outros sujeito aparecem para referendar a escrita do livro,
etc. Ao estudar as práticas de leitura, Roger Chartier explica que “inúmeros textos pretendem,
abertamente, negar sua própria condição de discurso com a finalidade de produzir, no nível
prático, comportamentos ou práticas considerados legítimos ou úteis (CHARTIER, 1992, p.
232).
Sendo assim, o texto ou o livro possuem uma intenção para além daquela de informar
algo sobre alguém, como é o caso da biografia. O livro Relógio do Tempo: perfil biográfico
do educador Paulo Nathanael Pereira de Souza tem como capa a figura de um maquinário de
relógio em movimento, no formato de um esboço de um desenho ainda não terminado. Faz
alusão, possivelmente, a vida do professor, que ainda transcorre e não pararia: estaria sempre
fazendo algo novo em algum lugar diferente.
Yvonne Capuano é descrita na orelha da contracapa da seguinte forma: “nasceu em
São Paulo, em 1936. Formou-se médica, é mestre em Educação, acadêmica, conselheira de
várias entidades [não são ditas quais], pesquisadora e autora de trabalhos biográficos e
acadêmicos”. A autora, não por acaso, fez parcerias com Souza, principalmente no Centro de
Integração Empresa-Escola (CIEE), de acordo com o próprio professor.
A fala da autora também aparece na contracapa do livro, juntamente com outros
personagens. Todos eles presidentes eméritos ou do conselho consultivo da Sciesp em

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diferentes gestões, entre 1992 e 2007. Uma dessas falas, a de Odil Baur de Sá, Presidente
Emérito durante a gestão 1992 a 1998, chamou bastante atenção: “considero-me culto e
inteligente, porém, devo admitir que, após a leitura completa desta obra, meu intelecto se
apequenou na minha vasta ignorância, ante a enorme estatura moral e intelectual desse grande
homem, Paulo Nathanael Pereira de Souza”.
Estas falas de exaltação à vida do professor são próprias de um discurso que procura
enaltecer um sujeito. Porém, mais que isso, também constrói o papel de intelectual: uma
autoridade e uma pessoa autorizada a tratar de determinado assunto ou área de conhecimento,
no caso, a educação.
Relógio do Tempo possui 190 páginas, sua primeira edição é de 2013, publicado pela
Miró Editorial, em São Paulo. Seu sumário foi dividido entre o “Prefácio”, escrito por
Alexandre Marques Tirelli (presidente do Sindicato dos Corretores de Imóveis no Estado de
São Paulo e chanceler da UNISciesp – Universidade Corporativa dos Corretores de Imóveis);
“Tempo de reminiscências”, de autoria do próprio biografado, “Biografia”, com 19 capítulos;
seguido das “Obras publicadas por Paulo Nathanael Pereira de Souza”, “Caderno de fotos” e,
por último, “Sobre a autora”.
De acordo com o presidente da Sciesp, o livro seria uma homenagem ao “Patrono
Acadêmico”, por ter ajudado a regularizar a profissão de corretor quando ocupava uma
cadeira do Conselho Federal de Educação, em 1976, e por ter criado a primeira Universidade
Corporativa (a UNISciesp), em 2002. Por aí é plausível pensar numa trajetória que se formou
e que possibilitou, anos depois, a ocupação de um cargo emérito no sindicato.
Em “Tempo de reminiscências”, o próprio biografado conta sobre a experiência de ter
um livro sobre sua vida. Por ter atuado também como professor de História, ele parece saber a
seletividade que é trabalhar com este gênero de texto. E se vale disso para legitimar certa
memória e apagar outra, conforme exposto acima por Portelli. Assim, Souza aponta que:
“Claro que nem tudo pode ser dito, parte porque a memória, à medida que o tempo passa, vai
ficando cada vez mais esmaecida; e parte porque há muita coisa que não se deve registrar, e
muito menos divulgar, sob pena de criar inúteis atritos e comprometer pessoas” (SOUZA
apud CAPUANO, 2013, p. 11).
É a partir daquilo que ele prefere não dizer ou omite, propositadamente ou não, que a
pesquisa precisa se debruçar. Mais adiante, em outro trecho, o biografado conta sua trajetória
de vida:
Não posso negar que houve algum sucesso em tudo que empreendi. No começo, um
professor público humilde, vivendo de salários (que no meu caso foram dobrados com os

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ganhos de Irene, minha esposa). Depois, à medida que as oportunidades profissionais se
foram sucedendo e os ganhos se acumulando, uma imagem positiva se construiu a meu
respeito no campo da educação, onde o tempo todo busquei fazer algo mais qualificado
(SOUZA apud CAPUANO, 2013, p. 13).
O tom dessa fala será utilizado por Capuano para compor os capítulos sobre a vida do
biografado: “Um cenário e tanto para nascer”, “Souzas e Pereiras”, “Um casamento
incomum”, “Breve intervalo de benesses”, “Em Artur Nogueira”, “Por ceca e meca”, “São
Carlos do Pinhal”, “Tupã, terra barbarorum”, “Família, amigos, carreira”, “Itapetininga:
prestígio em ascensão”, “Primeiros passos na capital”, “Novas experiências de gestão
pública”, “Conselhos e Secretarias de Educação”, “Do município à União”, “Novos rumos”,
“A vida continua: UniSciesp e CIEE”, “Balanço final e academias” e “Confiteor (à guisa do
posfácio)”, escrita pelo próprio professor.
Assim como Pierre Bourdieu, Giovanni Levi se preocupou, em “Usos da biografia”,
em mostrar os usos deste tipo de narrativa, que deixam de lado “aspectos ambíguos e
irresolutos” (p. 173). Este historiador formulou uma tipologia do que ele denominou
“problema biográfico” (p. 174), na tentativa de esclarecer a complexidade da questão. Um dos
tipos de biografia seria a biografia modal:
A biografia não é, nesse caso, a de uma pessoa singular e sim a de um indivíduo que
concentra todas as características de um grupo. Aliás, é prática corrente enunciar primeiro
as normas e as regras estruturais (estruturas familiais, mecanismos de transmissão de bens e
de autoridade, formas de estratificação ou de mobilidade sociais etc) antes de apresentar os
exemplos modais que intervêm na demonstração a título de provas empíricas (LEVI, 1996,
p. 175).
É isto que Yvonne Capuano faz ainda no “Sumário” do livro: tudo parece transcorrer
como se ele não tivesse tido nenhum equívoco durante sua vida. Suas dúvidas e incertezas não
são postas, as pessoas e grupos com os quais se envolvia são colocados por uma questão de
mérito, capacidade e eficiência. Como se fosse inerente a um indivíduo ascender social e
politicamente. Há outra passagem de Souza, já no posfácio, que referenda e esclarece sobre o
sujeito que não pertenceria a nenhum grupo:
Não é do meu feitio comprometer-me com facções e grupos sociais, políticos ou religiosos
específicos e fechados no seu modo de pensar e agir. Jamais admiti aprisionar-me em
círculos restritos de convívio sectário, sejam eles de crença, de filosofia, de bandeira
partidária ou de ideologia. Estive sempre mais para o ecumenismo e o ecletismo nos
assuntos de pensamento. Por isso mesmo me foi difícil, em alguns momentos, desenvolver
carreira profissional ou desempenhar atividade cultural, visto que hoje mais pode, nesse
sentido, o grupalismo e a sujeição das pessoas aos poderosos de ocasião do que o mérito
individual e a independência nas convicções e ações (SOUZA apud Capuano, 2013, p.
159).
Dessa forma, ele parecia somente transitar por onde quisesse e independente, por exemplo, do
regime político que estive ocupando o poder. A aparente falta de uma posição ou partido em
determinado grupo também representa a tomada de uma posição. Esta despretensão pode,

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pelo contrário, demonstrar a busca pela ascensão para cargos cada vez mais altos da área
educacional.
No capítulo intitulado “Conselhos e Secretarias de Educação”, Capuano explica que os
conselhos “possuíam 24 membros cada, escolhidos dentre educadores de conduta ilibada, com
grande experiência e saber em educação” (p. 111). Mais adiante, ainda com relação aos
conselhos, ela complementa: “seu funcionamento representou para o Brasil um largo
experimento de modernidade gestional. Pertencer a tais conselhos tornou-se um dos objetivos
supremos da carreira do educador, daí a luta sem tréguas de numerosos candidatos para
chegar ao posto” (Capuano, 2013, p. 112).
Os trechos destacados representam tanto a visão que a autora tem do biografado
quanto o que este pretende deixar sobre sua carreira. Como dito mais acima, eles possuem
uma relação de amizade profissional. Por conta disso, ela não consegue dissociar sua narrativa
da memória que Souza quer que seja registrada sobre sua vida.
O uso de expressões e palavras, como “credenciais”, “aceitou sem titubear” (p. 112)
ou frases: “passou por essa prova de fogo sem decepcionar ninguém, a não ser, talvez, os seus
contumazes desafetos” (p. 116-7) remetem às questões abordadas por Bourdieu e Levi, com
relação à tentativa de reconstituição de uma personalidade. Conforme afirma Pierre Bourdieu,
“por essa forma inteiramente singular de nominação que é o nome próprio, institui-se uma
identidade social constante e durável, que garante a identidade do indivíduo biológico em
todos os campos possíveis onde ele intervém como agente, isto é, em todas as suas histórias
de vida possíveis” (Bourdieu, 1996, p. 186). Complementando este pensamente, Giovanni
Levi faz uma crítica a este tipo de narrativa biográfica: “contentamo-nos com modelos que
associam uma cronologia ordenada, uma personalidade coerente e estável, ações sem inércia e
decisões sem incertezas” (LEVI, 1996, p. 169).
Ainda neste capítulo, a autora aborda rapidamente a criação do Instituto Municipal de
Educação e Pesquisas. Ela narra que ainda em 1969 um novo prefeito era nomeado na cidade
de São Paulo. Paulo Maluf assumia a gestão do município e isto implicou na mudança de
cargos na Secretaria Municipal de Educação. Por indicação do governador, quem viria a
compor o cargo seria Paulo Ernesto Tolle, amigo de Paulo Nathanael Pereira de Souza. E
Tolle chamaria este último para integrar sua equipe educacional. Sobre este episódio, têm-se o
seguinte:
Sua intenção era ficar no gabinete do secretário, mas a desordem reinante no Departamento
de Ensino Municipal obrigou-o a assumi-lo como diretor geral. A Secretaria fora criada
alguns anos antes, como rede independente da estadual, pelo prefeito Lino de Mattos, a
instâncias do governador Adhemar de Barros. Tratava-se de um subsistema de educação,

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com mais ou menos duzentas unidades, além dos parques infantis (CAPUANO, 2013, p.
117).
É significativo notar o jogo político do período da ditadura civil-militar, no qual
prefeitos e governadores eram trocados e nomeados em gestões biônicas. Nelas, levavam
consigo seus “chegados”, sua rede de sociabilidade e pessoas de confiança para ocupar
determinados cargos. É pertinente inferir que Paulo Nathanael Pereira de Souza fez parte de
um grupo e que isto lhe deu aval para se tornar uma pessoa competente na área da educação.
Foi enquanto secretário do Departamento de Ensino Municipal que Souza criara o
IMEP. O instituto, porém, é posto no livro como uma
Escola-modelo, o Instituto Municipal de Experiências Pedagógicas (Imep), que reuniu
alguns educadores de ponta e virou referência em todo o país. [...] A nova escola propiciava
oito anos ininterruptos de escolaridade, com um currículo que substituía as diversas
disciplinas isoladas por áreas de estudos integrados, a saber: Comunicação e Expressão,
Matemática e Ciências, Estudos Sociais e Artes. Uma verdadeira revolução que deu certo, e
que, em parte, serviu de modelo à chamada reforma Passarinho, de 1971, a qual incluiria
todas essas medidas no ensino de 1º grau da lei 5.692. Ao tomar conhecimento do trabalho
de Paulo como educador, o ministro Jarbas Passarinho convidou-o para uma conversa no
MEC, e acabou se tornando seu grande amigo e parceiro (CAPUANO, 2013, p. 117-8).
A própria confusão com o nome do instituto leva à reflexão sobre aquele possível
apagamento da memória do professor. É necessário pensar até que ponto esse erro é um
problema de sua memória enfraquecida ou se pertence à parte da sua trajetória que ele prefere
não registrar.1 Este exercício se torna essencial para compreender as atividades internas do
instituto entre os anos de 1969 e 1972.
De fato, o ensino municipal, por meio do instituto, propiciou mudanças que
influenciaram a lei de reforma de 1971. O que se omite é a maneira como essas ideias foram
viabilizadas dentro do instituto e como acontecia, no fundo, sua cultura escolar.
Também é verossímil afirmar que as sucessivas gestões municipais tinham projetos
distintos para as áreas, inclusive na educação. Porém, somente isso não explica o fim do
instituto e sua transformação numa escola. Entre a prescrição da lei e sua prática existe um
2
hiato de, pelo menos, dois anos. Sua apresentação enquanto uma “escola-modelo”, como
sublinha Yvonne Capuano, também pode ser questionada, à medida que outras escolas

1
Aqui é indispensável apontar que a documentação encontrada na Memória Técnica Documental da
Secretaria Municipal de Educação sobre o instituto refere-se a este enquanto “Instituto Municipal de Educação e
Pesquisas”, como utilizo na pesquisa.
2
Em sua tese de doutorado, Elaine Lourenço percebe que a ampliação da rede estadual fora acelerada
com a promulgação da lei 5692, porém seu trabalho acerca dos documentos legislativos mostra uma preocupação
em fazer valer a letra da lei somente a partir de 1973, quando todas as escolas deveriam estar adaptadas ao novo
currículo: “Esta elaboração ficou a cargo da Divisão de Assistência Pedagógica, dirigida por Therezinha
Fram.Com a extinção desta e a criação do Centro de Recursos Humanos e Pesquisas Educacionais “Profº Laerte
Ramos de Carvalho” (Cerhupe) em agosto de 1973, as tarefas e os funcionários da antiga Divisão migram para a
nova, que irá concentrar a administração dos recursos humanos e „terá nada menos que 14 atribuições,
destacando-se entre elas as de estudos e pesquisas, bem como as de capacitação e treinamento de recursos
humanos‟” (PALMA FILHO APUD LORENÇO, 2011).
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municipais aderiram ao ensino de oito anos no mesmo ano em que os trabalhos no instituto
tiveram início, ou seja, ele não foi “progressivamente estendendo suas inovações a toda a
rede” (CAPUANO, 2013, p. 129).3
Além das questões referentes ao Instituto e a relação do professor Paulo Nathanael
Pereira de Souza em sua constituição, há que se fazer um questionamento acerca de suas
parcerias, pois, ao contrário do que foi afirmado em sua biografia, ao que parece ele pertencia
a um grupo. É provável que seu “status” e sua “trajetória” o tenham permitido acessar altos
cargos e ser chamado para ocupá-los. Como foi o caso da parceria com o Ministro da
Educação Jarbas Passarinho. As ideias e propostas educacionais de Souza condiziam de
alguma maneira, com as do governo autoritário.
Uma dessas ideias se referia à reforma curricular e à disciplina de Estudos Sociais.
No trabalho da historiadora Maria do Carmo Martins, A história prescrita e disciplinada nos
currículos escolares: quem legitima esses saberes?,este educador já obtinha uma cadeira
como conselheiro do Conselho Federal de Educação, cargo que exerceu entre 1973 (portanto,
logo depois do encerramento das atividades no IMEP) e 1985.
O trabalho desta autora tinha como objetivo perceber como a história enquanto uma
disciplina passava, entre os anos de 1964 e 1985, por uma “disputa entre diferentes sujeitos
[conselheiros federais de educação e historiadores] na elaboração dos discursos sobre a
educação ou da educação [...]. Em jogo, nesse confronto, estão além dos discursos, as práticas
educativas e a garantia da liberdade de criação científica e cultural (MARTINS, 2002, p. 10).
Sua citação no trabalho de Martins se deve pelo fato de que, em 1980, a ANPUH
emitiu um informativo acusando-o de retirar as disciplinas de História e Geografia para
substituí-las pelos Estudos Sociais. Este fato demonstra que Souza não era “ecumênico” ou
conciliador, mas sim que tinha uma ideologia e um projeto de educação definidos. Todavia, o
modo como trata de si mesmo não irá percorrer as deficiências e os percalços de sua trajetória
profissional. Suas falhas e descontinuidades provavelmente serão omitidas: a transformação
do instituto numa escola e o seu porquê (ou porquês) ou o fato de ter sido rechaçado pela
ANPUH. Assim como a memória, a biografia seleciona o que será lembrado. Como Souza

3
Ainda durante o trabalho de monografia analisei uma das revistas que circulavam na rede municipal de
ensino, a revista Escola Municipal. Em sua edição de 1974, foram elencadas as primeiras turmas de concluintes
do ensino de primeiro grau do sistema municipal de ensino, também em 1974: Escola Municipal Bernardo
O‟Higgins, Dr. Antonio Carlos de Abreu Sodré, Estado da Guanabara, Desembargador Silvio Portugal, Cidade
São Matheus, Edgard Cavalheiro, Lourenço Filho e Almirante Tamandaré e Celso Leite Ribeiro Filho. Esse dado
da revista pode ajudar a compreender o imediato encerramento do Instituto após a promulgação da Lei, pois, ao
que parece, outras escolas do sistema já haviam implantado seus cursos de primeiro grau durante a vigência do
Instituto, o que levanta dúvidas sobre sua ambição “pioneira” e “modelar” para outras escolas da rede.
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não irá contar, é por meio do não-dito e, por conseguinte, das inferências, que será possível
chegar aos meandros do instituto.

Considerações Finais
Este trabalho teve o intuito de fazer uma primeira tentativa de análise de um livro
enquanto um documento, com o objetivo maior de procurar inferir e levantar questões e
problemas sobre meu objeto de estudo: o Instituto Municipal de Educação e Pesquisas.
Acredito que o suporte teórico-metodológico utilizado foi extremamente relevante
para embasar questões que até então não haviam sido levantadas. Tratar a biografia sobre o
professor Paulo Nathanael Pereira de Souza pode ser uma chave de investigação sobre o
próprio instituto, pois, muitas vezes, seu nome parece se confundir com o da instituição, à
medida que ele toma para si a ação de sua criação, quando esteve à frente do Departamento de
Ensino Municipal. É claro que há aí também um problema com relação à sua memória, o que
o suporte da história oral deve ajudar a esclarecer.
De qualquer modo, a investigação do indivíduo a partir do conceito de “trajetória” e
“intelectual” abre caminhos para a compreensão de sua atuação enquanto sujeito histórico
dentro de espaços de relações de poder. Estes conceitos retiram o professor de uma posição
que seria inerente a ele, a de uma autoridade em assuntos educacionais. Como afirma Pierre
Bourdieu:
Eis por que o nome próprio não pode descrever propriedades nem veicular nenhuma
informação sobre aquilo que nomeia: como o que ele designa não é senão uma rapsódia
heterogênea e disparatada de propriedades biológicas e sociais em constante mutação, todas
as descrições seriam válidas somente nos limites de um estágio ou de um espaço. Em outras
palavras, ele só pode atestar a identidade da personalidade como individualidade
socialmente constituída, à custa de uma formidável abstração (BOURDIEU, 1996, p. 187).
Há outros trabalhos de Souza que podem ser analisados dentro desta chave de
pensamento e leitura. As próprias fontes orais também: resguardado todo o arcabouço próprio
da metodologia da história oral, os autores acima destacados podem ser úteis à medida que
proporcionam um olhar mais crítico sobre a fala dos sujeitos históricos envolvidos no objeto
de pesquisa.
Assim como as concepções de trajetória e as problemáticas acerca da biografia
poderão servir como base para a interpretação de fontes orais que venham a surgir ao longo da
pesquisa, o conceito de “intelectual” auxiliará conforme pensarmos a intelectualidade como
algo construído e não inerente ao indivíduo. Essa construção ocorre, seja por meio de rede de
sociabilidade e por livros publicados ou pela imprensa e mídia.

10
Vale relembrar que o objetivo não foi fazer somente uma crítica a esta biografia
durante o processo de pesquisa, mas perceber e analisá-la conforme os subsídios dos
conceitos de “trajetória” e “intelectual”. Além de perceber os problemas desta biografia e
como eles estão associados à tentativa de apagar uma parte da memória deste sujeito, a qual
ele parece constantemente procurar se desvincular. E, a partir disso, perceber a brecha, ou
seja, o que está fora da linha uniforme e reta da narrativa biográfica e que pode auxiliar nas
inferências sobre os percalços do funcionamento do instituto.

11
Documento
CAPUANO, Yvonne. Relógio do Tempo: perfil biográfico do educador Paulo Nathanael
Pereira de Souza. São Paulo: Miró Editorial, 2013.

Bibliografia

CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: Hunt, Lynn. A nova história cultural.
Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1992, pp. 211-238.

LEVI, Giovanni. Usos da biografia; BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO,
Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). Usos e abusos da história oral. Rio de
Janeiro: FGV, 1996, pp. 167-182; 183-191.

LOURENÇO, Elaine. Professores de História em cena: trajetórias de docentes da escola


pública paulista - 1970-1990. São Paulo, USP: 2011. 316 p. Tese (Doutorado em História).

MARTINS, Maria do Carmo. A história prescrita e disciplina nos currículos escolares:


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