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Universidade de Évora

Departamento de Matemática

Geometrias
(2.ª edição)

A. J. FRANCO DE OLIVEIRA

— 2005 —
© A.J. Franco de Oliveira
Composto em ê® 5.0.2
Primeira edição: Março de 2003
Segunda edição: Setembro de 2005

AMS Subject Classification (2000): 51-01


«Façam muitas figuras!»
SNAPPER & TROYER (1989)

Prefácio

Este é um curso de iniciação à Geometria Euclidiana, mas tratamos essencial-


mente de geometria plana, numa perspectiva de fundamentação axiomática. Das
axiomáticas modernas, há essencialmente duas versões, a de David Hilbert (1899)1
e a de George David Birkhoff (1932). A primeira desenvolve a geometria de um
ponto de vista sintético («sem números»), e a segunda de um ponto de vista
métrico (pressupondo os números reais). Este curso baseia-se no segundo ponto de
vista, mais recente e comum em manuais tanto para o ensino universitário como
para o pré-universitário. Em ambas as axiomáticas, porém, prevalece a concepção
moderna do método axiomático, no sentido de que os conceitos primitivos básicos
não são definidos, ao contrário do que acontecia na concepção clássica que
predominou até ao século XIX (mais precisamente até à descoberta das geometrias
não-euclidianas nas primeiras décadas do século XIX), a qual remonta aos
Elementos de Euclides (c. 300 a. C.). Para informação de natureza histórica
recomenda-se a leitura do Cap. 1 do nosso Geometria Euclidiana (Universidade
Aberta, 1995). Esta monografia, juntamente com partes seleccionadas de Transfor-
mações Geométricas (Univ. Aberta, 1997) compreendem praticamente toda a
matéria do curso (mas algumas notações foram alteradas, nomeadamente, as
notações para as distâncias e para as semi-rectas). A quase totalidade da matéria,
sob forma um tanto mais concentrada, também se pode encontrar no Curso de
Geometria de P. V. ARAÚJO (Gradiva, Segunda edição, 1999) e no recente
Fundamentos da Geometria do Professor J. J. DIONÍSIO (Textos de Matemática N.
18, Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências de Lisboa). É claro que
ficam de fora deste curso muitas matérias interessantes e pertinentes, como a teoria
elementar da área, a geometria inversiva, o estudo desenvolvido das transforma-
ções geométricas, as geometrias hiperbólica e esférica, etc., que remetemos para os
itens bibliográficos acima e a seguir referidos.
Em todas as referências acima mencionadas podem encontrar-se indicações de
outros itens adequados para consulta e leitura suplementar, e não deixamos de
recomendar, entre outras, as monografias de BENNETT, BIX, CEDERBERG,
COXETER, GREENBERG, HARTSHORNE, MARTIN, MOISE, PEDOE, PERRY,

1 Uma tradução portuguesa de parte da 10.ª edição alemã (só o texto base, Fundamentos da
Geometria, de David Hilbert), foi publicada pelo Instituto para a Alta Cultura em 1952. Em
segunda edição (Gradiva, 2003), esta tradução foi enriquecida com os dez apêndices do
autor e suplementos vários (por P. Bernays, H. Poincaré e F. Enriques). Recomendamos
vivamente a consulta desta obra, um texto clássico da maior importância e uma das pedras
basilares da geometria no século XX.
iii
ROE, SMART e SMITH (v. Bibliografia final). Recomenda-se também a consulta
do site http://sunsite.ubc.ca/digitalMathArchive/Euclid/bookl.html.
Os exercícios fazem parte integrante do curso, e muitos deles contêm
definições e resultados utilizados mais adiante. Alguns, assinalados com *, são
opcionais, ou pelo grau de dificuldade, ou por saírem fora do âmbito do curso, nos
conhecimentos requeridos, mas, em todo o caso, podem ser omitidos sem quebra
de continuidade. Um curso minimal deverá cobrir os primeiros nove capítulos. O
Apêndice final também pode servir de introdução à geometria da incidência, e
recomenda-se a leitura prévia das primeiras secções, mesmo que não se prossiga no
seu estudo pormenorizado logo de início.
Agradeço à Prof.ª Doutora Isabel Araújo a transposição das notas manuscritas
do curso (anos lectivos de 1999 a 2002) para um processador de texto, e o desenho
de todas as figuras, até ao capítulo 8, inclusive, o que constituíu a base sine qua
non da presente versão. Os erros e/ou gralhas que permanecem são, naturalmente,
da minha responsabilidade. Aqueles erros ou gralhas que foram descobertos na
primeira edição, estão corrigidos na segunda.
A.J.F.O.
Setembro de 2005.

iv
ÍNDICE

Prefácio........................................................................ iii

1. Incidência e distância.................................................... 7
2. Convexidade e separação............................................ 22
3. Medição de ângulos.....................................................28
4. Congruência de triângulos...........................................36
5. Desigualdades geométricas......................................... 46
6. Paralelismo.................................................................. 52
7. Semelhança de triângulos............................................ 55
8. Os restantes axiomas (geometria do espaço)............... 65
9. Circunferências............................................................68
10. Arcos de circunferência...............................................81
11. Construções com régua e compasso............................ 89
12. Isometrias, reflexões e simetrias................................101

Apêndice
A. Uma introdução às geometrias finitas....................... 115

Lista dos axiomas (Geometria Euclidiana)................127


Lista das notações principais..................................... 129
Bibliografia................................................................131

v
Galeria de notáveis

Euclides de Alexandria Arquimedes de Siracusa


c. 325-275 a.C 287-212 a.C

David Hilbert George David Birkoff


1872-1943 1884-1944

O alfabeto grego

A! alfa H ( eta N/ niú T7 tau


B" beta @ ) teta B0 csi E8 úpsilon
># gama I+ iota Oo omicron F 9, : fi
?$ delta K , kappa C1 pi X; qui
E %, & epsilon A- lambda P3 ró G< psi
Z' zeta M . miú D5 sigma H= omega

vi
Capítulo 1

Incidência e distância
Tomamos como primitivos os conceitos de ponto e linha (primitivos no
sentido: não definidos). Chamamos plano ao conjunto dos pontos, e designamo-lo
por X . Usualmente designamos os pontos por letras maiúsculas E, F , G , …, T , U,
… e as linhas por letras minúsculas <, =, >, …, j, ….
Admitimos que cada linha é um conjunto de pontos. Escrevemos T − j ou
j ® T para exprimirmos que o ponto T pertence à linha j, e dizemos sinonima-
mente: j passa por T , T incide com j, j incide com T , ou j contém T ; T Â j, ou
j®y T significa a negação de T − j. Se E, F , G , … − j, para alguma linha j,
dizemos que os pontos E, F , G , … são colineares.
Os pontos de um plano X podem ser objectos de natureza qualquer. Apenas
exigimos, para começar, que os pontos e as linhas de um plano X tenham as
propriedades seguintes, chamadas os axiomas (da incidência plana):

AXIOMAS DA INCIDÊNCIA PLANA


A" . Por cada dois pontos (distintos) passa uma e uma só linha.
A# . Cada linha contém, pelo menos, dois pontos (distintos).2
A$ . Existem, pelo menos, três pontos não colineares.

Definição Duas linhas (distintas) dizem-se concorrentes sse3 tiverem algum


ponto comum (necessariamente único, por A" ) e estritamente paralelas sse não
tiverem nenhum ponto comum. Cabe aqui dizer que as linhas <, = se dizem
paralelas sse < œ = ou <  = œ g, e escreve-se < ² =.4

Utilizámos intencionalmente o termo «linha» e não o termo «recta» ou «linha


recta». A opção é mais do foro psicológico do que do foro técnico: não há ainda

2 «Dois», «três», … já quer implicar, ordinariamente, a distinção entre os objectos. A


inserção do termo redundante «distintos», entre parenteses, serve apenas para recordar o
facto. Todavia, a língua prega, por vezes, partidas, como ao citar a famosa «noção comum»
de Euclides, segundo a qual duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si (e,
portanto, afinal de contas, não eram duas, mas uma só).
3 Abreviatura de «se e só se», ou de «se e somente se», simbolicamente expresso pelo
símbolo “ Í ” (bicondicional).
4 Na geometria sólida, Cap. 8, exige-se também outra condição para o paralelismo
estrito:— que < e = sejam complanares, isto é, que estejam ambas contidas num mesmo
plano.
7
8 GEOMETRIAS

nenhuma razão para supor que os objectos a que chamamos «linhas» correspondem
às «rectas» da geometria intuitiva elementar. Pois tudo quanto sabemos sobre as
nossas «linhas» é o que é dito nos axiomas (e no exercício 1.1). Pode até acontecer,
por exemplo, que as linhas sejam finitas, como mostram os seguintes exemplos de
modelos dos axiomas — planos concretos, particulares, que satisfazem os axiomas.

1.1 Exemplos
1) Modelo dos três pontos: X œ Ö"ß #ß $×; linhas: os conjuntos Ö"ß #×, Ö"ß $×,
Ö#ß $×. Diagrama esquemático:

Fig. 1

2) Modelo dos quatro pontos: X œ Ö"ß #ß $ß %×; linhas: os conjuntos Ö"ß #×,
Ö"ß $×, Ö"ß %×, Ö#ß $×, Ö#ß %×, Ö$ß %×. Diagrama:

Fig. 2

Note que, neste modelo, a linha Ö"ß $× é paralela à linha Ö#ß %×.5

3) Modelo dos cinco pontos: X œ ÖEß Fß Gß Hß I×; linhas: conforme diagrama


(cada linha é formada por dois pontos).
Neste modelo tem-se, por exemplo, ÖIß G× ² ÖEß F×, e ÖIß H× ² ÖEß F×.

Fig. 3

Num plano X , se E Á F , a única linha que passa por E e por F denota-se por
op
EF . Para que as «linhas» de um plano X se pareçam mais com as linhas rectas da

5 Não se deve ver mais, no diagrama, do que intencionalmente se pretende seja visto: as
linhas deste plano são os pares não-ordenados de pontos, e não os traços visíveis no
diagrama.
1. Incidência e distância 9

geometria euclidiana elementar, vamos admitir mais alguns axiomas. Tais axiomas
são realmente muito fortes, pois impõem desde logo uma «estrutura» (métrica) nas
linhas correspondente6 à dos números reais. A ideia é poder medir as distâncias
entre os pontos de uma dada linha utilizando «coordenadas» (lineares) desses
pontos, coordenadas essas que são números reais.
Para começar, vamos juntar à lista de conceitos primitivos o conceito de
métrica ou distância, que é uma função . À X ‚ X Ä ‘. Para quaisquer pontos T e
U, a distância de T a U designa-se por .ÐT ß UÑ, ou simplesmente por lT Ul, para
abreviar:
lT Ul œ .ÐT ß UÑ.
O axioma que rege este novo conceito é o seguinte.

AXIOMA DA DISTÂNCIA (OU DA MEDIÇÃO LINEAR)


A% . Para cada linha j de um plano X existe, pelo menos, uma bijecção
0 À j Ä ‘ tal que para quaisquer pontos T , U − j,
.ÐT ß UÑ œ lT Ul œ l0 T  0 Ul.
A uma função 0 À j Ä ‘ com a propriedade expressa no axioma anterior
chama-se um sistema de coordenadas (lineares) (abreviadamente, um s.c.) para j.7
O número real 0 T é a coordenada do ponto T (segundo o s.c. 0 ).
Do axioma A% resultam as propriedades seguintes:

1Þ2 Teorema
D" . Para quaisquer pontos T , U − X , lT Ul   ! (não-negatividade).
D# . Para quaisquer pontos T , U − X , lT Ul œ ! sse T œ U (anulamento).
D$ . Para quaisquer pontos T , U − X , lT Ul œ lUT l (simetria).

Dem. Sejam T , U − X , e seja j uma linha passando por T e U (se T Á U,


op op
tome-se j œ T U , e se T œ U tome-se j œ T V onde V é outro ponto qualquer,
distinto de T e de U, que tem de existir por A$ ). Seja ainda 0 À j Ä ‘ um s.c. para
j. É claro que lT Ul œ l0 T  0 Ul   ! (pois, para qualquer B − ‘, lBl   !), o que
prova D" ; e que lT Ul œ ! sse l0 T  0 Ul œ ! sse 0 T œ 0 U sse T œ U (porque 0
é injectiva), o que prova D# ; finalmente, tem-se

6 «Isomorfa» é o termo técnico a utilizar nestas ocasiões.


7 Escrevemos habitualmente 0 T em vez de 0 ÐT Ñ, para abreviar, e analogamente para
outras funções ou argumentos. Recorde-se que uma função ou aplicação 0 de um conjunto
A para um conjunto B (escreve-se 0 À A Ä B) se diz bijectiva ou uma bijecção sse (i) 0 é
injectiva, isto é, elementos diferentes de A têm imagens diferentes em B por meio de 0 , em
símbolos: aB − A aC − B ÒB Á C Ê 0 ÐBÑ Á 0 ÐCÑÓ, ou, equivalentemente, aB − A aC − B
Ò0 ÐBÑ œ 0 ÐCÑ Ê B œ CÓ; e (ii) 0 é sobrejectiva, isto é, todo o elemento de B é imagem (ou
valor), por 0 , de algum elemento de A, em símbolos: aD − B bB − A Ò0 ÐBÑ œ DÓ. Se
X © A, 0 ÒXÓ œ Ö0 ÐBÑ À B − X× é o conjunto transformado de X por 0 ; se Y © B,
0 o ÒYÓ œ ÖB − A À 0 ÐBÑ − Y× é a pré-imagem de Y por 0 . Se 0 À A Ä B, é claro que 0 é
sobrejectiva sse 0 ÒAÓ œ B; e, se 0 é bijectiva, existe a função inversa de 0 , 0 " À B Ä A,
tal que para quaisquer B − A e C − B se tem 0 ÐBÑ œ C sse 0 " ÐCÑ œ B.
10 GEOMETRIAS

lT Ul œ l0 T  0 Ul œ |0 U  0 T | œ lUT l,

o que prova D$ .è

Em Análise Matemática, e em Topologia, normalmente só se utiliza o termo


«métrica» ou «distância» quando, além das propriedades D" -D$ , vale também a
propriedade seguinte:

D% . Desigualdade triangular (lata): Para quaisquer pontos T , U, V − X ,


lT Vl Ÿ lT Ul  lUVl.

Não podemos, ainda, demonstrar esta propriedade no caso geral, em que T , U,


V podem não ser colineares. No caso de T , U, V serem colineares, digamos T , U,
V − j, e sendo 0 À j Ä ‘ um s.c. para j, tem-se
lT Vl œ l0 T  0 Vl œ l0 T  0 U  0 U  0 Vl
Ÿ l0 T  0 Ul  l0 U  0 Vl
œ lT Ul  lUVl.

A propriedade D% , no caso geral, só será demonstrada mais adiante (Cap. 5) e, por


isso, não será utilizada até lá.
O axioma da distância também é chamado, por razões óbvias, axioma da régua
graduada, pois tudo se passa como se pudessemos «encostar» a cada linha j uma
régua graduada pelos números reais e, assim, medir as distâncias entre pontos
através das distâncias (em ‘) das coordenadas correspondentes.

Fig. 4

Da existência de um s.c. 0 À j Ä ‘ resulta logo que cada linha j é um conjunto


infinito (não-numerável) de pontos, de modo que os modelos finitos apresentados
na pág. 8 já não são modelos do axioma A% . Doravante, chamamos linhas rectas,
ou simplesmente rectas às linhas de um plano X que satisfaça os axiomas
admitidos até aqui.
Supondo fixado um s.c. 0 para j, ao ponto T! de j com coordenada 0 T! œ ! é
costume chamar origem do s.c. Observe-se, por outro lado, que os sistemas de
coordenadas não são únicos e, portanto, o ponto a que chamamos origem para um
dado s.c. pode não ser a origem para outro s.c.
De facto se 0 À j Ä ‘ é um s.c. para j, então a função 1 À j Ä ‘ definida por
1T œ 0 T
(abreviadamente, 1 œ 0 ) também é um s.c. para j (com a mesma origem) mas,
1. Incidência e distância 11

para cada constante real - Á !, a função 2 À j Ä ‘ definida por


2T œ 0 T  -,
(abreviadamente, 2 œ 0  - ) é um s.c. para j com origem diferente (exercícios) da
de 0 .

1.3 Teorema (Colocação da régua) Dados dois pontos distintos T! , T"


de j, existe um e um só s.c. 0 para j com origem T! tal que 0 T"  !.

Fig. 5

Dem. Seja 1 À j Ä ‘ um s.c., e ponhamos - œ 1T! . Definimos 0 À j Ä ‘


pondo

0T œ œ
1T  - se 1T"  -
-  1T se 1T"  - .

É fácil concluir que 0 é um s.c. para j tal que 0 T! œ ! e 0 T"  !. Resta ver que 0
é o único s.c. nestas condições. Suponhamos que também 2 À j Ä ‘ é um s.c. para
j tal que 2T! œ ! e 2T"  !, com vista a provar que 0 œ 2, ou seja, equivalente-
mente, que 0 ‰ 2" œ id‘ . Designemos por J a função composta, 0 ‰ 2" , de ‘
em ‘. Note-se que J tem as propriedades seguintes:
(i) J Ð!Ñ œ !: pois J Ð!Ñ œ Ð0 ‰ 2 " ÑÐ!Ñ œ 0 Ð2 " Ð!ÑÑ œ 0 T! œ !;
(ii) para quaisquer B, C − ‘, lJ B  J Cl œ lB  Cl: pois, por 0 e 2 serem
ambos s.c.’s,
lJ B  J Cl œ l0 2" B  0 2 " Cl œ .Ð2 " Bß 2 " CÑ œ l22 " B  22 "Cl œ lB  Cl;
(iii) existe B"  ! tal que J B"  !: por exemplo, B" œ 2T" , pois
J B" œ 0 2" 2T" œ 0 T"  !.
Fazendo C œ ! em (ii), tem-se lJ Bl œ lBl para todo B − ‘, isto é, J B œ B ou
J B œ B, para todo B − ‘; com B"  ! tal que J B"  !, como em (iii), tem-se
J B" œ B" , e tem de ser, como se vê de seguida, J B œ B para todo B: se fosse
J B! œ B! para algum B! Á !, viria
lJ B"  J B! l œ lB"  B! l Á lB"  B! l,
contra (ii). Portanto, J œ id‘ .è

Um s.c. 0 para j induz naturalmente uma orientação em j: dizemos que T está


à direita de U (ou que U está à esquerda de T ) sse 0 T  0 U. Cada recta tem
exactamente duas orientações; os s.c. da forma 1 œ 0  - (- uma constante real)
induzem a mesma orientação que 0 , e os da forma 2 œ -  0 induzem a orientação
12 GEOMETRIAS

oposta à induzida por 0 . Para determinar uma orientação em j basta fixar um par
de pontos, digamos ÐT! ß T" Ñ, com T! Á T" , sendo a orientação em j dada pelo s.c.
do Teorema de colocação da régua 1.3 (0 T! œ !, 0 T"  !), que se chama a
orientação de T! para T" ; a sua oposta é a orientação de T" para T! .
Fixada uma orientação para j, é, por vezes, conveniente considerar distâncias
orientadas em j. Se 0 é um s.c. compatível com a orientação fixada, isto é, tal que
T está à esquerda de U sse 0 T  0 U, a distância orientada com sinal positivo de
T a U é T U œ 0 U  0 T , enquanto a distância orientada com sinal negativo de
T a U é UT œ T U œ 0 T  0 U.

Fig. 6

Utilizando s.c.’s, é possível dar definições de diversos conceitos geométricos


como os de segmento, semi-recta, etc.

Definição Dados os pontos T , U distintos, o segmento com extremos T e


U é o conjunto
T U œ Ö\ − j À 0 T Ÿ 0 \ Ÿ 0 U×,
op
onde j œ T U e 0 é um s.c. para j tal que 0 T  0 U. O interior do segmento T U
é o conjunto
intÐT UÑ œ Ö\ − j À 0 T  0 \  0 U×,

onde j e 0 são como acima. O comprimento do segmento T U é a distância lT Ul.


op
O segmento T U, assim definido, parece depender do s.c. 0 para T U que se
considere. Vamos ver que ele só depende, na realidade, da métrica . .
Dizemos que o ponto F está (situado) entre os pontos E e G , e escreve-se
E–F –G , sse E, F , G são distintos e colineares, e lEGl œ lEFl  lFGl.8 Esta
noção geométrica de «estar entre» corresponde, nos números reais, à relação
ternária estar entre definida do seguinte modo: C está entre B e C, e escreve-se
B–C–D , sse B  C  D ou D  C  B.

1.4 Teorema Se T Á U, então T U œ ÖT ß U×  Ö\ − X À T –\ –U×.


op
Dem. Trata-se de provar que, dada 0 À T U Ä ‘ tal que 0 T  0 U, os
op
conjuntos Ö\ − T U À 0 T Ÿ 0 \ Ÿ 0 U× e ÖT ß U×  Ö\ − X À T –\ –U× têm os

8 Chama-se a atenção para as duas condições “distintos e colineares” na definição; mais


adiante se compreenderá a necessidade destas condições.
1. Incidência e distância 13

mesmos elementos. É claro que T , U são elementos de ambos os conjuntos, de


modo que só falta considerar os pontos \ − X tais que \ Á T e \ Á U.
Para um tal \ do primeiro conjunto, tem-se 0 T  0 \  0 U‚ logo
lT Ul œ l0 T  0 Ul œ 0 U  0 T
œ 0 U  0 \  0 \  0 T œ l0 U  0 \l  l0 \  0 T l
œ lU\l  l\T l œ lT \l  l\Ul,
e, portanto, \ pertence ao segundo conjunto.
op
Reciprocamente, se T –\ –U, então \ − T U e lT Ul œ lT \l  l\Ul, donde
l0 T  0 Ul œ l0 T  0 \ |  l0 \  0 Ul.
Ponhamos : œ 0 T , ; œ 0 U, B œ 0 \ , de modo que l:  ;l œ l:  Bl  lB  ;l.
Daqui conclui-se que só pode ser :  B  ; , pois os casos B  : e B  ; são
impossíveis. De facto, se fosse, por exemplo, B  :, viria
l:  Bl  lB  ;l œ Ð:  BÑ  Ð;  BÑ œ ;  :,
donde #Ð:  BÑ œ !, e : œ B.è

1.5 Corolário T U œ UT .

Dem. Exercício.è

Definição Os segmentos EF e GH dizem-se congruentes, e escreve-se


EF ´ GH, sse lEFl œ lGHl, isto é, sse têm o mesmo comprimento.

Fig. 7

Definição O ponto médio do segmento EF é o ponto Q − EF tal que


lEQ l œ lQ Fl.

Fig. 8

É claro, pelo Teorema 1.4, que se Q é o ponto médio de EF , então E–Q –F ,


op
e é fácil ver (exercício) que se 0 À EF Ä ‘ é um s.c. tal que 0 E  0 F , então
0E  0F
0Q œ .
#
14 GEOMETRIAS

Definição Se T Á U, a semi-recta com origem T que contém U é o


conjunto
Ø
T U œ T U  Ö\ À T –U–\×.

Fig. 9
op
Fixada uma orientação para j œ T U tal que U está à direita de T (digamos
Ø
por meio de 0 À j Ä ‘ tal que 0 T  0 U), a semi-recta T U é formada por todos
os pontos de j à direita de T , incluindo o próprio T , e pode ser caracterizada como
Ø
sendo o conjunto T U œ Ö\ − j À 0 \   0 T ×. Com a mesma origem T há outra
op
semi-recta contida em j œ T U , que é constituída por T e todos os pontos à
Ø
esquerda de T , e que é chamada a semi-recta oposta a T U . Se Uw é tal que
Ø
Uw –T –U, então a semi-recta oposta a T U é
Ø Ø
opÐT UÑ œ T Uw œ Ö\ − j À 0 \ Ÿ 0 T × œ Ö\ − j À \ –T –U×  ÖT ×.
Se E, F , G são distintos e não colineares, o ângulo geométrico com vértice F
Ø Ø
e lados FE e FG (fig. 10) é o conjunto de pontos
Ø Ø
nEFG œ FE  FG .

Fig. 10 Fig. 11

Note-se que nEFG œ nGFE mas, por exemplo, nEFG Á nFEG . Há


outras definições possíveis de ângulo geométrico, mas esta é a mais simples e
económica, pois só depende da noção de semi-recta. Note-se, por outro lado, que
Ø Ø
fica excluída da definição o caso em que as semi-rectas FE e FG são
coincidentes («ângulo nulo») ou opostas («ângulo raso»). Estes casos serão
considerados na definição de «ângulo orientado», de que não necessitamos neste
1. Incidência e distância 15

curso. Entretanto, a definição dada é a mais conveniente do ponto de vista


geométrico.9
Dados E, F , G não colineares, o triângulo com vértices E, F , G e lados EF ,
EG , e FG (fig. 11) é o conjunto de pontos
˜ EFG œ EF  FG  EG .
Os ângulos do ˜ EFG são os ângulos geométricos nEFG , nFEG e
nEGF.
Resulta logo desta definição que
˜ EFG œ ˜ FEG œ ˜ EGF œ ˜ GEF œ ˜ FGE œ ˜ GFE.

1.6 O plano cartesiano real


Ainda não demos nenhum exemplo de um modelo dos axiomas A" , A# , A$ e
A% . Um tal modelo é necessariamente infinito, como já se disse (por causa de A% ).
O modelo mais importante (mas não é o único) é o chamado plano cartesiano real,
em que o conjunto de pontos é a potência cartesiana
X œ ‘# œ ÖÐBß CÑ À B − ‘ e C − ‘×,
e as linhas rectas deste plano são os conjuntos de pontos da forma
ÖÐBß CÑ − ‘# À +B  ,C  - œ !×,
com +, ,, - − ‘, + e , não ambos nulos. O conjunto das linhas rectas deste plano
designa-se por _E .

Fig. 12

Este plano é conhecido da geometria analítica elementar, mas é um bom


exercício verificar que os axiomas A" , A# , A$ e A% são satisfeitos nele.

9 Um ângulo orientado ou dirigido é um par ordenado de semi-rectas com origem comum.


È È È È
Se 2 e 5 são semirectas com origem comum, então o ângulo orientado, de 2 para 5 , é o
È È È È È È
par ordenado Ð2ß 5 Ñ. Se 2 œ 5 obtemos o ângulo nulo, e se 2 e 5 são semi-rectas opostas
obtemos o ângulo raso.
16 GEOMETRIAS

Verificação de A" : dados T œ ÐB" ß C" Ñ, U œ ÐB# ß C# Ñ distintos (isto é, B" Á B#


ou C" Á C# Ñ, trata-se de verificar que por T e U passa uma única linha recta.
Recorde-se que as equações +B  ,C  - œ ! e 5+B  5,C  5- œ !, com
5 Á !, têm as mesmas soluções (são equações equivalentes), pelo que basta
determinar +, ,, - com +, , não ambos nulos, a menos de uma constante
multiplicativa diferente de zero. Pensemos no sistema em +, ,, -

œ +B  ,C  - œ !.
+B"  ,C"  - œ !
# #

Subtraindo membro a membro vem


+ÐB"  B# Ñ  ,ÐC"  C# Ñ œ !.
Se for B" œ B# , fica ,ÐC"  C# Ñ œ !, e como C" Á C# , vem , œ !. Da primeira
equação vem +B"  - œ !, - œ +B" . Pondo + œ " ficamos com a equação da
recta B œ B" . Se for B" Á B# vem
,ÐC"  C# Ñ ,ÐC"  C# Ñ
+œ , - œ ,C"  B" ,
B"  B # B"  B #
e pondo , œ ", substituindo em +B  ,C  - œ ! e simplificando vem
ÐC#  C" ÑB  ÐB"  B# ÑC  ÐB# C"  B" C# Ñ œ !,
que é uma equação da recta pretendida.
Esta equação (com B" Á B# ) também se pode escrever na forma reduzida
C œ 7B  ,, onde
C#  C "

B#  B "
é o declive da recta, e
B " C#  B # C "

B#  B "
é a ordenada do ponto onde a recta corta o eixo dos C).
Verificação de A# e de A$ : exercícios.
Verificação de A% : precisamos, em primeiro lugar, de uma função distância.
Uma possibilidade (mas não a única!) é a conhecida distância euclidiana
.E À ‘# ‚ ‘# Ä ‘,
definida por
.E ÐT ß UÑ œ ÈÐB"  B# Ñ#  ÐC"  C# Ñ# ,
onde T œ ÐB" ß C" Ñ, U œ ÐB# ß C# Ñ. Como se sabe, esta função tem as propriedades
D" -D% , mas o que temos que verificar é que cada linha recta possui um sistema de
coordenadas. Vamos distinguir dois casos:
1. Incidência e distância 17

(i) rectas verticais, que são definidas por equações da forma B œ - . Tome-se
como s.c., neste caso, a função 0 À j Ä ‘ definida por
0 Ð-ß CÑ œ C.
É claro que para T , U − j,
lT Ul œ .E ÐT ß UÑ œ ÈÐC"  C# Ñ# œ |C"  C# | œ l0 T  0 Ul,
e 0 é bijectiva (exercício).

Fig. 13

(ii) rectas oblíquas, de equação da forma C œ 7B  ,. Como terá de ser


.E ÐT ß UÑ œ lT Ul œ l0 T  0 Ul para quaisquer T œ ÐB" ß C" Ñ, U œ ÐB#ß C#Ñ − j,
isto é, com C" œ 7B"  , e C# œ 7B#  , , donde C"  C# œ 7ÐB"  B# Ñ, terá de
ser
ÈÐB"  B# Ñ#  ÐC"  C# Ñ#
ÈÐB"  B# Ñ#  7# ÐB"  B# Ñ# œ È"  7# |B"  B# |,
.E ÐT ß UÑ œ lT Ul œ
œ
o que sugere que se tome para s.c. a função 0 À j Ä ‘ definida por

0 ÐBß CÑ œ 0 ÐBß 7B  , ) œ È"  7# B,


que é bijectiva (exercício). Em conclusão, o plano cartesiano ‘# , com as linhas
rectas ordinárias e a distância euclidiana usual é um modelo dos axiomas admitidos
até ao momento presente.10

Exercícios e complementos
1.1. Demonstre as seguintes consequências simples dos axiomas A" -A$ :
(a) Para cada linha j de um plano X existe, pelo menos, um ponto que não
incide com j.

10 Também se poderia chamar plano euclidiano a Б# ß _E ß .E ). Em Álgebra Linear, dá-se


este nome à estrutura vectorial do plano cartesiano real com o produto interno usual, a
partir do qual podemos definir tanto a distância euclidiana .E como a medição angular 7E
(v. capítulo seguinte).
18 GEOMETRIAS

(b) Para cada ponto T de um plano X existe, pelo menos, uma linha de X que
não passa por T .
(c) Por cada ponto T de um plano X passam, pelo menos, duas linhas distintas.
(d) Existem, pelo menos, três linhas não concorrentes (num mesmo ponto).

1.2. Um modelo dos axiomas A" -A$ chama-se um plano de incidência. Os


planos de incidência X" e X# dizem-se isomorfos sse existe uma bijecção
: À X" Ä X# tal que para quaisquer pontos E, F , G de X" ,
E, F , G são colineares sse :E, :F , :G são colineares.
Uma tal função : chama-se um isomorfismo ou uma colineação dos
planos de incidência X" e X# , e escreve-se : À X" z X# . Sendo : À X" z X# ,
prove que
(a) Se j é uma linha de X" , então o conjunto transformado
:ÒjÓ œ Ö:T À T − j× é uma linha de X# , que doravante se designará por
:j.
(b) j" , j# são linhas concorrentes de X" sse :j" , :j# são linhas concorrentes de
X# .
(c) Há tantas linhas passando por T − X" , como há linhas de X# passando por
:T .

1.3. As figuras seguintes exibem graficamente planos de incidência finitos.


Identifique os pares de planos de incidência isomorfos.

Fig. 14

1.4. Dê um exemplo de um modelo finito de A" e A# que não satisfaz o axioma


A$ , mostrando assim que A$ é independente de A" e A# .
Mostre também, com modelos finitos apropriados, que A# é independente
de A" e A$ , e que A" é independente de A# e A$ .

1.5. Um plano de incidência X diz-se afim se satisfizer o seguinte

AXIOMA AFIM DE PARALELISMO


Para toda a linha j e todo o ponto T Â j existe uma única linha jw tal que
jw ² j e jw passa por T .

(a) Quais dos planos do exercício 1.3. são afins?


(b) Prove que o plano cartesiano real é afim.
(c) Mostre que se : À X" z X# e um dos planos é afim, então o outro também o é.
1. Incidência e distância 19

1.6. O semiplano de Poincaré é o plano seguinte: os pontos são os pontos


ordinários de ‘# com ordenada positiva, X œ ÖÐBß CÑ − ‘# À C  0× e as
linhas podem ser de dois tipos:
Tipo I: são as intersecções com X de linhas rectas verticais ordinárias, isto
é, conjuntos da forma ÖÐBß CÑ − ‘# À B œ - e C  !×, com - − ‘;
Tipo II: são as intersecções com X de circuferências ordinárias de ‘# com
centro sobre o eixo dos BB, isto é, conjuntos da forma
ÖÐBß CÑ − ‘# À ÐB  +Ñ#  C # œ <# e C  !×, com + − ‘ e < − ‘
positivo.

J 31Þ 15

(a) Mostre que o semiplano de Poincaré é modelo dos axiomas de incidência,


mas não é plano afim. Neste plano é válido o

AXIOMA HIPÉRBÓLICO DE PARALELISMO


Para toda a linha j e todo o ponto T Â j, existem, pelo menos, duas
paralelas a j passando por T .11

(b) Determine a única linha que passa pelos pontos T œ Ð"ß #Ñ e U œ Ð$ß "Ñ, e
indique duas paralelas a essa linha.

1.7. O plano do 1.º quadrante tem, como pontos, os pontos ordinários de ‘# do


primeiro quadrante, eixos excluídos, isto é, pontos ÐBß CÑ com B  ! e
C  !, e, como linhas, as intersecções não vazias de linhas rectas
ordinárias de ‘# com o 1.º quadrante. Verifique que se trata de um modelo
dos axiomas de incidência que satisfaz também o axioma hiperbólico de
paralelismo. [Verificação puramente «geométrica», sem fazer contas.]

11Pode-se definir no semiplano de Poincaré uma métrica que faz dele um modelo de A" -
A% , mas não vamos desenvolver esta questão neste curso. A geometria deste plano é
chamada hiperbólica, mas devemos observar que o semiplano de Poincaré não é o único
modelo da geometria hiperbólica plana.
20 GEOMETRIAS

Fig. 16

1.8. O plano das cúbicas tem como pontos os pontos ordinários de ‘# , e linhas
de dois tipos:
Tipo I: são as linhas rectas verticais ordinárias de ‘# ;
Tipo II: são os conjuntos-solução de equações da forma C œ Ð+B  ,Ñ$ ,
com +, , − ‘ (incluindo o caso degenerado + œ !, o que dá uma
linha recta horizontal ordinária de ‘# ).
(a) Verifique que se trata de um modelo dos axiomas de incidência.
(b) Este modelo é afim? é hiperbólico?

1.9. O plano de Moulton tem como pontos os pontos ordinários de ‘# , e linhas


de dois tipos:
Tipo I: são as linhas rectas ordinárias de ‘# verticais (equação da forma
B œ +) ou com declive não positivo (equação da forma
C œ 7B  , com 7 Ÿ !);
Tipo II: são as linhas descritas por um sistema da forma

œ C œ 7B  ,
C œ 7B  , se B Ÿ !
# se B  !.

FigÞ 17

(a) Determine a única linha (de tipo II) que passa pelos pontos T œ Ð#ß "Ñ,
U œ Ð#ß $Ñ.
1. Incidência e distância 21

(b) Verifique que se trata de um modelo dos axiomas de incidência, que é afim.
(c) Verifique que cada linha possui um sistema de coordenadas, onde a função
distância .M é definida do seguinte modo:
Ú
Ý
Ý
Ý
Ý
.E ÐT ß UÑ se T e U têm abcissas nulas ou do mes-
Ý mo sinal, ou uma nula e outra não nula;
.M ÐT ß UÑ œ Û .E ÐT ß VÑ  .E ÐVß UÑ
Ý
Ý
se T e U têm abcissas de sinal contrário,
Ý
Ý
Ý
op
Ü
onde V é o único ponto em que T U corta
o eixo das ordenadas.12

(d) Calcule .E ÐT ß UÑ e .M ÐT ß UÑ, com T œ Ð"ß "Ñ, U œ Ð"ß "Ñ, e mostre


que a desigualdade triangular D% não é verdadeira no plano de Moulton.

1.10. No plano cartesiano real com a métrica euclidiana, dada a recta j de


equação C œ #B  ", determine:
(a) um s.c. 0 para j;

(c) o ponto G − j tal que 0 G œ #È&;


(b) 0 E, onde E œ Ð#ß $Ñ;

(d) .E ÐEß GÑ de duas maneiras diferentes, uma utilizando a definição de .E e


outra utilizando 0 ;
(e) Um s.c. 2 para j tal que 2E œ !, 2G  !.

1.11. Supondo que ÐX ß .Ñ é um modelo dos axiomas A" -A% , 5  ! uma


constante real, e . w À X ‚ X Ä ‘ definida por
. w ÐT ß UÑ œ 5.ÐT ß UÑ,
mostre que:
(a) . w tem as propriedades D" -D$ ;
(b) . w tem a propriedade D% sse . tem a propriedade D% .13

1.12. Mostre, utilizando um s.c. 0 para j, que para quaisquer pontos distintos E,
F , G − j se tem E–F –G sse 0 E–0 F –0 G .

12 Para distinguir a linha de tipo II que passa por T e U da linha recta ordinária de ‘# que
op
passa por aqueles pontos pode-se utilizar a notação ÐT UÑQ para a primeira. Quando não se
utiliza esta notação, todavia, basta ter em conta o contexto para saber qual dos casos se está
a considerar.
13 A constante 5 representa uma mudança de escala.
Capítulo 2

Convexidade e separação
Um conjunto de pontos f © X diz-se convexo sse qualquer segmento cujos
extremos estão em f está contido em f :
aT , U − f ÐT Á U Ê T U © f Ñ.

Fig. 18

O conjunto vazio é convexo, as rectas, os segmentos, as semi-rectas e o plano


todo são convexos, mas o ângulos e os triângulos não são convexos. A demons-
tração do resultado seguinte é um exercício simples.

2.1 Lema A intersecção (arbitrária) de conjuntos convexos é convexa.14

O axioma seguinte é fundamental para estabelecer a convexidade de muitos


conjuntos. Ele é intuitivamente verdadeiro no plano cartesiano real, mas verificar
que assim é, de facto, é bastante trabalhoso e não iremos fazê-lo (por enquanto).

AXIOMA DE SEPARAÇÃO NO PLANO


A& . Para toda a recta j, o conjunto dos pontos de um plano X que não
pertencem a j é a reunião de dois conjuntos convexos, não vazios e disjuntos, tais
que, para quaisquer pontos T , U Â j, T está num neles e U está no outro sse T U
corta j.

Dada j, os dois conjuntos convexos a que se refere este enunciado, e que


obviamente dependem de j, são chamados semiplanos limitados por j.

+3−M f3 é convexo.
14Simbolicamente: se M Á g e Øf3 À 3 − MÙ é uma família de conjuntos convexos, então

22
1. Incidência e distância 23

Fig. 19

Dois pontos que estão num mesmo semiplano limitado por j dizem-se do
mesmo lado de j, e dois pontos em semiplanos distintos limitados por j dizem-se
em lados opostos de j. É claro que se T e U (T Á U) estão num mesmo lado de j,
então T U está todo contido nesse mesmo lado ou semiplano, por convexidade e,
portanto, T U não corta j.
O resultado seguinte tem uma aparência trivial, mas tem uma grande
importância nos fundamentos da Geometria, que escapou aos matemáticos e
geómetras durante séculos. É conhecido por Axioma de Pasch (1880) mas, na
realidade, é equivalente ao axioma A& . Primeiro, um resultado preliminar.

2.2 Lema Se uma recta j não passar por nenhum vértice do ˜ EFG , então
j não pode intersectar os três lados do triângulo (quer dizer, intersecta, quando
muito, dois lados).

Dem. Supondo que j intersecta


EF e EG , temos de mostrar que não
intersecta FG .
Como j corta EF mas não passa
por E nem por F, E e F estão em
lados opostos de j; analogamente, E
e G estão em lados opostos de j,
logo F e G estão do mesmo lado de
j (o lado oposto ao de E), logo FG Fig. 20
está contido nesse lado (por
convexidade) e, portanto, não corta
j.è

2.3 Teorema de Pasch Qualquer recta que intersecte um triângulo num


ponto interior a um lado intersecta, pelo menos, um dos outros lados.

Dem. Suponhamos que j corta EF num ponto entre E e F , de modo que E e


F estão em lados opostos de j.
24 GEOMETRIAS

Fig. 21

Se j passa por G nada mais há a fazer. Se não, ou G está do mesmo lado de E,


logo no lado oposto ao de F (e FG corta j), ou G está do mesmo lado de F , logo,
do lado oposto ao de E (e EG corta j).è

Vamos agora definir o interior de um ângulo, digamos nEFG . Como


op op
G Â FE, o ponto G está num dos semiplanos limitados por FE, digamos [" , bem
Ø
como todos os outros pontos de FG excepto F , o que quer dizer que [" não
Ø
depende do ponto G escolhido em FG . Chamando [# ao semiplano limitado por
op Ø
F C que contém E, [# contém todos os pontos de FE excepto F .
O interior do ângulo nEFG é
exactamente o conjunto intÐnEFGÑ
œ ["  [# que, por ser uma
intersecção de conjuntos convexos, é
convexo.
O interior do triângulo ˜ EFG
pode agora ser definido como a inter-
secção dos interiores dos seus ângu-
los ou, mais simplesmente, como a
Fig. 22 intersecção de três semiplanos, cada
um deles limitado por uma recta
contendo um lado e contendo o
vértice oposto a esse lado. Denota-se
por intÐ ˜ EFGÑ e, é claro, também
é um conjunto convexo.
Dois resultados simples cujas justificações são outros dois exercícios:

2.4 Lema Num ˜ EFG , cada interior de um lado está contido no interior
de um ângulo oposto [por exemplo, intÐFGÑ © intÐnFEGÑ].

2.5 Lema Se F –H–G , então qualquer ponto entre E e H está no interior do


˜ EFG.

A terminar esta secção um resultado muito importante que «escapou» a


Euclides ou, pelo menos, que Euclides teria considerado como intuitivamente
evidente, sem todavia o ter formulado nem, tão- pouco, justificado:
1. Incidência e distância 25

2.6 Teorema da Barra Transversal Uma semi-recta com origem no


vértice do nEFG passando por um ponto interior ao ângulo, corta o lado EG
num ponto entre os extremos.

Fig. 23
Ø
Dem. Seja H − intÐnEFGÑ. Queremos provar que FH corta EG num ponto
entre E e G , conforme a figura 23.
op
Sejam [   
" e [" os semiplanos limitados por EF , e [# , [# os semiplanos
op
limitados por FG , de tal modo que intÐnEFGÑ œ [ 
"  [# . Seja ainda
op
j œ FH . Os pontos de j, excepto F , estão em [  
"  [# ou em ["  [# .

op
Seja I − EF tal que I –F –E. Como G − [ 
" e I − [# , todos os pontos de
 
IG , excepto I e G , estão em ["  [# . Daqui resulta que j não corta IG e,
portanto, I e G estão do mesmo lado de j. Mas E e I estão em lados opostos de
j, por definição de I , logo E e G estão em lados opostos de j, isto é, j corta EG ,
Ø
necessariamente num ponto de [ 
"  [# e, portanto, num ponto de FH .è

Exercícios e complementos
2.1. Se nenhuns três de entre os pontos E, F, G , H são colineares, e quaisquer
dois segmentos EF , FG , GH e HE têm, quando muito, um extremo
comum, então a figura
òEFG H œ EF  FG  GH  HE,

Fig. 24

chama-se quadrilátero com vértices E, F , G e H, lados EF , FG , GH e


HE, diagonais EG e FH, e ângulos nFEH, nEHG , nFGH e nEFG .
26 GEOMETRIAS

EF e GH são lados opostos, tal como EH e FG . Dois lados com um


vértice comum dizem-se adjacentes. Um quadrilátero diz-se um quadrilá-
tero convexo sse cada lado está contido num semiplano limitado pelo lado
oposto.15
Prove que as diagonais de um quadrilátero convexo cortam-se num ponto.
Ø
[Sugestão: no quadrilátero convexo òEFGH, EG corta FH num ponto,
digamos T , tal que F–T –H, pelo teorema da barra transversal, e pela
Ø
mesma razão FH corta EG em U tal que E–U–G . Prove que T œ U.]

2.2. Mostre que se uma recta tiver um ponto no interior de um triângulo, então
ela corta algum dos lados. [Sugestão: ver a figura seguinte.]

Fig. 25

2.3. O plano da faixa omissa é um plano cuja única finalidade é mostrar que o
Teorema de Pasch (e o axioma da separação) não são, afinal, tão
«evidentes» como se poderia imaginar.
Para definir este plano consideremos, em ‘# as rectas verticais de
equações B œ " e B œ #. Então definimos como pontos os elementos do
conjunto X œ ÖÐBß CÑ − ‘# À B Ÿ " ” B  #×, e como linhas as intersec-
ções das linhas rectas ordinárias de ‘# com o conjunto X .
Com estas definições de ponto e linha, os axiomas A" -A$ são satisfeitos.
Também se define de uma maneira natural uma métrica .! que coincide
com .E se os pontos estão ambos do mesmo lado da «faixa» " Ÿ B Ÿ #, e
.! ÐT ß UÑ œ .E ÐT ß UÑ  .E ÐT! ß U! Ñ,

nos outros casos, onde T! U! œ T U  ÖÐBß CÑ À "  B Ÿ #×.


Prova-se sem dificuldade que o axioma A% é satisfeito, mas A& não (ver
figura 25): j só corta o lado FG , e não divide o plano da faixa omissa em
dois semiplanos convexos.

15Atenção à terminologia: a expressão «quadrilátero convexo» pode induzir em erro, pois


um quadrilátero não é um conjunto convexo: «quadrilátero convexo» não significa o
mesmo que «quadrilátero que é convexo». A segunda figura (fig. 24 acima) é a de um
quadrilátero que não é um quadrilátero convexo, mas a razão pela qual não é um
quadrilátero convexo não é não ser um conjunto convexo (que realmente não é), mas sim
por não ser verdade que cada lado está contido num semiplano limitado pelo lado oposto:
por exemplo, o lado EF não está contido em nenhum dos semiplanos limitados pelo lado
oposto, GH.
1. Incidência e distância 27

Fig. 26
op
2.4. Seja [ um semiplano limitado por uma recta j œ EF . Prove que para
Ø
qualquer G − [, intÐEG Ñ © [.

2.5. Mostre, com um exemplo, que a reunião de dois conjuntos convexos pode
não ser um conjunto convexo.

2.6. Mostre que se òEFGH é um quadrilátero, então também existem e são


todos iguais a òEFGH os quadriláteros ò\] ^[ , onde «\] ^[ » é
uma permutação circular qualquer de «EFGH», e também existe
òHGFE e é igual ao primeiro.

2.7. Prove que um quadrilátero é um quadrilátero convexo sse o vértice de cada


ângulo é interior ao ângulo oposto. [No quadrilátero òEFGH, o nFEH
é oposto ao nFGH, etc.]

2.8. Prove, detalhadamente, que um segmento é um conjunto convexo. Em que


condições é que a união de dois segmentos, EF  GH, é um conjunto
convexo?
Capítulo 3

Medição de ângulos
Aos conceitos primitivos de ponto, linha e distância acrescentamos agora um
outro, o de medição angularÞ Uma medição angular é uma função
7 À T Ä Ó!ß ")!Ò,
onde T é o conjunto dos ângulos geométricos. Tradicionalmente, há várias
«escalas» possíveis para a medição de ângulos, pois a unidade de medida pode ser
estabelecida arbitrariamente. Embora Euclides não utilize medidas de ângulos
como números, pode-se todavia afirmar que ele utilizou como «unidade» o ângulo
recto, que ele definiu como sendo um ângulo «igual» a um seu suplementar
adjacente (v. figuras: nFEG é suplementar adjacente do nHEG sse H–E–F ).

Fig. 27

Euclides, nos Elementos, postulou (Postulado IV) que «todos os ângulos rectos
são iguais», o que tem um significado mais profundo do que aparenta, pois
significa, na realidade, que o espaço é homogéneo (isto é, que não se deforma de
um sítio para o outro). Modernamente, o termo «iguais», nas utilizações de
Euclides que são pertinentes para o presente contexto, é traduzido por
«congruentes» e significa «igual medida». Escolhemos para medidas de ângulos
(também chamadas amplitudes) os números reais do intervalo Ó!ß ")!Ò. Tais
medidas são normalmente chamadas graus. No cálculo infinitesimal é preferida a
medida em radianos (intervalo Ó!ß 1Ò — a conversão de graus para radianos faz-se
multiplicando por 1Î")!). Também há a medida em grados (intervalo Ó!ß #!!Ò),
uma medida introduzida durante a Revolução Francesa, que impôs o estabele-
cimento do sistema métrico.
A nossa função 7 À T Ä Ó!ß ")!Ò faz corresponder a cada ângulo geométrico
nEFG um número real 7ÐnEFGÑ œ ÐnEFGÑ° do intervalo Ó!ß ")!Ò que é a
medida ou amplitude do ângulo (em graus: os elementos do intervalo Ó!ß ")!Ò).
Admitiremos os três axiomas seguintes a respeito da função 7:
28
1. Incidência e distância 29

AXIOMAS DA MEDIÇÃO ANGULAR


op
A' . Sejam E, F pontos distintos, [ um semiplano limitado pela recta EF .
Ø
Então, para todo ! − Ó!ß ")!Ò existe uma única semi-recta ET , com T − [, tal
que 7ÐnT EFÑ œ !.

Fig. 28

A( . Se H − intÐnFEGÑ, então 7ÐnFEGÑ œ 7ÐnFEHÑ  7ÐnHEGÑ.

Fig. 29 Fig. 30

A) . Se nEFG e nEFH são suplementares adjacentes (isto é, G –F –H,


op
E  FH ), então 7ÐnEFGÑ  7ÐnEFHÑ œ ")!.

O axioma A' diz-nos que há tantos ângulos nFET , com T − [, como


Ø
números reais no intervalo Ó!ß ")!Ò. Imaginando que ET vai «rodando» no sentido
anti-horário, mantendo E fixo e T variando em [, a medida vai «crescendo», por
A( , tomando todos os valores entre ! e ")!. Assim como A% é o «axioma da régua
graduada», A' é o «axioma do transferidor».

Definição Os ângulos nEFG e nHIJ dizem-se congruentes, e escreve-se


nEFG ´ nHIJ , sse tiverem a mesma amplitude, isto é 7ÐnEFGÑ œ
7ÐnHIJ Ñ.

Fig. 31
30 GEOMETRIAS

Se dois ângulos suplementares adjacentes forem congruentes, cada um deles


diz-se recto. Os ângulos nEFG e nHIJ dizem-se suplementares sse a soma das
suas medidas for ")!. Os ângulos nFEG e nHEI dizem-se verticalmente
opostos sse cada lado de um deles é a semi-recta oposta de um lado do outro.
As duas proposições seguintes resultam imediatamente de A) .

3.1 Teorema Os ângulos rectos têm amplitude *! e, portanto, todos os


ângulos rectos são congruentes uns aos outros.è

3.2 Teorema Os ângulos suplementares a um ângulo dado são aqueles que


são congruentes ao suplementar adjacente dele.è

3.3 Teorema Ângulos verticalmente opostos são congruentes.è

Fig. 32

Dem. Na figura 32, nFEG e nHEI são verticalmente opostos, e nFEG é


suplementar adjacente do nFEH e do nGEI , logo cada um destes mede
")!  7ÐnFEGÑ. Mas nHEI também é suplementar adjacente de cada um
destes.è

Definição Ângulos agudos são os que têm medida menor que *!, obtusos
os que têm medida maior que *!. Dois ângulos são complementares (adjacentes)
sse a soma das suas medidas é *! (e são adjacentes, respectivamente).

3.4 Teorema (Construção de segmentos e de ângulos)


Ø
(a) Dados um segmento EF e uma semi-recta GH , existe um único ponto
Ø
I − GH tal que EF ´ GI.16
Ø
(b) Dados um nFEG , uma semi-recta HI e um semiplano [ limitado por
op Ø
HI , existe um única semi-recta HJ com J − [ tal que nJ HI ´ nFEG .
(c) Dados os números reais B, ! tais que B  ! e !  !  ")!, uma recta
op
j œ EF e um semiplano [ limitado por j, existe um único ponto G − [ tal que
7ÐnFEGÑ œ ! e lEGl œ B.

16 O «instrumento» a que corresponde este enunciado é um transferidor de segmentos,


também conhecido dos desenhistas por compasso de pontas.
1. Incidência e distância 31

Note-se que a alínea (a) podia ter sido enunciada e demonstrada no capítulo
anterior. Por outro lado, na alínea (b) apenas se garante a existência e unicidade da
Ø
semi-recta HJ e não do próprio ponto J − [, a não ser que se exija também que
HJ ´ EG, o que pode ser feito tendo em conta (a). Finalmente, (c) resulta de
combinar (a) e (b). Vamos, por isso, demonstrar apenas as partes (a) e (b).
op
Dem. (a) Seja 0 um s.c. para GH tal que 0 G œ ! e 0 H  !, de modo que
Ø
GH œ Ö\ À 0 \   !× (teorema de colocação da régua, p. 11). Tem-se, então,
Ø
para todo o ponto \ − GH ,
l0 G  0 \ | œ |0 \ | œ 0 \ œ lG\l.
Ø
Ponhamos B œ lEFl; como 0 é bijectiva, existe um único ponto I − GH tal que
0 I œ B œ lGIl œ lEFl, logo GI ´ EF .

Fig. 33

(b) Pondo ! œ 7ÐnFEGÑ, pelo axioma A' existe uma única semi-recta
Ø
HJ , com J − [, tal que 7ÐnJ HIÑ œ !, donde nJ HI ´ nFEG .


Fig. 34
Ø
Uma bissectriz de um ângulo nGEH é uma semi-recta EF tal que
F − intÐnGEHÑ e nFEG ´ nFEH.

Fig. 35
32 GEOMETRIAS

Pelo axioma A' , com ! œ "# 7ÐnGEHÑ, resulta imediatamente o seguinte:

3.5 Teorema Todo o ângulo possui uma única bissectriz.è

3.6 Perpendicularidade
Duas rectas < e = dizem-se perpendiculares, e escreve-se < ¼ =, sse forem
concorrentes e existir um ângulo recto contido em <  = com vértice no ponto de
intersecção das duas rectas.

Fig. 36

É claro que se < ¼ =, então = ¼ <. Nas condições da figura acima, também
Ø Ø
dizemos que a semi-recta SE é perpendicular à recta < (SE ¼ <), é
Ø Ø Ø
perpendicular à semi-recta SF (SE ¼ SF ), é perpendicular ao segmento SF
Ø
(SE ¼ SF ), etc.
Demonstramos de seguida a existência e unicidade de uma perpendicular a
uma recta dada <, passando por um ponto dado T − <. O caso T Â < será
considerado mais adiante.

3.7 Teorema (Existência de perpendiculares, caso particular) Para


toda a recta < e todo o ponto T − < existe uma única recta = ¼ < passando por T .

Fig. 37
1. Incidência e distância 33

Dem. Dados T − <, seja E um ponto qualquer de < distinto de T , de modo que
op
< œ TE .
Ø
Existência: por A' , existe uma única semi-recta T F , com F num semiplano
op op
[ limitado por <, tal que 7ÐnET FÑ œ *!, logo T E ¼ T F .
Unicidade: suponhamos que > ¼ < com > ® T , com vista a provar que
op
> œ = œ T F . Como > corta < em T , existe G − [ tal que G − > e nET G é recto,
Ø
isto é, 7ÐnET GÑ œ *!, mas, por unicidade de T F acima, tem de ser
Ø Ø op
T F œ T G , donde > œ T F .è

3.8 Um modelo analítico (plano cartesiano real)


Os nossos planos (abstractos) são estruturas ÐX ß _ß .ß 7Ñ, onde X é o conjunto
dos pontos, _ é o conjunto das linhas, . é uma função distância (. À X ‚ X Ä ‘) e
7 uma função de medição angular (7 À T Ä Ó!ß ")!Ò) satisfazendo os axiomas
A" -A) . Na realidade, é possível, utilizando apenas os axiomas A" -A& , contruir uma
função 7 com as propriedades A' -A) , mas isso é bastante demorado e trabalhoso,
pelo que preferimos admitir 7 como conceito primitivo e assumir estas
propriedades como axiomas. Todavia, admitindo um pouco de geometria analítica
do plano cartesiano real (‘# ), nomeadamente, a estrutura de espaço vectorial real
(de dimensão #) com produto interno, podemos definir uma função 7 com as
propriedades A' -A) .
Para a estrutura vectorial de ‘# identificam-se os pontos T œ ÐB" ß C" Ñ com os
Û
vectores ST aplicados na origem S œ Ð!ß !Ñ; se T œ ÐB" ß C" Ñ e U œ ÐB# ß C# Ñ, a
soma vectorial de T e U é o vector T  U œ ÐB"  B# ß C"  C# Ñ, o produto
escalar de - − ‘ por T define-se por -T œ Ð-B" ß -B# Ñ; a base canónica é
constituída por I" œ Ð"ß !Ñ e I# œ Ð!ß "Ñ, e qualquer vector se exprime como
combinação linear de I" e I# : se T œ ÐB" ß C" Ñ, então
Û
T œ ST œ T  S œ B" I"  C" I#
O produto interno canónico de T œ ÐB" ß C" Ñ e U œ ÐB# ß C# Ñ é definido por
T l U œ B" B#  C" C# ,17

a função norma m † m À ‘# Ä ‘ associada é definida por mT m œ ÈT l T œ


ÈB#"  C"# , e a distância associada a esta norma é precisamente a distância
euclidiana usual
.E ÐT ß UÑ œ mT  Um œ ÈÐB"  B# Ñ#  ÐC"  C# Ñ# .
Para definir 7 œ 7E utiliza-se a conhecida desigualdade de Cauchy-Schwarz
lB t m † mCtm,18
t l Ct l Ÿ mB

17 Outras notações que se encontram na literatura para o produto interno dos vectores T e
U são:  T ß U  , T ì U.
18 Dem. A desigualdade é obviamente verdadeira se um, pelo menos, dos vectores for nulo.
Suponhamos, pois, que nenhum dos vectores é nulo, e consideremos a função real de
34 GEOMETRIAS

Û Û
onde B
t œ ST , Ct œ SU, donde resulta que, para B t e Ct não nulos, se tem sempre
Bt l Ct
" Ÿ mBtm†mCtm Ÿ ", logo existe um único número real ) − Ò!ß ")!Ó tal que

Bt l Ct
cos ) œ .
mB
t m † mCtm
Define-se então, para quaisquer pontos E, F , G não colineares,
ÐE  FÑlÐG  FÑ
7ÐnEFGÑ œ arccos .
mE  Fm † mG  Fm

na recta de equação C œ Ð"  È#ÑB, e é definida pelas condições


Se, por exemplo, E œ Ð"ß !Ñ, F œ Ð"ß "Ñ, a bissectriz do nESF está contida

È
SG : œ C œ Ð"  #ÑB
Ø
! Ÿ B,
donde
7ÐnESFÑ
7ÐnESGÑ œ œ ##ß &.
#

Fig. 38 Fig. 39

As rectas também podem ser descritas vectorialmente. Para qualquer ponto T e


qualquer vector @t Á !t, a recta que passa por T com vector director @t é o conjunto
de pontos
T  Ø@tÙ œ ÖT  >@t À > − ‘×,
quer dizer, um ponto genérico \ œ \Ð>Ñ da recta que passa por T com vector
director @t é da forma \Ð>Ñ œ T  >@t para algum > − ‘ (fig. 39).

variável real 0 definida por 0 Ð>Ñ œ mB t # œ ÐB


t  >Cm t  >Ct Ñ l ÐB
t  >Ct Ñ (> − ‘). Pelo teorema
3, tem-se 0 Ð>Ñ   0 para todo > − ‘, sendo 0 Ð>Ñ œ ! sse B t œ >Ct . Por outro lado, 0 Ð>Ñ é um
polinómio do 2.º grau em >, a saber, 0 Ð>Ñ œ mCm t # >#  #ÐB t # , e, como é sempre
t ± Ct Ñ>  mBm
não-negativo, tem quando muito uma raiz real, o que implica que o descriminante é não
positivo: ? œ Ð#ÐB t ± Ct ÑÑ#  %mCm
t # mBm
t # Ÿ 0, donde ÐB t ± Ct Ñ# Ÿ mCm
t # mBmt # , ou seja,
t ± Cl
lB t Ÿ mBt m † mCt m. Além disso, como 0 Ð>Ñ œ ! sse lB t ± Cl
t œ mBmt mCmt , tem-se que
t ± Cl
lB t œ mBm
t mCm t sse B t e Ct são proporcionais.è
1. Incidência e distância 35

Daqui obtemos as equações paramétricas

œ CÐ>Ñ œ C  >,
BÐ>Ñ œ B!  >+
(> − ‘),
!

onde T œ ÐB! ß ,C! Ñ, @t œ Ð+ß ,Ñ, e a partir destas, eliminando >, obtém-se uma
equação cartesiana.

Exercícios e complementos
3.1. Verdade ou falso?
(a) ")! œ 1;
Ø
(b) se 7ÐnEFGÑ œ 7ÐnGFHÑ, então FG é a bissectriz do nEFH;
(c) se a união de duas rectas (distintas) contém um ângulo recto, então ela
contém 4 ângulos rectos.

3.2. Defina trissectriz de um ângulo e prove que todo o ângulo possui duas
trissectrizes.

3.3 t , Ct − ‘# , mB
Prove que para quaisquer vectores B t  Ctm Ÿ mB
t m  mCtm. Em
que condições se tem a igualdade? Deduza também que lmB t m  mCtml Ÿ
#
mB
t  Ctm. [Sugestão: desenvolva mBt  Ctm , e desigualdade de Cauchy-
Schwarz.]

3.4 Chama-se projecção (ortogonal) de B t sobre Ct Á !t ao vector projCt B


t œ >Ct,
#
onde > œ ÐB t ± CtÑÎmCtm . Determine as projecções de Ð"ß #Ñ sobre os
vectores da base canónica e sobre o vector Ð"ß "Ñ, e o ângulo entre Ð"ß #Ñ e
cada um dos outros vectores indicados.
Capítulo 4

Congruência de triângulos
Já definimos anteriormente a congruência de segmentos e de ângulos, que
significa essencialmente «mesma medida». É a vez dos triângulos, em que
«congruência» significará «mesmas medidas» (de lados e de ângulos). Este assunto
é dos mais importantes em toda a geometria, já que a resolução de muitos
problemas em geometria elementar passa pela comparação de dois ou mais
triângulos, e também questões como as de «distância (mais curta) de um ponto a
uma recta».
A comparação de dois triângulos faz-se sempre através de uma
correspondência (bijectiva) entre os vértices de um e do outro. Para os triângulos
˜ EFG e ˜ HIJ , um exemplo de uma tal correspondência (das várias
possíveis — há, ao todo, seis) é
E Ó H, F Ó I , G Ó J .19

Fig. 40

Esta correspondência entre os vértices induz uma correspondência entre os


lados e os ângulos de um e de outro, nomeadamente,
EF Ó HI , FG Ó IJ , EG Ó HJ ,
e nE Ó nH, nF Ó nI , nG Ó nJ .20
Fixada uma tal correspondência entre os vértices, lados e ângulos que se
correspondem dizem-se correspondentes ou homólogos.

19 Esta é uma maneira rápida e prática de indicar uma função bijectiva entre os conjuntos
de vértices, ÖEß Fß G× e ÖHß Iß J ×, dos dois triângulos, respectivamente.
20 Escrevemos simplesmente nE em vez de nFEG , etc., quando não houver possibilidade
de confusão.
36
1. Incidência e distância 37

Definição Os triângulos ˜ EFG e ˜ HIJ dizem-se congruentes sse


existir uma correspondência entre os vértices de um e de outro de tal modo que
lados correspondentes são congruentes e ângulos correspondentes são congruentes.

Notação No caso (e somente nesse caso!) de a correspondência ser E Ó H,


F Ó I e G Ó J , e, além disso, ˜ EFG e ˜ HIJ serem congruentes,
escrevemos
˜ EFG ´ ˜ HIJ .

Fig. 41

Note-se que, por exemplo, « ˜ EFG ´ ˜ HIJ » não significa o mesmo que
« ˜ EFG ´ ˜ IJ H» (aqui, a correspondência é E Ó I , etc.). Assim, ao
afirmarmos algo como « ˜ EFG ´ ˜ \] ^ » estamos implicitamente a afirmar
que a correspondência E Ó \ , F Ó ] e G Ó ^ (esta, e não outra qualquer)
é tal que lados correspondentes são congruentes e ângulos correspondentes são
congruentes.
Admitiremos como axioma o conhecido «critério LAL» (lado-ângulo-lado).

AXIOMA DA CONGRUÊNCIA DE TRIÂNGULOS (LAL)


A* . Se, nos triângulos ˜ EFG e ˜ HIJ , a correspondência E Ó H,
F Ó I e G Ó J for tal que EF ´ HI , nE ´ nH e EG ´ HJ , então
˜ EFG ´ ˜ HIJ .

Fig. 42

É este axioma que vai legitimar a ideia de «sobreposição» de dois triângulos,


que é utilizada por Euclides em muitas demonstrações e está também na base da
ideia de «movimento rígido» (ou «isometria»), um conceito muito importante na
geometria moderna.
Um triângulo é isósceles se tiver dois lados congruentes (pelo menos); ao
terceiro lado é costume chamar base do triângulo.
38 GEOMETRIAS

4.1 Teorema («Pons asino-


rum») Num triângulo isósceles, os
ângulos da base são congruentes.

Dem. Supondo EF ´ EG , e
atendendo a que nE ´ nE vê-se,
por A* , que ˜ EFG ´ ˜ EGF .è
Fig. 43

Nota histórica. Esta demonstração, muito simples, não é a original de


Euclides. A demonstração que se encontra nos Elementos era conhecida na Idade
Média como um teste à capacidade dos estudantes de prosseguirem estudos mais
avançados. A forma da figura que acompanhava a demonstração de Euclides era
sugestiva de uma «ponte», a que alguém humoristicamente chamou «ponte dos
burros». Deve dizer-se, todavia, que há outras explicações para aquela designação.

Um triângulo equilátero é um triângulo com os três lados congruentes entre si, e


um triângulo equiângulo é um triângulo com os três ângulos congruentes entre si.

4.2 Corolário Todo o triângulo equilátero é equiângulo.è

4.3 Teorema (Recíproco do «pons asinorum») Um triângulo com dois


ângulos congruentes é isósceles.

Fig. 44

Dem. Seja dado o ˜ EFG com nF ´ nG . Provamos que EF ´ EG .


Supondo, com vista a um absurdo, que não se tem lEFl œ lEGl, digamos
lEFl  lEGl (o caso lEFl  lEGl é análogo), marcamos em EF um ponto H tal
que FH ´ EG , donde nHFG ´ nECF por hipótese, FG ´ GF e FH ´ GE,
logo ˜ HGF ´ ˜ EFG por LAL, logo nHGF ´ nEFG ´ nFGE, contra o
axioma A' [pois H − intÐnEGFÑ].è

4.4 Teorema (Critério ALA) Se nos triângulos ˜ EFG e ˜ HIJ se tem


EF ´ HI , nE ´ nH e nF ´ nI , então ˜ EFG ´ ˜ HIJ .

Dem. Semelhante à de 4.3. Supondo, com vista a um absurdo, que EG ý HJ ,


digamos lEGl  lHJ l, marcamos em EG um ponto K tal que EK ´ HJ ; por
1. Incidência e distância 39

LAL vem ˜ EFK ´ ˜ HIJ donde nEFK ´ nHIJ ´ nEFG , contra A(


(ou A' ).

Fig. 45

Analogamente, não pode ser lEGl  lHJ l. Portanto EG ´ HJ , donde


˜ EFG ´ ˜ HIJ , novamente por LAL.è

Definição Um ângulo externo de um triângulo é um ângulo suplementar


adjacente de um ângulo do triângulo e, relativamente àquele, os outros dois
ângulos dizem-se internos remotos.

Fig. 46

4.5 Teorema do ângulo externo Todo o ângulo externo de um


triângulo é maior do que qualquer interno remoto.

Dem. Sendo H tal que G –E–H, mostramos que o ângulo externo nFEH é
maior do que o nF , isto é, que 7ÐnFEHÑ  7ÐnFÑ. Argumento análogo
mostraria que o verticalmente oposto nGEI (com I tal que F –E–I ) é maior do
que o nG .

J 31Þ 47
40 GEOMETRIAS

Seja Q o ponto médio de EF , K um ponto tal que G –Q –K e GQ ´ Q K.


op
Como G e K estão em lados opostos de EF e G e H também, então K e H estão
op op
do mesmo lado de EF . Além disso, K, Q e F estão do mesmo lado de EH
op
(porque EH não corta KQ nem Q F ) logo K − intÐnFEHÑ. Então, por LAL,
˜ FQ G ´ ˜ EQ K, donde nKEQ ´ nF . Como K é interior ao nFEH,
temos
7ÐnFEHÑ œ 7ÐnFEKÑ  7ÐnKEHÑ  7ÐnFEKÑ œ 7ÐnFÑ.è
A(

4.6 Teorema Num triângulo isósceles ˜ EFG com base FG , a recta que
passa por E e pelo ponto médio da base é perpendicular à base e bissecta o nE.

Fig. 47

Dem. Por hipótese e pons asinorum, EF ´ EG e nF ´ nG donde, por LAL,


˜ Q FE ´ ˜ Q GE, logo nFQ E ´ nGQ E e, portanto, ambos estes ângulos
op op
são rectos, logo EQ ¼ FG . Também nFEQ ´ nGEQ , logo EQ bissecta o
nE.è

Este teorema vai permitir construir a perpendicular a uma recta dada, j,


passando por um ponto E Â j. Recorde-se que já fizemos a construção da
perpendicular a j passando por um ponto T − j (Teorema 3.7, pág. 32).

4.7 Teorema (Existência de perpendiculares, caso geral) Para toda a


recta j e todo o ponto E, existe uma única perpendicular a j passando por E.

Dem. No teorema 3.7 foi considerado o caso particular E − j. Falta apenas


considerar, portanto, o caso E Â j. Pelo teorema do ângulo externo, não há mais de
uma perpendicular a j passando por E.

Fig. 48
1. Incidência e distância 41

Para provar que existe, pelo menos, uma perpendicular a j passando por E,
op op
tomem-se ao arbítrio F , G − j. Se for EF ¼ j (ou EG ¼ j), o problema está
resolvido. Se não for, construa-se no lado oposto de E relativamente a j um ponto
H tal que nEFG ´ nHFG e EF ´ FH (construção de ângulos e segmentos).
Então ˜ EFH é isósceles de base EH, por LAL, e se T é o ponto onde EH corta
j, então ˜ ET F ´ ˜ HT F , donde nET F ´ nHT F , e como estes dois
ângulos são suplementares adjacentes, tem-se EH ¼ j.


Fig. 49

4.8 Teorema (Critério LLL) Se os triângulos ˜ EFG , ˜ HIJ são tais


que EF ´ HI , EG ´ HJ , e FG ´ IJ , então ˜ EFG ´ ˜ HIJ .

Dem. Por LAL, basta mostrar que nE ´ nH. Sem perda de generalidade
op
podemos supor que I œ F e J œ G , e que E e H estão em lados opostos de FG
(pense no teorema da construção de ângulos e segmentos, pág. 30). Há três casos a
op
considerar, conforme a posição relativa do ponto T em que EH corta FG ,
figurados a seguir:

Caso F –T –G Caso F –G –T (ou G –F –T ) Caso T œ G (ou T œ F )


Fig. 50

Fazemos a demonstração apenas no 1.º caso, em que F –G –T , deixando os


outros casos como exercícios.
42 GEOMETRIAS

Como o ˜ EFH é isósceles de base EH, temos nFEH ´ nFHE, por pons
asinorum. Analogamente nGEH ´ nGHE, donde
7ÐnEÑ œ 7ÐnFEHÑ  7ÐnGEHÑ œ 7ÐnFHEÑ  7ÐnGHEÑ œ 7ÐnH).è

O último critério de congruência de triângulos é o seguinte.

4.9 Teorema (Critério LAA) Se os triângulos ˜ EFG e ˜ HIJ são tais


que EF ´ HI , nF ´ nI e nG ´ nJ , então ˜ EFG ´ ˜ HIJ .

Dem. Sem perda de generalidade (pense no teorema da construção de ângulos


op
e segmentos) podemos supor E œ H, F œ I , G e J do mesmo lado de EF .

Fig. 51

Constate-se que a figura acima é impossível com lFGl  lIJ l (e também com
lFGl  lIJ l), pois o nFGE é externo de ˜ EGJ .è

Consideremos novamente a figura que acompanha a demonstração do teorema


4.5 (teorema do ângulo externo, p. 39):

Fig. 52

É claro que
7ÐnGEKÑ œ 7ÐnGEFÑ  7ÐnGFEÑ
(4.1)
œ # ww  # w (figura 52)
e, portanto,
1. Incidência e distância 43

7ÐnGEFÑ  7ÐnGFEÑ œ # w  # ww  ")!,


podendo, por conseguinte, concluir-se que:

4.10 Lema da soma de dois ângulos de um triângulo Num


triângulo, a soma das medidas de dois ângulos é menor que ")!.è

Podemos até afirmar um pouco mais. Continuando a utilizar as notações


explícitas na figura 52 acima, notemos que
!" œ 7ÐnEKGÑ  7ÐnEGKÑ
(4.2)
œ 7ÐnFGKÑ  7ÐnKGEÑ œ 7ÐnFGEÑ
logo, por (4.1), os triângulos ˜ EFG e ˜ EKG têm a mesma medida angular
(isto é, as somas das medidas dos seus ângulos são iguais, respectivamente):
!  "  # w  # ww .
Além disso, por (4.2), um dos ângulos nEGG (!), nEGK (" ) tem amplitude

Šœ ‹.
7ÐnFGEÑ !"
Ÿ
# #
Assim, mantendo constante a soma angular, podemos sempre encontrar um
outro triângulo ( ˜ EKG ) cujo menor ângulo é Ÿ a metade do menor ângulo do
triângulo inicial ( ˜ EFG : na figura acima, é supor que o nFGE é de amplitude
mínima ou minimal). Iterando esta construção quantas vezes forem necessárias,
obtemos um triângulo com soma angular igual à do triângulo dado ( ˜ EFG ) mas
em que um dos ângulos é tão pequeno quanto se quiser. Isto quer dizer que a soma
angular de um triângulo nunca pode ser maior do que ")!: se fosse igual a
")!  $ , com $  !, podia-se construir um triângulo com a mesma soma angular,
em que um dos ângulos media Ÿ $ , logo a soma dos outros dois ângulos teria de
ser maior ou igual a ")!, contra o que diz o Lema 4.10. Expresso de outra maneira,
temos o importante e característico

4.11 Teorema de Saccheri-Legendre A soma angular de um triângulo


é menor ou igual a ")!.è

Mais precisão do que esta sobre o valor da soma angular não se pode inferir,
com base nos axiomas admitidos. Na realidade, falta apenas um axioma para
completar a lista de axiomas para a Geometria Euclidiana Plana — o axioma de
paralelismo. Sem esse axioma, tudo o que temos feito até aqui é comum à
Geometria Euclidiana e à Geometria Hiperbólica e constitui a chamada geometria
neutra ou geometria absoluta.
Um modelo da Geometria Hiperbólica Plana é o semiplano de Poincaré (pág.
19), com distância . e medição angular 7 definidas de maneira conveniente. Na
Geometria Hiperbólica, todos os triângulos têm soma angular menor do que ")!.
44 GEOMETRIAS

Fig. 53

Exercícios e complementos
4.1. A figura seguinte explica por que razão não existe nenhum critério LLA
(lado-lado-ângulo): ˜ EFG e ˜ EFH não são congruentes, mas tem-se
EG ´ EH, EF ´ EF e nEFG ´ nEFH.

Fig. 54

Prove que:
(a) Se EF ´ HI , EG ´ HJ e nGFE ´ nJ IH mas os triângulos
˜ EFG e ˜ HIJ não são congruentes, então lGFl  lIJ l ou
lGFl  lIJ l (faça uma figura ilustrativa).
(b) Se lGFl  lIJ l, então 7ÐnFGEÑ  *!.

4.2. Demonstre o seguinte critério HC (Hipotenusa-Cateto) de congruência


de triângulos rectângulos (triângulos com um ângulo recto):
Se dois triângulos tiverem as hipotenusas e um dos catetos
congruentes, então eles são congruentes.

4.3. Um paralelogramo é um quadrilátero convexo òEFGH cujos lados


opostos são congruentes: EF ´ HG , FG ´ EH. Mostre que
(a) os ângulos opostos são congruentes;
(b) as diagonais intersectam-se no ponto médio de ambas;
(c) òEFGH é um losango (isto é, os quatro lados são congruentes) sse as
duas diagonais intersectam-se perpendicularmente.

4.4. A independência do axioma LAL relativamente aos restantes prova-se por


meio do seguinte modelo ÐX ß . w ß 7Ñ, onde X œ ‘# , 7E (como no exemplo
1. Incidência e distância 45

3.8), . w só difere da distância euclidiana .E nos pontos de uma recta fixada


arbitrariamente, j! , da seguinte maneira: se T , U − j! , . w œ #.E ÐT ß UÑ.
(a) Prove que ÐX ß . w ß 7Ñ satisfaz o axioma A% (só tem que encontrar um s.c.
para j! ).
(b) Mostre que ÐX ß . w ß 7Ñ não satisfaz o axioma LAL [Sugestão: considere dois
tipos de triângulos congruentes em Б# ß . w ß 7Ñ, de tal modo que um deles
tem um lado contido em j! mas o outro não:

.]
Fig. 55
Capítulo 5

Desigualdades geométricas
Nesta secção demonstramos, entre outras coisas, a desigualdade triangular, a
qual está na base da ideia de que «o caminho mais curto entre dois pontos é em
linha recta»

5.1 Teorema Num triângulo, a lado maior opõe-se ângulo maior, e


reciprocamente.21

Dem. Explicitando o enunciado, demonstramos que, num triângulo qualquer


˜ EFG , se tem 7ÐnEÑ  7ÐnFÑ sse lFGl  lEGl.

Fig. 56

( É ) Supondo lFGl  lEGl, marcamos em FG um ponto H tal que


GH ´ GE. Como ˜ EHG é isósceles, temos
7ÐnEÑ  7ÐnHEGÑ œ 7ÐnEHGÑ  7ÐnFÑ,
porque nEHG é ângulo externo do ˜ EFH.
( Ê ) Supondo 7ÐnEÑ  7ÐnFÑ, não pode ser FG ´ EG , caso contrário
seria nE ´ nF (por pons asinorum); nem pode ser lFGl  lEGl, pois viria
7ÐnEÑ  7ÐnFÑ pela parte ( É ). Então só pode ser lFGl  lEGl.è

21 Enuncia-se este teorema, por vezes, dizendo que, num triângulo, ao maior lado se opõe o
maior ângulo, e vice-versa, mas é claro que pode não haver nenhum lado (ou ângulo) maior
do que todos os outros sem que, por isso, se deixe de aplicar o teorema, como resulta óbvio
do começo da demonstração, que torna mais preciso o enunciado.
46
1. Incidência e distância 47

5.2 Teorema [Desigualdade triangular (estrita)] Num triângulo,


qualquer lado é menor do que a soma dos outros dois.

Dem. O enunciado refere-se, obviamente, aos comprimentos dos lados do


triângulo. Provamos que, no ˜ EFG , lEGl  lEFl  lFGl.

Fig. 57

Tome-se H tal que E–F –H e FH ´ FG , logo ˜ FGH é isósceles e


nEHG œ nFHG ´ nFGH e 7ÐnFGHÑ  7ÐnEGHÑ, logo, pelo teorema
5.1, aplicado ao ˜ EHG , lEGl  lEHl œ lEFl  lFHl œ lEFl  lFGl.è

Já temos a igualdade lEFl œ lEGl  lFGl no caso E–G –F , G œ E ou


G œ F, pelo que, em geral,
lEFl Ÿ lEGl  lGFl.
Sendo +, ,, - os comprimentos dos lados de um triângulo tem-se sempre, pelo
teorema 5.2,
+  ,  -, ,  +  -, -  +  ,. (5.1)
Questão bem diferente é a de saber se, dados 3 números reais positivos +, , e -
que satisfazem as condições (5.1), existe um triângulo cujos lados têm aqueles
comprimentos? A resposta é afirmativa, mas a demonstração é, na realidade,
bastante mais difícil do que se poderia imaginar. A ideia é a seguinte.
Chama-se circunferência com centro E e raio EF ao conjunto
V œ Ö\ À lE\l œ lEFl×.
Por abuso, também chamamos raio de V ao número positivo < œ lEFl.
Dados então +, ,, -  ! tais que (5.1) e supondo lEFl œ - , lEGl œ , ,
lFHl œ +, consideramos as circunferências V" œ Ö\ À lE\l œ ,×, V# œ
Ö\ À lF\l œ +×.
O problema é demonstrar que V" e V# se intersectam (exercício 5.5,
desenvolvimento no Cap. 9) exactamente em dois pontos, digamos I e I w (v.
figura 58). Quer ˜ EFI quer ˜ EFI w satisfazem o pedido.
48 GEOMETRIAS

Fig. 58

5.3 Distância de um ponto a uma recta (que não passa pelo ponto) é a
distância do ponto ao pé da perpendicular à recta passando pelo ponto.

Fig. 59

Pelo teorema 5.1, esta distância de E a j (E Â j) que se designa por .ÐEß jÑ, é
a mais curta distância de E a pontos de j. De facto, para qualquer ponto G − j,
lEFl  lEGl, onde F é o pé da perpendicular a j passando por E pois, no
˜ EFG , EG opõe-se ao nEFG , que é recto e que é, portanto, o maior ângulo do
triângulo, pelo lema 4.10.

5.4 A mediatriz de um segmento é a perpendicular no ponto médio do


segmento. Se Q é o ponto médio do segmento EF , qualquer ponto G Á Q
equidistante de E e de F pertence à mediatriz de EF , pelo teorema 4.6 (pois o
˜ GEF é isósceles). Reciprocamente, qualquer ponto G da mediatriz de EF é
equidistante de E e F , pois, por LAL, ˜ EQ G ´ ˜ FQ G , donde GE ´ GF .
1. Incidência e distância 49

Fig. 60

Em conclusão, temos a seguinte propriedade característica das mediatrizes: a


mediatriz de um segmento EF é o lugar geométrico dos pontos do plano
equidistantes de E e de F.22
Também é fácil mostrar que:

5.5 Teorema A mediatriz de um segmento é o lugar geométrico dos pontos


do interior do ângulo equidistantes dos lados, juntamente com o vértice do ângulo.

Para que o próprio conceito de distância entre duas rectas estritamente parale-
las faça sentido, necessitamos de mais um axioma, o último, a ser introduzido na
secção seguinte.

Exercícios e complementos
5.1. Seja H − intÐ ˜ EFGÑ. Mostre que lFHl  lHGl  lEFl  lEGl e
7ÐnFHGÑ  7ÐnFEGÑ. [Sugestão: seja I tal que E–I –G e F –H–I
(existe tal I , porquê?) e aplique a desigualdade triangular a ˜ FEI e a
˜ HIG.]

5.2. Seja Q o ponto médio do lado FG do ˜ EFG . Mostre que


lEQ l  "# ÐlEFl  lEGlÑ. [Sugestão: prolongue EQ até H tal que
lEQ l œ lQ Hl.]

22Na Geometria, «lugar geométrico» e «figura (geométrica)» são palavras sinónimas de


«conjunto de pontos».
50 GEOMETRIAS

*5.3. Sejam j uma recta, E Â j, e F o pé da perpendicular a j passando por E.


(a) Mostre que se G , H − j são tais que lFGl  lFHl, então lEGl  lEHl.

Fig. 61

(b) Seja 0 À j Ä ‘ um s.c. tal que 0 F œ !. Mostre que a função 2 À ‘ Ä ‘


definida por 2ÐBÑ œ lE0 " ÐBÑl é:
(i) contínua;
(ii) estritamente monótona em cada intervalo Ò!ß _Ò e Ó_ß !Ó;
(iii) uma função par [isto é, 2ÐBÑ œ 2ÐBÑ para todo B − ‘];
(iv) lim 2ÐBÑ œ _.
BÄ„_
(c) Conclua a seguinte:
Propriedade da Continuidade Elementar Se uma recta
tiver um ponto interior a uma circunferência, então corta a circunferência
em exactamente dois pontos.23

5.4. Demonstre o seguinte:


Teorema da Charneira Se ˜ EFG e ˜ HIJ são tais que
EF ´ HI , FG ´ IJ e 7ÐnEFGÑ  7ÐnHIJ Ñ, então
lEGl  lHJ l.

*5.5. O exercício anterior tem a seguinte consequência:


Propriedade da Continuidade Circular Se V" e V# são duas
circunferências tais que V" tem pontos no interior e outros no exterior de V# , então
V" e V# intersectam-se em exactamente dois pontos, um em cada semiplano
limitado pela recta que passa pelos centros das circunferências.

Fig. 62

23Um ponto interior a uma cirfunferência é um ponto cuja distância ao centro é menor do
que o raio.
1. Incidência e distância 51

[Ideia da prova: observar a figura anterior. Imaginando um ponto T que


op
percorre uma das semi-circunferências em que j œ EF divide V" , no sentido
dos ângulos nT EF crescentes, lT Fl cresce estritamente e é mesmo uma
função contínua do ângulo nT EF (ou da sua medida, !). Atendendo à
hipótese sobre as circunferências V" e V# e ao teorema dos valores intermédios,
existe um !! para o qual lT Fl é igual ao raio de V# .]

*5.6. No triângulo ˜ EFG , a bissectriz de nE corta FG no ponto U. Prove


que lEFl  lEGl sse lUFl  lUGl.

5.7. Um quadrilátero de Saccheri é um quadrilátero convexo òEFGH tal


que os ângulos da base EH, nE e nH, são ambos rectos e as alturas EF e
HG são congruentes.

Fig. 63

Prove que, num quadrilátero de Saccheri,


(a) as diagonais EG e FH são congruentes;
(b) ˜ HGF ´ ˜ EFG ;
(c) nF ´ nG e são ambos de medida menor ou igual a *!;
(d) lFGl   lEHl. [Sugestão: nEFH Ÿ nF DG e Exercício 5.4.]

5.8. Se òEFGH é um quadrilátero de Saccheri de base EH e Q , R são os


pontos médios de EH e FG , respectivamente, então:
(a) Q R ¼ EH e Q R ¼ FG ;
(b) lQ R l Ÿ lEFl;
[Sugestão: que aconteceria se os catetos do triângulo rectângulo ˜ Q R F
fossem maiores do que os catetos do ˜ FEQ ?]
op op
(c) Se T , U são pontos quaisquer de EH e EF , respectivamente, então
lT Ul   lQ R l.
Capítulo 6

Paralelismo
A existência de paralelas estritas não é problemática. O teorema seguinte
fornece mesmo uma maneira de construir uma paralela a uma recta dada j
passando por um ponto T Â j. Não se pode é garantir (com base nos axiomas A" -
A* ) que essa é a única paralela a j passando por T . Para a unicidade é que é
preciso um novo axioma.

6.1 Teorema dos ângulos alternos internos Se as rectas < e =


cortadas por uma recta > formam com esta um par de ângulos alternos internos
congruentes, então < ² =.

Antes da demonstração convém recordar algumas definições ou designações


de pares de ângulos determinados por uma recta > que corta outras duas rectas < e
=, conforme a figura seguinte:

Fig. 64

Os pares s - , 0s e s
., s
/ dizem-se alternos internos; os pares s /es
-, s . , 0s dizem-se
internos do mesmo lado (de >); os pares s s es
+, 2 ,, s
1 dizem-se alternos externos; os
+, s
pares s s s
1 e , , 2 dizem-se externos do mesmo lado; os pares s +, s
/; s 1; s
-, s , , 0s e s s
., 2
dizem-se correspondentes.

Dem. Supondo então que ! œ " (alternos internos), se < e = se intersectassem,


ficaríamos com um triângulo com um ângulo externo congruente a um interno
remoto, contra o teorema 4.5 (do ângulo externo).

52
1. Incidência e distância 53


Fig. 65

A partir daqui temos duas opções no desenvolvimento da geometria.


Admitindo a unicidade da paralela a < passando por T Â < estamos no domínio
específico da Geometria Euclidiana (plana). Admitindo que por T passa mais de
uma paralela a < entramos no domínio da Geometria Hiperbólica (plana).24

AXIOMA DE PARALELISMO DE HILBERT


A"! . Para toda a recta < e todo o ponto T Â < há, quando muito, uma paralela
a < passando por T .25

Os resultados seguintes são exclusivos da Geometria Euclidiana, já que são


falsos em modelos de Geometria Hiperbólica.

6.2 Teorema recíproco do teorema dos ângulos alternos-internos


Se as rectas < e = estritamente paralelas forem cortadas por uma transversal >,
então os ângulos de um par de alternos-internos são congruentes.

Fig. 66

24 É claro que há ainda a possibilidade de por T Â 6 não passar nenhuma paralela a 6. Esta
possibilidade é assumida na chamada Geometria Elíptica (plana) mas, ao contrário do que
acontece com a Hiperbólica, é necessário modificar alguns dos axiomas anteriores,
nomeadamente, os da incidência, pois deixa de ser verdade, naquela, que dois pontos
determinem uma linha recta. [Pense numa superfície esférica e em dois pólos.]
25 Talvez seja mais conhecida a versão de John Playfair (de que, por T Â j, passa uma
única paralela a j), mas esta versão contém uma parte redundante, visto que se demonstra,
na geometria neutra, a existência de paralelas (aplicando o teorema dos ângulos alternos-
internos)
54 GEOMETRIAS

Dem. Seja T o ponto de intersecção de < e > (figura 66), U o ponto de


intersecção de = e >, E − < e F − = em lados opostos de >, de modo que nET U e
nT UF são alternos internos, digamos com medidas ! e " , respectivamente.
Suponhamos que !  " (o caso !  " é análogo), com vista a um absurdo.
Ø
Do mesmo lado de > que E obtemos T G tal que 7ÐnUT GÑ œ " logo
op op
T G ² UF por 6.1, contradizendo o axioma do paralelismo. Portanto ! œ " .è

6.3 Corolário
(a) Se < ² =, então qualquer recta perpendicular a < é perpendicular a =;
(b) A relação de paralelismo, no conjunto das rectas, é transitiva.è

6.4 Teorema da soma angular A soma das medidas dos ângulos de um


triângulo é ")!.

Fig. 67
op
Dem. Tiremos por E a única paralela a EF . Utilizando 6.2, vê-se que
!  "  # œ ")!, conforme a figura acima.è

Prova-se (mas não é fácil!) que o teorema 6.4 implica, por sua vez, o axioma
A"! .

Exercícios e complementos
6.1. Todo o triângulo pode ser inscrito numa circunferência. [Sugestão: pense
nas mediatrizes dos lados e prove, por absurdo, que não são paralelas.]

6.2 Prove que para quaisquer rectas <, =, > e ?, se < ² =, > ¼ < e ? ¼ =, então
> ² ?. Prove, ainda (sem utilizar o axioma de paralelismo de Hilbert!), que
esta proposição implica, por sua vez, o axioma de paralelismo de Hilbert.
Capítulo 7

Semelhança de triângulos
Antes de dar a definição de triângulos semelhantes precisamos de alguns
resultados sobre certo tipo de quadriláteros. No exercício 2.1 definiu-se
quadrilátero convexo como um quadrilátero òEFGH tal que cada lado está
contido num semiplano limitado pela recta que contém o lado oposto.

Fig. 68

Considerando, por exemplo, a diagonal EG e aplicando o teorema da soma


angular a cada um dos triângulos ˜ EFG e ˜ EGH verificamos que a soma dos
ângulos do quadrilátero convexo òEFGH é $'!.
Usando agora o teorema dos ângulos alternos internos, o seu recíproco e o
teorema da soma angular 6.4, verificamos que são equivalentes as condições:

(1) os ângulos opostos do quadrilátero convexo òEFGH são congruentes


(isto é, nE ´ nG e nF ´ nH);
(2) os lados opostos do quadrilátero convexo òEFGH são paralelos, no
sentido: estão contidos em rectas paralelas (escrevemos EF ² GH para
op op
significar EF ² GH , de modo que se tem EF ² GH e EH ² FG .

Fig. 69

55
56 GEOMETRIAS

De facto, a implicação (2) Ê (1) é imediata, utilizando o recíproco do teorema


dos ângulos alternos internos. E quanto à implicação (1) Ê (2) (utilizando também
o axioma de paralelismo), considere-se a figura seguinte com os ângulos
assinalados de + a 2, onde se utilizou o facto (exercício) de que as diagonais de um
quadrilátero convexo se intersectam num ponto.

Fig. 70

Ora, as nossas hipóteses (2) são que


+  , œ 1  2 e -  . œ /  0.
op op
Provamos que , œ 1, donde EF ² GH , pelo teorema dos ângulos alternos
internos. Tem-se, é claro,
(‡ ) +  ,  -  . œ 1  2  /  0,
mas +  -  3 œ 0  2  3 œ ")!, logo +  - œ 0  2 , donde, simplificando em
(‡), ,  . œ /  1, mas como também ,  / œ .  1 , somando membro a membro
vem #, œ #1 e, portanto, , œ 1, como queríamos.
op op
Raciocínio análogo prova que + œ 2, logo também EH ² FG .

Um quadrilátero convexo que satisfaça uma das condições (1), (2) acima (e,
portanto, também a outra) é um paralelogramo. De facto, no Exercício 4.3
definimos paralelogramo como um quadrilátero convexo com lados opostos
congruentes e, sem usar A"! , pediu-se para provar (1).26 Mas, agora, usando A"! ,
vamos mostrar que (1) implica

(3) Os lados opostos do quadrilátero convexo òEFGH são congruentes.

Por conseguinte, na Geometria Euclidiana, (1), (2) e (3) dão definições


possíveis, equivalentes entre si, de paralelogramo.

Dem. (1) Ê (3): na figura acima, como nFGE ´ nGEH [porque FG ² EH,
visto que, como acima se disse, (1) Í (2)] e nFEG ´ nFGH (porque
EF ² GH) temos, atendendo a que EG é comum, que ˜ EFG ´ ˜ GHE, por
ALA, donde EF ´ GH e FG ´ HE.è

26 Fácil, utilizando o critério LLL.


7. Semelhança de triângulos 57

Recapitulando: sem utilizar o axioma de paralelismo A"! na prova da primeira


implicação, provámos que (3) Ê (1) Ê (2),27 quer dizer,

Se um quadrilátero convexo tiver os lados opostos congruentes (isto é, se for


um paralelogramo), então tem ângulos opostos congruentes e lados opostos
paralelos.

Mas isto, só por si, não é garantia suficiente para que exista algum
paralelogramo! Se o leitor tentar construir um paralelogramo, digamos que
partindo de uma base EH e tirando por E e por H duas paralelas e marcando
op
pontos F e G em cada uma, no mesmo lado de EH , com EF ´ HG (v. figura
abaixo), como vai provar que o topo FG é congruente com a base EH? (Tente
fazer a construção no semiplano de Poincaré!) Não vai conseguir, sem usar A"! !

Fig. 71

Por outro lado, usando A"! , provámos que (2) Ê (1) Ê (3) e, portanto (1), (2)
e (3) são equivalentes. Sabendo isto, é possível construir um paralelogramo
(exercício), e, até, um rectângulo (quatro ângulos rectos), por exemplo, tomando
duas rectas estritamente paralelas < e =, dois pontos numa delas, digamos E e H
em <, e fazendo passar por E e H duas perpendiculares a <, que cortam = em
pontos F e G , ficando um rectângulo òEFGH.

Fig. 72

Isto prova também outra coisa, nomeadamente, que < e = são equidistantes. A
distância entre as rectas < e =, que se designa por .Ð<ß =Ñ, é o comprimento de

27 Isto é uma maneira abreviada, notacionalmente um tanto abusiva (pois a “operação


lógica” Í não é associativa), de exprimir que (3) Ê (1) e (1) Ê (2), donde se poderá
concluir que (3) Ê (2).
58 GEOMETRIAS

qualquer segmento perpendicular com um extremo numa e o outro extremo na


outra. Concluindo:

7.1 Teorema
(a) Existe um rectângulo;
(b) Quaisquer duas rectas estritamente paralelas são equidistantes.è

Consideremos agora um ˜ EFG e, pelo ponto médio Q de EF façamos


op op
passar a paralela Q R a EF , com R − EG (note que E–Q –F , logo E e F estão
op op
em lados opostos de Q R , mas F e G estão do mesmo lado de Q R , logo E e G
op op
estão em lados opostos de Q R , de modo que Q R corta EG num ponto que
designámos por R ).

Fig. 73

Provamos que R é o ponto médio de EG e que


"
lQ R l œ lFGl.
#
De facto, tomando H − FG tal que Q H ² EG , obtemos um paralelogramo
òQ HGR , com Q H ´ R G e Q R ´ HG . Além disso, por ALA, temos
˜ EQ R ´ ˜ Q FH, donde ER ´ Q H ´ R G (logo R é o ponto médio de
EG ) e FH ´ Q R ´ HG (logo lQ R l œ "# lFGl). Por outro lado, se agora Q , R
op
são os pontos médios de EF, EG , respectivamente, Q R só pode ser paralela a
op
EF passando por Q :

7.2 Teorema Em qualquer triângulo, a recta que passa pelos pontos


médios de dois lados é paralela ao terceiro lado.

Definição Os triângulos ˜ EFG e ˜ HIJ dizem-se semelhantes sse existir


uma correspondência entre os vértices de um e de outro de tal modo que os ângulos
correspondentes são congruentes e lados correspondentes são proporcionais.
7. Semelhança de triângulos 59

Fig. 74

Se a correspondência entre os triângulos ˜ EFG e ˜ HIJ for E Ó H,


F Ó I , G Ó J , escrevemos
˜ EFG µ ˜ HIJ
para exprimir que eles são semelhantes, tendo-se então, por definição, que
nE ´ nH, nF ´ nI , nG ´ nJ
e
lEFl lEGl lFGl
œ œ .
lHIl lHJ l lIJ l
A esta razão chama-se razão de semelhança (do primeiro para o segundo
triângulo).
Na demonstração acima, vimos que ˜ EFG µ ˜ EQ R com razão de
semelhança "Î#. A congruência é uma semelhança com razão ".
O resultado seguinte é fundamental.

7.3 Teorema Fundamental da semelhança de triângulos (Critério


AAµ ) Dois triângulos com dois ângulos congruentes são semelhantes.

O teorema afirma que, por exemplo, se ˜ EFG e ˜ HIJ são tais que
nE ´ nH e nF ´ nI , então ˜ EFG µ ˜ HIJ . Note que, pelo teorema da
soma angular, se nE ´ nH e nF ´ nI , então também nG ´ nJ (porquê?). A
demonstração é razoavelmente complexa.
Vejamos, entretanto, algumas aplicações.

7.4 Teorema (Critério LALµ ) Se, em dois triângulos, ângulos congruentes


num e noutro subtenderem lados proporcionais, então os triângulos são
semelhantes.

Dem. Dados ˜ EFG e ˜ HIJ tais que, por exemplo, nE ´ nH e


lEFl lEGl
lHIl œ lHJ l , temos de provar que ˜ EFG µ ˜ HIJ .
60 GEOMETRIAS

Fig. 75

Consideremos o ˜ E\] com lE\l œ lHIl, \] ² FG , \ − EF e


] − EG . Pelo teorema fundamental temos ˜ EFG µ ˜ E\] , donde
lEFl lEFl
lE] l œ lHJ l (pois lHIl œ lE\l œ lEGl
lE] l ). Pelo critério de congruência LAL, temos
˜ E\] ´ ˜ HIJ e, portanto, ˜ EFG µ ˜ HIJ .

7.5 Teorema (Critério LLLµ ) Dois triângulos com lados correspondentes


proporcionais são semelhantes.

lEFl lEGl lFGl


Dem. Análoga à de 7.4. Supondo lHIl œ lHJ l œ lIJ l , com vista a provar
˜ EFG µ ˜ HIJ , defina-se ˜ E\] como antes, sendo lE\l œ lHIl e
˜ EFG µ ˜ E\] . Pelo critério de congruência LLL, ˜ E\] ´ ˜ HIJ ,
donde ˜ EFG µ ˜ HIJ .

7.6 Teorema de Pitágoras Num triângulo rectângulo ˜ EFG com


hipotenusa FG ,
lFGl# œ lEFl#  lEGl# .
op
Dem. Tomando H − FG tal que EH ¼ FG , como nF e nG são agudos H
está entre F e G . Ponhamos B œ lFHl (v. figura 76).
Pelo critério AAµ tem-se ˜ EFG µ ˜ HFE µ ˜ HEG donde +, œ +B, ,
# # - B # # # #
isto é , œ + +B, e + œ - , ou seja, - œ +B, donde + œ ,  - .è

Fig. 76
7. Semelhança de triângulos 61

O recíproco do Teorema de Pitágoras também vale, e diz que se E, F, G são


três números que são as medidas dos lados de um ˜ EFG , tais que +# œ ,#  - # ,
então o triângulo é rectângulo com hipotenusa de comprimento +.

Fig. 77

Construimos um ˜ Ew F w G w rectângulo em Ew cujos catetos Ew G w e Ew F w medem

mede + œ È,#  - # e, por LLL, ˜ EFG ´ ˜ Ew F w G w , logo nE é recto.


, e - respectivamente, onde , œ lEGl, - œ lEFl. Então a hipotenusa do ˜ Ew F w G w

7.7 Teorema (Recíproco do Teorema de Pitágoras) Se no ˜ EFG as


medidas +, ,, - , dos lados são tais que +# œ ,#  - # , então o triângulo é
rectângulo com hipotenusa de comprimento +.è

lEFl
Demonstração do Teorema Fundamental. Ponhamos - œ lHIl . Pretende-se
lFGl lEGl
provar que também œ-œ
lIJ l lHJ l .
Demonstramos esta última igualdade, já que
para a outra é análogo. A demonstração é em três etapas, conforme - é inteiro,
racional ou irracional.
Caso - inteiro (positivo). Por indução em -. Se - œ ", tem-se
˜ EFG ´ ˜ HIJ , donde a igualdade pretendida. Se - œ #, já foi visto acima:
se ^ e ] são os pontos médios de EF e EG , respectivamente, o ˜ E^] tem os
«mesmos» ângulos que o ˜ EFG e, portanto, os mesmos que o ˜ HIJ ; além
disso, como lHIl œ "# lEFl œ lE^l, vem ˜ HIJ ´ ˜ E^] e, portanto,
"
lHJ l œ lE] l œ lEGl.
#

Fig. 78
62 GEOMETRIAS

O passo de indução é semelhante ao caso - œ #, isto é, supondo -   # e o


resultado verdadeiro para -  " (Hipótese de Indução) e sendo ^ − EF tal que
lE^l œ -" lEFl œ lHIl, marquemos ] − EG e \ − FG tais que ^] ² FG e
^\ ² EG . Por ALA temos ˜ HIJ ´ ˜ E^] , donde
lE] l œ lHJ l. (7.1)
Considerando o paralelogramo ò^\G] , vê-se que
l] Gl œ l^\l. (7.2)
Além disso, ˜ ^F\ tem ângulos congruentes com os do ˜ EFG (e, portanto,
de ˜ HIJ Ñ, e
-"
l^Fl œ lEFl  lE^l œ lEFl œ Ð-  "ÑlHIl.
-
Pela hipótese de indução temos também
l^\l œ Ð-  "ÑlHJ l. (7.3)
De (7.1), (7.2) e (7.3) resulta
lEGl œ lE] l  l] Gl œ -lHJ l.
Caso - −  . Pondo - œ :; irredutível (com : e ; ambos positivos), conside-
remos um triângulo auxiliar ˜ T UV , com os mesmos ângulos que os do triângulo
considerado (isto é, nT ´ nE, nV ´ nG , respectivamente) e tal que
lT Ul œ :lHIl œ ;lEFl.
Pelo 1.º caso aplicado aos triângulos ˜ T UV e ˜ HIJ , também se tem
lT Vl œ :lHJ l, e aplicado a ˜ T UV e ˜ EFG tem-se lT Vl œ ;lEGl, donde
lEGl :
œ œ -.
lHJ l ;
Caso - irracional. Mostramos que para quaisquer racionais positivos =, > tais
que =  -  >, se tem
lEGl
=  >,
lHJ l
lEGl
donde resulta necessariamente lHJ l œ -, por causa da arbitrariedade de = e >.28
lEGl
Mostramos, apenas, que se =  -, = −  , então =  lHJ l ; a outra implicação
lEGl
-  > −  Ê lHJ l  > resultá mediante a troca dos papéis de ˜ EFG e
˜ HIJ .

28 Se fosse, por exemplo, lEGl


lHJ l  -, existira algum racional =w no intervalo “ lHJ
lEGl
l , - ’, ou
lEGl
seja, tal que lHJ l  =w  -.
7. Semelhança de triângulos 63

Por escolha de =, é =lHIl  lEFl podemos marcar ^ − EF tal que


op
lE^l œ =lHIl. Seja ] − EG tal que ^] ² FG ; então o ˜ E^] tem os seus
lE^l
ângulos congruentes com os do ˜ HIJ , e lHIl œ = −  . Pelo segundo caso,
lE] l
também lHJ l œ =, mas, como ] − EG e ] Á G , tem-se lE] l  lEGl, donde
lEGl
= lHJ l .è

Exercícios e complementos
7.1. Em qualquer quadrilátero convexo, os pontos médios dos lados são os
vértices de um paralelogramo.

7.2. Seja ˜ EFG um triângulo isósceles com EF ´ EG e suponha que:


op op op
(i) Q é o ponto médio de FG , S − EQ é tal que SF ¼ EF ;
(ii) U − FG , U Á F e U Á G ;
op op
(iii) I − EF e J − EG são tais que U, I , J são distintos e colineares.
op op
Mostre que SU e IJ são rectas perpendiculares sse lUIl œ lUJ l.

7.3. Reconhece algum dos teoremas desta secção como o famoso «Teorema de
Tales», ou se que este seja uma simples consequência?

7.4. As sequências de números reais positicos Ø+ß ,ß -ß …Ù e Ø+w ß , w ß - w ß …Ù


dizem-se proporcionais, e escreve-se Ø+ß ,ß -ß …Ù ¶ Ø+w ß , w ß - w ß …Ù sse
+ , -
w
œ w œ w œ…
+ , -
Esta razão, ou melhor, o seu valor numérico, chama-se razão de
proporcionalidade. Prove que se Ø+ß ,Ù µ Ø-ß .Ù, então Ø+ß -Ù µ Ø,ß .Ù e
Ø+ß ,Ù µ Ø+-ß ,.Ù.

7.5. O teorema fundamental permite a definição das funções trignométricas


seno e coseno. Dado um ângulo agudo nE, construindo um triângulo
rectângulo ˜ EFG com nG recto, definimos
lFGl lEGl
senÐnEÑ œ , cosÐnEÑ œ .
lEFl lEFl
O teorema fundamental garante que estas definições são coerentes, isto
é, independentes do triângulo escolhido.
As definições estendem-se a outros ângulos do seguinte modo: se nE
é obtuso e nEw é um seu suplementar definimos
senÐnEÑ œ senÐnEw Ñ, cosÐnEÑ œ cosÐnEw Ñ.
Finalmente, se nE é recto, definimos senÐnEÑ œ ", cosÐnEÑ œ !.
64 GEOMETRIAS

Fig. 79

senÐnEÑ +
(a) Demonstre a lei dos senos sen ÐnFÑ œ , onde ˜ EFG é um triângulo
qualquer e +, , são os comprimentos dos lados opostos ao nE, nF ,
respectivamente. [Sugestão: construa uma altitude GH e mostre que ,
senÐnEÑ œ lGHl œ +, senÐnFÑ.]
(b) Demonstre a lei dos cosenos - # œ +#  ,#  #+, cosÐnGÑ, onde
- œ lEFl, a qual é uma generalização do teorema de Pitágoras
(correspondendo, este, ao caso em que o nG é recto).
Capítulo 8

Os restantes axiomas (geome-


tria do espaço)
Temos lidado exclusivamente com a geometria plana. Passar da plana à
espacial ou sólida é tarefa simples. Temos de assumir, é claro, um outro conceito
primitivo, o de plano, e alguns axiomas a respeito deste conceito. Tal como as
linhas (rectas), cada plano é um conjunto de pontos, e designamos por c o
conjunto de todos os planos. Acrescentamos os axiomas indicados a seguir.

AXIOMAS DE INCIDÊNCIA PARA O ESPAÇO


A"" . Para quaisquer três pontos não colineares, existe um e um só plano que
os contém.
A"# . Se dois pontos estão num plano, então a linha que passa por eles está
contida no plano.29
A"$ . Se dois planos têm um ponto em comum, então a sua intersecção é uma
linha.
A"% . Todo o plano contém, pelo menos, três pontos não colineares.
A"& . Existem, pelo menos, quatro pontos não complanares (isto é, não
pertencentes a um mesmo plano).

O plano que passa pelos pontos não colineares E, F e G denota-se EFG (ou
EGF, etc.30).
A geometria plana (capítulos 1 a 7) é suposta ser feita, ou fazível, na
totalidade, em cada plano. Os axiomas A"" -A"& são os axiomas para incidência de
planos, e a eles basta acrescentar mais um, de separação no espaço.

29 No axioma anterior e neste, a palavra «contém» ocorre com dois significados diferentes:
no primeiro, significa (con)ter como elemento(s), e no segundo, significa conter como
subconjunto(s). São usos tradicionais, distinguíveis pelo contexto, apesar de fomentarem a
confusão nas mentes menos habituadas ou menos receptivas aos abusos linguísticos em
matemática.
30 Observe-se que, se os pontos E, F , G não são colineares, então eles são necessariamente
distintos.
65
66 GEOMETRIAS

Fig. 80

AXIOMA DE SEPARAÇÃO NO ESPAÇO


A"' . Para cada plano C, o conjunto dos pontos do espaço que não estão em C
é igual à reunião de dois conjuntos convexos, [" e [# , não vazios e disjuntos, tais
que para quaisquer pontos T e U, T está num e U está no outro sse T U corta C.
[V. fig. 80]

No espaço, o paralelismo de rectas é objecto de redefinição: < ² = sse < e = são


complanares e <  = œ g ou < œ =. O paralelismo de planos define-se de maneira
natural: C ² Cw sse C œ Cw ou C  Cw œ g.
A perpendicularidade de uma recta e um plano define-se do seguinte modo: se
j passa por um ponto T − C, dizemos que j é perpendicular a C sse j é
perpendicular a todas as rectas contidas em C passando por T , e escreve-se j ¼ C.

Fig. 81

Exercícios e complementos
8.1. Se uma linha intersecta um plano mas não está contida no plano, então a
intersecção reduz-se a um ponto.

8.2. Para toda a linha j e todo o ponto T Â j existe um único plano passando
por T e contendo j.
8. Os restantes axiomas (geometria do espaço) 67

8.3. Se duas linhas <, = se cortam num (único) ponto, então existe um único
plano que as contém.

8.4. Existem, pelo menos, dois planos, e todo o plano contém, pelo menos,
duas linhas.

8.5. Se C ² Cw e C  Cw œ g, mas C e Cw intersectam um outro plano Cww em


linhas < e =, respectivamente, então < ² =.

8.6. Se j ¼ <, j ¼ = com <, s © C (distintas) passando ambas por T − C, então


j ¼ C.
Capítulo 9

Circunferências
Retomamos o desenvolvimento da geometria absoluta (isto é, sem assumir o
axioma de paralelismo) plana, por enquanto, estudando circunferências e suas
tangentes. Um objectivo importante é a justificação plena da Proposição I.1 de
Euclides (a primeira proposição nos Elementos, que afirma ser possível construir,
com régua não graduada e compasso, um triângulo equilátero, dado um lado. Esta
justificação faz intervir, de maneira essencial, questões de continuidade. Outras
questões serão tratadas, como alguns resultados elementares sobre arcos de
circunferência, ângulos inscritos, tangentes, potência de um ponto relativamente a
uma circunferência, e construções com régua e compasso. Para testar a não
trivialidade (e, por vezes, a falsidade) de alguns resultados de aparência trivial
(pelo menos, no plano euclidiano) pode o leitor tentar exprimi-los, por exemplo, no
plano de Moulton (p. 20) e ver o que acontece.
A primeira parte da definição seguinte é equivalente à que foi dada na pág. 47.

Definição Dados um ponto S e um número real -  !, a circunferência de


centro S e raio - é o lugar geométrico V œ VÐSà -Ñ dos pontos T do plano à
distância - de S, isto é, tais que lST l œ - . A circunferência V passa por T sse
T − V.
O círculo com centro S e raio - é o lugar geométrico V œ VÐSà -Ñ dos pontos
T tais que lST l Ÿ - .
Dados dois pontos E, F da circunferência V com centro S , o segmento EF
chama-se uma corda de V, e uma corda que passe pelo centro S chama-se um
op
diâmetro de V; a recta EF chama-se uma secante de V. Uma recta que tem um
único ponto comum com a circunferência V chama-se uma tangente a V, e o ponto
comum é o ponto de tangência.31 Um segmento é tangente a uma circunferência
sse está contido numa tangente à circunferência e contém o ponto de tangência.
O interior de uma circunferência V (círculo V) de centro S e raio - é o
conjunto de todos os pontos U tais que lSUl  - , denota-se intÐVÑ [intÐVÑ], e os
pontos deste conjunto dizem-se interiores à circunferência (círculo,
respectivamente); o conjunto de todos os pontos U tais que lSUl  - chama-se o

31 Por cautela (imperativo de rigor) devíamos dizer «um ponto de tangência», mas é um
símples exercício (fazer!) a verificação de que não pode haver mais de um ponto de
tangência de uma recta a uma circunferência.
68
8. Os restantes axiomas (geometria do espaço) 69

exterior de V (V), denota-se extÐVÑ [extÐVÑ], e os pontos deste conjunto dizem-se


exteriores à circunferência (círculo, respectivamente).
Duas circunferências (dois círculos) com o mesmo centro dizem-se concên-
tricas(os).
A qualquer segmento OT com T − V também se dá o nome de raio da
circunferência com ponto terminal T , e ao comprimento #- de um diâmetro GH
também é costume chamar diâmetro da circunferência, e esta também pode ser
designada por VÐSà lST lÑ.

Fig. 81

9Þ1 Teorema (Propriedades básicas das circunferências)


(a) O centro e o raio (numérico) de uma circunferência são bem determinados.
(b) A mediatriz de uma corda passa pelo centro da circunferência.
(c) Uma recta que passa pelo centro de uma circunferência é perpendicular a
uma corda que não é diâmetro sse passa pelo ponto médio da corda.
(d) Três pontos sobre uma circunferência determinam a circunferência.
(e) Duas circunferência intersectam-se em, quando muito, dois pontos.
(f) Uma recta intersecta uma circunferência em, quando muito, dois pontos.

Dem. Todas as alíneas resultam da justificação da primeira (exercício).


Demonstremos a primeira.
(a) Seja V œ VÐSà -Ñ. Existem, pelo menos, três pontos, digamos E, F , G
sobre a circunferência V, pois toda a recta que passa pelo centro S contém dois
pontos à distância - de S, ou seja em V, pelo teorema de construção de segmentos
[teorema 3.4 (a), p. 30] e há, pelo menos, duas tais rectas (porquê?).
Sejam <, = as mediatrizes de EF e FG , respectivamente (v. figura 81). É claro
que o centro Sw de uma circunferência que passe pelos três pontos (em particular,
S) é equidistante deles, logo, pela propriedade característica das mediatrizes (p.
49), pertence a < e a =. Ora < Á =, caso contrário o ponto F formaria com os
pontos médios de EF e FG um triângulo com dois ângulos rectos, o que é
impossível, pelo lema 4.10, da soma de dois ângulos de um triângulo (p. 43).
Portanto, < e = intersectam-se num (único) ponto, isto é, Sw œ S, que é o
centro da única circunferência passando pelos pontos não colineares E, F e G , e o
seu raio é lSEl œ lSFl œ lSGl œ - .è
70 GEOMETRIAS

Convém chamar a atenção para o enuncidado da alínea (d), a fim de que este
não seja mal interpretado. Nele não se diz que três pontos determinam uma circun-
ferência, mesmo que sejam não colineares, mas somente que três pontos sobre a
circunferência determinam a circunferência, no sentido: não há mais nenhuma
circunferência que passe por eles.

Fig. 82

De facto, não é verdade, na geometria hiperbólica, que três pontos não


colineares determinem uma circunferência, mas já é verdade na geometria
euclidiana. O problema é a determinação do centro, que se resolve como a seguir
se indica.
Se E, F , G são três pontos não colineares, e sendo < e = as mediatrizes de EF
e FG , respectivamente, há que provar que < e = se cortam num ponto, digamos S,
que vai ser o centro da circunferência passando por E, F e G . Para isso, há que
provar que < e = não são paralelas. Ora, na geometria euclidiana (mas não na
geometria hiperbólica), isto prova-se invocando o axioma de paralelismo de
Hilbert (A"! ), ou melhor, uma proposição sua equivalente, a proposição de que
para quaisquer rectas <, =, > e ?, se < ² =, > ¼ < e ? ¼ =, então > ² ? (exercício 6.2,
p. 54).
op op
No caso em questão, > œ EF e ? œ FG . Se fosse < ² =, teria de ser > ² ?, mas
como > e ? têm um ponto comum, que é F , seria > œ ?, contra a hipótese de E, F
e G não serem colineares. Em conclusão:

9.2 Teorema Na geometria euclidiana, três pontos não colineares determi-


nam uma circunferência.è

Exemplos
1) No plano euclidiano, supondo S œ Ð+ß ,Ñ [pondo de lado, por momentos, o
hábito de representar por S œ Ð!ß !Ñ a origem], a definição de circunferência
VÐSà -Ñ produz a figura conhecida, constituída por todos os pontos T œ ÐBß CÑ tais
que
.E ÐT ß SÑ œ mT  Sm œ ÈÐB  +Ñ#  ÐC  ,Ñ# œ - .
8. Os restantes axiomas (geometria do espaço) 71

A tangente em T é a recta T  Ø8 t œ ÐT  SѼ é um vector


t Ù, onde 8
ortogonal (ou: normal) ao vector director @t œ T  S, isto é, 8
t ± @t œ !.
2) O chamado plano pombalino,32 tem como pontos e rectas os pontos e as
rectas ordinárias do plano cartesiano real, e como função distância a função .P
definida por
.P ÐT ß UÑ œ lB"  B# l  lC"  C# l,
onde T œ ÐB" ß C" Ñ, U œ ÐB# ß C# Ñ. A medição angular é como no plano euclidiano.
O interesse deste plano de incidência, para além de fornecer muitos contra-
exemplos, é mostrar que a mesma definição de VÐSà -Ñ que acima, mas utilizando
.P em vez de .E , produz uma figura com aspecto totalmente diferente, a saber, um
quadrado, constituído por todos os pontos T œ ÐBß CÑ tais que
.P ÐT ß SÑ œ lB  +l  lC  ,l œ - .

Fig. 83

O teorema seguinte diz respeito às tangentes a uma circunferência e suas


propriedades.

9.3 Teorema (Propriedades das tangentes)


(a) Toda a recta perpendicular a um raio de uma circunferência no ponto
terminal é tangente à circunferência e, reciprocamente, uma tangente a uma
circunferência é perpendicular ao raio no ponto de tangência.
(b) Todo o ponto de uma circunferência é ponto de tangência de uma única
tangente.
(c) Uma tangente a uma circunferência não contém pontos interiores à
circunferência.

Dem. (a) Sejam V uma circunferência de centro S passando por um ponto X , >
uma recta perpendicular a SX em X . Suponhamos, com vista a um absurdo, que >
←→
passa por um ponto U Á X em V e sejam j œ SX , V um ponto no lado oposto de

32 A nossa designação sugere a disposição das ruas na Baixa pombalina. Nos países
anglófonos, a geometria deste plano de incidência é conhecida por «taxicab geometry».
72 GEOMETRIAS

U relativamente a j tal que j é a mediatriz de UV .33 Pela propriedade


característica da mediatriz, V também está em > e, por LLL, em V , logo, os pontos
X , U e V são três pontos colineares (pois estão em >) em V, o que é absurdo
(porquê?). Então > intersecta V num único ponto, X , logo é tangente a V.
Reciprocamente, se = é tangente a V no ponto X , seja T o pé da perpendicular
tirada de S para =. Queremos provar que T œ X . Se fosse T Á X , existiria um
ponto W tal que T é o ponto médio (p. 13) de WX .
Então ˜ X T S ´ ˜ WT S, por LAL, donde lSX l œ lSWl e W − V, contra o
facto de = ser tangente a V. Portanto, T œ X e = œ >.

Fig. 84

(b) Resulta da alínea anterior.


(c) Notar que, se X é o ponto de tangência, então lSX l é a mais curta distância
entre S e pontos da tangente >.è

9.4 Teorema Se EF é uma corda da circunferência VÐSà -Ñ, então


lEF l Ÿ 2- , e lEF l œ #- sse EF é um diâmetro.

Dem. Pela desigualdade triangular, lEF l Ÿ lESl  lSFl œ #- , tendo-se a


igualdade sse E–S–FÞè

Definição Duas circunferências (círculos) dizem-se congruentes sse têm o


mesmo raio (numérico).

33 V œ 5j U é a imagem reflectida de U pela reflexão j. Dada uma recta j, a reflexão em j


ÚT
é a aplicação 5j definida por

5j T œ Û T w
se T − j
se T Â j, onde T w é o ponto no lado oposto
Ü de j tal que j é a mediatriz de T T w .
A recta j é o eixo (ou o espelho) de 5j . O ponto T w œ 5j T é a imagem de T por 5j . A
reflexão 5j também é chamada uma inflexão axial (em j).
8. Os restantes axiomas (geometria do espaço) 73

9Þ5 Teorema Numa circunferência ou em circunferências congruentes,


duas cordas são congruentes sse são equidistantes do centro.

Dem. Sejam EF uma corda da circunferência VÐSà -Ñ, HI uma corda de uma
circunferência Vw ÐSw à -Ñ, Q o ponto médio de EF e R o ponto médio de HI . V e
Vw são circunferências congruentes, pois têm igual raio (- ), e é claro que lSQ l œ !
sse lEFl œ #- , e lSw R l œ ! sse lHIl œ #- , restando analisar o caso em que as
cordas não são diâmetros. Neste caso, SQ é a distância da corda ao centro, e
existem os triângulos ˜ EFS e ˜ HISw .

Fig. 85
Vê-se que ˜ SQ E e ˜ Sw R H são triângulos rectângulos com hipotenusas
congruentes (pois têm o mesmo comprimento, -). Pelo critério HC (p. 44), tem-se
lSQ l œ lSw R l sse lEQ l œ lHR l.
Como lEQ l œ lHR l sse lEF l œ lHIl (porquê?), resulta lSQ l œ lS w R l sse
lEFl œ lHIl, o que prova o teorema.è

Recorde-se (p. 22) que um conjunto f é convexo sse contém o segmento T U


sempre que T Á U são pontos em f . Por outro lado, teremos ocasião de utilizar
várias vezes, no que segue, o resultado seguinte:

9.6 Lema Num ˜ EFG , se E–H–F e lFG l   lEG l, então lGHl  lFG l.

Dem. Da hipótese lFG l   lEG l


conclui-se 7ÐnGEFÑ   7ÐnGFHÑ,
por pons asinorum, no caso da
igualdade, e pelo teorema 5.1, no
caso da desigualdade estrita. Como o
nGHF é externo do ˜ GHE, com
interno remoto nGEH, é
7ÐnGHFÑ  7ÐnGEHFÑ œ
7ÐnGEFÑ e, novamente pelo
Fig. 86 teorema 5.1, vem lGFl  lGHl.è

Por palavras, isto exprime que um segmento GH inscrito no ˜ EFG com um


extremo no vértice G e o outro extremo num ponto H interior ao lado oposto EF é
menor do que o maior dos outros lados do triângulo.
74 GEOMETRIAS

9.7 Teorema O interior de uma circunferência (círculo) é um conjunto


convexo.

Dem. Sejam T , U pontos distintos no interior da circunferência VÐSà -Ñ. Se


op
S − T U , então T U © intÐVÑ, pois T U está contido num diâmetro de V e os
pontos interiores de um diâmetro são trivialmente pontos interiores a V. Se T , U e
S não são colineares (v. figura 87), consideremos o ˜ T US e tomemos um
ponto ao arbítrio E tal que T –E–U, com vista a provar que E − intÐVÑ.
Tem-se lSEl Ÿ lST l ou lSEl Ÿ lSUl, pelo lema 9.6. Em qualquer dos casos,
lSEl  - , pois lST l  - e lSUl  - , logo E − intÐVÑ.è

Fig. 87

Caminharemos agora, finalmente, rumo à justificação plena da Proposição I.1


— a primeira de todas — dos Elementos de Euclides, a qual afirma que é possível
construir (com régua e compasso) um triângulo equilátero, dado um lado.
As propriedades das rectas e circunferências demonstradas nesta parte são
conhecidas por propriedades de continuidade e dependem, em grau elevado, das
propriedades de continuidade (ou de completude) da recta real ‘, nomeadamente,
daquelas propriedades que distinguem o corpo ordenado dos números reais do
corpo ordenado dos números racionais e são responsáveis, por exemplo, pela
existência de raízes quadradas de números reais não negativos, pelas propriedades
das funções contínuas, etc. O resultado preliminar seguinte é típico, a este respeito.
Pode ser interpretado como significando que dados ao arbítrio um ponto S, um
número real -  ! e uma recta j que não passe por S a uma distância de S inferior
a - , existe um ponto E − j à distância - de S e, portanto, um compasso com centro
em S e abertura SE. A demonstração utiliza o teorema dos valores intermédios
(também designado, por vezes, teorema de Bolzano), uma das propriedades
fundamentais das funções reais contínuas, o qual não é, obviamente, um teorema
da geometria e não será, por isso, aqui demonstrado.

*Teorema dos valores intermédios Se 1 é uma função real definida e


contínua num intervalo limitado e fechado Ò+ß ,Ó, então para todo o número real C
entre 1Ð+Ñ e 1Ð,Ñ existe um número real - entre + e , tal que 1Ð-Ñ œ C .
8. Os restantes axiomas (geometria do espaço) 75

9.8 Lema Dados os pontos S, T , U tais que ST ¼ T U e um número real


Ø
-  ! tal que lST l  - , existe um único ponto E − T U tal que lSEl œ - .
op
Dem. Seja 0 um s.c. para j œ T U tal que 0 T œ ! e 0 U  ! (teorema de
colocação da régua). Por uma propriedade das semi-rectas podemos supor, sem
perda de generalidade, que 0 U œ lT Ul œ - . Então lSUl  - , pois o ˜ ST U é
rectângulo e a hipotenusa é maior do que qualquer cateto. Por 0 ser bijectiva, para
cada número real B existe um único ponto \ œ \B − j tal que 0 \ œ B, o que
permite definir uma função real de variável real 1 À ‘ Ä ‘ pondo
1ÐBÑ œ lS\B l œ .ÐSß \B Ñ, para todo B − ‘.
Esta função 1 é contínua em ‘: para quaisquer B, C − ‘, pondo \ œ \B e
] œ ]C , tem-se
l1ÐBÑ  1ÐCÑl œ lS\  S] l  \] œ lB  C l,
pela desigualdade triangular, donde resulta a continuidade de 1 em B.34 Em
particular, 1 é contínua no intervalo limitado e fechado Ò!ß -Ó, e
1Ð!Ñ œ lST l  - , 1Ð-Ñ œ lSUl  - ,
logo, pelo teorema dos valores intermédios, existe um número + entre ! e - tal que
1Ð+Ñ œ - . Sendo E − j tal que 0 E œ +, temos lSEl œ 1Ð+Ñ œ - , e até podemos
afirmar que E − T U.

Fig. 88
Ø
A unicidade de um ponto E − T U tal que lSEl œ - resulta do lema 9.6: se F
Ø
é qualquer outro ponto em T U , então T –E–F ou T –F –E e, portanto,
lSEl  lSFl ou lSFl  lSEl, respectivamente.è

Este resultado também pode ser visto como a prova de que, dados números
reais !  ,  - , existe um triângulo rectângulo com hipotenusa de comprimento -
e um cateto de comprimento , ( œ lST l, na construção acima). A partir daqui, é

34 Para todo $  ! existe &  ! (basta tomar & œ $ ) tal que l1ÐBÑ  1ÐCÑl  $ sempre que
lB  C l  &.
76 GEOMETRIAS

imediata a prova da existência de triângulos isósceles com lados de comprimentos


- , - , #+ (com 0  +  - ). Em particular, com - œ #+ obtemos triângulos
equiláteros com lado de comprimento - , para qualquer real positivo - .
Retomaremos esta questão mais adiante.

9.9 Teorema (Continuidade elementar) Se um segmento EF tem um


extremo no interior e o outro extremo no exterior de uma circunferência, então o
segmento corta a circunferência.
op
Dem. Seja V œ VÐSà -Ñ e suponhamos lSEl  - e lSFl  - . Se a recta EF
passa pelo centro S, então o resultado é imediato pelo teorema da construção de
Ø
segmentos: na semi-recta SF há um único ponto T à distância - de S, ponto esse
que pertence obrigatoriamente a EF e a V. No caso de E, F e S não serem
Ø
colineares, considere-se o ˜ SEF . Basta mostrar que EF intersecta V, pois pelo
lema 9.6 o ponto de intersecção tem necessariamente de estar em EF .

Fig. 89
Ø
Para provar que EF intersecta V, seja T o pé da perpendicular tirada de S
op
para EF . Como lST l Ÿ lSEl (porquê?), tem-se lST l  - , logo T − intÐVÑ. E
Ø Ø
como este conjunto é convexo, EF intersecta V sse T F intersecta V. Porém, pelo
Ø Ø
teorema precedente, T F intersecta V . Portanto, EF intersecta V , num ponto de
EF.è

9.10 Teorema (Recta-circunferência) Se uma recta intersecta o interior


de uma circunferência, então a recta corta a circunferência em exactamente dois
pontos.

Dem. Seja E um ponto comum a uma recta j e ao interior de uma


circunferência V œ VÐSà -Ñ. Se j passa pelo centro de V é imediato, pois j contém
um diâmetro de V. No caso S Â j, sendo T o pé da perpendicular tirada de S para
j, tem-se lST l Ÿ lSEl  - , logo T − intÐVÑ. Tomando F , F w − j tais que
F w –T –F e lF w T l œ lT Fl œ - , tanto F como F w estão no exterior de V, e aplica-se
Ø Ø
o teorema precedente a EF e EF w (v. fig. 89 acima). j não pode cortar V em mais
de dois pontos (porquê?), logo corta V em exactamente dois pontos.è
8. Os restantes axiomas (geometria do espaço) 77

O resultado seguinte é uma propriedade dos triângulos rectângulos,


consequência do lema 9.6, a utilizar na prova do teorema imediato.

9.11 Teorema (da escada deslizante) Nos triângulos rectângulos


˜ EFG e ˜ Ew F w G w com nG e nG w rectos, se lEF l œ lEw F w l e lEG l  lEw G w l,
então lFG l  lF w G w l.

Dem. Exercício.è

9.12 Teorema De duas cordas de uma circunferência, é maior a que


estiver mais próxima do centro.

Dem. Pelo teorema 9.5 (c) podemos supor, sem perda de generalidade, que as
duas cordas EF e GH de VÐSà -Ñ são ambas perpendiculares a um diâmetro em Q
e R , respectivamente, tais que S –Q –R , conforme a figura. Bastará provar, então,
que lGR l  lEQ l.

Fig. 90

Ora, o ˜ SGR tem um ângulo recto em R , e o ˜ SEQ tem um ângulo


recto em Q . Além disso, lSGl œ lSEl e lSR l  lSQ l, logo lGR l  lGQ l
pelo teorema anterior.è
Já vimos acima alguns casos de existência de triângulos rectângulos, isósceles
e equiláteros. A existência de triângulos com lados de comprimentos dados não é
uma questão trivial em geometria!
O teorema seguinte é a Proposição I.22 dos Elementos de Euclides e fornece as
condições gerais para a existência de triângulos com lados de medidas prescritas.

9.13 Teorema (Da Construção de Triângulos) Os números reais


positivos +, ,, - são as medidas dos lados de um triângulo sse cada um dos números
é menor do que a soma dos outros dois.

Dem. Já sabemos, pela desigualdade triangular, que a medida de qualquer lado


de um triângulo é menor ou igual à soma das medidas dos outros dois lados. A
dificuldade está em demonstrar a propriedade recíproca desta.
Podemos supor, sem perda de generalidade, que + Ÿ , Ÿ - .
78 GEOMETRIAS

Sejam E, F pontos tais que lEF l œ - , 0 um sistema de coordenadas para


op
EF tal que 0 E œ ! e 0 F œ - , VE œ VÐEà +Ñ, VF œ VÐFà ,Ñ e sejam H, I tais que
0 H œ -  , e 0 I œ +; então H − VF , I − VE e ! Ÿ -  ,  + Ÿ - (pois
-  ,  +).
Para cada B tal que ! Ÿ B  + existe um único ponto \ (que depende de B) tal
que 0 \ œ B, e um ponto TB − VE tal que XPB ¼ EF (na realidade, existem
op
sempre dois tais pontos TB , um de cada lado de EF , pelo teorema da recta-
op
circunferência, mas podemos escolher sempre um deles num lado [ de EF).

Fig. 91

Isto permite definir uma função real de variável real 1E À Ò!ß +Ó Ä ‘ pondo

1E ÐBÑ œ œ
l\TB l se ! Ÿ B  +
! se B œ +.

Pelo teorema precedente, a função 1E é estritamente decrescente; além disso,


para cada @ tal que !  @  + existe um ponto ] tal que !  0 ] œ ?  + e
1E Ð?Ñ œ @, pelo lema 9.7. Isto quer dizer que 1E é estritamente decrescente em
Ò!ß +Ó tomando todos os valores @ tais que ! Ÿ @ Ÿ +. Uma função com estas
propriedades é necessariamente contínua (v. exercício 7). Em particular, 1E é
contínua no intervalo Ò-  ,ß +Ó, 1E Ð-  ,Ñ  ! e 1E Ð+Ñ œ !.
Da banda de VF as coisas passam-se de maneira análoga, obtendo-se uma
função 1F tal que 1F ÐBÑ œ l\UB l com XQB ¼ EF (os UB ’s tomados no
semiplano [), desta feita estritamente crescente mas, o que é mais importante,
contínua também em Ò-  ,ß +Ó tal que 1F Ð-  ,Ñ œ ! e 1F Ð+Ñ  !. Definamos em
Ò-  ,ß +Ó a função 2 por
2ÐBÑ œ 1E ÐBÑ  1F ÐBÑ.
É claro que 2 é contínua, 2Ð-  ,Ñ œ 1E Ð-  ,Ñ  ! e 2Ð+Ñ œ 1F Ð+Ñ  !
logo, pelo teorema dos valores intermédios, existe um número real > entre -  , e +
op
tal que 2Ð>Ñ œ !, isto é, tal que 1E Ð>Ñ œ 1F Ð>Ñ. Se X é o ponto de EF com
coordenada 0 X œ >, a perpendicular a EF em X contém um ponto G
8. Os restantes axiomas (geometria do espaço) 79

simultaneamente em VE e VF , e é claro que lEG l œ +, lFG l œ , e lEF l œ +. O


˜ EFG é a solução procurada.è

Este teorema (como outros que o precedem) é mais fácil de demonstrar em


geometria euclidiana, ou no plano euclidiano real porque, aí, podemos utilizar o
teorema de Pitágoras e fazer umas contas simplificadoras (v. adiante). Estamos,
finalmente, em condições de concretizar uma promessa de longa data.

9.14 Teorema (Das duas circunferências, ou da Continuidade Circular)


Se VE œ VÐEà +Ñ e VF œ VÐFà ,Ñ são circunferências cujos centros estão à
distância - œ lEFl, tais que cada um dos números +, ,, - é menor do que a soma
dos outros dois, então as duas circunferências cortam-se em exactamente dois
op
pontos, um em cada lado de EF .

Dem. Pelo teorema da construção de triângulos existe um ˜ T UV tal que


lT Vl œ +, lVUl œ , e lT Ul œ - (v. figura 92). Pelo teorema da construção de
op
ângulos e segmentos existem pontos G" e G# , um de cada lado de EF , tais que
nFEG" ´ nUT V ´ nFEG# e AC" ´ T V ´ AC# .
Então G" e G# pertencem a VE . Além disso, ˜ FEG" ´ ˜ UT V e
˜ FEG# ´ ˜ UT V , por LAL, logo lFG" l œ , œ lFG# l. Portanto, G" e G#
também pertencem a VF . Como duas circunferências não podem ter mais de dois
pontos comuns, G" e G# são os únicos pontos comuns a VE e VF .

Fig. 92

9.15 Corolário (Proposição I.1 dos Elementos) Dado um segmento EF ,


existe um triângulo equilátero com lado EF .

Dem. Exercício de aplicação do teorema.è

Exercícios e complementos
9.1. Demonstre as partes (a) e (b) do teorema 9.5.

9.2. Mostre, a partir do lema 9.7, que existe um triângulo isósceles com lados
de comprimentos - , - e #+ com -  +  !.
80 GEOMETRIAS

9.3. Verdade ou falso?


(a) Não existem duas circunferências concêntricas e congruentes;
(b) o exterior de uma circunferência é um conjunto convexo;
(c) com excepção do ponto de tangência, todos os pontos de uma tangente são
exteriores à circunferência;
(d) três pontos (distintos) quaisquer estão sobre uma circunferência;
(e) três pontos sobre uma circunferência determinam o centro e o raio da
circunferência;
(f) se uma recta intersecta uma circunferência, então o pé da perpendicular do
centro da circunferência para a recta está no interior da mesma.

9.4. Mostre que uma circunferência de raio - possui uma corda de


comprimento B sse !  B Ÿ #- .

9.5. Mostre que duas circunferências intersectam-se num único ponto sse elas
possuem uma tangente comum.

9.6. Demonstre o teorema da escada deslizante.

*9.7. Demonstre o teorema seguinte: se M , N são intervalos limitados e fechados


em ‘ e 1 À M Ä N é estritamente decrescente e sobrejectiva, então 1 é
contínua em M . [Sugestão: prove a continuidade num ponto arbitrário de M
por meio de sucessões (definição à Heine) e utilize o teorema das
sucessões monótonas.]

9.8. Mostre que a união de uma circunferência com o seu interior (isto é, um
círculo) é um conjunto convexo.

9.9. Comente as seguintes frases:


(a) «Entre os Gregos, a geometria foi sempre venerada com a máxima
distinção, e não existia coisa mais gloriosa do que a matemática. Mas nós
limitámos a utilidade desta arte às medições e aos cálculos.» (Frase
atribuída a Cícero);
(b) «Conheci um professor, aliás excelente pedagogo, que obrigava os seus
alunos a acompanhar todas as demonstrações com figuras incorrectas, de
acordo com a doutrina de que a ligação lógica dos conceitos, não a figura,
é que era essencial.» (Frase atribuída ao físico E. Mach);
(c) «Ao estudar geometria, e´ muito importante desenhar figuras apropriadas.
As figuras ilustram qual é, provavelmente, o teorema correcto e indicam
como poderemos proceder para tentar demonstrá-lo. É claro que a
demonstração efectiva tem de se sustentar logicamente a si mesma e ser
independente das figuras. Na geometria e, de facto, em toda a matemática,
devemos ter sempre presente o perigo das figuras e viver perigosamente.
Façam muitas figuras!», in SNAPPER e TROYER, p. 7.
Capítulo 10

Arcos de circunferência
Este capítulo contém alguns teoremas elementares sobre arcos de circun-
ferência, sua medição e relações diversas entre arcos e ângulos. Todos os
resultados aqui expostos são relativos à geometria euclidiana.

Definição Seja V uma circunferência de centro S . Um ângulo ao centro de


V é um ângulo cujo vértice é S. Se E e F são dois pontos de V, o arco menor
w
EF é o conjunto dos pontos constituído por E, F e os pontos de V no interior do
w
ângulo ao centro nESF , e o arco maior EF é o conjunto constituído por E, F e
todos os pontos de V no exterior do nESF . Em qualquer dos casos, os pontos E e
F são chamados os extremos do arco. Se EF é um diâmetro de V, cada um dos
conjuntos constituído por E, F e todos os pontos de V num semiplano limitado por
op
EF é uma semicircunferência.

Y
A

X
O

B
C

Fig. 93
w
É claro que a notação «\] » para arcos é ambígua. Para remover a
ambiguidade, em caso de dúvida, é habitual incluir na notação um terceiro ponto
w w w
do arco. Na figura acima, o arco E\ F é o arco menor EF , e o arco E]F é o
w w w w
arco maior EF ; G ]E e G\E œ GFE são semicircunferências.
A medição de arcos pode-se fazer à custa da medição de ângulos, mediante as
definições seguintes, relativas a uma circunferência de centro S:
w w
(1) se E\ F é um arco menor, então 7ÐE\ FÑ œ 7ÐnESFÑ;

81
82 GEOMETRIAS

w w
(2) se E\ F é uma semicircunferência, então 7ÐE\ FÑ œ 1;
w w
(3) se E\ F é um arco maior, então 7ÐE\ FÑ œ #1  7ÐnESFÑ.
Assim, cada arco de circunferência terá uma medida entre ! e 1, excepto as
semicircunferências cuja medida é exactamente 1. Atendendo a que a medição
angular é aditiva (axioma A( , p. 127), temos também a aditividade da medição de
arcos de circunferência:
w w
10Þ1 Teorema (Aditividade) Se EF e FG são arcos da mesma
circunferência VÐSà -Ñ com um único ponto comum F e a sua união é um arco
w w w w
EG , então 7ÐEF GÑ œ 7ÐEFÑ  7ÐEG Ñ.

Dem. A demonstração é simples mas longa, pois há que discutir


separadamente cinco casos possíveis. Damos apenas algumas indicações para cada
um dos casos, deixando a verificação dos pormenores para o leitor.
w
Caso 1. EF G é um arco menor: aplicar directamente o axioma A( ;
w
Caso 2. EF G é uma semicircunferência: note que nESF e nFSG são
suplementares adjacentes.
w
Caso 3. EF G é um arco maior e os pontos E e G estão em lados opostos do
diâmetro FF w : aplicar o caso 2;

Fig. 94
w
Caso 4. EF G é um arco maior e os pontos E e G estão no mesmo lado de
FF w ;
w w w
Caso 5. EF G é um arco maior e um dos arcos EF , EG é uma semi-
w w w
circunferência: neste caso, EG e FG são arcos menores e 7ÐEF GÑ œ
w w w w w
#1  7ÐEG Ñ œ 1  1  7ÐEG Ñ œ 1  7ÐFG Ñ œ 7ÐEFÑ  7ÐFG Ñ.è
w
Se EF G é um arco de circunferência, o ângulo nEFG diz-se inscrito no arco
w
EF G . Neste caso, o vértice do ângulo pertence ao arco, mas há muitas outras
posições possíveis de um ângulo relativamente a uma circunferência ou arco de
circunferência, com o vértice do ângulo no interior, sobre ou no exterior da
circunferência.
10. Arcos de circunferência 83

B
C

Fig. 95

Interessam-nos os casos em que cada lado do ângulo nEFG intersecta a


circunferência em um ou dois pontos, conforme as figuras seguintes. Junto a cada
figura está a designação do ângulo em causa; em cada caso, o(s) arco(s) diz-se
compreendido no ângulo (ou nos lados do ângulo) e o ângulo compreende o(s)
arco(s), respectivamente.

Fig. 96

10Þ2 Teorema A medida de um ângulo inscrito numa circunferência é


igual a metade da medida do arco compreendido nos seus lados.
w w
Dem. Seja nE o ângulo inscrito no arco FE G , compreendendo o arco FG .
w
Temos de mostrar que 7ÐnEÑ œ 12 7ÐFG Ñ. Há três casos a considerar.
Caso 1. O nE contém um diâmetro, digamos EG . Sendo B, C, D as medidas
indicadas na figura a seguir (caso 1), tem-se 7ÐnEÑ  B  D œ 1 e B  C œ 1.
Mas o ˜ EFS é isósceles, logo 7ÐnEÑ œ B, donde #7ÐnEÑ œ 1  D œ
w
C œ 7ÐFG Ñ, isto é,
" w
7ÐnEÑ œ 7ÐFG Ñ.
#
Caso 2. F e G estão em lados opostos do diâmetro EH. Ora, 7ÐnEÑ œ
84 GEOMETRIAS

w w w w w
B  C œ 12 7ÐFHÑ  12 7ÐHG Ñ, pelo caso 1, mas 7ÐFHÑ  7ÐHG Ñ œ 7ÐFH
w
GÑ, pela aditividade, donde, também neste casoß 7ÐnEÑ œ 12 7ÐFG ÑÞ

B B B C
x
y y z
z y x
A C A D A D
O x O O

C
Caso 1 Caso 2 Caso 3
Fig. 97

Caso 3. F e G do mesmo lado do diâmetro EH. Neste caso,


7ÐnFEGÑ œ D œ B  C œ 7ÐnFEGÑ  7ÐnGEHÑ,
w w w
e 7ÐFGHÑ œ 7ÐFG Ñ  7ÐGHÑ, donde
" w " w " w
7ÐnFEGÑ œ C œ D  B œ 7ÐFGHÑ  7ÐGHÑ œ 7ÐFG Ñ.è
# # #

Consequências imediatas deste teorema são:

10.3 Corolário (a) Um ângulo inscrito numa semicircunferência é recto.


(b) Ângulos inscritos no mesmo arco são congruentes.è

Dois arcos, de uma mesma circunferência ou de circunferências congruentes,


com a mesma medida dizem-se congruentes. São também fáceis de demonstrar
(exercícios) os teoremas seguintes:

10.4 Teorema Se duas rectas paralelas intersectam uma circunferência,


então os arcos compreendidos entre as duas rectas são congruentes.è

10.5 Teorema Numa circunferência ou em circunferências congruentes,


duas cordas são congruentes sse os arcos menores por elas determinados são
congruentes.è

10.6 Teorema A medida de um ângulo de um segmento é igual a metade


da medida do arco compreendido pelo ângulo.è

10.7 Novamente o teorema da construção de triângulos


Como se disse anteriormente, a demonstração do teorema da construção de
triângulos é mais simples na geometria euclidiana do que na geometria absoluta.
No que segue, trabalhamos no contexto da geometria euclidiana.
10. Arcos de circunferência 85

A referida demonstração, num sentido (implicação da esquerda para a direita) é


imediata, pela desigualdade triangular. Antes de fazer a demonstração no outro
sentido vamos explorar um pouco a situação com o intuito de descobrir uma
demonstração. Mais exactamente, vamos supor que o problema da construção do
triângulo com lados + Ÿ , Ÿ - (tais que cada lado é menor do que a soma dos
outros dois) já está resolvido. Isto nos indicará algumas condições necessárias para
uma solução do problema, condições essas que nos poderão ajudar a encontrar a
solução. Este é o chamado método do problema resolvido e assenta na esperança
(optimismo matemático) de que condições necessárias sejam também suficientes —
o que nem sempre acontece, mas só se sabe tentando.
Suponhamos, pois, que existe um triângulo ˜ EFG com lEF l œ - , lEG l œ ,
e lFGl œ +. Como EF é o maior lado, se H é o pé da perpendicular tirada de G
op
para EF, tem-se E–H–F (exercício 4).

Fig. 98

Pondo EH œ B, GH œ C, tem-se HF œ -  B e, pelo teorema de Pitágoras,


aplicado duas vezes,
(1) C # œ , #  B# ,
e
(2) C# œ +#  Ð-  BÑ# ,
donde ,#  B# œ +#  Ð-  BÑ# , o que dá, resolvendo em ordem a B,
- #  , #  +#
(3) Bœ .
#-
É claro que, de (1), se obtém

(4) C œ È , #  B# .
Reciprocamente, é fácil constatar que das condições (3) e (4) se podem obter
(1) e (2). Agora que já sabemos que as condições (3) e (4) são necessárias para o
problema ter solução, podemos recomeçar, tentando construir uma solução.
# # #
Tomemos um segmento EF de comprimento - , e ponhamos B œ - ,#-+ .
86 GEOMETRIAS

C œ È,#  B# temos de certificar-nos que ,#  B#  !. De facto, tem-se


Como - #  +#   ! e ,#   !, tem-se B  !. Antes de poder definir

- #  , #  +# #,-  - #  ,#  +# +#  Ð-  ,Ñ#
,Bœ, œ œ .
#- #- #-
Como, por hipótese, -  +  ,, isto é, -  ,  + e tanto + como -  , são não

C œ È,#  B# .35 Seja H − EF tal que EH œ B. Escolhido um semiplano


negativos, tem-se Ð-  ,Ñ#  +# , logo ,  B  !. Assim, é legítimo definir

op Ø Ø
limitado por EF e uma semi-recta HI perpendicular a EF , seja G − HI tal que
lHGl œ C. Como B e C, pela maneira como foram definidos, satisfazem (3) e (4),
também satisfazem (1) e (2), donde
(1w ) B#  C # œ , # ,
e
(2w ) Ð-  BÑ#  C# œ +# .
Mas B#  C# œ lEG l# e Ð-  BÑ#  C# œ lFG l# , logo lEG l# œ , # e
lFG l# œ +# . Como + e , são positivos, podemos concluir lEG l œ , e lFG l œ +, o
que mostra que o ˜ EFG tem as medidas pretendidas.è

Terminamos este capítulo com mais alguns resultados sobre circunferências


que envolvem a semelhança de triângulos na sua demonstração.

10.8 Teorema (das duas cordas) Se duas cordas de uma circunferência


se cortam em segmentos de comprimentos +, , e - , . , respectivamente (v. figura
99), então +, œ -.Þ

Fig. 99

35 Observe aqui a introdução de raízes quadradas de números reais positivos, cuja


existência nem sempre pode ser assegurada no corpo dos números racionais.
10. Arcos de circunferência 87

Dem. Sejam as cordas EH e FG , que se cortam no ponto I , determinando


segmentos de comprimentos +, ,, - , . , conforme a figura acima. Pelo corolário
10.3, nE ´ nG e nF ´ nH, logo ˜ EFI µ ˜ GHI , por AAµ , e, portanto,
os lados correspondentes são proporcionais, donde .+ œ -, e, por conseguinte,
+, œ -.Þè

10.9 Teorema Seja E um ponto exterior a uma circunferência V , EF um


segmento tangente a V em F , e EH um segmento com o extremo H na
circunferência V , cortando esta num ponto G . Então
lEF l# œ lEG l † lFG l.

Fig. 100

Dem. Traçando FG e FH como na figura acima, por 10.6 tem-se


nEFG ´ nEHF , e como o nE é comum, vem, por AAµ , logo ˜ EFG ´
lEF l
˜ EHF , donde lEHl œ lEG l
lEF l , e daqui o resultado pretendido.è

10.10 Teorema de Menelau Se um recta j corta os lados de um


triângulo ˜ EFG ou os seus prolongamentos, se necessário, em pontos H, I e
J , então
lEHl lFJ l lGIl
† † œ ".
lFHl lGJ l lEIl

Fig. 101
88 GEOMETRIAS

op
Dem. Tiremos por E a paralela a FG , que corta j, digamos em K. Então
˜ EHK ´ ˜ FHJ (porquê?) e, analogamente, ˜ EIK ´ ˜ GIJ , donde
lEHl lFHl |EI | |GI |
œ e œ .
lEKl lFJ l |EK| |GJ |
Eliminando EK destas duas proporções obtém-se o resultado pretendido.è

10.11 Teorema da potência Seja I um ponto exterior a uma


circunferência V, e tiremos por I duas secantes que cortam a circunferência V nos
pontos E, F e G , H, respectivamente. Então
|IE| † |IF | œ |IG | † |IH|.
Dem. Exercício, no estilo das demonstrações dos teoremas anteriores.è

Este teorema diz-nos, por palavras, que o produto |IE| † |IF | só depende do
ponto I e não da secante particular passando por este ponto. A este produto é
habitual chamar potência do ponto I relativamente a V. Observe-se que os
teoremas 10.8 e 10.9 são exactamente da mesma natureza que este.

Exercícios e complementos
10.1. Dadas duas circunferências com uma tangente comum num ponto E e tal
que a segunda passa pelo centro da primeira, mostre que toda a corda da
primeira que passa por E é cortada ao meio pela segunda.
10.2. Prove que num quadrilátero convexo inscrito numa circunferência, quais-
quer dois ângulos opostos são suplementares e que, reciprocamente, se um
par de ângulos de um quadrilátero convexo são suplementares, então o
quadrilátero está inscrito numa circunferência.
10.3. Demonstre as quatro consequências do teorema 10.2 indicadas no texto.
10.4. Demonstre a propriedade referida imediatamente antes da figura 98, por
redução ao absurdo, utilizando o facto de, na geometria euclidiana, um
triângulo ter, quando muito, um ângulo recto ou um ângulo obtuso
(porquê?).
10.5. Seja ˜ EFG um triângulo, e suponha que a bissectriz do nE corta o lado
lEFl lFHl
oposto num ponto H entre F e G . Prove que lFHl œ lHGl .
10.6. Prove (imitando a demonstração do teorema de Menelau), o seguinte:

Teorema de Ceva Se T é um ponto interior ao ˜ EFG e se as rectas


passando por T e cada um dos vértices cortam os lados opostos em pontos
J , I e H, respectivamente, então
lEHl lFJ l lGIl
† † œ ".
lFHl lGJ l lEIl
Capítulo 11

Construções com régua e


compasso
A geometria de Euclides é essencialmente a geometria de dois instrumentos
paradigmáticos, a régua (não graduada) e o compasso. Já não será assim,
exclusivamente, na geometria moderna, e é sabido que os próprios geómetras da
antiguidade desenvolveram muitos outros instrumentos para além daqueles dois (e
mais poderosos do que eles). Mas a questão das construções com régua e compasso
é um tema eterno (não esgotado!) das matemáticas. Neste capítulo desenvolvemos
alguns aspectos do tema na vertente positiva (exemplificação de construções diver-
sas) e dizemos algo acerca da vertente negativa (impossibilidade de algumas cons-
truções), no contexto da geometria euclidiana. Antes, porém, é conveniente dar
alguns esclarecimentos pertinentes.
Os instrumentos (régua não graduada e compasso) são instrumentos ideais
que desenham ou constroem rectas e circunferências ideais — a grossura do traço
ou a construção aproximada não são de ter em conta. Uma recta é determinada por
dois pontos, e uma circunferência também, mas, ao contrário daqueles, com papéis
diferenciados — um para centro e outro para terminal de um raio. Para além dos
objectos inicialmente dados, sobre os quais se faz a construção pedida, não são
permitidas, em geral, escolhas arbitrárias de elementos geométricos. As constru-
ções têm a sua justificação, em última análise, nos teoremas da geometria eucli-
diana como, por exemplo, os teoremas da construção de ângulos e segmentos, da
existência e unicidade de perpendiculares e paralelas, de congruência e semelhança
de triângulos, o teorema de Pitágoras e os teoremas da recta-circunferência e das
duas circunferências.
Todavia, há que chamar a atenção para o seguinte facto, para que se entenda
bem o espírito ou atitude para com o tema das construções com régua e compasso.
Embora os referidos teoremas tenham sido demonstrados recorrendo a uma
axiomática métrica, ou seja, com instrumentos métricos — basicamente a régua
graduada (axioma A% , p. 127) e o transferidor (axioma A' , p. 127) — a utilização
destes instrumentos não está conforme a tradição grega que considerava a medição
como uma actividade essencialmente de natureza prática, desmerecedora do
interesse de matemáticos e filósofos. Eles não serão, por isso, utilizados directa-
mente nas construções a seguir.

89
90 GEOMETRIAS

11.1 Exemplos de construções com régua e compasso

C1. Construir a mediatriz de um segmento dado.

Solução: Dado EF , constroi-se uma circunferência V" com centro E e raio


EF e uma circunferência V# com centro F e raio FE. Supondo lEF l œ - , é claro
que cada um dos números - , - , - é menor do que a soma dos outros dois, logo as
duas circunferências cortam-se em dois pontos, digamos T e U, um de cada lado
op op
de EF. Portanto, T U intersecta EF , digamos num ponto V .
Como T U é corda comum, V é interior a ambas, e lEVl, lFVl são menores do
que - , logo tem de ser E–V –F .

Fig. 102

Por outro lado, tem-se ˜ T EU ´ ˜ T FU, por LLL, donde nET V ´


nFT V e ˜ ET V ´ FT V , por LAL. Daqui resulta nEVT ´ nFVT , logo
op
T U ¼ EF e lEVl œ lFVl. Portanto, T U é a mediatriz de EF .è

C2. Construir o ponto médio do segmento EF .

Solução: Na construção C1, o ponto V é o ponto médio de EF .è

C3. Construir a perpendicular a uma recta dada passando por um ponto dado
sobre esta.
op
Solução: Dada uma recta j œ EF e um ponto T − j, podemos supor, sem
perda de generalidade, que T Á E (v. fig. 103). Construir a circunferência com
centro T e raio T E, a qual intersecta j num outro ponto, digamos U (que poderá
coincidir com F ou não — não importa). Construir a mediatriz de EQ, que é
perpendicular a j em T .è
10. Arcos de circunferência 91

Fig. 103

C4. Dados três pontos E, T e U, construir um rectângulo òT UVW tal que


T W ´ ET .

Solução: Construir a perpendicular j" a T U em T e a circunferência com


centro T e raio T E, que corta j" em dois pontos, digamos W e W w . Construir j#
perpendicular a T U em U, e j$ perpendicular a j# em W . j# intersecta j$ , caso
op op
contrário T W e T U seriam paralelas (porquê?), o que é absurdo. Seja V o ponto de
intersecção. No quadrilátero òT UVW (Fig. 104), lados opostos são paralelos
(quer dizer, estão contidos em rectas paralelas) e três dos ângulos são rectos, logo o
quarto também é recto (porquê?), portanto òT UVW é um rectângulo.è

Fig. 104 Fig. 105


Ø
C5. Dado um segmento EF e uma semi-recta GH , construir um ponto
Ø
I − GH tal que GI ´ EF .

Solução: Primeiro constroi-se o rectângulo òFGT U com FU ´ EF (Fig.


105). Então CP ´ EF. Com centro em G e raio GT , constroi-se uma
Ø
circunferência, a qual corta GH num ponto I tal que GI ´ EF .è
92 GEOMETRIAS

11.2 Álgebra com régua e compasso


Sejam dados segmentos de comprimento ", + e ,. Mostramos como construir,
com régua (não graduada) e compasso, segmentos de comprimentos

+  ,,
"
, +,,
,
e È +.
+ +
As justificações das construções em causa utilizam os teoremas da geometria
euclidiana, tal como anteriormente, mas nelas não se fará qualquer medição e, por
isso, são fieis ao espírito geométrico dos gregos. São casos particulares do que
poderíamos chamar «álgebra geométrica». Todavia, no tempo dos gregos um
produto de dois comprimentos seria sempre interpretado como uma área, um
produto de três como um volume, etc. Somente com René Descartes (1596-1650) é
que a «álgebra geométrica» se emancipou daquelas limitações interpretativas.
Ø
AG1. +  ,Þ Imediato: sobre uma semi-recta dada EF , construímos (por C5)
um segmento EG de comprimento + e um segmento GH de comprimento , , de tal
modo que E–G –H. EH tem comprimento +  , .
"
AG2. . Se + œ " não há nada a fazer. Suponhamos +  " (o caso +  " é
+
Ø
análogo). Dado um ângulo nFEG , em EF construimos H e I tais que lEHl œ +
Ø
e lEIl œ ", respectivamente, e em EG construímos J tal que lEJ l œ " (v. figura
106).
op op
Com vértice I construímos o ângulo nEIT ´ nEHJ , pelo que IT ² HJ ;
Ø Ø
IT corta EG , digamos em K. Como ˜ EHJ µ ˜ EIK (porquê?), o
segmento EK tem comprimento "Î+, pois
" lEKl
œ .
+ "

Fig. 106 Fig. 107


10. Arcos de circunferência 93

AG3. +,. É uma construção semelhante à anterior, correspondente à figura


106:36
lEHl ,
œ .
+ "
AG4. +, œ +" † , — composição de AG3 e AG4 (v. figura 106).
AG5. È+. Primeiro construímos segmentos EF e FG tais que E–F –G ,
lEF l œ " e lFG l œ +. Com centro em Q œ ponto médio de EG e raio
"+
lQ El œ lQ Gl œ ,
#
op
traçamos uma circunferência. De seguida tiramos uma perpendicular a EG em F ,
que intersecta a circunferência em dois pontos, um dos quais é H ilustrado na
figura seguinte. Seja B œ lFHl.

Fig. 108

Como ˜ EFH µ ˜ HFG , tem-se


B lFHl lFG l +
œ œ œ ,
" lEF l lFHl B

donde B# œ +, o que mostra que FH é o segmento pretendido.

*11.3 Resolver equações com régua e compasso no plano


euclidiano
Utilizando a régua (não-graduada, sempre) e o compasso podemos multiplicar,
dividir e extrair raízes quadradas de números positivos. A questão que agora nos
interessa é a de saber que pontos do eixo SB do plano ‘# (fixado um referencial
cartesiano ortonormado) conseguimos obter com régua e compasso, partindo de
pontos sobre o eixo SB com abcissas ", +, ,, etc., sendo estas últimas possivel-
mente negativas. Isto não é problema, pois se já tivermos obtido pontos com
abcissas + e , então facilmente obtemos (sempre com régua e compasso) pontos
com abcissas +, +  , , ,  +, Ð+Ñ, , +Ð,Ñ, etc.
Supomos o leitor familiarizado com a noção de corpo ordenado.

36 Esta figura (ou uma qualquer figura semelhante a ela) foi designada por «configuração
de Tales» pelo Prof. J.J. Dionísio.
94 GEOMETRIAS

Definição Um corpo ordenado diz-se euclidiano sse todo o elemento


positivo do corpo possui uma raíz quadrada positiva.

Dizer que o corpo ordenado é euclidiano é dizer, portanto, que a equação

Uma tal solução denota-se È+, e é óbvio que È+ também é uma solução,
B# œ + tem solução positiva no corpo, para qualquer elemento positivo + do corpo.

negativa, da mesma equação. Obviamente, o corpo ordenado  dos números


racionais não é euclidiano (tome + œ #); o corpo ordenado ‘ dos números reais é
euclidiano, mas existem corpos ordenados euclidianos propriamente contidos
(como subcorpo) em ‘ (v. adiante).
Pelo que acima se disse podemos, com régua e compasso, executar todas as
operações pernitentes à definição de corpo ordenado euclidiano, isto é, somar,
subtrair, multiplicar, dividir e extrair raízes quadradas, desde que tais operações
sejam algebricamente possíveis.
O que acima se disse para o eixo SB também vale para o eixo SC . Um ponto
T œ ÐBß CÑ do plano é construtível com régua e compasso sse as coordenadas B e C
são construtíveis com régua e compasso. É de esperar, portanto, que alguns
problemas algébricos possam ser resolvidos com construções com régua e
compasso. A questão não é furtuita, como veremos nos exemplos seguintes. Salvo
menção em contrário, lidamos apenas com pontos sobre o eixo SB. Construir um
número é construir, com régua e compasso, um ponto sobre SB a partir dos pontos
sobre SB cujas abcissas são os números dados (supostos construtíveis).

P1. Dados pontos sobre o eixo SB com abcissas +, ,, - tais que ,#  %+-   !,
construir as raízes da equação +B#  ,B  - œ !.
È # È #
As raízes são B" œ , #+, %+- e B# œ , #+, %+- , ambas construtíveis, pois
somente efectamos somas, diferenças, produtos, divisões e extração de raízes
quadradas.

P2. Dados pontos sobre o eixo SB com abcissas +, ,, - , +w , ,w e - w tais que


+,  ,+w Á !, construir a solução do sistema
w

 +w B  , w C  - w œ ! .
+B  , C  - œ !

Nas condições dadas, estas duas equações representam rectas não paralelas,
que se intersectam num ponto ÐB! ß C! Ñ, com
,- w  ,w - +w -  +- w
B! œ , C ! œ ,
+,w  ,+w +,w  ,+w
logo ambos construtíveis. Há, porém, um caminho mais curto para obter esta
solução, com régua e compasso. Se +, , e - são construtíveis, então existem, pelo
menos, dois pontos da recta de equação +B  ,C  - œ ! que são construtíveis: se
, Á !, os pontos Ð!ß - Î,Ñ e Ð"ß Ð-  +ÑÎ,Ñ; se , œ ! (recta vertical), os pontos
Ð- Î+ß !Ñ e Ð- Î+ß "Ñ. Analogamente para a outra recta. Com dois dos seus pontos
é claro que a recta que passa por eles é construtível com régua e compasso; a
intersecção das duas rectas será, pois, construtível com régua e compasso.
10. Arcos de circunferência 95

P3. Supondo dados os números +, ,, - , +w , ,w e - w , com -  ! e +w #  ,w # Á !,


construir as soluções ÐB" ß C" Ñ e ÐB# ß C# Ñ, caso existam, do sistema

œ +w B  , w C  - w œ ! .
ÐB  +Ñ#  ÐC  ,Ñ# œ - #

A primeira equação representa uma circunferência com centro e raio


construtíveis, obviamente construtível com compasso, e a segunda equação repre-
senta uma recta, construtível com régua.

Fig. 109

A intersecção das duas figuras, se não vazia, fornece as soluções.

P4. Dados +, ,, - , . w , I e J e sabendo que a primeira equação representa uma


circunferência (isto é, +#  ,#  %-  !) e a segunda uma recta, construir, se
existirem, as soluções do sistema

œ . w B  IC  J œ !.
B #  C #  +B  , C  - œ !

O gráfico da recta pode ser construído, como já sabemos, mas não é óbvio que
o gráfico da primeira equação também pode ser construído com régua e compasso.
Mas pode: completando o quadrado, a primeira equação é equivalente a

ŠB  ‹  ŠC  ‹ œ
+ # , # + #  , #  %-
,
# # %
logo a circunferência tem centro no ponto Ð +# ß  #, Ñ e raio < œ #" È+#  ,#  %- ,
ambos construtíveis. Construídas as duas figuras, é construtível a sua intersecção.

P5. Dados +, ,, - , . , / e 0 e sabendo que as duas equações representam


circunferências, construir, se existirem, as soluções do sistema

œ
B #  C #  +B  , C  - œ !
.
B #  C #  . B  /C  0 œ !
Construídas as duas figuras, é construtível a sua intersecção.
Os métodos anteriores ilustram uma ligação profícua entre a geometria e a
álgebra, característica da geometria moderna, embora estranha à maneira de fazer
geometria dos gregos antigos. Essa ligação permite resolver facilmente alguns
problemas que os geómetras gregos acharam muito difíceis, e até encontrar
soluções (em certo sentido) de problemas que se revelaram impossíveis para os
96 GEOMETRIAS

geómetras da Grécia antiga. O problema seguinte é um dos possíveis (mas mais


difícil, com régua e compasso).

11.4 O problema de Apolónio


É o problema de construir, com régua e compasso, se possível, todas as
circunferências V tangentes simultaneamente a três circunferências dadas V" , V# e
V$ .

Fig. 110

Utilizaremos os métodos acima explicados. Dada V" com centro T" e raio -" e
V com centro T e raio - , a condição para as duas circunferências serem tengentes é
terem um único ponto comum, o que pode acontecer de três maneiras distintas,
conforme a sua posição relativa, ilustrada nas figuras seguintes:

Fig. 111

No primeiro caso, as duas circunferências são exteriores uma à outra (com


excepção do ponto de tangência) e, nos outros dois casos, uma delas é interior à
outra (também com excepção do ponto de tangência), sendo a relação entre a
distância dos centros e os raios dada por
(1) lT T" l œ -  -" , (2) lT T" l œ -  -" , (3) lT T" l œ -"  - ,
respectivamente. Reciprocamente, se estas relações são satisfeitas, tem lugar a
condição geométrica de tangência. Resumindo, as circunferências V e V" são
10. Arcos de circunferência 97

tangentes sse
(4) lT T" l# œ Ð- „ -" Ñ#
Pondo T œ Ð+ß ,Ñ, T3 œ Ð+3 ß ,3 Ñ para 3 œ ", #, $, vê-se que V é tangente às três
circunferências sse o sistema das três equações da forma (4)
(5) Ð+  +" Ñ#  Ð,  ," Ñ# œ Ð- „ -" Ñ#

(6) Ð+  +# Ñ#  Ð,  ,# Ñ# œ Ð- „ -# Ñ#

(7) Ð+  +$ Ñ#  Ð,  ,$ Ñ# œ Ð- „ -$ Ñ#
tem solução em +, ,, - , para alguma escolha dos sinais «  » e «  » em cada
equação. Existem ao todo oito escolhas possíveis destes sinais e, é claro,
pretendemos que uma solução possa ser encontrada com régua e compasso, se
alguma existir, não sendo de excluir a possibilidade de mais de uma solução.
Simplificando (5) obtemos
+#  ,#  - #  #+" +  #," , … #-" - œ -"#  +"#  ,"# ,
que é da forma
(8) +#  , #  - #  +w +  , w ,  - w -  . w œ ! ,
e, analogamente,
(9) +#  ,#  - #  +ww +  ,ww ,  - ww -  . ww œ !,

(10) +#  ,#  - #  +www +  ,www ,  - www -  . www œ !,


sendo números construtíveis todos os coeficientes (+w , +ww , etc.). Subtraindo
membro a membro (8) de (9) e de (10), obtemos igualdades da forma
(11) 4+  5,  6-  7 œ !,

(12) 4w +  5 w ,  6w -  7w œ !,
em que os coeficientes também são construtíveis. Podemos agora resolver este
sistema em + e , , tratando 6-  7 e 6w -  7w como se fossem constantes, obtendo
(como no problema P2 acima) expressões para + e , em termos de - da forma
+ œ 4" -  5 " , , œ 4 # -  5 # ,
com coeficientes construtíveis. Substituindo em (8) obtemos uma equação
quadrática em - , cujos coeficientes são construtíveis:
Ð4" -  5" Ñ#  Ð4# -  5# Ñ#  - #  +w Ð4" -  5" Ñ  ,w Ð4# -  5# Ñ  - w -  . w œ !
Esta equação pode-se resolver com régua e compasso (problema P1 acima) e,
portanto, + e , podem ser encontrados com régua e compasso. Observe-se que
algum dos passos acima pode ser algebricamente impossível, o que acontecerá se o
98 GEOMETRIAS

problema geométrico for impossível. Seria o caso, por exemplo, se as três circun-
ferências dadas fossem concêntricas.
Por outro lado, o problema de Apolónio admite algumas variantes que também
podem ser resolvidas com régua e compasso (se existirem soluções). Uma variante
é o caso degenerado de uma circunferência dada, digamos V" , se reduzir a um
ponto, T" (fazer -" œ !); outro caso degenerado é o de duas das circunferências
dadas se reduzirem a pontos; outro ainda já é nosso conhecido: obter V passando
por três pontos (não colineares), etc.
Uma observação final: o método da construção com régua e compasso assenta
em bases sólidas, geométricas e algébricas, que não se devem confundir com o
simples traçado de Desenho Rigoroso de rectas e circunferências. Este, por muito
«rigoroso» que pretenda ser, está sujeito à acumulação de erros derivados da
imperfeição dos instrumentos e da grossura do traço e, por si mesmo, não
demonstra a existência dos pontos que é suposto estarem no desenho para se
completarem as figuras.

*11.5 Sobre os três problemas clássicos


Os chamados problemas clássicos da construção com régua e compasso
desafiaram os matemáticos e geómetras ao longo dos séculos, até ser demonstrada
a sua impossibilidade no século XIX. A lição mais importante a tirar das tentativas
goradas que antecederam a solução final (pela negativa) é que a geometria, como
qualquer outro ramo das matemáticas, não é uma ilha isolada auto-suficiente e
sobranceira relativamente aos outros ramos. Se, até certo ponto, o desenvolvimento
de uma teoria hipotético-dedutiva, como a geometria, pode prescindir dos outros
ramos, não é menos verdade que alguns problemas nela formulados parecem exigir
que se procurem fora dela métodos e conceitos alternativos e, quiçá, mais
poderodos. É precisamente o caso das construções com régua e compasso, no que
respeita aos três problemas clássicos. Utilizando funções transcendentes e outros
instrumentos, os problemas em questão foram resolvidos de muitas e variadas
maneiras e é muito provável que, se fosse possível resolvê-los com régua e
compasso, os geómetras gregos teriam encontrado uma ou mais soluções. Porém,
se não for possível resolvê-los com régua e compasso, haverá que demonstrar
matematicamente esta impossibilidade e, para o conseguir, torna-se imperioso
dispor de uma caracterização matemática das construções com régua e compasso,
o que pode obrigar a sair para fora do domínio da geometria pura. É por esta razão
que tantos séculos tardaram até se encontrar uma demonstração de impossibilidade,
e é aqui que entram a Álgebra e a Análise, para fornecerem tais caracterizações e
permitirem demonstrar a referida impossibilidade. Os três problemas clássicos em
questão são:
(I) o problema da trissecção do ângulo arbitrário,
(II) o problema da duplicação do cubo,
(III) o problema da quadratura do círculo.
Como se disse, durante o século XIX, provou-se a impossibidade de resolver
estes três problemas utilizando apenas a régua não graduada e o compasso. Esta
impossibilidade tinha sido afirmada por Carl Gauss no princípio do século, mas
sem fornecer nenhuma prova matemática. Em 1837, P.L. Wantzel demonstrou a
10. Arcos de circunferência 99

impossibilidade dos dois primeiros problemas, mas só em 1882 é que foi


demonstrada a impossíbilidade do terceiro problema (v adiante).
Quanto ao primeiro problema, o que está em causa é a impossibilidade de um
método geral para construir uma trissectriz de um ângulo arbitrário. Recorde-se
Ø
que uma trissectriz de um ângulo geométrico nFEG é uma semi-recta EH, com
H − intÐnFEGÑ, tal que 7ÐnHEFÑ œ "$ 7ÐnFEGÑ ou 7ÐnHEGÑ œ
"
$ 7ÐnFEGÑ. Facilmente se prova na geometria euclidiana, com a axiomatização
que foi dada, que todo o ângulo geométrico possui exactamente duas trissectrizes,
mas a questão é construir uma delas com régua e compasso, o que só é possível em
casos particulares (por exemplo, no caso de um ângulo recto). Mais exactamente,
provou-se que é impossível construir com régua e compasso uma trissectriz de um
ângulo com medida 1Î$ (ou '!°).
Quanto ao segundo problema, pretende-se construir com régua e compasso um
número , (isto é, um segmento de comprimento ,) tal que ,$ œ #. Este é um caso
particular da questão geral de encontrar um segmento com comprimento , tal que
,$ œ #+$ , onde + é o comprimento de um segmento dado (+ œ ", no caso
particular). Mas quer o caso geral quer o caso particular são impossíveis de
resolver nas condições propostas.
A resolução, pela negativa, das duas primeiras questões acima passa pela
consideração do chamado plano construtível, um «plano» contido propriamente no
plano euclidiano, cujos pontos T œ ÐBß CÑ são tais que B e C são números
construtíveis, isto é, podem-se obter a partir de ! e " por um número finito de
adições, subtracções, multiplicações, divisões e extracções de raízes quadradas.
Tais pontos são chamados, naturalmente, pontos construtíveis. O conjunto dos
números construtíveis forma mesmo um subcorpo de ‘ (para as operações
induzidas). Acontece que toda a construção com régua e compasso possível no
plano euclidiano é possível no plano construtível. Assim, questões como (I) e (II)
tornam-se questões objectivas no plano construtível, e as respostas a ambas são
negativas: para (I), porque é impossível construir a bissectriz de um ângulo nFEG
de 1Î3 radianos definido por pontos E, F e G (pelo menos) construtíveis e, para
(II), porque a raíz cúbica de # não é construtível, mas para demonstrar isto seria
necessário extravazar o âmbito deste curso para os domínios da álgebra das
equações (extensões quadráticas de corpos). Para uma exposição do pretendido,
consulte-se o Cap. 2 da nossa monografia Transformações Geométricas.
Finalmente, o problema (III) consiste em construir, com régua (não graduada)
e compasso um segmento que seja o lado de um quadrado com área igual à de um
círculo dado. Chamam-se algébricos os números reais que são soluções de
equações polinomiais (numa indeterminada) com coeficientes inteiros, e chamam-
se transcendentes todos os outros. É um simples exercício mostrar que todo o

algébricos (por exemplo, È#, que é solução da equação B#  # œ !)Þ Na realidade,


número racional é algébrico, mas alguns números irracionais também são

todo o número construtível é algébrico, mas para a prova da impossibilidade da


quadratura do círculo (com régua e compasso) é suficiente o facto de 1 não ser
algébrico. Em 1851 o matemático francês Joseph Liouville provou que existem
números transcendentes e forneceu meios para obter alguns, mas esses métodos
não serviram para provar que certos números conhecidos, como / (base dos
logaritmos naturais) e 1 são transcendentes. Outro matemático francês, Charles
100 GEOMETRIAS

Hermite, provou em 1873, que / é transcendente. Em 1882, refinando a técnica de


Hermite, um jovem e obscuro matemático alemão, Carl Lindemann, provou
finalmente que 1 é transcendente e, portanto, a impossibilidade do problema
clássico da quadratura do círculo.

Exercícios e complementos
1. (a) Encontre uma solução mais simples para a construção C5, no caso
lEF l  lEG l.
(b) Mostre que se a construção C5 é possível no caso lEF l  lEG l, então ela
é possível no caso geral.

2. Faça as construções seguintes:


op
C3w . Construir a perpendicular a uma linha recta dada j œ EF passando
por um ponto dado T não incidente com j.
C6. Dados ˜ EFG , Ew F w ´ EF , construir um ponto G w num lado dado
op
de EF tal que ˜ EFG ´ ˜ Ew F w G w .
Ø op
C7. Dados nEFG , HI e um semiplano [ limitado por HI , construir
Ø
uma semi-recta HJ com J − [ tal que nEFG ´ nJ HI .
C8. Dados uma recta j e um ponto T Â j, construir uma paralela a j
passando por T .
C9. Dados EF e um inteiro positivo 8, dividir EF em 8 segmentos
congruentes entre si.
Capítulo 12

Isometrias, reflexões e
simetrias
Uma das «Noções Comuns»37 de Euclides, a quarta, afirma «coisas que
coincidem uma com a outra são iguais». Estritamente falando, esta noção comum é
redundante, pois uma figura só pode coincidir com ela própria. Todavia, a
utilização que Euclides faz daquela noção comum em diversas demonstrações (por
exemplo, da construção de segmentos, e de alguns critérios de congruência de
triângulos como LAL e LLL) sugere que o que ele tem em mente é uma noção geral
de congruência: se uma figura se deslocar rigidamente (isto é, sem alterar a forma
nem as dimensões) de modo a sobrepor-se a outra, então as figuras são
«(geometricamente) iguais», ou seja, congruentes. Já definimos as noções de
congruência de segmentos, de ângulos, de triângulos e de circunferências, mas o
que está em causa agora é um conceito mais geral de congruência, do qual aqueles
são manifestações particulares. A maneira mais conveniente de definir esse
conceito geral de congruência é através do conceito de isometria do plano.
Etimologicamente o termo «isometria» significa «mesma medida».
Neste capítulo, podemos supor fixado ao arbítrio um modelo ÐX ß _ß .ß 7Ñ dos
axiomas da geometria absoluta, já que não faremos uso do paralelismo afim. Para
simplificar a notação, designaremos um tal modelo simplesmente por X , quando
não houver perigo de confusão sobre as linhas rectas e as funções . e 7. Em
particular, tudo o que fazemos pode ser «traduzido» no plano euclidiano usual (mas
não apenas neste plano concreto).

Definição Uma isometria ou movimento rígido é uma aplicação : do


conjunto dos pontos no conjunto dos pontos que preserva as distâncias, isto é, tal
que para quaisquer pontos T , U se tem
.ÐT ß UÑ œ .Ð:T ß :UÑ.

37 Nome pelo qual são onhecidos certos postulados de natureza geral, não necessariamente
geométrica, que se encontram nos Elementos, antes dos postulados geométricos
propriamente ditos. Às «noções comuns» de Euclides seria mais natural chamar, hoje em
dia, «(alguns) axiomas lógicos».
101
102 GEOMETRIAS

As figuras Y" e Y# dizem-se isométricas ou congruentes, e escreve-se


Y" ´ Y# sse existe uma isometria : que transforma Y" em Y# , isto é, tal que
:ÒY" Ó œ Y#
Em geral, neste capítulo, denotaremos por Ew , F w , G w , á as imagens dos
pontos E, F, G , á por uma isometria :, se não houver possibilidade de confusão.
Note-se que na definição não se exigiu que a aplicação : fosse bijectiva, mas este
facto, entre outros, será demonstrado a seguir.

12.1 Teorema (Propriedades das isometrias) Seja : uma isometria.


Então:
(a) : é injectiva;
(b) : preserva a relação estar entre, isto é, para quaisquer pontos E, F e G ,
tem-se E–F –G sse Ew –F w –G w à em particular, : preserva a colinearidade;
(c) : preserva os triângulos, quer dizer, quaisquer três pontos são não
colineares sse as suas imagens são não colineares;
(d) : preserva . e 7; em particular, : transforma segmentos e triângulos em
segmentos e triângulos congruentes aos dados, respectivamente;
(e) : é uma bijecção no conjunto dos pontos;
(f) : induz uma bijecção no conjunto das linhas;
(g) : é uma colineação, isto é, transforma linhas em linhas.

Dem. (a) Para quaisquer pontos T , U, T w œ :T œ :U œ Uw implica


.ÐT w ß Uw Ñ œ ! œ .ÐT ß UÑ, donde T œ U por (D2 ).
(b) Se E–F –G , então lEF l  lFG l œ lEG l, donde lEw F w l  lF w G w l œ lEw G w l;
como E, F e G são distintos, também Ew , F w e G w são distintos, por (a), e, pelo
teorema da desigualdade triangular, são colineares, logo Ew –F w –G w . Analogamente,
se Ew –F w –G w , então E–F –G . A segunda parte resulta da primeira, se nos
lembrarmos que, de três pontos sobre uma linha recta, um e um só deles está entre
os outros dois.
(c) existe o ˜ EFG sse existe o ˜ Ew F w G w , pelas alíneas anteriores;
(d) : preserva . , por definição; dado o nEFG , com E, F , G não colineares,
existem os triângulos ˜ EFG e ˜ Ew F w G w , por (c), e como os comprimentos dos
lados são preservados, tem-se ˜ EFG ´ ˜ Ew F w G w , por LLL, donde resulta que
nEFG ´ nEw F w G w , ou seja, 7ÐnEFGÑ œ 7ÐnEw F w G w Ñ.38
(e) Falta mostrar que : é sobrejectiva: seja U um ponto qualquer, com vista a
provar que existe um ponto T tal que :T œ T w œ Uà seja ˜ EFG um triângulo
qualquer; como existe o ˜ Ew F w G w e U não pode pertencer aos três lados,

38 Observação importante: a alínea (d) não diz que : transforma ângulos em ângulos,
mas apenas que se nEFG é um ângulo, então nEw F w G w é um ângulo com a mesma
amplitude que o primeiro. O problema é que ainda não provámos que : é sobrejectiva e,
por isso, não podemos ainda assegurar que : transforme segmentos em segmentos, semi-
rectas em semi-rectas, rectas em rectas, ângulos em ângulos ou triângulos em triângulos.
Muitos autores incluem a sobrejectividade na definição de isometria, precisamente para
evitar ter de demonstrá-la! [Todavia, a condição de sobrejectividade é assumida na
definição de isometria entre dois espaços quaisquer, situação mais geral do que a que
estamos considerando, de isometria de um espaço (plano) em si mesmo.]
10. Arcos de circunferência 103

podemos supor, sem perda de generalidade, que U não é colinear com F w e G w , de


modo que existe o ˜ UEw F w à sejam B œ 7ÐnF w ß Ew UÑ, C œ lEw Ul. Pelo teorema
da construção de ângulos e segmentos (teorema da construção de ângulos e
segmentos, pág. 30), existem e são únicos pontos T" e T# , um em cada lado de
op
EF , tais que
7ÐnFET" Ñ œ 7ÐnFET# Ñ œ B e lET" l œ lET# l œ C .
Então, por (d), tem-se
7ÐnF w Ew T"w Ñ œ 7ÐnF w Ew T#w Ñ œ B e lEw T"w l œ lEw T#w l œ C .
Além disso, T"w Á T#w , por : ser injectiva. Pela unicidade no teorema da
construção de ângulos e segmentos tem-se necessariamente U œ T"w ou U œ T#w , e
em qualquer dos casos U é imagem por : de algum ponto, o que prova que : é
sobrejectiva.

Fig. 112
op
(f) Seja j œ EF uma recta, jw œ ÖT w À T − j×. jw é, por enquanto, apenas um
conjunto de pontos, as imagens por : dos pontos T de j, mas mostramos que é, de
facto, uma recta. Note-se, em primeiro lugar, que os pontos de jw são colineares,
op
pela alínea (b); além disso, todo o ponto de Ew F w está em jw , por (b) e (e), e
op
nenhum ponto fora de Ew F w está em jw , por (c). Portanto, jw é uma recta, e é a recta
que tomamos para :j, ficando assim : definida no conjunto das linhas com valores
no conjunto das linhas. Como tal, : é bijectiva: é sobrejectiva, por ser sobrejectiva
no conjunto dos pontos, e é injectiva, pois se <w œ =w , há dois pontos, digamos T w e
Uw em ambas elas, logo T e U em < e em =, donde < œ = por (A" ).
(g) Imediato, da alínea anterior.è

Do que precede resulta que uma isometria : é um isomorfismo (v. exercício


1.2, p. 18) do plano de incidência do nosso modelo em si próprio, isto é, um
automorfismo desse plano de incidência. Na realidade, entendendo a noção de
automorfismo de X como um automorfismo de X que preserva . e 7, a alínea (d)
do teorema anterior garante também que : é um automorfismo de X e é claro que,
104 GEOMETRIAS

reciprocamente, um automorfismo de X é uma isometria, pois preserva . . Estas


conclusões constituem a primeira parte do teorema seguinte.

12.2 Teorema Uma isometria de X é um automorfismo, e reciprocamente.


Além disso, as isometrias de X formam um grupo.è

Este grupo é chamado o grupo das isometrias (ou grupo dos automorfismos)
de X , e designa-se por \ ÐX Ñ, ou IsoÐX Ñ, ou AutÐX Ñ.

Dem. (da 2.ª parte) Começamos por verificar que o produto de duas isometrias
é uma isometria. Se : e < são isometrias, então, para quaisquer pontos E e F , tem-
se lEF l œ lEw F w l, onde Ew œ :E e F w œ :F , e também lEw F w l œ lEww F ww l, onde
Eww œ <Ew e F ww œ <F w , logo lEF l œ lEww F ww l, com Eww œ <:E e F ww œ <:F , o
que mostra que <9 œ < ‰ : é uma isometria. Como as isometrias são aplicações,
automaticamente o produto de isometrias é associativo.
É claro que + œ idX é uma isometria tal que :+ œ +: œ : para toda a isometria
:. Finalmente, se : é uma isometria, a bijecção inversa :" também é, pois
lEF l œ lEw F w l sse lEw F w l œ lEF l, onde E œ :" Ew e F œ :" F w .è
O teorema anterior (ou melhor, a sua demonstração) também mostra que o
grupo das isometrias de X é um subgrupo do grupo de todas as permutações de X
(bijecções de X em si mesmo), e também um subgrupo do grupo das colineações de
X [v. teoremas 12.1(g) e 12.2]. Veremos de seguida alguns exemplos de isometrias
e sua concretização no plano euclidiano real.

Definição Dada uma recta j, a reflexão em j é a aplicação 5j definida por


ÚT
5j T œ Û T
se T − j
w
se T Â j, onde T w é o ponto no lado oposto de
Ü j tal que j é a mediatriz de T T w .

A recta j é o eixo (ou o espelho) de 5j . O ponto T w œ 5j T é a imagem de T


por 5j . A reflexão 5j também é chamada uma inflexão axial (em j).

Fig. 113
10. Arcos de circunferência 105

As definições seguintes são para qualquer aplicação do conjunto dos pontos no


conjunto dos pontos do nosso modelo.

Definição A função : fixa o ponto T , ou o ponto T é um ponto fixo (ou


invarianteÑ de : sse :T œ T ; : fixa o conjunto Y (ou Y é um conjunto fixo ou
invariante) para : sse :ÒY Ó œ Y ; : fixa pontualmente Y sse : fixa todos os
pontos de T .

Observação: não se deve confundir a invariância de um conjunto Y com a


invariância dos pontos de Y — são noções distintas, não equivalentes, em geral,
como veremos a seguir. Mas a segunda noção implica a primeira: se : fixa
pontualmente Y , então : fixa Y , pois
:ÒY Ó œ Ö:T À T − Y × œ ÖT À T − Y × œ Y .
Também é óbvio que a identidade + fixa todos os pontos e todos os conjuntos.

12.3 Teorema Toda a reflexão 5j é involutiva e permuta os semiplanos


limitados por j. Além disso, 5j fixa pontualmente a recta < sse < œ j, e fixa a recta
< sse < œ j ou < ¼ j.

Dem. Da definição resulta logo que 5j fixa pontualmente o seu eixo j, é uma
involução (isto é, 5 ‰ 5 œ +), fixa toda a recta perpendicular a j (por causa da
unicidade da perpendicular a j passando por um ponto de j, p. 32) e permuta os
dois semiplanos [ e [w limitados por j:
5j Ò[Ó œ [w e 5j Ò[w Ó œ [.
Para terminar a demonstração, suponhamos que 5j fixa a recta < Á j, e seja T
um ponto de < não em j. Como 5j fixa <, o ponto imagem T w œ 5j T está em < e
não está em j, logo a recta < passa por T e T w e, portanto, < ¼ j (pois j é a
mediatriz de T T w ).è

12.4 Teorema Toda a reflexão é uma isometria.

Dem. Sejam T e U dois pontos quaisquer, T w œ 5j T e Uw œ 5j U, com vista a


provar que lT Ul œ lT w Uw l. Há quatro casos a considerar:
Caso 1: T , U − j. Então T w œ T e Uw œ U, logo lT Ul œ lT w Uw l.
Caso 2: um e um só dos pontos T , U está em j, digamos U − j. Como j é a
mediatriz de T T w , U é equidistante de T e T w , por uma propriedade característica
da mediatriz (p. 49), logo lT Ul œ lT w Uw l.
op
Caso 3: T U ¼ j, digamos no ponto E. Seja 0 um sistema de coordenadas para
op
T U tal que 0 E œ ! (teorema de colocação da régua, p. 11). Pondo 0 T œ +,
0 U œ ,, tem-se 0 T w œ + e 0 Uw œ , , donde
lT w Uw l œ l0 T w  0 Uw l œ lÐ+Ñ  Ð,Ñl œ l+  ,l œ l0 T  0 Ul œ lT Ul.
106 GEOMETRIAS

op
Caso 4: T e U ambos fora de j e T U não perpendicular a j. Há dois subcasos,
conforme T , U estão no mesmo lado ou em lados opostos de j, mas o argumento é
o mesmo em ambos os casos (v. figura 114).
Sendo E, F os pés dos segmentos perpendiculares a j, T T w e QQw ,
op
respectivamente, tem-se E Á F , pois T U não é perpendicular a j, por hipótese,
donde ˜ T EF ´ ˜ T w EF , por LAL, logo, por serem homólogos, vem
lT Fl œ lT w Fl e nT FE ´ nT w FE.
Por subtracção ou adição de ângulos, conforme o subcaso, vem nT FU ´
nT w FUw , e ˜ T FU ´ ˜ T w R Uw , novamente por LAL, donde lT Ul œ lT w Uw l.è

Por este teorema, é claro que podemos aplicar às reflexões as conclusões do


teorema 12.1, nomeadamente, que toda a reflexão é uma colineação que preserva
as distâncias e a medição angular. Que toda a reflexão é bijectiva,39 já se poderia
ter concluído do facto de ser involutiva (teorema 12.3).

Fig. 114

12.5 Teorema
(a) Se uma isometria fixa dois pontos de uma recta, então fixa pontualmente a
recta.
(b) Se uma isometria fixa três pontos não colineares, então é a identidade.

Dem. (a) Suponhamos que a isometria : fixa os pontos distintos E e F da


recta j. Então :E œ E e :F œ F e :j œ :ÒjÓ œ j [teorema 12.1(f)]. Seja agora T
op
um ponto qualquer da recta j œ EF , :T œ U. Então U − j,
lET l œ l:E:T l œ lEUl, e analogamente lFT l œ lFUl, donde T œ U [teorema
12.2]. Portanto, : fixa todos os pontos de j.

39 Por tradição, desde finais do séc. XIX, muitos autores utilizam o termo «transformação»
(introduzido por Sophus Lie) para significar o mesmo que «bijecção», em geometria, mas,
como essa utilização não é universal, evitaremos usar aquele termo.
10. Arcos de circunferência 107

(b) Suponhamos que : fixa três pontos não colineares E, F e G . Por (a), : fixa
todos os pontos do ˜ EFG . Seja T um ponto arbitrário, com vista a provar que
:T œ T e, portanto, : œ +. Seja U Á T no interior de um lado do ˜ EFG . Então
op
T U intersecta o triângulo em, pelo menos, um ponto V Á U, e como : fixa U e V ,
op
: fixa todos os pontos da recta UV, novamente por (a). Em particular, : fixa T ,
op
pois T − UV.è

O teorema seguinte é um dos teoremas mais importantes de toda a teoria das


isometrias, senão mesmo o mais importante.

12Þ6 Teorema (Teorema Fundamental das Isometrias)


Se ˜ EFG ´ ˜ HIJ , então existe uma e uma só isometria 5 tal que
5 E œ H, 5 F œ I e 5 G œ J .

Dem. Existência. Se E œ H pomos 5" œ +à se E Á H tomamos para 5" a


reflexão na mediatriz j" de EH. Em qualquer dos casos tem-se 5" E œ H.
Sejam F" œ 5" F , G" œ 5" G . Se F" œ I pomos 5# œ +à se F" Á I , então H
está na mediatriz j# de F" I , pela propriedade característica da mediatriz (p. 49),
pois lHIl œ lEF l œ lHF" l pela hipótese sobre os triângulos e por 5" ser
isométrica, e, neste caso, tomamos para 5# a reflexão na mediatriz de F" I . Em
qualquer dos casos tem-se 5# H œ H e 5# F" œ I .

Fig. 115

Seja G# œ 5# G" . Se G# œ J pomos 5$ œ +à se G# Á J , então H e I estão na


mediatriz j$ de G# J , pela propriedade característica da mediatriz, pois
lHJ l œ lEG l œ lHG" l œ lHG# l e lIJ l œ lFG l œ lF" G"l œ lIG#l,
108 GEOMETRIAS

pela hipótese sobre os triângulos e por 5" e 5# serem isométricas, e neste caso
tomamos para 5$ a reflexão na mediatriz de G# J . Em qualquer dos casos tem-se
5$ H œ H, 5$ I œ I e 5$ G œ J . Pondo 5 œ 5$ 5# 5" , tem-se
5 E œ 5$ 5# 5" E œ 5 $ 5 # H œ 5 $ H œ H ,
5 F œ 5$ 5# 5" F œ 5 $ 5 # F " œ 5 $ I œ I ,
5 G œ 5$ 5# 5" G œ 5 $ 5 # G " œ 5 $ G # œ J ,
o que prova a existência.
Unicidade. Suponhamos 5, : duas isometrias que aplicam E, F , G em H, I ,
J , respectivamente. Então
:" 5E œ :" H œ E, :" 5F œ :" I œ F e :" 5G œ :" J œ G ,
logo :" 5 œ + pela parte (b) do teorema anterior, donde 5 œ :.è

A isometria 5 construída no decurso da demonstração anterior é um produto


de, quando muito, três reflexões. Assim é, na realidade, para qualquer isometria,
como veremos no teorema seguinte, o que mostra o importante papel que as
reflexões desempenham na teoria das isometrias.

12Þ7 Corolário (Representação das isometrias) Toda a isometria é


igual ao produto de, quando muito, três reflexões. Se a isometria fixa um ponto,
então é uma reflexão ou um produto de duas reflexões, e a isometria fixa dois
pontos de uma recta sse é a reflexão nessa recta ou a identidade.

Dem. Seja : uma isometria. Escolhidos ao arbítrio três pontos não colineares
E, F e G , ponhamos H œ :E, I œ :F e J œ :G , respectivamente. Então é
claro que ˜ EFG ´ ˜ HIJ , por LLL, e : é igual ao produto de, quando muito,
três reflexões, como se viu na demonstração do teorema (por unicidade;
: œ 5 œ 5$ 5# 5" , na notação daquela demonstração). Se : fixa um ponto, digamos
E, então a demonstração do teorema também mostra que : é igual ao produto de,
quando muito, duas reflexões (caso 5" œ +). Se : fixa dois pontos, digamos E e F ,
fica : œ 5 œ 5$ , que é uma reflexão ou a identidade.è

Reformulando o teorema fundamental:

12.8 Corolário Uma isometria fica completamente determinada por três


pontos não colineares (e as suas imagens).è

Os resultados precedentes também mostram que a definição geral de


congruência de duas figuras (definição na pág. 102) é, de facto, uma generalização
das noções particulares que já conhecemos.

12.9 Corolário Dois segmentos, dois ângulos e dois triângulos são


congruentes sse existe uma isometria que transforma um no outro,
respectivamente.
10. Arcos de circunferência 109

Dem. Apenas para o caso dos segmentos, ficando os outros como exercícios.
Se EF ´ HI , construindo sobre EF um triângulo equilátero e sobre HI outro,
ficam dois triângulos congruentes e pode-se aplicar o teorema. Reciprocamente, se
existe uma isometria : que transforma EF em HI , os pontos extremos são
aplicados nos pontos extremos [teorema 12.1 (b)] e é evidente que lEFl œ lHIl,
logo EF ´ HI .è

12.10 Teorema Uma isometria : que permuta dois pontos E e F deixa


fixo o ponto médio de EF .
Dem. Exercício.è

*12.11 O papel do axioma LAL (= A* ) e o Axioma da Reflexão (R)


O axioma de congruência de triângulos LAL (= A* ) é fundamental para
questões de simetria, entre outras. Veremos de seguida a sua relação com as
reflexões. Na realidade, ele é equivalente à proposição seguinte, que chamamos
Axioma da Reflexão. O termo «axioma» não deve ser aqui tomado à letra, já que
não foi nem vai ser utilizado como tal, mas é somente indicativo de que a
proposição em causa poderia ser tomada como axioma alternativo (ou, até,
complementar) a LAL.

AXIOMA DA REFLEXÃO (R)


Para toda a recta j existe uma colineação 5 que preserva as distâncias e a
medição angular, fixa os pontos de j e permuta os semiplanos limitados por recta
j.

Uma tal colineação 5 é uma isometria e, como fixa dois pontos em j, só pode
ser a reflexão em j, 5j , como sabemos pelo corolário 12.7, e é óbvio que o axioma
R é consequência dos axiomas da geometria absoluta. Todavia, para mostrar que R
implica LAL não podemos utilizar o corolário 12.7 nem o teorema fundamental de
que ele depende, já que LAL foi utilizado na sua demonstração. Apenas podemos
utilizar a teoria que precede a introdução do axioma LAL. Chamemos
provisoriamente a uma colineação 5 como no enunciado de R uma aplicação
reflectora ou reflector em j, e a j um espelho. A demonstração de que R implica
LAL é bastante longa, mas em boa parte já está feita ou, melhor dizendo, é uma
adaptação da demonstração do teorema 12.6. Começamos por uma descrição
informal do que acontece.
Suponhamos dados os triângulos ˜ EFG e ˜ HIJ tais que lEF l œ lHIl,
7ÐnFEGÑ œ 7ÐnIHJ Ñ e lEG l œ lHJ l, com vista a provar que os triângulos
são congruentes (para a bijecção E Ó H, F Ó I , G Ó J ) — v. figura 115.
A ideia intuitiva é mover (rigidamente) o primeiro triângulo de modo a sobrepô-lo
exactamente ao segundo, garantindo assim a congruência. É claro que,
teoricamente, não se faz movimento nenhum, apenas se compõem aplicações
reflectoras em espelhos convenientes!
Primeiro, levamos o vértice E até H mediante a aplicação reflectora 5" no
espelho j" œ mediatriz de EH. [Se E œ H toma-se 5" œ +.] Esta aplicação aplica
F em F" e G em G" , preservando todas as medidas. Em seguida utilizamos o
espelho j# œ mediatriz de F" I para aplicar F" em I , mediante o reflector 5# em
110 GEOMETRIAS

Ø
j# , deixando H fixo. [Se F" − HI , então F" œ I e toma-se 5# œ +Þ] Este
reflector aplica G" em G# e também preserva as medidas dos ângulos e segmentos
pertinentes. Finalmente, utilizando a aplicação reflectora 5$ que deixa fixos os
op
pontos H e I , isto é, com espelho j$ œ HI, G# é aplicado em J e, mais uma vez,
são preservadas as medidas pertinentes. 5 œ 5$ 5# 5" é a colineação que preserva
medidas de segmentos e de ângulos e transforma ˜ EFG em ˜ HIJ , donde se
conclui que ˜ EFG ´ ˜ HIJ . Em casos particulares pode acontecer que uma
das 53 seja a identidade, o que simplifica o argumento.
Todavia, para a demonstração de LAL ficar completa, há alguns passos
anteriores que necessitam ser analisados com mais cuidado porque, como se disse,
somente a teoria que precede LAL pode ser utilizada. As justificações em falta
podem ser colmatadas mediante as observações seguintes:
(1) Uma colineação que preserva as distâncias preserva a relação estar entre [v.
teorema 12.1 (b)] e, portanto, a composta de duas ou mais aplicações reflectoras
transforma segmentos em segmentos (com a mesma medida), semi-rectas em semi-
rectas, ângulos em ângulos (com a mesma medida) e triângulos em triângulos. Isto
interessa acima para 5" , 5# 5" e 5 œ 5$ 5# 5" .

(2) Se j é a mediatriz do segmento T U, então U é a imagem de T por qualquer


aplicação reflectora 5 em j. Com efeito, sejam Q o ponto médio de T U, R tal que
op
j œ Q R e T w œ 5T . Mostramos que T w œ U.

Fig. 116

Ora, T w e U estão no mesmo lado de j; como 5 fixa Q e R e preserva ângulos


Ø
rectos, tem-se necessariamente T w − Q U e, como lQ T w l œ lQ T l œ lQ Ul, tem
que ser T w œ U, pelo teorema da construção de segmentos (p. 30).
Isto é relevante, acima, para cada uma das reflexões 53 (3 œ ", #, $).
Ø
Nomeadamente, no caso em que F" pertence à semi-recta oposta a HI , como H é
o ponto médio de F" I , faz-se 5# œ reflexão na perpendicular a F" I em H.
Ø
(3) Se j contém a bissectriz T U do nVT W e lT Vl œ lT Wl, então W é a
imagem de V pela reflectora em j, pelo teorema da construção de ângulos e
segmentos (teorema da construção de ângulos e segmentos, pág. 30), pois W está no
lado oposto de V relativamente a j e 7ÐnUT WÑ œ 12 7ÐnVT WÑ. Isto interessa,
acima, no caso de F" , H e I não serem colineares e, neste caso, toma-se
5# œ reflectora na recta contendo a bissectriz do nF" HI .
10. Arcos de circunferência 111

Em conclusão, podemos afirmar:

12.12 Teorema Os axiomas R e LAL são equivalentes, na presença dos


restantes axiomas da geometria neutra ou absoluta (plana).è

12.13 Simetrias
Uma figura (geométrica) Y é simplesmente um conjunto de pontos (do plano).
Na geometria elementar uma grande parte do estudo é dedicado a figuras como
ângulos, triângulos, circunferências e outras cónicas, etc. O termo «lugar
geométrico» é muitas vezes utilizado como sinónimo de «figura», quando esta é
descrita através de uma condição que caracteriza os seus pontos. Umas figuras são
mais interessantes do que outras, por exemplo, do ponto de vista das simetrias que
exibem. A noção de simetria é deveras importante em matemática, nas artes visuais
e em diversas ciências como a Cristalografia e a Física. Em Matemática, ela está
intimamente ligada à noção algébrica de grupo. Há muitas espécies de simetrias
mas, no que segue, interessam-nos apenas as simetrias em relação a rectas de
certas figuras.

Definição Dados uma recta j e um ponto qualquer T , o ponto T w œ 5j T é


chamado o simétrico de \ por 5j . Y é uma figura e 5j ÒY Ó œ Y , a figura Y diz-se
simétrica em relação à recta j, e esta diz-se um eixo de simetria de Y .

Quer dizer, portanto, que estamos interessados em conhecer os eixos de


simetria de certas figuras. Por exemplo, os eixos de simetria de um triângulo
isósceles ˜ EFG com base FG , não equilátero, reduzem-se à mediatriz de FG
(faça uma figura!), enquanto os eixos de simetria de um quadrado são em número
de oito (faça outra figura!).
Identificamos, a seguir, os eixos de simetria de uma circunferência.

12.14 Teorema (Eixos de simetria da circunferência)


(a) Se T é um ponto da circunferência V de centro S , então todo o ponto de V
é a imagem de T por uma reflexão numa recta que passa por S e reciprocamente.
(b) Toda a recta j que passa pelo centro de uma circunferência é um eixo de
simetria da circunferência e reciprocamente.

Dem. (a) Seja V a circunferência de centro S passando por T , de modo que V


op
tem raio lST l. Se j œ ST , então T œ 5j T . Se U é outro ponto de V, então
U œ 5j T , onde agora j é a mediatriz da corda T U. Pelo teorema 9.1 (b), esta recta
passa por S. Reciprocamente, se j passa por S e V œ 5j T , então lSVl œ lST l,
pois S œ 5j S e 5j é uma isometria. Logo V − V por definição de circunferência.
(b) Pela última parte da demonstração de (a), j é um eixo de simetria de V, se j
passa por S. Reciprocamente, temos de provar que se j é um eixo de simetria de V,
então j passa por S. Seja U œ 5j T ; pela primeira parte de (a) podemos supor que
T Â j. Então U Á T e j é a mediatriz de T U. Como j é um eixo de simetria de V,
tem-se U − V e T U é uma corda de V. Logo j passa por S, pelo teorema 9.1 (b).è
112 GEOMETRIAS

O teorema seguinte contém a construção, por meio de reflexões, de duas


tangentes a uma circunferência dada passando por um ponto exterior a ela.

12.15 Teorema (das duas tangentes) Por um ponto T exterior a uma


op op
circunferência V passam exactamente duas tangentes à circunferência, T U e T V ,
com U, V − V e, além disso, lT Ul œ lT Vl.

Fig. 117

Dem. Seja T no exterior de V com centro S e raio SUw tal que S–Uw –T (lema
9.7). Como Uw é interior à circunferência Vw ÐSà lST lÑ, a recta < perpendicular a
op
ST passando por Uw intersecta Vw , digamos em T w , pelo teorema da recta-
circunferência. Seja j a mediatriz de T T w , a qual passa por S, pois T T w é uma
corda de Vw (v. fig. 117).
Então
5j S œ S e 5j T w œ T .
Ponhamos U œ 5j Uw . Como a recta < que passa por T w e Uw é uma tangente a
op
V [teorema 9.4 (a)], a sua transformada por 5j , T U é tangente a V, pelo teorema 9.5
(a), e metade do problema está resolvido. Para encontrar outra tangente basta achar
op
a imagem V de U pela reflexão em < œ ST , e é claro que lT Vl œ lT Ul.
Falta ver que T não pode pertencer a mais de duas tangentes a V, o que
deixamos como exercício.è
10. Arcos de circunferência 113

12.16 Novamente o teorema das duas tangentes


A demonstração, no contexto concreto do plano euclidiano, deste teorema
(teorema 12.15) é mais simples do que a dada acima, utilizando o teorema das duas
circunferências, o corolário 10.3 (a) e o teorema 9.5 (a).

Dem. Pois, dado T exterior a V œ VÐSà +Ñ à distância - de S , seja Q o ponto


médio de T S e Vw œ Vw ÐQ à ,Ñ, onde , œ 12 lT Sl, V e Vw cortam-se em dois pontos,
digamos U e V , visto que cada um dos números +, ,, - é menor do que a soma dos
outros dois.

Fig. 118
op op
As rectas T U e T V são tangentes a V, pois cada um dos ângulos nSUT ,
nSVT é recto, visto que está inscrito numa semi-circunferência.è

Exercícios e complementos

12.1. Mostre que a congruência (no sentido mais geral da definição da pág. 102)
é uma relação de equivalência no conjunto de todas as figuras.

12.2. Mostre que, se ˜ EFG ´ ˜ HIJ , então intÐ ˜ EFGÑ ´


intÐ ˜ HIJ Ñ.

12.3. Quantas isometrias existem que transformam o ˜ EFG no triângulo


congruente ˜ HIJ , nos casos em que ambos os triângulos são (i)
escalenos, (ii) isósceles não equiláteros, (iii) equiláteros, respectivamente?

12.4. Verdade ou falso?


(a) As isometrias preservam a perpendicularidade.
(b) As isometrias preservam o paralelismo.
(c) Para quaisquer rectas < e =, 5< œ 5= sse < œ =.
(d) Um produto de quatro isometrias é uma isometria.
(e) O conjunto de todas as reflexões gera IsoÐXÑ.
114 GEOMETRIAS

12.5. Prove que quaisquer duas semi-rectas são congruentes.

12.6. Estude geometricamente, no plano euclidiano, as compostas de duas ou


três reflexões em rectas em diferentes posições possíveis. [Há-de encontrar
as translações, as rotações e as reflexões deslizantes (reflexão seguida de
translação não trivial). Pode-se provar que não há mais nenhumas
isometrias de plano euclidiano.]

12.7. Mostre que não existe nenhuma aplicação reflectora na recta de equação
C œ #B no modelo pombalino (p. 71).

12.8. Os exercícios seguintes contêm provas alternativas de algumas alíneas do


teorema 12.1 concretizado no plano euclidiano. : é uma isometria.
(a) Sabendo que, para quaisquer pontos distintos T e U se tem T U œ
Ö\ À lT \l  l\Ul œ lT Ul×, prove que :ÒT UÓ œ :T :U;
(b) para toda a recta j existem pontos distintos T , U tais que j é a mediatriz de
T U, isto é, j œ Ö\ À l\T l œ l\Ul× (e todo o conjunto desta forma é uma
recta);
(c) para toda a recta j, o conjunto transformado :ÒjÓ é uma recta.

12.9. Actividade: desenhe um ˜ EFG numa folha de papel. Utilizando apenas


uma régua lisa e um lápis (para desenhar segmentos) e também um alfinete
(para marcar pontos), reproduza a figura 118. [Sugestão: pode dobrar o
papel!]

12.10 Demonstre o teorema das duas tangentes aplicando o teorema das duas
circunferências.

12.11. Mostre que se os vértices de dois triângulos congruentes estão sobre uma
circunferência, então toda a isometria que transforma um no outro é o
produto de, quando muito, duas reflexões.

12.12 Prove, no contexto concreto do plano euclidiano, que


(a) Uma isometria : transforma uma circunferência V de centro S numa
circunferência Vw œ :ÒVÓ de centro Sw œ :S e uma tangente > a V em X
numa tangente :> a Vw em X w œ :X .
(b) Duas circunferências (círculos) são congruentes no sentido geral (p. 102)
sse têm o mesmo raio (numérico).
(c) Numa circunferência ou em circunferências congruentes, duas cordas são
congruentes sse são equidistantes do centro.
Apêndice A

Uma introdução às
geometrias finitas 40

1. Introdução. Generalidades sobre as axiomáticas


As geometrias finitas foram introduzidas no final do século XIX como
«exercícios metodológicos», tanto para ilustrar o poder de abstração do conceito
moderno de axiomática, emergido do nascimento das geometrias não-euclidianas,
como para exemplificar e testar questões lógicas ou metodológicas acerca das
axiomáticas como consistência (ou não contradição), compatibilidade, indepen-
dência e completude. Questões como estas assumiram uma grande importância nos
estudos de fundamentos nas primeiras décadas do século XX, motivados pela crise
de fundamentos na viragem do século que foi provocada pela descoberta das
chamadas antinomias lógicas e semânticas na teoria ingénua dos conjuntos de
Cantor.
Para além de proporcionarem axiomáticas simples, no contexto das quais se
podem começar a desenvolver hábitos e técnicas de raciocínio geométrico
abstracto, as chamadas geometrias finitas também permitem ilustrar alguns
aspectos fundamentais das geometrias mais tradicionais como a euclidiana, a
hiperbólica ou a projectiva. Além disso, os matemáticos têm encontrado aplicações
não triviais das geometrias finitas tanto em estatística experimental, utilizando
quadrados latinos, como nas ciências da computação (códigos de correcção de
erros), na combinatória e na criptografia (v. Bibliografia).
O raciocínio hipotético-dedutivo característico das matemáticas, na sua forma
de apresentação mais perfeita,41 tem lugar no contexto de uma estrutura lógica
organizada conhecida por teoria ou sistema axiomático, ou simplesmente
axiomática. Um tal sistema pressupõe sempre uma linguagem que contém, além
dos ingredientes lógicos e linguísticos usuais, os termos primitivos (não definidos),
mais tarde acrescida de termos definidos, e um sistema lógico inferencial. Terá,
além disso, algumas proposições primitivas (não demonstradas), os postulados ou
axiomas específicos e, a obter, os teoremas ou proposições demonstradas as partir

40 Texto de uma conferência proferida no ProfMat98, Guimarães, em 13 de Outubro de


1998. Não será de estranhar alguma duplicação com o exposto no Cap. 1.
41 Sublinhe-se o termo “apresentação”, para não cair na tentação de supor que estamos
afirmando que a actividade matemática ou dos matemáticos a isso se reduz. Antes da
apresentação ordenada e dedutiva está o exercício da intuição na conjectura e na
descoberta, postos à prova pelo escrutínio crítico e a demonstração.
115
116 GEOMETRIAS

dos axiomas pelas regras da lógica. Geralmente, a lógica do sistema é a lógica


clássica. Uma vez fixados os axiomas do sistema, os teoremas ficam determinados
(ao menos, no sentido platónico) mas, em cada momento histórico, a humanidade
não conhece mais do que um número finito de teoremas de um sistema dado,
aqueles que alguém já demonstrou.

Definição 1.1 Um sistema axiomático é consistente (ou não contraditório)


sse não contém dois axiomas, um axioma e um teorema ou dois teoremas42 que se
contradigam (isto é, em que um deles exprima a negação do outro), e é
contraditório no caso contrário.

Só os sistemas consistentes interessam, no contexto da lógica clássica, pois,


neste contexto, de uma contradição toda e qualquer proposição se pode deduzir,
isto é, todas as proposições (na linguagem do sistema) são teoremas. Uma maneira
de garantir a consistência é a sua compatibilidade:

Definição 1.2 Um sistema axiomático é compatível sse possui, pelo menos,


uma realização concreta ou modelo.

Uma realização concreta ou modelo da axiomática pode ser de natureza física


ou aquilo a que os matemáticos normalmente chamam uma estrutura matemática,
constituída por um ou mais suportes, domínios ou universos, relações e operações
aí definidas que interpretem os termos primitivos do sistema que satisfaçam ou
realizem os axiomas do sistema, isto é, tal que o que os axiomas dizem aconteça de
facto. Por outras palavras, num modelo À de um sistema axiomático, os axiomas
são verdadeiros (semanticamente43).
A razão pela qual a compatibilidade assegura a consistência tem a ver com a
natureza das regras da lógica utilizadas nos raciocínios demonstrativos: são regras
válidas, quer dizer, sempre que as premissas são verdadeiras, as conclusões são
verdadeiras também. Supondo, pois, que o sistema f é compatível, e sendo À um
modelo de f , os axiomas de f são verdadeiros ou satisfeitos no modelo À , logo todo o
teorema de f é verdadeiro em À . Não pode haver, portanto, dois axiomas, um axioma e
um teorema, ou dois teoremas que se contradigam44, logo o sistema é consistente.
É também por isso que sempre que os matemáticos introduzem algum conceito por
via de axiomas (por exemplo, os conceitos de grupo, ou de espaço vectorial sobre um
corpo), a primeira coisa que fazem logo de seguida é fornecer um exemplo de uma
realização ou modelo da axiomática. Os exemplos que sejam dados a seguir ao primeiro
já terão outras motivações, por exemplo, de ordem didáctica.

42 É convencional considerar que os axiomas são também teoremas que não carecem de
demonstração.
43 É importante assinalar que há dois conceitos de verdade a ter em conta, quando se fala
em axiomáticas: o conceito sintáctico-dedutivo de verdade (verdade ´ demonstrabilidade),
que é o que os matemáticos mais utilizam, e o conceito semântico de verdade (verdade ´
correspondência com alguma realidade).
44 Um pressuposto básico do conceito semântico (clássico) de verdade é que uma
proposição não pode ser simultaneamente verdadeira e falsa.
A. Uma introdução às geometrias finitas 117

Axiomática dos 4 pontos

Termos primitivos: ponto, linha, incidência.

AXIOMAS
Ax1. Existem exactamente quatro pontos.
Ax2. Quaisquer dois pontos (distintos) incidem com uma e uma só linha.
Ax3. Cada linha incide com exactamente dois pontos.

É muito fácil realizar esta axiomática. Como pontos, consideremos as letras E,


F , G e H; como linhas, os seis conjuntos ÖEß F×, ÖEß G×, ÖEß H×, ÖFß G×,
ÖFß H× e ÖGß H×; como incidência, a relação de pertença − , de pontos para
linhas ou linhas para pontos. Dizemos que o ponto T incide com a linha <, ou que
< incide com T , sse T − <. O modelo em questão é o triplo ordenado
À œ ÐXÀ ß _À ß − À Ñ,
onde X œ XÀ œ ÖEß Fß Gß H× é o conjunto dos pontos, _ œ _À œ ÖÖEß F×,
ÖEß G×, ÖEß H×, ÖFß G×, ÖFß H×, ÖGß H×× é o conjunto das linhas e − œ − À
é a relação de pertença de pontos para linhas. Convencionemos que sempre que a
relação de incidência num modelo for − se omite este símbolo da notação,
ficando apenas À œ ÐXÀ ß _À Ñ, ou mais simplesmente À œ ÐX ß _Ñ, se não houver
possibilidade de confusão.
Para melhor visualizar este modelo fazemos uns «traços» ligando os pontos de
cada linha, mas a linha não é o traço desenhado (Fig. 119). Estes diagramas podem
parecer diferentes, mas «definem» exactamente o mesmo modelo da axiomática
dos 4 pontos. O nosso modelo conta exactamente 6 linhas. Isto não acontece por
acaso.

Teorema 1.1
(a) Para quaisquer duas linhas existe, quando muito, um ponto incidente com
ambas;
(b) há exactamente seis linhas.

Dem. Exercício.è

Fig. 119. Duas versões de um modelo da axiomática dos 4 pontos

Em qualquer modelo da axiomática dos 4 pontos há, portanto, exactamente 4


pontos (axioma Ax1) e exactamente 6 linhas (teorema 1.1). Não é difícil concluir
que quaisquer dois modelos daquela axiomática são isomorfos.
118 GEOMETRIAS

Definição 1.3 Os modelos À œ ÐX ß _Ñ e À w œ ÐX w ß _w Ñ são isomorfos sse


existir uma bijecção : do conjunto dos pontos e linhas de À no conjunto dos
pontos e linhas de Àw , que aplica pontos em pontos e linhas em linhas e, além
disso, preserva as incidências, isto é, para qualquer ponto T de À e qualquer linha
j de À, T − j sse :ÐT Ñ − :ÐjÑ. Uma tal aplicação : é um isomorfismo entre os
dois modelos.

Esta noção de isomorfismo aplica-se não apenas a modelos de axiomáticas


mas, mais geralmente, a quaisquer estruturas da forma À œ ÐX ß _Ñ, onde X é um
conjunto não vazio (de pontos) e _ é um conjunto de subconjuntos de X (as
linhas), chamadas estruturas (ou planos) de incidência. Os isomorfismos entre duas
tais estruturas também são chamados colineações. A razão de ser desta designação
é que tais aplicações não apenas aplicam linhas em linhas como, na realidade,
transformam linhas em linhas (como conjuntos de pontos). Por outro lado, é um
resultado muito geral da metodologia das teorias dedutivas (lógica matemática)
que quaisquer duas estruturas isomorfas têm exactamente as mesmas propriedades
(enquanto propriedades exprimíveis na linguagem da teoria).

Definição 1.4 Um axioma de um sistema axiomático é independente sse não


pode ser demonstrado a partir dos restantes. Uma axiomática é independente sse
todos os seus axiomas são independentes.

Se a consistência de um sistema axiomático é fundamental, a independência


dos axiomas é um luxo a que nem sempre é aconselhável atender (por exemplo, em
axiomáticas da geometria euclidiana para o ensino secundário). Acontece que a
axiomática acima é independente, e a prova deste facto utiliza modelos.

(a) Independência do Ax1: um modelo de Ax2 e Ax3 só com 2 pontos, E e F ,


e uma linha ÖEß F×, não satisfaz o Ax1.
(b) Independência do Ax2: um modelo de Ax1 e Ax3 com os 4 pontos E, F ,
G e H e somente as linhas ÖEß G× e ÖFß H×, não satisfaz o Ax2.
(c) Independência do Ax3: um modelo de Ax1 e Ax2 com os 4 pontos e seis
linhas como acima, mas em que uma das linhas tem mais de 2 pontos (por
exemplo, ÖEß Fß H× em vez de ÖEß F×), não satisfaz o Ax3.

Desejável, mas nem sempre conseguida, é a propriedade de completude.

Definição 1.5 Um sistema axiomático é completo sse não é possível juntar


um novo axioma independente ao sistema, quer dizer, qualquer proposição na
linguagem do sistema já é teorema, ou a sua negação é um teorema.

Não é possível, em geral, estabelecer directamente se uma dada axiomática é


ou não completa (a não ser que seja contraditória!). A maioria das axiomáticas
interessantes para as matemáticas não é completa. A completude é, pois, mais a
excepção do que a regra.
A. Uma introdução às geometrias finitas 119

2. Planos afins finitos


O exemplo de modelo da geometria dos 4 pontos dado acima é um exemplo de
plano afim finito. Definimos com toda a generalidade o conceito de plano afim,
após o que estudaremos com mais pormenor os planos afins finitos. Lidaremos
sempre com estruturas de incidência ÐX ß _Ñ e escrevemos sinonimamente: «T
incide com j», «j incide com T », «j passa por T », «T pertence a j», «T − j»,
«j ® T ».

Definição 2.1 Um plano afim é uma estrutura de incidência ´ œ ÐX ß _Ñ que


satisfaz os seguintes axiomas:

A1. Para quaisquer dois pontos T e U existe uma única linha que passa por
op
T e por U, que se denota T U .
A2. Para qualquer linha j e qualquer ponto T Â j, existe uma única linha
7 ® T tal que 7  j œ g.
A3. Cada linha incide com, pelo menos, dois pontos, e há, pelo menos, duas
linhas.

Linhas 7 e j tais que 7 œ j ou 7  j œ g dizem-se paralelas, e escreve-se


7 ² j. Se 7 ² j e 7 Á j, 7 e j dizem-se estritamente paralelas. O axioma A2 é o
conhecido axioma de paralelismo de Playfair, e é equivalente (na presença dos
restantes postulados) ao quinto postulado de Euclides.

Exemplos de planos afins


1) O plano cartesiano real Å œ (‘# ß _Ñ, em que as linhas são as linhas rectas
ordinárias: são os conjuntos de pontos da forma
ÖÐBß CÑ − ‘# À +B  ,C  - œ !×,
com +, ,, - − ‘, + e , não ambos nulos.
2) O plano cartesiano racional Ä œ Ð# ß _Ñ, em que as linhas são os conjuntos
de pontos da forma
ÖÐBß CÑ − # À +B  ,C  - œ !×,
com +, ,, - − , + e , não ambos nulos.
3) o exemplo do modelo dos 4 pontos da secção anterior; observe-se que os
axiomas são realmente verdadeiros neste modelo, nomeadamente o axioma de
op op
paralelismo de Playfair, A2: por exemplo, EH é a única paralela a FG passando
pelo ponto E.
4) o plano coordenado sobre ™: , Í: œ ÐЙ: Ñ# ß _Ñ, com : primo, em que as
linhas são os conjuntos de pontos da forma
ÖÐBß CÑ − Й: Ñ# À +B  ,C  - œ !×,

com +, ,, - − ™: , + e , não ambos nulos; recorde-se que o anel


™: œ Ö!ß "ß á :  "× (inteiros modulo :) é um corpo sse : é primoÞ No caso
120 GEOMETRIAS

: œ #, os pontos de Í# são E œ Ð!ß !Ñ, F œ Ð!ß "Ñ, G œ Ð"ß !Ñ, H œ Ð"ß "Ñ e cada
linha tem exactamente dois destes pontos, tal como no exemplo anterior. Este
modelo é isomorfo ao modelo do exemplo 3. No plano coordenado afim sobre ™$
há 9 pontos e 12 linhas (faça uma figura!).

Independência dos axiomas

(a) A1 é independente:
X œ ÖEß Fß Gß H×,
_ œ ÖÖEß F×ß ÖGß H××.

Fig. 120

(b) A2 é independente: o plano de Fano (1892 — o mais pequeno plano


projectivo, v. adiante), constituído por 7 pontos e 7 linhas, cada linha com
exactamente 3 pontos, X œ ÖEß Fß Gß Hß Iß J ß K×, _ œ ÖÖEß Fß G×, ÖGß Hß I×,
ÖIß J ß E×, ÖEß Kß H×, ÖFß Kß I×, ÖGß Kß J ×, ÖFß Hß J ××.
(c) A3 é independente: X œ ÖEß F×, _ œ ÖÖEß F××.

Fig. 121

Teorema 2.1 Num plano afim:


(a) quaisquer duas linhas têm, quando muito, um ponto comum;
(b) a relação de paralelismo é uma relação de equivalência no conjunto das
linhas.

Dem. Exercício.è

Teorema 2.2 Num plano afim, todas as linhas têm o mesmo cardinal.45

45 Diz-se que os conjuntos (finitos ou infinitos) A e B têm o mesmo cardinal, são


equicardinais, equipotentes ou equinumerosos sse existe uma bijecção entre eles.
A. Uma introdução às geometrias finitas 121

Dem. Sejam j, 7 duas linhas quaisquer (Fig. 122). Temos de provar que existe
uma bijecção entre j e 7. Sem perda de generalidade, podemos supor 7 Á j.
Caso j  7 œ ÖS×. Fixemos ao arbítrio E − j, Ew − 7, ambos diferentes de
op
SÞ Para cada F − j distinto de E e de S, seja 5 a única paralela a EEw passando
por F . Por unicidade das paralelas, 5 ²y 7, caso contrário por Ew estariam passando
op
duas paralelas a 5 , 7 e EE.w Então 5 e 7 têm um (único) ponto comum, digamos
F w . A função 0 À j Ä 7 definida por 0 ÐSÑ œ S, 0 ÐEÑ œ Ew , 0 ÐFÑ œ F w para
todo F − j distinto de S e de E é uma bijecção (exercício).
op
Caso j ² 7. Fixemos S − j, Sw − 7. Então j  SSw œ ÖS× logo, pelo caso
op
anterior, existe uma bijecção 0 À j Ä SSw; analogamente, existe uma bijecção
op
1 À SSw Ä 7, logo 1 ‰ 0 À j Ä 7 é bijectiva.è

B
m
A' O'

O k
A O
l
l B'

Fig. 122

Definição 2.2 Se uma linha j de um plano afim tem 8 pontos (8 − ),


então o plano afim diz-se de ordem 8.

Teorema 2.3 Num plano afim de ordem 8,


(a) há exactamente 8# pontos;
(b) cada point incide com exactamente 8  " linhas;
(c) cada feixe de paralelas46 tem exactamente 8 linhas;
(d) há exactamente 8Ð8  "Ñ linhas;
(e) há exactamente 8  " feixes de paralelas.

Dem. (a) Sendo j œ ÖE" ß á ß E8 ×, F  j, 7" œ E" F e, para 3 œ #, á , 8,


73 œ única linha paralela a 7" passando por E3 , as linhas 7" , á , 78 têm, cada
uma, 8 pontos e são estritamente paralelas duas a duas (Fig. 123). Há, portanto,
pelo menos, 8# pontos. E não há mais: para qualquer ponto T , ou T − 7" ou
existe 5 ® T paralela a 7" , que tem de intersectar j num dos pontos E# , á , E8 e,
portanto, coincidir com uma das linhas 73 , 3 œ #, á , 8.
(b) para qualquer ponto F e linha j œ ÖE" ß á ß E8 × ®Î F, as linhas j3 œ FE3
(3 œ ", á , 8) e a linha j8" passando por F e paralela a j são distintas umas das
outras. Além disso, toda a linha passando por F intersecta j (logo é uma das j3 ) ou
é paralela a j (logo é a linha j8" ).

46 Um feixe de paralelas é formado por uma linha e todas as que lhe são paralelas.
122 GEOMETRIAS

(c)-(e): exercícios.è

Fig. 123

Uma questão natural é a de saber para que valores de 8 é que existem planos
afins de ordem 8. A resposta completa ainda está em aberto. Provou-se, entre
outras coisas, que:
ñ existem planos afins de ordem :8 para qualquer primo : e inteiro positivo 8,
o que quer dizer que, em particular, existem planos afins de ordem #, %, &, (, ), * e
"";
ñ não existe nenhum plano afim de ordem 6;
ñ somente em 1989 se provou, com uma busca computacional exaustiva, que
não existe nenhum plano afim de ordem "! ("!! pontos), mas ainda não se sabe se
existe ou não algum plano afim de ordem "#;
ñ Teorema de Bruck-Ryser: não existe nenhum plano afim de ordem 8,
se 8 é da forma %5  " ou %5  #, excepto se 8 for igual a uma soma de dois
quadrados.
Sabe-se que todo o primo da forma %5  " é igual a uma soma de dois
quadrados. Os casos 8 œ ' e 8 œ #" são contemplados pelo teorema, mas os casos
8 œ "! ( œ $#  "# ) e 8 œ #' ( œ &#  "# ) não.

3. Planos hiperbólicos
Com a descoberta, nos anos setenta do século passado (v. STILLWELL 1996),
da independência do Postulado V (o de Paralelismo) de Euclides relativamente aos
restantes postulados da geometria euclidiana, aumentou o interesse dos matemá-
ticos por geometrias em que falha aquele postulado. Nos anos trinta, já Bolyai e
Lobachewskii tinham desenvolvido a chamada geometria hiperbólica, partindo
A. Uma introdução às geometrias finitas 123

daqueles postulados mas substituindo o quinto postulado de Euclides por um outro


que implica a sua negação, o Postulado Hiperbólico de Paralelismo (H2 adiante).
Os axiomas de incidência dos planos hiperbólicos são os seguintes.

AXIOMAS DOS PLANOS HIPERBÓLICOS


H1. Para quaisquer dois pontos T e U existe uma única linha que passa por
op
T e por U, que se denota T U.
H2. Para toda a linha j e todo o ponto T Â j, existem, pelo menos, duas
paralelas a j passando por T .
H3. Toda a linha incide com, pelo menos, um ponto, e existem, pelo menos,
quatro pontos tais que nenhuns três são colineares.
Planos hiperbólicos finitos são muito fáceis de construir: com & ou mais
pontos, é considerar todas as linhas compostas por exactamente dois desses pontos.

Fig. 124 Um plano hiperbólico com 5 pontos

Do ponto de vista matemático, os planos hiperbólicos finitos não são


especialmente interessantes, e nada mais diremos sobre eles. Mas, é claro, a
geometria hiperbólica é uns dos temas mais interessantes que se podem estudar em
geometria!

4. Planos projectivos
Outra maneira mais interessante de negar o quinto postulado de Euclides é
admitir que não existem pares de linhas estritamente paralelas. É esta a principal
característica, no que respeita a propriedades de paralelismo, da chamada
geometria projectiva, a qual começou por ser, como o nome indica, a geometria
dos «projectistas», e teve um grande desenvolvimento a partir de 1820. Embora a
geometria afim (e a sua extensão mais importante, a euclidiana) tenha mais apelo
intuitivo do que a projectiva (por ser, aparente e intuitivamente, mais conforme
com a geometria do espaço físico ordinário), a projectiva é, matematicamente,
muito mais interessante. Por um lado, acontece muito frequentemente que vários
teoremas distintos da geometria afim se reduzem a um só na geometria projectiva
(basta pensar: linhas paralelas numa geometria afim também se intersectam num
«ponto no infinito»). Por outro lado, nos planos projectivos é satisfeita uma pro-
priedade de dualidade, o que significa que cada teorema tem um «dual», também
teorema, que se obtém de graça.
124 GEOMETRIAS

Definição 4.1 Um plano projectivo é um plano de incidência à œ Ðß _w Ñ


que satisfaz os axiomas seguintes:

P1. Para quaisquer dois pontos T e U existe uma única linha que passa por T
op
e por U, que se denota T U.
P2. Quaisquer duas linhas (distintas) têm, pelo menos, um ponto comum.
P3. Em cada linha há, pelo menos, 3 pontos, e há, pelo menos, duas linhas.

Por P1, duas linhas têm, quando muito, um ponto comum e, por P2,
exactamente um ponto comum. P3 implica, em particular, que nem todos os pontos
são colineares (isto é, incidem com uma mesma linha).

Exemplos de planos projectivos


1) Um exemplo de plano projectivo finito é o plano de Fano (7 pontos, 7
linhas) referido na secção anterior. É o mais pequeno plano projectivo porque, ao
tentar realizar os axiomas acima da maneira mais económica possível, encontramos
exactamente um plano com 7 pontos e sete linhas, cada linha com exactamente 3
pontos, isomorfo ao plano de Fano.
2) O plano projectivo real Ðß _w Ñ obtém-se de ‘$ , como espaço vectorial real,
do seguinte modo: definindo a relação µ no conjunto ‘$‡ œ ‘$ Ï ÖS×, onde S œ
Ð!ß !ß !Ñ, por
ÐBß Cß DÑ µ ÐBw ß Cw ß D w Ñ sse existe 5 − ‘ Ï Ö!× tal que ÐBß Cß DÑ œ 5ÐBw ß C w ß D w Ñ,
é fácil verificar que µ é uma relação de equivalência, e toma-se para  o conjunto
quociente (conjunto das classes de equivalência) de ‘$ modulo µ , isto é
 œ ‘$‡ ε Þ Os pontos do plano projectivo real são, pois, as classes de equivalência
de ‘$‡ modulo µ , e designamos uma tal classe por ÒBß Cß DÓ (B, C , D não todos
nulos). B, C e D são chamadas as coordenadas homogéneas do ponto ÒBß Cß DÓ. Um
ponto projectivo destes pode ser identificado com a totalidade dos pontos ordiná-
rios Á S de ‘$ que pertencem a uma linha recta ordinária de ‘$ que passa pela
origem, ou ainda, se quisermos outra representação, com um ponto ordinário do
hemisfério unitário sem uma metade da circunferência base
[ œ ÖÐBß Cß DÑ − ‘$ À B#  C #  D # œ ", D   !, e C  ! ou B œ " se D œ !×
Quanto às linhas, cada linha é um conjunto de pontos projectivos Ò:ß ;ß <Ó tais que
:, ; , < satisfazem uma equação homogénea da forma
+B  ,C  -D œ ! (com +, , , - não todos nulos)
Recorde-se que uma equação destas representa um plano ordinário de ‘$
passando pela origem. Se quisermos a representação hemisférica, intersectamos um
tal plano com o hemisfério [, obtendo um arco sobre este. Fica como exercício
verificar a validade dos axiomas P1-P3.
Teorema 4.1 Num plano projectivo,
(a) toda a linha tem, pelo menos, 3 pontos;
(b) todo o ponto incide com, pelo menos, 3 linhas.
A. Uma introdução às geometrias finitas 125

Dem. Exercício.è

Há uma relação muito estreita entre planos afins e planos projectivos, que
descrevemos em termos informais.
Se ÐX ß _Ñ é um plano afim, a cada feixe Y de paralelas fazemos corresponder
um novo ponto, chamado ponto no infinito, e designado por TY . Seja  o resultado
de acrescentar a X todos os pontos no infinito. A cada linha j − _ juntamos
também o ponto no infinito correspondente ao feixe determinado por j, obtendo
um conjunto de pontos jw ; finalmente, juntamos uma nova linha j_ contendo todos
os pontos no infinito, a linha no infinito. Seja _w o conjunto de todas as novas
linhas assim obtidas. Então Ðß _w Ñ é um plano projectivo. Fazendo esta construção
a partir do plano afim dos 4 pontos e 6 linhas (secção 1) obtém-se exactamente o
plano de Fano!
Inversamente, partindo de uma plano projectivo Ðß _w Ñ, fixando qualquer linha
de _w como linha no infinito, chamando-lhe j_ , pondo-a de lado e retirando de
todas as outras linhas o ponto de intersecção com j_ , o que se obtém é um plano
afim. Particularizando com o plano de Fano, retirando qualquer linha e todos os
seus pontos fica um plano afim, o plano dos 4 pontos e 6 linhas.
Há, portanto, uma correspondência bijectiva (a menos de isomorfismo) entre
os planos afins e os projectivos
ÐX ß _Ñ Ó Ðß _w Ñ

Fig. 125 Passando de um plano afim a um projectivo e vice-versa

Esta correspondência entre planos afins e projectivos, no caso finito, leva a


resultados de natureza combinatória, os quais também poderiam ser obtidos
independentemente. Assim:
ñ se o plano afim de partida tiver ordem 8, então há 8  " feixes de paralelas,
logo há 8  " pontos no infinito a acrescentar aos 8# antigos, ficando ao todo
8#  8  " no plano projectivo;
126 GEOMETRIAS

ñ como havia 8#  8 linhas no afim, haverá também 8#  8  " linhas no


projectivo;
ñ cada ponto no infinito TY − j_ está em cada uma das novas linhas
w
j œ j  ÖTY × para cada j antiga no feixe Y , e como cada feixe tem 8 linhas, TY
está em 8  " linhas; como qualquer linha pode ser considerada como linha no
infinito, todo o ponto está em 8  " linhas.
Estas propriedades justificam a seguinte definição.

Definição 4.2 Um plano projectivo finito diz-se de ordem 8 sse tiver ao


todo 8#  8  " pontos (e, portanto, 8#  8  " linhas).

Dualidade
Já vimos que duas linhas (distintas) têm um único ponto comum e, no teorema
4.1, que todo o plano projectivo tem, pelo menos, três linhas. Assim, os axiomas
dos planos projectivos são equivalentes aos seguintes:
P1w = P1.
P2w . Quaisquer duas linhas têm um único ponto comum.
P3w . Em cada linha há, pelo menos, 3 pontos, e há, pelo menos, 3 linhas
passando por cada ponto.
O que se ganha com isto? Ganha-se uma coisa fabulosa: é que, trocando em
toda a parte os termos «ponto» e «linha» (e continuando a ler a incidência nos dois
sentidos), cada um destes axiomas transforma-se num outro e, portanto, a
axiomática transforma-se em si própria. Isto tem como consequência que efectu-
ando a dita substituição em qualquer teorema se obtém outro teorema, chamado o
dual do primeiro. É este o fenómeno da dualidade nos planos projectivos e na
geometria projectiva plana em geral. É por isso que um plano projectivo tem
sempre o mesmo número de pontos que de linhas, que há tantos pontos em cada
linha como há linhas passando por um ponto, que colinearidade e concorrência são
noções duais uma da outra, que um triângulo projectivo, como constituído por 3
pontos não colineares e as linhas que eles determinam é uma figura projectiva
auto-dual (dual de si mesma), etc. O próprio plano projectivo Ðß _w Ñ tem um dual
que é a estrutura Ð_w ß Ñ, a qual também é um plano projectivo — os pontos de um
são as linhas do outro e vice-versa!
Para outros desenvolvimentos (por exemplo, as transformações geométricas e
o papel da geometria projectiva na classificação das geometrias) e aplicações
práticas das geometrias finitas consulte-se a Bibliografia, nomeadamente, as
monografias de HENLE, BENNETT e CEDERBERG.
LISTA DOS AXIOMAS
Geometria Euclidiana

Axiomas da incidência plana


A" . Por cada dois pontos (distintos) passa uma e uma só linha.
A# . Cada linha contém, pelo menos, dois pontos (distintos).
A$ . Existem, pelo menos, três pontos não colineares.

Axioma da distância (ou da medição linear)


A% . Para cada linha j de um plano X existe, pelo menos, uma bijecção
0 À j Ä ‘ tal que para quaisquer pontos T , U − j,
.ÐT ß UÑ œ lT Ul œ l0 T  0 Ul.

Axioma de separação no plano


A& . Para toda a recta j, o conjunto dos pontos de um plano X que não
pertencem a j é a reunião de dois conjuntos convexos, não vazios e disjuntos, tais
que, para quaisquer pontos T , U Â j, T está num neles e U está no outro sse T U
corta j.

Axiomas da medição angular


op
A' . Sejam E, F pontos distintos, [ um semiplano limitado pela recta EF .
Ø
Então, para todo ! − Ó!ß ")!Ò existe uma única semi-recta ET , com T − [, tal
que 7ÐnT EFÑ œ !.
A( . Se H − intÐnFEGÑ, então 7ÐnFEGÑ œ 7ÐnFEHÑ  7ÐnHEGÑ.
A) . Se nEFG e nEFH são suplementares adjacentes (isto é, G –F –H,
op
E  FH ), então 7ÐnEFGÑ  7ÐnEFHÑ œ ")!.

Axioma da congruência de triângulos (LAL)


A* . Se, nos triângulos ˜ EFG e ˜ HIJ , a correspondência E Ó H,
F Ó I e G Ó J for tal que EF ´ HI , nE ´ nH e EG ´ HJ , então
˜ EFG ´ ˜ HIJ .

Axioma de paralelismo de Hilbert


A"! . Para toda a recta < e todo o ponto T Â < há, quando muito, uma paralela
a < passando por T .

Axiomas de incidência para o espaço


A"" . Para quaisquer três pontos não colineares, existe um e um só plano que
os contém.
A"# . Se dois pontos estão num plano, então a linha que passa por eles está
contida no plano.
A"$ . Se dois planos têm um ponto em comum, então a sua intersecção é uma
linha.

127
128 GEOMETRIAS

A"% . Todo o plano contém, pelo menos, três pontos não colineares.
A"& . Existem, pelo menos, quatro pontos não complanares (isto é, não
pertencentes a um mesmo plano).

Axioma de separação no espaço


A"' . Para cada plano C, o conjunto dos pontos do espaço que não estão em C
é igual à reunião de dois conjuntos convexos, [" e [# , não vazios e disjuntos, tais
que para quaisquer pontos T e U, T está num e U está no outro sse T U corta C.
LISTA DAS NOTAÇÕES PRINCIPAIS
Ø Ø
Ângulo geométrico com vértice F e lados FE e FG : nEFG
Ø Ø Ø Ø
dirigido ou orientado com vértice F e lados FE e FG : ÐFE ß FG Ñ
Aplicação: v. função
w
Arco de circunferência passando com extremos E e G e passando por F : EF G ,
w
ou EG

Circunferência com centro G e raio GT : VÐGà GT Ñ


com centro G e raio numérico <: VÐGà <Ñ
Círculo: V
Congruência de segmentos, ângulos ou triângulos: ´
Conjunto transformado de X por 0 : 0 ÒXÓ

Distância do ponto T ao ponto U: .ÐT ß UÑ, ou lT Ul


do ponto T à recta j: .ÐT ß jÑ
da recta < à recta =: .Ð<ß =Ñ
Distância euclidiana: .E

Estar entre (F está entre E e G ): E–F –G


Exterior da figura Y : extÐY Ñ

Função 0 com domínio A e valores em B: 0 À A Ä B


Função inversa da função 0 : 0 "

Imagem ou valor da função 0 no argumento T : 0 ÐT Ñ, ou 0 T


Incidência do ponto T com a recta j: T − j, ou j ® T
Incidência do ponto T com o plano C: T − C, ou C ® T
Inflexão axial: v. reflexão
Interior da figura Y : intÐY Ñ
Isomorfismo: ¶

Medida do ângulo geométrico nEFG : 7ÐnEFGÑ


Medição de ângulos euclidiana: 7E
Norma do vector B
t : mB
tm

Par ordenado de + e ,: Ð+ß ,Ñ


Paralelismo (de rectas e de planos): ²
Perpendicularidade: ¼
Plano de incidência com conjuntos X de pontos e _ de linhas: ÐX ß _Ñ
Plano que passa pelos pontos (distintos) E, F e G : EFG
Pré-imagem de Y por 0 : 0 o ÒYÓ
Produto interno: ± ,
Projecção ortogonal de Bt sobre Ct Á !t: projCt B
t

129
130 GEOMETRIAS

Quadrilátero com vértices E, F , G e H: òEFGH


op
Recta que passa por E e por F : EF
que passa por T com direcção @t: T  Ø@tÙ
Reflexão na recta j: 5j

Segmento com extremos E e F : EF


Semelhança: µ
Ø
Semi-recta com origem E e que passa por F : EF
Ø Ø Ø
Semi-recta oposta a EF : opÐEF Ñ, ou FE

Triângulo com vértices E, F e G : ˜ EFG


Û
Vector: B
t , T  S, ST
BIBLIOGRAFIA47
Nível elementar-introdutório:

BIRKHOFF, G. D. e BEATLY, R. *Basic Geometry. Third Edition, Chelsea, 1959;


—— Manual for Teachers. Chelsea, 1959;
—— Answer Book. Chelsea, 1963.
BOLD, B. Famous Problems of Geometry and How to Solve Them. Dover, 1982.
CLEMENS, C. H. e CLEMENS, M. A. Geometry for the Classroom. Springer-
Verlag, 1991.
COXFORD, A. F. Jr. e outros. Geometria a Partir de Múltiplas Perspectivas.
Associação de Professores de Matemática, 1993.
FERNANDES, A. N. P. Elementos de Geometria para o Ensino Secundário.
Plátano Editora, 1981.
LANG, S. e MURROW, G. *Geometry, A High School Course. Springer-Verlag,
1983.
MOISE, E. E. e DOWNS Jr., F. L. *Geometry. Addison-Wesley Publ. C., 1982.
OGILVY, C. S. Excursions in Geometry. Dover, 1990.

Nível introdutório-médio:

ALSINA, C. e TRILLAS, E. Lecciones de Algebra y Geometría, Curso para


estudiantes de Arquitectura. Ed. Gustavo Gili, 1995.
ARAÚJO, P. V. *Curso de Geometria. Gradiva, Segunda edição, 1999.
BENNETT, M. K. *Affine and Projective Geometry. J. Wiley & Sons, 1995.
BEUTELSPACHER, A. e ROSENBAUM, U. Projective Geometry. Cambridge U. P.,
1998.
BIRKHOFF, G. D. A set of postulates for Plane Geometry, based on Scale and
Protactor. Annals of Math., 33 (1932), 329-345.
BIX, R. Topics in Geometry. Academic Press, 1994.
BLUMENTHAL, L. M. A Modern View of Geometry. W. H. Freeman, 1961.
CEDERBERG, J. N. *A Course in Modern Geometries. Springer-Verlag, 1989.
DIONÍSIO, J. J. *Fundamentos da Geometria. Universidade de Lisboa, Faculdade
de Ciências, Departamento de Matemática, 2004.
EVES, H. A Survey of Geometry. Vols. I, II, Allyn & Bacon, 1963, 1965;
—— *College Geometry. Joned and Bartlett, 1995.
HENDERSON, D. W. Experiencing Geometry on Plane and Sphere. Prentice Hall,
1996.
HENLE, M. *Modern Geometries, The Analytical Approach. Prentice Hall, 1997.
ISAACS, I. M. *Geometry for College Students. Brooks/Cole, 2001.
MEYER, W. *Geometry and Its Applications (com CD). Hartcourt/Academic
Press, 1999.
MOISE, E. E. *Elementary Geometry from an Advanced Standpoint. Third Edition,
Addison-Wesley, 1990.

47 Assinalam-se com * os livros especialmente recomendados em cada nível.


131
132 GEOMETRIAS

OLIVEIRA, A. J. F. Geometria. 2.ª edição, Univ. Évora, 1988;


—— Geometria Euclidiana. Universidade Aberta, 1995;
—— Transformações Geométricas. Universidade Aberta, 1997.
PEDOE, D. Geometry, a Comprehensive Course. Dover, 1988.
PERRY, E. Geometry. Maecel Dekker, 1992.
REES, E. G. Notes on Geometry. Springer-Verlag, 1988.
ROE, J. Elementary Geometry, An Introduction. Oxford University Press, 1993.
SMART, J. R. *Modern Geometries. Fifth Edition, Brooks/Cole Pub. C., 1998;
—— Instructor’s Manual for Modern Geometry. Fifth Edition, Brooks/Cole
Pub. C., 1998.
SMITH, J. T. *Methods of Geometry. John Wiley & Sons, 2000.
WALLACE, E. C. e WEST, S. F. *Roads to Geometry. Second Edition, Prentice
Hall, 1998.

Nível médio-avançado:

BORSUK, K. e SZMIELEW, W. Foundations of Geometry. North-Holland, 1960.


COXETER, H. S. M. *Introduction to Geometry. Second Edition, J. Wiley & Sons,
1969; Projective Geometry. Second Edition, Springer, 1987.
GREENBERG, M. J. *Euclidean and Non-Euclidean Geometries, Development and
History. Third Edition, W. H. Freeman, 1993.
HARTSHORNE, R. *Geometry: Euclid and Beyond. Springer-Verlag, 2000.
HILBERT, D. Grundlagen der Geometrie. 14.ª Edição, Comemorativa do 100.º
aniversário da 1.ª edição (1899), com Prefácio de M. Toepell, Suplementos de
Paul Bernays, e contribuições de H. Kiechle, A. Kreuzer e H. Wefelscheid,
Teubner, 1999;
—— *Foundations of Geometry. Second English Edition (translated from the
tenth german edition), Revised and Enlarged by P. Bernays, Open Court, 1971;
—— *Fundamentos da Geometria. Tradução da 7.ª edição alemã (1930), com
exclusão dos Apêndices, por Maria do Pilar Ribeiro e José da Silva Paulo,
Instituto para a Alta Cultura, 1952; idem, Segunda edição, com todos os
Apêndices e Suplementos por P. Bernays, H. Poincaré e F. Enriques, por
Paulino Fortes e A. J. F. Oliveira, Gradiva, 2003;
—— Fundamentos de la Geometria. Tradução da 7.ª edição, com todos os
Apêndices, Consejo Sup. de Inv. Cientificas, Madrid, 1991.
KADISON, L. e KROMANN, M. T. Projective Geometry and Modern Algebra.
Birkhäuser, 1996.
MARTIN, G. E. *The Foundations of Geometry and the Non-Euclidean Plane.
Springer-Verlag, 1975;
—— Transformation Geometry. Springer-Verlag, 1982;
—— Geometric Constructions. Springer-Verlag, 1997.
MILLMAN, R. S. e PARKER, G. D. *Geometry, A Metric Approach with Models.
Springer-Verlag, 1981.
MODENOV, P. S. e PARKHOMENKO, A. S. Geometric Transformations. 2 vols.,
Academic Press, 1965.
RYAN, P. J. Euclidean and Non-euclidian Geometry, An Analytic Approach.
Cambridge U. P., 1986.
SNAPPER, E. e TROYER, R. J. Metric affine geometry. Dover, 1989.
Bibliografia 133

TUNNER, A. A Modern Introduction to Geometries. Van Nostrand, 1967.

Outros de interesse colateral (matemático, lógico, histórico, etc,):

BARNETT, R. Schaum’s outline of theory and problems of geometry. Second


edition, Revised by P.A. Schmidt, McGraw-Hill, 1989.
BURTON, D. M. The History of Mathematics, An Introduction. Second Edition,
Wm. C. Brown Publishers, 1988.
COURANT, R., ROBBINS, H. *What is Mathematics? Second edition revised by
Ian Stewart, Oxford U.P., 1996
DESCARTES, R. *A Geometria. tradução do original de 1637, em edição bilingue,
por Emídio C. Queiroz Lopes, Edições Prometeu, 2001.
EVES, H. *An Introduction to the History of Mathematics. Sixth Edition, Sounders
College Publishing, 1990.
FERREIRA, J. C. Introdução à Análise Matemática. Fundação Calouste
Gulbenkian, 1987.
HEATH, T. L. *Euclid, the thirteen books of The Elements. Vols. I, II e III, Second
edition, Dover, 1956;48
—— *The Works of Archimedes. Dover, 2002.
HILBERT, D. e COHN-VOSSEN, S.
—— *Geometry and the Imagination. Chelsea, 1952.
KATZ, V. J. *A History of Mathematics, An Introduction. Second Edition,
Addison-Wesley, 1998.
OLIVEIRA, A. J. F. Teoria dos Conjuntos, Intuitiva e Axiomática (ZFC). Escolar
Editora, 1982;
—— Lógica e Aritmética. 2.ª edição, Gradiva, 1996.
PASTOR, J. R., SANTALÓ, L. A. e BALANZAT, M.
—— Geometría analítica. Editorial Kapelusz (Buenos Aires), Cuarta edición,
1959.
POSTNIKOV, M. Leçons de géometrie, Géometrie analytique. MIR, 1988.
SEBASTIÃO E SILVA, J. Textos Didácticos. Vol I, Fundação Calouste
Gulbenkian, 2000 (inclui Transformações Geométricas. AEFCL, 1950).
STILLWELL, J. Elements of Algebra. Springer-Verlag, 1994;
—— *Sources of Hyperbolic Geometry. AMS, 1996;
—— Mathematics and its History. Second edition, Springer, 2001.
VELOSO, E. M. S. S. *Geometria, Temas Actuais (Materiais para Professores).
Ministério da Educação, Instituto de Inovação Educacional, 1998.
WEYL, H. Symmetry. Princeton U. P., 1952.

48 Os Elementos de Euclides estão disponíveis na Internet:


http://aleph0.clarku.edu/~djoyce/java/elements/elements.html

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