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Capítulo I: Os preparativos

“O patriotismo é o último refúgio de um canalha.” ( Samuel Johnson – Abril de 1775)

.....e tudo começou numa enevoada final de tarde tarde de inverno.( Teresópolis, Agosto de 1991).

A ansiedade estava ficando cada vez mais intensa. Afinal faltavam


apenas duas semanas para o dia do embarque e ainda havia muita coisa para organizar. Na verdade,
organização nunca havia sido o meu forte e Manuela vivia me lembrando disso sempre que podia,
embora ela não fosse muito diferente nesse sentido. Então, aos trancos e barrancos, fomos tentando
receber o dinheiro que faltava das vendas das nossas últimas quinquilharias e nos livrar do que ainda
não havíamos vendido. Mas nao sei porque razão, toda vez que ia-se um dos pertences, uma certa
sensação de tristeza me invadia a alma. Esse sentimento me deixava confuso, pois a idéia de morar nos
Estados Unidos havia surgido como uma excelente alternativa para todos os nossos problemas e,
quando fora decidida em uma das mesas de madeira rústica da Taberna do Monge, em Teresópolis,
nos levou aos píncaros da alegria e do entusiasmo. Só que no dia seguinte à confabulação, já não mais
sobre as influências dos vapores de Baco, contidos naquelas três garrafas do nosso Merlot favorito, o
entusiasmo se alternava com uma inoportuna depressão. Isso me levou a lançar mão de um velho
recurso que era o de pedir a opinião do maior número possível de pessoas sobre um deterninado
assunto e depois, em geral, fazer exatamente o contrário do que a maioria opinava. Mas, conforme eu
temia, antes de materializar essa necessidade quase compulsiva de antagonizar, todo mundo deu força
para que a gente deixasse o Brasil. Só que dessa vez, não deu para eu ser do contra.

Agora restava somente um dia para a gente entrar naquele avião da


“Venezuelan Airways”com destino à Caracas , com conexão para Miami e ainda não havíamos
recebido o dinheiro da venda do Fiat Uno. É que no desespero de última hora eu fiz a besteira de
vender o carro para René Barano, Deputado Federal por Nova Iguaçu na época. Além de político,
Barano era dono de conhecida rede de lojas de roupas populares e também de bares, restaurantes e um
prostíbulo. Também havia ganhado muito dinheiro como agiota e como tal, era muito matreiro e
escorregadio quando se tratava de contas à pagar. Por um triz eu não saia sem a tal grana do Brasil,
caso o meu cunhado Carlão não fizesse plantão o dia inteiro na porta do escritório do malandro no dia
da viagem, já que eu havia feito o mesmo no dia anterior, sem lograr sucesso. Carlão me entregou o
dinheiro – em dólares - duas horas antes do meu embarque e , como de praxe, em valor muito menor
do que o carro valia.
Depois de despachar a bagagem eu me senti , literalmente, bem mais leve. É
que a Manuela tinha resolvido levar quase tudo o que eu disse que a gente não iria precisar e, para
evitar um estresse ainda maior, optei por bancar o burro de carga calado. Agora era somente esperar o
Jairo Ferreira chegar para acertarmos os últimos detalhes da nossa sociedade no escritório de
importação e exportação que iríamos abrir em Miami. O Jairo era da Polícia Federal e era ele quem me
esperava no Aeroporto quando eu voltava de Miami ou de Assunção na época em que eu era
muambeiro. Ganhei tanto dinheiro vendendo muamba que cheguei a abandonar por um bom tempo o
meu cargo de editor no diário “O Baixadão”para me aventurar pelo anais do “contrabando não
marginal”, definição essa que era dada pelos que atravessavam bens de consumo na época. Acho que
fiz isso porque eu me sentia tão omisso e conivente com a falta de compromisso, típica da classe
jornalística para com os verdadeiros interesses da coletividade, quanto aqueles que indiretamente
sonegavam o fisco. Mas depois, em meio a uma crise de falta de auto-estima, voltei a escrever para o
Baixadão, dessa vez como colunista social, sem pretensões de ser um dos defensores da causa popular.
Nunca me esqueci de uma das vezes em que quando voltei de Miami, cheio de aparelhos eletrônicos
nas múltiplas bagagens de mão, o Jairo me esperava na pista com um daqueles ônibus que transportam
passageiros do terninal para os aviões e vice-versa e, antes que eu passasse pela alfândega, ele me
botou rapidamente na condução e, junto com a muamba saímos pelo setor doméstico. Fiz, então, o
percurso de volta morrendo de medo de ser preso como contrabandista; voltamos ao ponto de partida e
passei sorrateiramente pela alfândega sem nada a declarar. O Jairo morria de rir do meu pavor, ao
mesmo tempo que garantia que eu não tinha nada a temer, gabando-se de que quem mandava lá era
ele. Se mandava ou não eu nunca soube de verdade, só sei é que depois dessa excessiva carga de
emoção, eu nunca mais quis saber de muamba.

Começaram a anunciar o embarque do nosso vôo e nada do Jairo. Esperei até


a chamada final já meio atordoado, quando então Manuela começou a me arrastar pelo braço com
medo de que perdessemos o vôo. Sentei na minha poltrona ainda muito confuso. A nossa fileira era a
de três assentos e não tinha ninguém no meio. Me instalei em uma extremidade e Manuela na outra.
Me senti um pouco aliviado pois sabia que iria ficar quase dez horas ali confinado e um pouco mais de
espaço faria muita diferença. Logo em seguida uma senhora gorda, segurando uma criança que
chorava e esperneava, pediu licensa e, depois de esfregar a enorme bunda na minha cara, sentou-se
sorridente na poltrona do meio. Como se não bastasse, um padre e uma freira despontaram no corredor
e sentaram-se na fileira central, não muito distante da gente. Para quem não sabe, existe uma crença
entre os superticiosos de que a presença desses tipos de religiosos em aeronaves é sinal de mal
agouro, e o pior é que eu era um dos que nutríam a tal crença. Na hora eu senti uma sensação de mal
estar com formigamentos por todo o corpo. Tirei da minha bagagem de mão uma das seis garrafinhas
de vinho tinto que tinha trazido mas Manuela não me deixou abri-la alegando que aquilo era “coisa de
alcólatra”. Esperei o avião decolar e, enquanto ela não estava olhando, enfiei duas garrafinhas dentro
das calças. Assim que a aeronave nivelou o vôo fui ao banheiro e bebi as duas de uma vez . No
mesmo instante melhorei. Voltei à minha poltrona e consegui relaxar um pouco mas não tardou para
que a minha mente começasse a ser povoada novamente por pensamentos conflitantes.
”O que teria acontecido com o Jairo”?, especulava.”Será que ele poderia ter desistido de tudo nos
últimos momentos”? “Mas como, se nós vinhamos planejando essa sociedade há meses e ele não
falava em outra coisa? Já sei, é claro, ele deve ter ficado preso no engarrafamento das sexta-feiras na
Avenida Brasil”, ponderei, um pouco aliviado.
A tripulacão de cabine deu inicio ao serviço de bordo e começou a passar com
o carrinho e eu, mesmo não tendo comido nada o dia inteiro não estava com fome.
- Frango ou carne”? perguntou a elegante aeromoça.
- Merlot”, respondi sob os olhares de reprovação da Manuela.
A mulher ao nosso lado pediu carne e frango e comeu os dois com furor, aproveitando que a criança
havia dormido. Comecei a bebericar do Santa Carolina e a refletir sobre o que iríamos fazer quando
chegássemos em Miami. Pensei que o Jairo poderiar estar ansioso para falar comigo e explicar o que
aconteceu. “ Não vou esperar chegar em Miami. Vou ligar de Caracas”, decidi.
A aeromoça me trouxe uma segunda garrafa e a ansiedade já quase não
incomodava. Passei a pensar sobre as razões que me levaram a decisão de sair do Brasil. Me
encolerizava o fato de saber que o nosso povo havia escolhido um playboy egocêntrico e irresponsável
para governar o país e, mais ainda, pensar que aquela sem vergonha daquela ministra havia confiscado
o dinheiro de quase todo mundo, incluindo o meu. “Eles que se danem agora, estou saindo fora dessa
merda”, conclui com um certo rompante.
Mas, quase no mesmo instante, o rompante começou a ser aplacado por uma incômoda sensação
de tristeza. Acho que é porque, mesmo sem querer, eu ainda gostava muito do Brasil. Eu adorava a
minha vidinha em Teresópolis; as festas juninas, os botecos e os amigos de Nova Iguaçu, a praia na
Barra, Búzios e sobretudo a minha família. Isso sem falar no Vasco da Gama, esse time que muitas
vezes me atormentara mas que que jamais saiu do meu coração.

Quase todo mundo já havia adormecido e os tripulantes de cabine jogavam cartas no fundo do
avião. Vi que Manuela também dormia e então aproveitei pra abrir uma outra garrafinha do meu
estoque pessoal, abafando o ruído do ato com um guardanapo. Dei outra olhada para ter certeza que a
Manuela estava mesmo adormecida e então percebi o quanto ainda ela era bonita. O semblante sereno
e o perfil artisticamente desenhado, era iluminava pelo reflexo do céu estrelado e pelas luzes de
navegação que entravam através da janela da aeronave, o que me dava a impressão de estar
contemplando uma escultura. Naquele momento me sentí feliz mas uma vez por ela estar comigo.
Desde que a conhecera eu era acometido por arroubos de felicidade, certas vezes ao olhar pra ela.
Comecei a me lembrar daquele passeio de moto que fizemos uma vez pela a estrada que liga
Terezópolis a Petrópolis, que começou com uma alta dose de romantismo mas acabou terminando de
maneira bizarra e atormentante. O dia amanhecera fresco e iluminado pelos raios de sol. O céu
profundamente azul e os reflexos dourados que o astro rei emanava por através das árvores me dava a
impressão de estarmos dentro de uma pintura a óleo. Esquentei o motor da moto por uns minutos
enquanto Manuela dava os seus típicos retoques pessoais na indumentária. Quando ela surgiu pela
porta e eu me deparei com aquela mulher de corpo esbelto e formas curvilíneas, ressaltadas pela roupa
improvisada de motociclista e os longos cabelos cor de mel esvoaçados pelo suave vento da manhã, na
hora mudei de idéia sobre o passeio e desejei intensamente voltar com ela para a cama. Mas como as
mulheres é quem decidem quando o querem, tive que controlar a volúpia que aumentou ainda mais
quando ela me abraçou pela cintura e os seus cabelos emanaram a costumeira fragância arrebatadora.

Já a uns dez quilômetros estrada a dentro, paramos em uma pequena padaria para tomar café. O
balconista tinha acabado de trazer uma bandeija com bolo de fubá ainda quente e duas outras com
queijo de minas fresco. O cheiro do pãozinho francês que acabara de sair do forno ainda enchia o ar.
Comemos pão com queijo e o bolo de fubá come se fosse o manjar dos Deuses e tomamos café com
leite. Nos entreolhávamos enquanto comíamos e nada dizíamos pois nada era necessário dizer. Tanto
Manuela quanto, vivíamos especulando sobre o verdadeiro sentido da vida e sobre o conceito de
felicidade. O meu amigo Lucas, poeta de botequim e aventureiro das palhoças, costuma definir a
felicidade em palavras pueris e sem muita dialética:”Para uns a felicidade pode ser encontrada na
presença de bife fumegante na panela, para outros na posse de um cachorro sem cú”, simplificava.
Para Manuela e eu, a simplicidade da teoria “Lucasiana” tinha uma certa afinidade com o nosso
conceito de felicidade. Os momentos e as coisas simples da vida, como aquele instante ali na padaria;
o fato de estarmos juntos; a natureza que nos cercava e o amor que sentíamos um pelo outro, nos fazia
muito felizes naquele momento simples e singelo. Eu só nunca consegui entender onde estava a fator
simplicidade da teoria do Lucas quando ele se referia a “posse de cachorro sem cú”, já que eu nunca
havia visto ou sabido da existência de tal coisa..
Simulando querer ajudar a Manuela a sentar na moto, agarrei-a fortemente pela
cintura e a beijei na bôca intensamente, sendo correspondido com a mesma intensidade, temperada
pelo gosto do café. Então tentei arrastá-la para um matinho atrás da padaria mas ela me deu um tapa
no braço e me disse com um sorriso provocador:”Deixa de ser tarado. Quero passear agora, mas pode
deixar que eu te compenso quando a gente votar pra casa”. Eu quis voltar na hora, mas tive que seguir
viagem, o que o fiz com o coração disparado, as mãos trêmulas e o a mente atordoada pelo tamanho
desejo que me possuía. Mas o impulso libidinoso foi subitamente aplacado quando bati em um buraco
com a moto e fui projetado para para cima e depois cai de volta no assento com as pernas abertas,
sendo atinjido bem no meio da ilha da fantasia e sua alongada península.
Após um período de recuperação que durou uns vinte minutos decidimos seguir
viagem, até que parando na beira de um riacho de águas cristalinas tiramos as botas e mergulhamos os
pés nas águas geladas, o que me fez voltar ao estado de castidade dos autênticos moços de seminário.
Ao olhar para cima notei que centenas de borboletas brancas revoavam ao redor de uma amendoeira
tão envergada que seus galhos quase tocavam a água, apesar das raízes estarem totalmente inseridas no
solo. Ficamos contemplando por vários minutos aquela magistral obra da natureza quando, de repente
dois estampidos sêcos que me deram a impressão de serem de arma de fôgo ecoaram no ar. De um só
pulo ficamos de pé e vimos um sujeito de constituição bovina que, então, disparou um terceiro tiro.
Após correr em direção à parte mais densa da vegetação ele voltou segurando com um dos braços que
mais parecia um tronco de árvore, uma rapoza que em meio a convulsões, esguichava sangue pela
boca e pelo nariz. Com a outra mão ele segurava um rifle que me pareceu ser uma “Winchester 44”,
similar a que um dos meus cunhados costumava exibir com orgulho, na parte superior da lareira da
casa de campo de Friburgo . Eu nunca havia gostado de caçadas e nunca fui fã de caçadores e essa
esdrúxula retórica de que caçar com consciência ajudava no equilíbrio ecológico, era, na minha
opinião, uma das muitas mentiras criadas com a intenção de justificar barbáries.
“Ei seu filho da puta”, gritei encolerizado,”deixa de ser covarde”. Então me olhando com os
fulminantes olhos vermelhos, a bôca espumante e o semblante de um morto vivo, o tipo investiu na
minha direção e me deu uma fortíssima patada com a mão que segurava o rifle, me projetando no solo
há uns três metros de distância. Tentei levantar mas cai de novo. Em meio a minha visão enuviada, vi
que ele agarrrou Manuela e começou a rasgar as suas roupas como quem descasca uma banana. Ela
começou a gritar mas não conseguia opor a menor resistência, tal era a força do brutamontes. Eu ainda
muito tonto tentei me levantar outra vez mas cai de novo. Sem se preocupar com uma possível reação
minha, o tipo começou a perpetrar a tentativa de estupro, quando em um desespero de último recurso,
eu consegui levantar de novo e encontrando no chão um robusto toco de árvore, o projetei com todas
as forças que ainda me restavam, em direção ao topo da cabeça do mastodonte, mas errei o alvo e
acabei acertando a nuca. O tipo caiu no chão com os olhos arregalados e assim permaceu inerte.”Matei
o cara”, pensei, mas sem querer conferir, ajudei Manuela a montar na motoclicleta e, cobrindo-a com o
meu casaco, deixamos a cena o mais rápido possível. No caminho de volta parei em um orelhão e
avisei a polícia sobre o ocorrido, camuflando a voz e omitindo certos detalhes sobre a informação.

Entramos em casa ainda não acreditando como um passeio que tinha tudo para ser a
consagração de um dia de júbilo, acabaria como o que poderia ser para mim o início de um grande
pesadelo.”Life is what just happen to you when you’re busy making other plans”. – Será que John
Lennon estava mesmo certo?” pensei no momento. Eu que sempre me recusei a acreditar na frase do
saudoso Beatle, pois tinha a minha própria teoria que definia a materialização de boas ou más
circunstâncias como o resultado do que o indivíduo atraia para si mesmo, naquele momento dei uma
fraquejada. Entramos no chuveiro juntos e comecei a esfregar as costas da Manuela suavemente com
uma esponja e contemplando o seu corpo nú e a pele que se destacava pela palidez e a suavidade de
uma magnólia, comecei a pensar no que poderia ter acontecido, caso eu não tivesse logrado exito em
obstruir o ataque daquele animal. Então, contrariando todo os princípios e a lógica que define a tese de
que existe um momento certo para cada coisa, tive uma ereção tão intensa como nunca havia tido
antes. Assim, abracei Manuela pelos quadris e comecei a beijá-la na nuca, receioso de que ela não
entendesse como eu ainda podia ter esse tipo de desejo, em meio a tal adversidade , mas ela entendeu.
Então fizemos amor ali na banheira e depois várias outras vezes na cama, molhados, exaustos, incertos
com relação ao futuro, mas ainda assim, loucos um pelo outro.

O avião deu uma saculejada violenta, e , em seguida, outra ainda mais forte. Manuela
acordou assustada. Os passageiros da poltrona a nossa frente emitiram gritos embargados de pânico e a
mulher gorda ao meu lado, ainda dormindo, soltou um formidável peido, sem que o risonho semblante
fosse alterado. Manuela segurou a criança pelas pernas, com receio que ela fosse projetada para fora
do colo da mulher e se ferisse seriamente. A criança acordou chorando e a mulher também despertou.
“Gracias, muchas, gracias”, disse ela a Manuela, abraçando a criança com um certo desespero. “Que
mulher irresponsável”, balbuciei quase que inadivelmente, olhando nos olhos da minha mulher, que
sem pestanejar, condenou veementemente o comentário , sacudindo a cabeça em sinal de reprovação.
”De nada, no hay problema”, replicou Manuela com o arrastado portunhol adquirido por intermédio
das múltiplas viagens que fizemos a Assunção. O avião,então, afundou vertiginosamente, como se
tivesse caído em um vácuo e uma histeria geral se apossou dos passageiros, que não pouparam gritos
de desespero. Então um “Ding Dong”, anunciou a voz do comandante da aerovane, que pediu calma a
todos e explicou que, devido o sobrevôo sobre a turbulenta Região Amazônica, o desconforto iria
continuar por mais alguns minutos, mas que aquilo não oferecia perigo iminente, caso as normas de
segurança fossem estritamente observadas, o que incluia todos estarem com os cintos de segurança
atrelados, sem sair da poltrona por razão nnehuma.Mas não demorou muito até que a condição normal
de vôo fosse restabelecida.
Manuela, com o seu peculiar carinho materno pelos seres que conquistavam a sua
solidariedade, baseada em um critério o qual eu nunca consegui entender, começou a conversar com a
substanciosa senhora. A mulher,agora com os olhos inundados em lágrimas, revelou que vivia um
momento difícil e de muita tristeza. A sua única filha, Dolorez, venezuelana de nascimento e o gento
Tarcisio, brasileiro, haviam morrido há poucos dias em um acidente da carro na região da Bacia de
Campos, onde ele trabalhava como engenheiro naval . Ela havia acabado de voltar do funeral dos dois
e estava trazendo a neta Letícia, para viver com ela na cidade de Maracaibo. Disse , ainda, que a
criança perguntava pelos pais incesantemente, mas ela não sabia ainda o que dizer sobre a tragédia. Ao
ouvir aquilo, eu me senti como o último dos miseráveis. Senti uma imensa pena da mulher e
principalmente da meninha e, ao mesmo tempo, vergonha por ter me deixado tomar pela aquela
irritação sem razão, por uma pessoa que eu nem ao menos conhecia. Uma das coisas que mais me
causava tristeza era ver uma criança orfã. Lembrei-me então do dia em que fui fazer uma reportagem
em um orfanato em Duque de Caxias, que era amparado financeiramente por uma das paróquias
locais.Estava entrevistando a diretora da entidade, quando, subitamente, a campainha tocou
anunciando a hora do recreio. Um grupo de crianças ainda bem pequenas, surgiu de mãos dadas pelo
portal que ligava o corredor principal ao pátio. A diretora ,então, interrompeu a entrevista e foi saudar
as crianças e eu a acompanhei. Ao afagar a cabeça de um dos meninos, fui cercado por quase todo o
grupo que, me agarrando pela pernas, encostaram as cabecinhas em mim em um gesto de carinho . Fui
tomado de uma emoção tão profunda naquele momento que não consegui mais falar. Aquelas
criancinhas, apesar de carentes e longe dos cuidados de um pai e uma mãe ou de quaisquer outros
familiares, ainda conseguiam expressar um inocente e incondicional afeto por um estranho como eu.
Nào deu para terminar a entrevista. Voltei para a redação e horas depois liguei envergonhado para a
diretora que pareceu entender a súbita fraqueza. Dei um tremendo destaque a matéria e jurei que iria
fazer tudo o que pudesse para ajudar o orfanato. Mas o artigo foi cortado e resumido a dez linhas pelo
dono do jornal, sob a alegação de que “aquilo era desperdício de espaço”. Um ano mais tarde fiquei
sabendo que o orfanato havia fechado por falta de verba e as crianças foram distribuídas por entre
várias outras entidades do gênero.

O ruido das turbinas se tornou mais brando e a aeronave começou a descer


suavemente. A voz do comandante anunciou que estaríamos pousando em Caracas dentro de mais
vinte minutos. Olhei para trás e percebi que havia um assento vazio junto a janela na última fileira.
Então sem nada dizer, sai rapidamente do meu assento e ocupei o lugar vago. Manuela já sabia que eu
adorava assistir os pousos com a cara colada na janela do avião, pois aquilo me dava uma sensação de
liberdade e, ao mesmo tempo me envolvia pelo entusiasmo da possibilidade de vivenciar as típicas
novas experiências das chegadas. O dia já estava amanhecendo e os primeiros reflexos solares tingiam
o céu com um tom alaranjado. O avião tocou a pista bem no começo e parou mais ou menos na
metade de sua extensão, sem que o processo de frenagem fosse muito brusco.”Pouso perfeito”, pensei.
“O venezuelano é bom piloto”. Saímos com as bagagens de mão e no corredor nos despedimos de
Dona Concepción, a mais nova amiga da Manuela e a da neta Letícia. Ela nos deu o telefone de
Maracaibo e, como ainda não tínhamos destino certo em Miami, prometemos manter contato. Manuela
tirou da bolsa um livrinho de orações que sempre andava com ela e o colocou nas mãos da
mulher.Mais abraços e lágrimas se seguiram. Apesar da pena que sentia das duas, fiquei aliviado
quando elas passaram pelo guichê da imigração venezuelana e desapareceram entre a multidao.Na
hora tive a sensação de que nunca mais a veríamos, mas não quis dizer nada.

Ainda tínhamos uma espera de quatro horas em Caracas até o embarque no outro avião
que nos levaria a Miami. Depois de tomar o café da manhã, composto de chorizo e arepas – uma
espécie panqueca com um ôvo em cima, lembrando o formato de um disco voador em miniatura, eu
tentei ligar para a casa do Jairo, usando um cartão de chamadas internacionais. Liguei várias vêzes e
ninguém respondeu. “O puto deve ter dormido em algum motel”, pensei tentando me auto-tranquilizar.
Nesse momento notei um que grupo de passageiros falando português se aproximava do restaurante e
percebi ao olhar o panel de informações que se tratava de um avião da Varig que acabara de pousar em
Caracas. Um dos passageiros deixou, sobre uma cadeira vazia um exemplar do jornal que carregava
debaixo do braço e que parecia não mais querer. Peguei então o jornal e vendo que se tratava da edição
vespertina de um diário carioca, comecei a a dar uma olhada na primeira página. Foi ai então que me
deparei com uma chamada que me deixou perplexo e arrepiado:
“Policial Federal é morto a tiros na Avenida Brasil ao tentar evitar assalto”.
Folheando rapidamente as páginas para ler o texto na íntegra e temeroso pelo seu conteúdo,quase não
pude acreditar no que li: “O Policial Federal Jairo Ferreira, foi morto a tiros por um grupo de
assaltantes na Avenida Brasil, quando tentava evitar um assalto a um carro forte.Os bandidos
conseguiram fugir sem levar nehum dinheiro e Jairo, atingido no peito e na cabeça, foi levado para o
Hospital de Bonsucesso onde morreu ao dar entrada na unidade de emergência da entidade. Colegas
do agente revelaram que ele não estava em nenhuma missão quando foi alvejado. Apenas se dirigia ao
Aeroporto Internacional de Rio de Janeiro, para se despedir de amigos que estavam de viagem para o
exterior, quando presenciou a tentativa de assalto, decidindo intervir.”
“Olha aqui Manuela. Lê essa notícia”, falei quase sem fôlego. “É êle mesmo, o
Jairo”disse ela também perplexa ao ler as primeiras linhas. Disputando a posse da página onde estava a
matéria, lemos e relemos o texto ainda não querendo acreditar nos nossos olhos. Manuela guardou o
jornal na maleta de mão e sentamo-nos em uma fileira de apenas dois assentos, próxima ao portão de
embarque para Miami ,onde permanecemos em silêncio por algum tempo. “Que situação,”pensei.
Afinal,estávamos no meio de uma viagem internacional, cujo planejamento fôra centrado em uma
estratégica sociedade e havíamos acabado de ser comunicados que o nosso sócio, parte vital da
empreitada, não estava mais nesse mundo.
“Temos que manter a calma”, dissemos quase que simultaneamente.É que apesar dos lampejos de
incerteza e insegurança que às vezes nos fustigava, tanto eu quanto Manuela, éramos adeptos do
principio de que, para os que crêem, sempre se abre uma janela quando uma porta se fecha , mesmo
quando estamos a mercê do que eu chamo de efeito pêndulo, essa estranha força que nos distancia das
nossas crenças e nos deixa momentaneamente incrédulos, mas que quando nos traz de volta é sempre
providencial, especialmente em momentos difíceis e sem solução aparente.

Começaram a anunciar o embarque para Miami e percebi que não havia muita gente no
nosso setor. Ao entrar no avião, nos deparamos com vários assentos vagos, mesmo sendo nós os
últimos da fila .Sentamos na fileira do meio, com seis poltronas somente para nós . Na fileira ao lado,
notei que havia uma mulher aparentando uns trinta anos e um menino de mais ou menos seis e eles
diziam algo em português. Sempre gostei de encontrar brasileiros quando fora do Brasil, mas no
momento não estava com nenhuma aptidão para prosas socializantes.
O vôo de Caracas à Miami era era bem mais curto do que a primeira etapa, mais ou menos umas
três horas e a proximidade da chegada ao destino final e a incerteza do momento gerava aquele
incômodo friozinho na barriga. Um dos comissário de bordo, rapaz de gestos muito delicados,
começou a distribuir os formulários de alfândega e de imigração americanas para serem preenchidos
pelos passageiros não residentes. Comecei a preenchê-los rapidamente, pois já estava familiarizados
com êles e então notei, ao olhar para o lado que a mulher estava confusa, parecendo não saber o que
fazer com os papéis. Acabei de preencher os meus formulários e os da Manuela e perguntei a ela:
“ Posso ajudar?”
Um pouco surpresa e espantada ela respondeu : “Ah, claro que sim. O senhor é brasileiro?
–“Sou sim”, retruquei.
A mulher então, me deu os papéis e ambos os passaportes, denotando um gesto de total confiança e
dependência e eu comecei a preencher os formulários I-94, nos quais os oficiais de imigracão
carimbam o tempo máximo de permanência permitida no país. Ao chegar à parte destinada ao
endereço nos Estados Unidos perguntei, “onde é que vocês vão ficar e por quanto tempo?” Então a
mulher ficou pálida e começou a gaguejar, mal podendo falar. Mais ou menos sabedor do que estava
se passando, eu disse para a mulher que ela não precisava se preocupar que eu não era da imigração e
que nós também tínhamos a intenção de ficar no país. Nesse momento, Manuela se juntou a conversa o
que deixou a mulher um pouco mais calma. Com lágrimas nos olhos ela nos confessou que a
finalidade da viagem era a de reencontar o marido, quem ela não via há mais de cinco anos. Ela havia
saido do Brasil com destino a Boston quando o filho era ainda um neném e não os havia visto mais.
Ele havia mandado as passagens para êles, através de uma agência de viagens que simulava excursões
à Disney para pretensos imigrantes velados. O pacote dela incluía vouchers para hotel e até bilhetes de
entrada para os parques, mas na verdade o marido Alcir os estaria esperando no aeroporto de Miami
para levá-los de lá para Boston. Ela estava com muito medo de dizer algo errado ao passsar pela
imigração e de ter a entrada no pais barrada. Tranquilizamos a mulher , dizendo para ela substituir
aquele semblante de aflição pelo da alegria de quem iria mesmo para Disney.
“Quando vocês passarem pela a imigração, imaginem estarem indo para Orlando e para os parques da
Disney e ajam como tal. Nada dessa cara de preocupação. Mostrem alegria e descontração e tudo vai
dar certo”, afirmei.
O barulho das turninas se suavizou e o comandante anunciou a chegada em Miami para dentro
dos próximos vinte minutos. Olhei para mulher e fiz sinal positivo com o polegar e fui correspondido
com um sorriso. Naquele instante percebi que a alegria de poder ajudar a alguém em aflição havia me
feito esquecer por uns momentos o problema que estávamos enfrentando. Lembrei ,então, de uma
frase proferida frequentemente pelo Seu Pinho, um orientador religioso que uma vez conheci:
“Aquieta o teu coração que a luz se manifesta nele”.
Saímos do avião e caminhamos pelos corredores de carpete lilás do aeroporto de Miami.
Entramos no trenzinho que vai do terminal ao setor de imigração e alfândega e notei – através das
vidráças que davam para a parte de fora do aeroporto - que o céu apresentava um azul profundo, sem
nenhum vestígio de nuvem. A luminosidade do dia era radiante. Saimos do veículo e entramos na fila
destinadas aos não residentes. Na fila do lado, também para não residentes, a mulher e o menino que
acabáramos de conhecer, estavam posicionados mais a frente. Então ficamos observando atentamente
o andamento da fila deles , sem prestar atenção em mais nada. Chegou a vez dos nossos conhecidos e
sentimos uma certa apreensão. O oficial de imigração pegou os papéis deles; os observou brevemente
e, sem fazer nenhuma pergunta, carimbou os formulários e os passaportes , dando-os passagem e
acenando para o próximo. Respiramos aliviados. Também passamos pela imigração e pela alfândega
sem maiores problemas e encontramos a mulher e o menino já perto porta de saída do aeroporto.
“Onde está o seu marido?”, perguntei.
–Não sei, não o estou vendo por aqui”, respondeu ela com um certo ar de preocupação.
Então, com as malas no carrinho olhamos para várias direções sem dizer nada e o semblante da
mulher expressava cada vez mais ansiedade. Vinte minutos se passaram e nada do cara aparecer. O
garoto começou a chorar e a mulher ficou ainda mais aflita.
- Não se preocupe que nós não vamos sair de perto de vocês até que ele apareça”, disse solidária a
Manuela.
“Você tem o telefone dele em Boston?’, indaguei.
“Tenho sim, está aqui, disse ela, abrindo a bolsa e me dando um cartão com o número. Troquei então
umas moedas e comecei a discar o número, quando um sujeito muito bem vestido, com paletó esporte
azul marinho, calça de linho da mesma cor e uma camisa amarela de colarinho, se aproximou de nós.
-Alcir, que bom que você chegou “disse ela abraçando o homem que reagiu um pouco friamente.
-Tudo bem com vocês, meu filho”, perguntou o sujeito sem expressar maiores afetos.
Então me apresentei a êle e expliquei que estávamos ali para tentar ajudar a sua família. Ele agradeceu
muito e botou uma nota dobrada no bolso da minha camisa. Puxei a nota para fora do bolso e notei que
eram cinquenta dólares.
- O que é isso, não quero nenhum dinheiro”, retruquei , tentando devolver a nota.
Ele se recusou a recebê-la de volta e me disse. “Por favor, aceitem. O que vocês fizeram vale muito
mais que isso”.
- Não fizemos nada demais e não queremos dinheiro nenhum”, respondi um pouco irritado.
Então ele confessou que já estava no aeroporto bem antes da nossa chegada e estava nos observando a
distância para ter certeza de que não éramos agentes de imigração. Disse ainda que já havia sabido de
casos de pessoas que haviam sido deportadas na chegada ao aeroporto por falta de cuidado. Achei
aquilo meio paranóico mas não fiz nenhum comentário.
- Por favor amigo, aceite o dinheiro. Aqui é assim que a gente agradece, é melhor o senhor ir se
acostumando.
Sem dizer nada enfiei a nota de volta no bolso. Então pegando o menino no colo êle disse,”vamos meu
filho, vamos comer e descansar que a gente ainda tem um longo caminho pela frente.
Nos despedimos e entramos em um taxi com destino a Miami Beach. Começava ali a nossa aventura
americana.

Capitulo II : A nova perspectiva


“ Merdas cagadas não voltam ao cú “( Luis Caveira, amigo desde os tempos de
adolescência )

Tinhamos alguma reserva de dinheiro que fora destinada a começar a tal malograda
sociedade, mas muito em breve iríamos constatar que nos Estados Unidos se precisa de muito mais
dinheiro do que se pensa para viver. O táxi parou no estacionamento da locadora de automóveis e
saltamos com as malas na mão. Enquanto esperávamos o funcionário trazer o carro, sentamos no
meio fio e nos entreolhamos sem nada dizer. Rompi o silêncio perguntado a Manuela:
“Voce quer ficar aqui mesmo por Miami Beach, ou talvez deveríamos buscar outra alternativa
mais em conta?
- Não, vamos ficar aqui mesmo no hotel que a gente reservou, por enquanto e depois a gente vê
o que vai fazer”,disse ela com firmeza.
As nossas passagens de volta eram válidas por um mês e apesar de eu não ter dito nada a Manuela,
naquele momento esse foi o prazo que estipulei para eu mesmo para que as coisas tomassem
algum tipo de rumo positivo, do contrário teríamos que voltar para o Brasil, opção também nada
encorajadoura, já que não tínhamos mais nada lá.
Entramos no carro, um Pontiac Grandham cor de vinho, cheirandoa novo e por um momento
me senti abastado. Manuela riu percebendo o significado da minha atitude, ela que me conhecia
tão bem. Resolvemos dar uma volta por Miami Beach para relaxar, anter de ir para o hotel.
Passamos pela famosa” Ocean Drive”, a avenida mais popular de Miami Beach, onde é muito
comum se deparar com as mais variadas e peculiares situações. O panorama apresentava uma linda
tarde de verão de agôsto, mês em que o calor atinge o seu grau máximo em Miami. Nas calçadas
da Ocean Drive, as mesas dos bares e restaurantes estavam repletas de pessoas sorridentes. O vai e
vem dos transeuntes, modelos pousando para os fotógrafos, os homosexuais caminhando
tranquilamente de mãos dadas e um grande arco íris rasgando o céu de ponta a ponta, davam um
toque especial ao cenário.
Depois de muita busca, conseguimos uma vaga para estacionar e fomos comer. Escolhemos
um restaurantezinho cubano simpático, localizado na esquina com a Rua 10. O cardápio era
simples e quase todas as opções vinham acompanhadas de arroz e feijão e banana frita. Comi um
“picadillo”e Manuela comeu frango e tomamos uma cerveja cada um. Quando o garçon trouxe a
conta tomei um susto. Trinta e três dólares! Fiz uma rápida conversão para os famigerados
cruzados novos e constatei que com aquele dinheiro comeríamos por quase uma semana no Brasil.
Só que nào estávamos mais no Brasil.

Chegamos ao “Hotel Paradise”, na Collins Avenue e ao entrar no quarto não gostei do


cheiro. O hotel era limpo mais aquele cheiro era de coisa velha. Constatei depois de um tempo que
aquele era o cheiro característico de Miami Beach, herança da fase da “Art Decor”, período
marcado pelas cores extravagantes dos seus prédios de formas abstratas e desenhos
contemporâneos, cheios de originalidade, classificado por muitos como o ressurgimento do estilo
mediterrâneo. Esse estilo fora implementado em Miami Beach e outras áreas do sul da Flórida
entre 1910 e 1930 e com êle vinha o cheiro de velho.
Entrei no chuveiro com a impressão que não iria gostar de Miami como residente, apesar de já
ter estado lá duas outras vêzes à “negócios”. Enquanto eu tomava banho, Manuela assistia a um
programa humorístico em uma emissora de TV mexicana. Depois do banho deitei na cama e fiquei
olhando para o teto em silêncio, nas esperança de talvez obter as respostas que o meu amigo Silvio
obtinha ao aplicar a técnica.” O teto me dá as respostas,”costumava dizer êle.Nesse interim,
Manuela também entrou no chuveiro.
Ao terminar o banho, ela saiu do banheiro enrolada numa toalha e, ao estender o braço
para pegar uma roupa no armário, parte da toalha se desprendeu deixando o seu alvo e macio corpo
semi-desnudo. Levantei rapidamente e a abracei forte, jogando a toalha no chão, deixando- a
completamente nua. Sentei numa cadeira do quarto com ela sentada de frente no meu colo, com as
pernas enganchadas na minha cintura. Fizemos amor vigorosamente ali naquela posição e depois
outra vez na cama e então adormecemos exaustos.

Acordei e já era de noitinha. Manuela ainda dormia nua, virada de costas , encostada no meu
peito. Senti novamente um forte desejo e, afastando as suas coxas com uma das mãos, comecei a
penetrar-la por trás. Ela acordou assustada, mas não resistiu. Então quando eu estava chegando
perto do climax, ela começou a mexer as cadeiras cadenciadamente, pedindo-me que esperasse
mais um pouco e acabamos chegandos juntos ao orgasmo.
Ficamos abraçados em silêncio por vários minutos e então ela me perguntou: “Você trouxe
aquele número de telefone com você?
“Que telefone?”retruquei. –
“ Aquele telefone que o teu primo te deu no dia do churrasco na casa da tua tia”.
Uns dias antes da nossa viagem, fomos a um churrasco na casa de uma tia na Pavuna e o meu
primo Carlos, me deu o telefone de um tal Cidinho, um cara que, segundo êle, fora mecânico por
lá mas havia imigrado para Miami. Segundo o meu primo, o Cidinho era um sujeito solidário e
bem relacionado junto a comunidade brasileira em Miami e já havia ajudado muitos recém-
chegados. Dei uma busca na carteira e achei o telefone dêle. Resolvi ligar e do outro lado atendeu
um cara com a voz arrastada, marcada pelo sotaque dos malandros cariocas. Deu logo para
perceber que Cidinho era um tipo simpático, com o vocabulário repleto de gírias e barbarismos e
engraçado. Marcamos de nos encontrarmos no dia seguinte, uma segunda-feira, na casa dêle.

Bati na porta daquele apartamento, no terceiro andar de um prédio mais ou menos novo, sem
nenhum vetígio da popular Art Decor. A porta se abriu e nos deparamos com um tipo magro e
comprido, com o nariz protuberante e muito sorridente.
“E aí Toninho, então essa deve ser a Manuela. Vamos entrando,”disse ele com aquele sotaque
carioca arrastado. O apartamento tinha uma sala espaçosa, cheia de roupas e todo o tipo de roupas
e objetos espalhados pelo chão, em cima da mesa de jantar e nas poltronas. Da parte dos fundos do
apartamento vinha um som que parecia ser de samba. Cidinho tirou um emaranhado de roupas do
sofá com as duas mãos, jogando-o em cima da mesa e nos convidou a sentar. “Aí, pessoal não
repara a bagunça não. Aqui a gente trabalha muito e não tem empregada, então volta e meia a casa
fica assim entregue às baratas”, justificou êle.
“E porque que ninguém te, empregada?”perguntei.
“Tais brincando. Custa dez dólares a hora. Só gente muito rica é que tem empregada fixa aqui.
Quem pode pagar, contrata uma faxineira de vez em quando, mais a maioria, é quem cuida mesmo
da própria casa.
“Dez dólares a hora. Você está falando sério?” Indaguei espantado.
“Podes crer,”disse ele. “Tem muito brasileiro aqui ganhando a vida assim, limpando as casas dos
bacanas. Se vocês quiserem, posso ajudar a arrumar um trampo desses. Conheço muita gente por
aqui. É molinho de ganhar uma grana.
”E você, trabalha com o que?”, perguntei fingindo não entender a oferta de ajuda.
“Eu sou mecânico. Tenho uma oficinazinha em Hialeah, o bairro dos cubanos,”revelou êle ,
mostrando uma ponta de orgulho.
“Poxa, que legal,”elogiei.
“Pois é - continuou êle,”ralei muito quando cheguei por aqui. Não tinha onde morar e passei até
fome, mas agora tô regado. Tenho até cartão de crédito,”enfatizou , tirando a carteira do bolso e
puxando um Visa amarelo e prêto de dentro dela.
“Isso aqui é tudo nesse país, crédito! É melhor do que ter dinheiro vivo. Com crédito aqui,
neguinho consegue tudo,”ressaltou.
Nesse momento a porta do quarto se abriu e um forte cheiro de maconha impregnou o ar. Então
quatro sujeitos entraram na sala, carregando um pandeiro, um atabaque, um reco-reco em um
cavaquinho.
”Ai, chega mais,”disse Cidinho. Esses aqui são os primos do meu amigo Carlinhos lá da Pavuna.
“Toninho, Manuela. Esse aqui é o meu grupo de pagode. A gente ensaia aqui toda segunda-feira”,
anunciou.
Os caras se sentaram de frente para a gente no outro sofá, permanecendo em em silêncio e não
tiravam os olhos da Manuela, dando pouca atenção a minha presença. Então um dêles quebrou o
silêncio e disse coma voz ainda mais arrastada do que a do Cidinho: “Ai, Cara. Tá sabendo que o
Mineiro já foi deportado?”
Tô sabendo não”, respondeu Cidinho com ar de espanto.
“É, mandaram o cara de volta pro Brasil hoje de manhã”. – Quem é o Mineiro?” perguntei
intrigado. O que aconteceu?”
“Porra cara. O Mineiro é um “brother” nosso lá de Governador Valadares. Tava trabalhando de
copeiro lá no restaurante Copa Mar, em Downtown e a imigração pegou êle e mais dois
hondurenhos.”
“Mas como?”perguntei espantado.
–Como?” respondeu êle com uma certa revolta no semblante. Um filho da puta denunciou êles.
Tão dizendo aí que foi nêgo da concorrência. Outro brasileiro, também dono de restaurante”.
Manuela e eu nos entreolhamos com espanto, tomados de surprêsa pelo teor da conversa.
“Pois é cara. Aqui acontece muito disso. Brasileiro querendo ferrar brasileiro.”
“Quanto tempo o cara ficou prêso antes de ser deportado”, perguntei.
– Três meses”, disse Cidinho com ênfase. Três meses, é mole?” ressaltou mais uma vez.
–É por isso que tem tanta gente aí fazendo faxina, porque não tem perigo de se preso pela Migra.
Se tu vê o Brancão passar, vai saindo de fininho, se não o bicho pega”, concluiu.
– O que é o Brancão”, perguntei.
– É a Van da imigração. Tá quase sempre lá por Downtown. Tem um letreiro que diz “ United
States Department of Justice. Imigration and Naturalization Service”, disse êle em um inglês
que quase não dava para entender. Então se levantando e pegando três latas de cerveja na
geladeira, duas dais quais jogou para que eu e a Manuela as agarrásemos, apontou para o cara do
cavaquinho e disse: “ Isso dá samba. Leva aí compadre, La Maior”, passando então a cantar de
improviso:
“Aqui não dá pra ficar de ortelha
Não pode marcar bobeira não
Se não vais levar tapa na orelha
E passear no brancão da imigração”

Manuela e eu saímos da casa do Cidinho ainda mais confusos do que quando chegamos.
Aquela conversa tinha botado uma pulga atrás da nossa orelha. O fato de saber que a maioria dos
brasileiros da comunidade local vivia de sub-emprêgos, soava um tanto quanto incômodo para nós.
“Imagina só se eu saí do meu país para ser faxineiro no país dos outros”, disse eu com um certo
desdém.
“Mas você tem que entender que aqui a realidade é outra”, ponderou ela. “E além do mais, esse
negócio de poder ser preso pela imigração é coisa séria –lembrou. “ Temos que levar isso em
consideração, meu amor.
- Manuela, você não está insinuando, por acaso, que nós temos que admitir essa possiblidade,
está?” indaguei.
- Eu acho que nós temos que admitir todas as possibilidades. Você não está vendo que estamos
em uma situação delicada? Temos que ser flexíveis. Você se esqueceu que não temos mais nada no
Brasil e que viemos aqui para recomeçar a vida?”
- Mas não como faxineiro ou lavador de pratos - disse eu com veemência. - E depois, se a
gente tiver que voltar para o Brasil, a gente volta. Afinal de contas tenho muitos amigos e
familiares que podem nos ajudar- .
- O seus amigos e familiares têm a vida dêles para cuidar. Você sabe muito bem que a vida no
Brasil não está nada fácil. Estamos aqui e temos que dar um jeito. Eu sei que no começo é difícil,
mas depois tudo se ajeita.”
“Olha aqui Toni”, continuou ela com firmeza. “ Por mais que eu te ame e queira ficar ao teu
lado, voltar para o Brasil não é uma opção coerente. Acabamos de chegar e pretendo ficar.”
A atitude decisiva de Manuela me deixou bastante inquieto. De um lado eu estava diante
de um futuro incerto e de possibilidades que eu descartava totalmente. Por outro lado, eu nem
poderia pensar em ficar longe do grande amor da minha vida e eu não tinha dúvidas , conhecendo-
a tão bem quanto a conhecia, que ela não estava blefando e na verdade eu achava que ela estava
certa. Me senti meio covarde naquele momento. Afinal, onde estava aquele meu espírito
aventureiro e desbravador? Eu que era conhecido pelos meus amigos como o “irriquieto Toni”,
aquele que vivia criando situações e circunstâncias pouco convencionais, tentando, de todas as
maneiras, fazer com que a vida saisse do marasmo. “Será que eu não passava de outro aventureiro
das palhoças?” me questionei .

Voltamos para o hotel e sentados na cama começamos a fazer as contas de quanto


haviamos gasto até então e concluímos que nossas economias haviam encolhido em 320 dólares.
Havíamos alugado o carro por uma semana e ainda tínhamos que pagar o hotel. Teríamos que
arranjar um lugar para morar com urgência. Comecei então a folhear as páginas do exemplar de
cortesia do “Miami Herald” que me haviam dado na portaria do hotel e me detive na seção de
classificados.
- O que você acha de alugarmos um quarto, tem muita oferta aqui?”Perguntei a Manuela.
-Não acho uma boa idéia. Não quero morar em uma casa com gente que eu não conheço”.
- Mas querida, a gente não conhece ninguém por aqui e como é que vai ser esse negócio de fiador,
documentos ,etc.?”
Antes que ela respondesse, peguei o telefone e liguei para o Cidinho que me informou com a
mesma voz arrastada de malandro carioca que alugar um apartamento em Miami era um processo
muito simples.
“Eles te dão um contrato para assinar e você paga o primeiro mês adiantado e um depósito que é
mais ou menos um quarto do valor do aluguel. Então tu tá regado. Pode mudar no mesmo dia”.
- Tem certeza, Cidinho? Tão simples assim. E se o inquilino resolver não pagar o aluguel, qual a
garantia que o proprietário tem? “
- Se tu não pagar o aluguel, nego te bota na rua em três dias e segura o teu depósito. Isso aqui não é
Brasil não malandro. Não tem esse negócio de corrida de ganso não. É toma lá, dá cá,”disse ele
com um risinho irritante.
Presumindo que “corrida de ganso “significava enrolação na lingua do Cidinho, sugeri a Manuela
que listássemos alguns conjugados na área de Miami Beach para depois ir dar uma olhada.

Após de uma tarde de busca, achamos um conjugado bonitinho, mobilhado com


simplicidade, mas limpo e decorado com cortinas azuis, localizado na esquina da Collins com a
Abott Road, uma vizinhança muito tranquila e silenciosa, a três quadras da praia. Por coincidência
o dono do conjugado era um brasileiro de São Paulo, chamado de Mr. Cardoso pelos funcionários
do escrirório de corretagem de imóveis. Mr. Cardoso era um homem simpático e de boas maneiras
mas um tanto quanto distante e resevado. O processo de aluguel do conjugado foi muito simples.
Mais simples até do que o Cidinho havia dito. Assinamos o contrato, pagamos o aluguel e o
depósito e êle nos entregou as chaves. Conversamos um pouco e percebendo a nossa ingenuidade
de recém-chegados, ele começou a nos dar dicas muito úteis. A exemplo do que havia dito
Cidinho, êle também ressaltou que crédito era importantíssimo no país. Recomendou que
pagássemos as contas domésticas – do tipo luz e telefone, com pontualidade , pois isso segundo
ele era “um bom começo para se adquirir crédito na praça.”
-Quanto tempo o senhor vive nos Estados Unidos, Mr. Cardoso?” perguntei curioso.
- Já vai para 25 anos”, respondeu ele ajeitando a gravata e esticando o pescoço, gesto que no
meu entender expressava um certo orgulho.
- Vinte e cinco anos, é quase uma vida inteira. O senhor não sente falta do Brasil?
- Na verdade não. Vou lá quase todos os anos, mas já me acostumei viver por aqui. Gosto do
Brasil mas o nosso país ainda não é um país pronto para se viver, ainda está inacabado. Este país
aqui está prontinho,” resumiu com um ar de dono da verdade.
Sem gostar da analogia, pigarriei mas resolvi não fazer nenhum comentário, pois não queria gerar
polêmica naquele momento. Então – para o alívio da Manuela, resolvi bancar o ouvinte.
“O senhor tem muitos amigos brasileiros – perguntou Manuela?’
- Na verdade não. Tenho alguns conhecidos, mas o meu círculo de amizades é feito mais de
americanos. Minha mulher é americana,”revelou.
- Vou dizer uma coisa para vocês mas não quero que me entendam mal – proseguiu. “Cuidado
com os brasileiros daqui e eu estou dizendo isso pois vejo que vocês dois são pessoas distintas. Os
brasileiros daqui – ao contrário dos cubanos, colombianos e outros hispânicos, são um povo muito
desunido e essa falta de união se reflete no dia a dia dêles de diversas maneiras negativas. Estejam
atentos, tem muito brasileiro matreiro por aí”, avisou.
- O que será que o Mr. Cardoso quis dizer extamente quando se referiu aos brasileiros como
matreiros e desunidos – perguntei a Manuela já no carro a caminho da nova moradia.
- Não sei. Mas o que importa isso, meu amor? Nós temos um ao outro. Fica tranquilo Toni.
Tudo vai dar certo “, disse ela com uma ternura quase que materna, o que me fez sentir confiante
com relação as novas perspectivas de vida.

Entramos no conjugado carregando as múltiplas malas e as depositamos no chão ao lado


da ampla cama de casal. Sentamos na cama e eu passei a examinar os detalhes do conjugado, que
apesar de ser bem antigo e parte integrante do tal estilo Art Deco de Miami Beach, estava
limpinho e bem pintado e eu gostava das cortinas azuis. O unico problema era aquele tal cheiro de
Miami Beach que – apesar da tinta fresca – ainda se fazia presente. Fiz mentalmente as contas com
as despesas de aluguel e deposito do conjugado e conclui que o nosso orçamento havia encolhido
em mais quatrocentos e cinquenta dólares o que me deixou preocupado. Manuela começou a dar
pulinhos e cair sentada na macia e flexível cama eu comecei a ser projetado para cima e para
baixo involuntariamente.
- Pára com isso garôta – estou com dor de cabeça, disse eu disfarçando a minha irritação.
- Deixa de ser rabugento. Nào ficou feliz que a gente agora tem a nossa casa?
- Vamos à praia amanhã de manhã? Sugeriu ela sorridente.
- Não Manuela. Amanhã eu vou começar a procurar emprego, respondi em tom de
reprovação.
- Vamos depois da praia, Toni. Isso vai nos fazer bem. Precisamos relaxar um pouco. Depois
nós vamos. Eu vou com você.”
Para chegar até a praia era preciso passar por dentro de um parque municipal. O parque
exibia vegetação variada e oferecia áreas cobertas para pequenique, com várias pequenas
churraqueiras ao seu redor, mas estava deserto. Chegamos a praia e avistamos um grupo de
pessoas bem idosas sentadas em suas cadeiras de praia em silêncio. Êles- os idosos - e nós dois,
éramos os únicos banhistas ali presentes. A manhã estava clara e amena. O céu era de um
profundo azul e gorjeantes gaivotas tiravam razantes em nossas cabeças, como se pedissem por
comida. Um dos homens do grupo, tirou da sacola um pacote com pão e começou a atirar
pequenos pedaços para cima, o que deixou os pássaros em verdadeiro alvoroço. Sempre admirei a
elegância do vôo das gaivotas. Essas aves parecem saber do privilégio que têm em poder voar e
sempre me deram a impressão de que sentem imenso prazer na liberdade que a arte do vôo lhes
proporcionam. Tirei então uma cerveja do pequeno isopor que carregava e comecei a bebericar,
observando as aves. A minha mente então me transportou para o dia em que o meu ultraleve ficou
pronto e foi entregue no aeroblube de Nova Iguaçu. A pequena aerovave era confecionada por uma
espécie de nylon chamado “Dacron” e o amarelo de sua estrutura reluzia ao sol e – apesar de ser
categorizada como ultraleve, apresentava o formato de um pequeno Piper J-3. Naquele dia voei
praticamente quase o dia inteiro, parando apenas para reabastecer e para um rápido lanche. Eu
carregava um megafone comigo e sobrevoava as áreas onde sabia que os amigos se reuniam, como
clubes e campos de pelada e bares e os saudava através do megafone, o que causava tremendo
espanto. Resolvi então tirar um razante no campo de futebol do Country Club e por pouco não
batia em um imenso pé de jabuticaba. Voltei então trêmulo para o aeroclub e resolvi encerrrar as
atiividades aeronáuticas do dia. Depois do incidente, passei vários mêses voando o mais alto que
podia.
“Excuse me sir” – disse um policial que se aproximou em um triciclo.
“No alcohol on the beach”, ressaltou êle com o semblante grave, apontando
simultaneamente para uma placa onde estavam expostas as regras para os banhistas.
- Sorry sir, I didn’t know – respondi espantado, jogando a cerveja em uma lata de lixo
próxima.
- Next time, I am gonna have to give you a ticket. Please observe the rules,”disse se afastando.
Percebi,então, que o grupo inteiro dos idodos me olhava com olhares de reprovação.
- Vamos embora,”disse eu profundamente irritado a Manuela.
- Chega dessa merda de praia.”
- Onde já se viu, não poder tomar uma cervejinha na praia. Que porra de país é esse?
- Toni, você tem que aprender a aceitar e a respeitar as regras daqui. Isso não Brasil”, respondeu
ela em tom de reprovação.
- Mas claro que não é. E isso aqui não passa de um lugar chato e sem graça ,”retruquei.
- Vamos embora”insisti, puxando Manuela pelo braço.
Os velhos continuavam a me olhar com olhares de reprovação.
“ O que é que vocês estão olhando- vociferei aos idosos. “Vão cuidar de suas decrépitas vidas.”
-Que é isso Toni, ficou maluco?”disse Manuela se desvencilhando de mim e tomando outro
caminho para chegar ao conjugado.
Naquele mesmo instante, me arrependi do que fiz, mas não dava para voltar atrás. Deixei que ela
fosse sozinha para casa e sentei em um banco de ponto de ônibus para esfriar a cabeça. Fiquei
sentado ali por uns dez minutos, pensando em como me desculpar com ela pela minha atitude
impulsiva, quando chegasse em casa. Então um crioulo magro e alto se aproximou e sentou-se ao
meu lado. Olhei para o crioulo e percebi que êle era diferente daqueles típicos negros americanos.
Trajava uma calça do tipo tergal e e paletó por cima da camisa abotoada até a gola.
Nos entreolhamos e êle sorriu para mim me saudando com um aceno de cabeça.
Where are you from?”perguntei, com o intuito de puxar conversa.
“Haiti- respondeu ele, com o mesmo sorriso.
-How long have you been in Miami? ”-continuei.
- Sorry, me speak no English”, balbuciou ele com certa dificuldade.
-Parlez vous français?”, perguntei esperando poder lançar mão dos recursos obtidos com os
meus seis anos de aliança francesa.
-Oui , moi je parle français,” respondeu com uma certa surpresa.
Eu sabia que os haitianos – apesar de falarem o “creole”como lingua oficial, também falavam o
francês, por força da colonização, sobretudo os que apresentavam um certo nível de educação.
Então, em um francês claro e fluente, o crioulo – que se apresentou como Jean Baptiste – me
contou que havia chegado à Miami há um ano atrás. Vivia na comunidade de “Little Haiti”, e havia
entrato nos Estados Unidos com status de refugiado. O precário barco de pesca em que estava Jean
Baptiste – segundo me dissse ele, trazia outros quatorze haitianos e havia naufragado à dez milhas
da costa de Miami, o que havia resultado na morte de oito de seus companheiros. Ao me contar
essa passagem de sua vida, Jean Baptiste, trocou o risonho semblante por uma profunda expressão
de tristeza. Revelou que centena de outros haitianos ja haviam morrido , tentando entrar nos
Estados Unidos, sempre por conta da precariedade das embarcações em que viajavam. Refleti
então naquele momento sobre os possíveis motivos que levavam certos povos a deixarem seus
países, suas terras, suas lavouras, seus amigos e familiares, para se aventurarem em outras terras,
distantes das suas culturas e tradições, somente pela necessidade da sobrevivência. “Porque é que
tinha que ser assim?”, pensei com sentimento de revolta. Neste momento ônibus de Jean Baptiste
parou no ponto e êle subiu na condução se despedindo com um “au revoir” , sendo correspondido
com a mesma saudação francesa.
Apesar de a história de Jean Baptiste me haver entristecido, ao mesmo tempo me senti
satisfeito por haver conseguido me comunicar perfeitamente com êle em francês, idioma
estrangeiro da minha preferência. Esse tipo de interação simples e singela entre povos sempre me
fascinara.
Lembrei então da época em que eu trabalhava como relações públicas de joalheria no posto
seis, em Copacabana. Na época, eu havia feito amizade com um argelino chamado Abdel Hakem
Sadok que era conhecido pelo codinome Alain, herdado por conta da época em que morou na
França. Alain , apesar de Argelino, expressava a cara do Rio de Janeiro e era um verdadeiro
carioca. Falava francês melhor do que o árabe bebere, o idioma da Argélia juntamente com francês
e – apesar dos meus anos de Aliança Francêsa – foi êle o principal responsável pelo o meu fluente
francês. Trabalhávamos para a mesma joalheria e fazíamos o marketing junto a grupos de turistas
estrangeiros – como alemães, americanos franceses e italianos, com o intuito de os atraírem para
visitar a lapidação da empresa, onde os vendedores então, entravam em ação.Alain e eu estávamos
sempre juntos e falávamos em Francês o tempo inteiro. Posso dizer que nunca conheci uma pessoa
tão engraçada quanto êle. Alegre e irreverente, Alain nunca perdia uma oportunidade de fazer uma
piada, não importando a ocasião ou circunstância. Do nosso grupo de relações públicas também
faziam parte outras verdadeiras figuras, como o Delson – crioulo malandro e simpático – que tinha
cinco filhos com cinco mulheres diferentes; o Daniel, um refugiado moçambicano que além do
inglês, também falava um alemão fluente; o Rodrassis, um poliglota, filho bastardo de uma
detetive particular e seu amante e o Zé Carlos, um angolano matreiro que havia se refugiado com
a família na alemanha para escapar das farpas da revolução angolana e do comunismo que se
instalou no país, também fluente em alemão e inglês. Havia muita concorrência nesse tipo de
trabalho e quando os grupos de turistas chegavam na orla da Zona Sul do Rio, nós lançavamos
mão de todos os recursos disponíveis, a fim de angariar a simpatia dos “gringos”. Um desses
recursos era o bom relacionamento que tínhamos com as prostitutas da orla, cujos nomes e
telefones constavam dos nossos cardeninhos de contatos. Tratávamos as profissionais do sexo com
respeito e consideração e elas se tornaram uma espécie de aliadas nossas. Então quando chegavam
os grupos de homens, principalmente os italianos e alemães, servíamos de intermediários entre
êles e as” mariposas” da praia, sem nenhum outro tipo dividendos, que não fosse o
comprometimento dêles em visitarem a nossa lapidação, já que ganhávamos comissões sobre as
vendas. Geralmente esses grupos geravam-nos polpudas comissões, pois os tais homens
geralmente compravam belas e caras jóias para suas espôsas, levados talvez pelo remorso de havê-
las corneado com as tais moças de aluguel.
Alain costumava ganhar sólidos dividendos com os árabes, principalmente com os sauditas- que
quando chegavam ao Rio, se esqueciam do comprometimento que tinham com o Islam e
enveredavam pelo caminho da auto-indulgência, onde não faltavam o whisky escocês, o
champagne francês e os iates cheio de mulheres, geralmente recrutadas pelo argelino. Eu e essa
turma costumávamos nos reunir quase todas as noites na Taberna Siqueira Campos, depois do
trabalho e, liderados por Abdel Hakem, costumávamos fazer o refrão de canções beduínas, ao som
das batidas das palmas de nossas mãos e frases repetidas em árabe berbere, em meio a muitas
gargalhadas e goles de vinho.

Abri a porta do conjugado e entrei em silêncio. Manuela estava comendo uma


macarronada que acabara de improvisar com molho de atum em lata. Me sentei pequena mesa de
dois lugares ao lado do fogão e me servi de um pouco da macarronada.
- Me desculpe meu amor, sei que não deveria ter agido daquele modo,” disse meio sem graça.
- Não tem problema. Esquece isso. Vamos comer e depois ir até Downtown para ver os empregos
da lista que você fez.”
Olhei para o lado e notei que ela havia passado uma calça social e uma camisa de mangas
compridas para que eu usasse durante a caça ao trabalho. O nosso objetivo era o de eu arrranjar um
trabalho primeiro, já que eu falava inglês e sair da situação de emergência, para depois então ver
com mais calma algo que a Manuela pudesse fazer, já que ela não dominava o idioma. Entramos
então no Pontiac cor de vinho e saimos para o derradeiro giro nêle, porque no dia seguinte pela
manhã, teríamos que devolvê-lo à locadora.
Capítulo III: O Pão Nosso De Cada Dia

“ Lasciate ogni esperanza voi que entrati” – Da Divina Comédia –Dante


Alligieri

Cheguei à recepção da “Zafar Publishing,” uma editora de Miami, número um na minha lista
de entrevistas de empregos - depois de subir uma escadaria escura, com cheiro de madeira velha e
com o corrimão quebrado. Me deparei com uma indiana,vestida com trajes típicos da india, que,
sem me olhar nos olhos por um momento sequer, pediu que eu esperasse para ser recebido pelo
editor-chefe. Mr. Zafar, o editor, era um tipo bem simpático e risonho, com os cabelos lisos e
compridos , caídos pela altura dos ombros e de pele bem escura. Falando um ingles britânico, ele
me disse ser da Guiana Inglesa, porém de origem indiana mas que já vivia nos Estados Unidos há
muitos anos . O plano de Zafar era lançar uma revista de variedades dirigida à comunidade latina
de Miami. Ele estava contratanto contatos de publicidade para angariar anúncios para a revista e
afirmou ter ficado impressionado com o meu curriculum.
Saí da reunião já contratado e ao passar pela recepção já a caminho da rua, dei um
entusiástico muito obrigado para a indiana que me respondeu com um “de nada,” novamente sem
me olhar, mas dessa vez deu para eu perceber que ela tinha feições que lembravam uma largatixa e
assim passei a chama-la mentalmente. “Olha pra mim largatixa”, pensei com escárnio.
Manuela me esperava sentada em um banco de ponto de ônibus e ao ver o meu semblante
alegre perguntou:
- E aí, como foi, conseguiu alguma coisa.”
- Claro meu amor, estou empregado, você já não conhece a minha sorte?’
- Eu sei convencido, mas conta mais. Quando é que voce vai começar?’
- Segunda-feira que vem. Vamos ganhar uma graninha legal, o projeto é quente.”
- E qual é o salário ?”
- Não tem salário, é só comissão, mas ele me adianta dinheiro sobre as vendas. A draw
against comission, como se diz por aqui.”
- Mas, Tony, você tem certeza? E se não vender?”
- Como não vai vender querida? O Negócio é fantástico.”

Cheguei ao escritório da editora na segunda-feira de manhã vinte minutos mais cedo do


que da hora marcada. A porta estava aberta mas parecia não haver ninguém lá. Abri a outra
porta que dava para o corredor de acesso à sala de conferência me deparei com Zafar e a
largatixa saindo da sala bruscamente. Notei que ela estava toda descabelada e com as roupas
em desalinho e Zafar exibia nítidos sinais do fenômeno “penis erectum”.
“Estraguei uma provavel fornicação matutina”, pensei meio sem graça. – Que merda”.
- Bom dia Tony”, disse Zafar com o sorriso de sempre, tentando disfarçar a barraca armada
dentro das calças.
- Desculpe se cheguei mais cedo Mr. Zafar. Acho que foi o entusiasmo”.
- Não tem problema meu rapaz, mais cedo é sempre melhor”, disse ele sempre exibindo os
alvos dentes.
Após passar mais ou menos umas duas horas com Zafar em treinamento sobre o produto, botei
um punhado de formulários de autorização de vendas na pasta junto com uma pilha de cartões
de visita improvisados e parti para as ruas determinado em angariar clientes para a revista
“Viva Miami”.
Do escritório da editora até Downtowm Miami dava uma caminhada de mais ou menos
vinte minutos. A manhã estava ensolarada, apresentando uma luminosidade ofuscante. A leve
brisa que vinha do mar aplacava um pouco o já notório calor de verão de Miami. Enquanto
caminhava eu observava um barco pesqueiro que passava por baixo da ponte do canal que
corta o centro de Miami e achei bonito o cenário. Subitamente um homem maltrapilho e todo
molhado saiu de baixo da ponte e se dirigiu a mim em espanhol.
“Buenos dias señor.”
“Buenos dias, que passo com usted?”retruquei.
O homem revelou que acabara de chegar de Honduras e não tinha onde viver e estava
morando debaixo daquela ponte. Um dos tripulantes do barco pesqueiro tinha jogado um balde
de agua fria ao passar próximo a ele.
“ No tengo dinero o onde vivir, así que esta es mi vida,”disse o homem com um certo
semblante de desespero.
No mesmo instante uma angustia profunda se apossou de mim. Fiz um esforço tremendo para não
chorar na frente do Hondurenho. Tirei uma nota de vinte dólares da carteira e estendi a mão para
que o homem a pegasse, o que ele fez prontamente e meio a intensos agradecimentos. Então eu
lembrei de um endereço de uma igreja de origem hispânica em Miami, que uma senhora cubana
havia me dado em uma farmácia perto da minha casa quando eu fora comprar aspirinas. Como era
hábito meu puxar conversas com pessoas em geral nos mais diversos lugares, a tal senhora ao
saber que éramos recém chegados em Miami, me havia dado a informação, caso houvesse
necessidade, o que eu nunca imaginei que aconteceria. Dei a informação para o hondurenho e
segui o meu caminho após lhe desejar boa sorte. Enquanto completava a caminhada, novamente
fui assolado por dúvidas e incertezas com relação a essa minha aventura. “Por que é que as coisas
têm que ser assim”pensei. “Porque é que as vêzes nos sentimos como se fôssemos jogados no
mundo com um único e notório propósito: o da nua e crua sobrevivência.”
Cheguei então ao endereço do meu primeiro contato, o restaurante brasileiro “Espeto de
Ouro”. Me apresentei ao gerente Marcelo, um mineiro de Governador Valadares, que depois de
ouvir a minha breve esplanação sobre a revista me introduziu ao dono do restaurante, o Ari
Menezes , um gaúcho de Pelotas. Conversei com o Ari por cerca de vinte minutos e durante todo o
tempo ele se mostrou interessado pelo projeto da “Viva Miami”. Então chegou o momento crucial
de todo discurso de vendas: o de fechar o negócio. O Ari topou. Preenchi nervosamente a minha
primeira autorização, deixando por duas vezes a caneta cair no chão. O Ari notou o meu
nervosismo e começou a expressar um risinho quase que clamufado pelo enorme bigodão. Deixei o
restaurante dizendo para mim mesmo que a minha meta seria pelo menos cinco autorizações por
dia.
O dia passou tão rápido que quando eu percebi já eram quase seis horas da tarde e eu
carregava na minha pastinha seis autorizações, todas de comerciantes brasileiros. Meu objetivo
para o dia seguinte seria o de tentar contatos junto a comunidade hispânica de Miami mas no
momento o meu objetivo maior era somente um: chegar em casa e contar as boas novas para a
Manuela.

Entrei pela porta adentro e não vi a minha musa. Ouvi então o barulho da água caindo do
chuveiro. Abri a porta do banheiro sem fazer barulho e fiquei observando por entre a infinidade de
gotas dágua que embaçavam o vidro do box, ela – que de olhos fechados esfregava os cabelos com
shampoo, deixando a mostra aquele corpo curvilíneo de formas harmoniosas e salientes. Tirei
então a roupa, espalhando peças pelo chão da sala e entrei pelado no chuveiro já com o membro
ereto. Manuela quando me viu tomou um susto.
“O que é isso, tá maluco, que susto.”
“Estou louco. Louco por você querida”
Então comecei acarriciar os seios delas agarrando-a por trás ao mesmo tempo que beijava o seu
pescoço alvo e macio. Tentei a penetração por trás mas como estava meio sem posição, devido a
pequena dimensão do box do banheiro, resolvir acabar com o banho ali mesmo, e jogando uma
toalha no chão deitei em cima da Manuela e fizemos amor na toalha, no desconforto de uma chão
duro e um banheiro minúsculo, pois não pude esperar para chegar até a cama.

Levantei mais cedo do que costume no dia seguinte, pois teria que passar pela editora e entregar
as autorizações a Zafar antes que fazer o roteiro planejado. Cheguei á recepção e me deparei com a
“largatixa” lendo um livro creio que em Hindi ou Bengoli, os dois principais dentre os múltiplos
dialetos indianos.
“Bom dia - disse eu com entusiasmo maior do que o de costume.
“Bom dia- respondeu ela novamente sem me olhar.
“ Necessito falar com Mr. Zafar”.
“Sente-se que eu vou avisar a êle que o senhor está aqui”, respondeu ela ainda sem me olhar
nos olhos.
Mais ou menos dez minutos minutos depois, ela voltou outra vez descabelada e ajeitando as
roupas, dizendo que Zafar já iria me atender . Enquanto o aguardava passei a folhear um guia de
restaurantes de Miami e comecei a emitir esmos assobios em tom baixo.
“Por favor pare de assobiar”, disse a indiana com certa irritação mas com os olhos pregados no
livro.
“ Ah, me desculpe. Algum problema?’, retruquei meio surpreso com aquela atitude.
“Não suporto assobios- respondeu ela.
“Largatixa filha da puta!”, Pensei sem nada dizer.
Nesse exato momento Zafar abriu a porta que dava da recepcão para o corredor principal da
editora e, quebrando o gêlo do momento, me convidou sorridente para a sala de conferências.
“Então meu amigo, como foi o seu primeiro dia?”perguntou ansioso
“Consegui seis autorizações”, respondi orgulhoso
“Seis autorizações no primeiro dia. Fenomenal! ” disse ele com um soriso de orelha a orelha.
“Aqui estão as autorizações”disse eu entregando-as ao chefe.
Ele examinou uma por uma detalhadamente, balançando a cabeça em sinal de aprovação.
“ Excelente! E onde estão os cheques?”
“Que cheques Mr. Zafar?”perguntei meio confuso.
“Os cheques referentes as autorizações de publicidade.”
“Não existe nenhum cheque Mr. Zafar, somente as autorizações”respondi mais confuso ainda.
“Mas como? disse ele com um semblante grave. Você não recebeu nenhum cheque?
“Não Mr. Zafar. O acordo é pagar depois que os anúncios forem publicados”, disse eu meio
sem jeito, já temeroso pelo rumo que a conversa estava tomando.
“Não, não, nào, não, não!!!”replicou êle com vemência e o dedo em riste.
“Você está totalmente equivocado. Onde estão os anos de experiência você disse ter nesse
negócio? Como é que você me traz autorizações sem cheques anexos. Isso não vale nada para a
empresa”, enfatisou o indiano, agora já descambando para o lado da vociferação.
“ Mas Mr. Zafar, foi assim que sempre operamos no jornal diário da minha cidade. A
Autorização é um documento legítimo, através do qual o comerciante se compromete a pagar o
anúncio assim que publicado” afirmei, tentando ponderar.
“ Então eu tenho novidades para voce”, disse ele em tom de escárnio mas ainda mantendo a
fisionomia grave.”Isso aqui não é a sua cidade e a minha editora não é o seu jornal diário. Se você
quiser sobreviver nos Estados Unidos, acho bom começar a aprender a trabalhar como se faz
aqui”. Então antes de contactar qualquer outro cliente ou fazer qualquer coisa, você volta lá e vai
receber os cheques referentes a esses seis clientes. Final de conversa”, concluiu com autoridade.
Ao sair da sala de conferências passei pela recepção cabisbaixo e não dirigi uma palavra a
largatixa, mas notei que ela me deu uma olhada de rabo de olho. Desci pela escada escura com
cheiro de madeira velha e notei naquele instante que o cheiro estava mais forte. Ao deslisar a mão
direita pelo corrimão quebrado, uma farpa de madeira me espetou na palma da mão fazendo-a
sangrar levemente. Entrei no banheiro de uma farmacia e usando um cortador de unhas arranquei a
farpa, limpei o ferimento e apliquei um band aid. Ao sair da farmácia respirei fundo, decidindo
naquele momento que eu iria consequir os tais cheques a qualquer custo.
A caminho de Downtown Miami passei de novo pela ponte onde conhecera o hondurenho e
notei que haviam dois garis de aparência hispânica, limpando o lado da ponte onde se arriscava a
viver o pobre coitado - com certeza cubanos- pois era essa a raça predominante na cidade e eram
êles que conseguiam a maioria dos empregos, nos mais diferentes níveis. Resolvi perguntar no
meu portunhol, se êles sabiam aalgo sobre o hondurenho.
- Si señor, sabemos quién es. Fue capturado ayer por la inmigración.”
“Puta merda”, pensei. –Não é que pegaram o cara ontem. Ele não deveria ter facilitado desse jeito,
tentando viver debaixo de uma ponte. Com certeza alguém o denunciou,”pensei ,abismado com o
ocorrido.
Agradeci a informação aos cubanos e comecei a apertar o passo naquele momento, como se
estivesse fugindo de uma situação com a qual inconscientemente me indentificara, o que me fez
sentir sentir pequeno e desprotegido, tornando a minha respiração pesada e ofegante. Tudo que e
eu sentia uma terrível necessidade em deixar p cenário o mais rápido possível. Tomei um atalho e
acabei saindo na Brickell Avenue, uma das ruas mais elegantes de Miami, com seus edifícios
majestosos e ares de prosperidade espalhados por todos os lados. Resolvi então sentar em um
banco ao lado de uma das muitas esculturas de bronze espalhadas pela elegante avenida e resolvi
rezar. Rezei pedindo proteção para aquele homem e sua famlía e para que a sua situaçào se
resolvesse o mais rápido possível. Para que ele pudesse voltar para Honduras, reencontrar seus
entes queridos e amigos, arranjar um emprego descente, poder dançar ao som da “La Punta”aos
domingos, tomando “Chicha” e comendo chorizo. Então me senti bem melhor e a angústia
corrosiva foi se dissipando aos poucos até se extinguir completamente.
Voltei ao “Espeto de Ouro”para falar com o Ari. Êle me recebeu com a mesma cortesia, mas
após ouvir o meu argumento visando receber o cheque referente a autorização, se recusou a fazê-
lo, dizendo que esperaria até que o anúncio fosse publicado.
- Você pode voltar aqui que eu te pago com certeza, Toni, no mesmo dia que o anúncio sair”,
garantiu o pelotense.
Então, um por um, entre os seis comerciantes previamente contactados , disseram a mesma coisa.
Êles queriam esperar até que o anúncio saísse para que então pagassem a fatura. O último dêles, o
Waldemar Aquino, dono do “Café do Brasil”, me informou que os comerciantes da área já tinham
sido vítimas anteriormente de picaretas que haviam recebido dinheiro de anúncios referentes a
pretensas publicações, mas que sumiram com o dinheiro e nunca publicaram nada. Alí estava a
razão do ceticismo da brasileirada. Tentei então partir para o mercado hispânico. Eu necessitava
desesperadamente aparecer na editôra com alguns cheques para desfazer o mal-estar com Zafar e
receber o adiantamento que ele me garantira sobre as vendas, pois a grana estava ficando cada vez
mais curta. Tentei oito estabelecimentos ,e nada. Ninguém queria pagar adiantado, apesar do
projeto da “Viva Miami” ter sido sempre do agrado geral. a primeira vista.
Resolvi então voltar a editora e tentar convencer Zafar, sob o argumento de que a comunidade
visitada era feita de gente séria e bem estabelecida em Miami e que não poderia haver erro se os
anúncios fossem publicados para depois serem faturados.
“Quantas vêzes eu tenho que te dizer? Que parte do não você nao entende nessa conversa?”disse
taxativo o indiano.
Saí dalí pensando no que iria dizer a Manuela. Precisava pensar rapidamente em outra
alternativa. As dúvidas e mêdos voltaram outra vez a me assolar., pois apesar de haver aplicado
para um Social Security – uma espécie de CPF americano - e ter recebido um desses documentos
sem o famigerado carimbo – Not Valid for Work – o que era normalmente emitido para pessoas
em viagens de negócios para que pudessem abrir contas bancárias e tirarem carteira de motorista, o
meu Social Security havia sido emitido em conjunção com o meu visto de jornalista e somente me
dava a prerrogativa de trabalhar como representante de algum veículo de comunicação no país.
Trabalhar em lojas, restaurantes ou outros estabelecimentos que tivessem contato com o público
constituia alto risco de ser preso e deportado.Eu até poderia conseguir um emprego, pois um Social
Security válido para trabalho era documento normalmente aceito por grande parte dos
empregadores, mas ainda assim – segundo um advogado que eu havia consultado e pago 175
dólares por vinte minutos de conversa - constituia risco, caso eu fosse abordado por agentes de
imigração e o assunto esmiuçado.Eu não queria correr esses tipos de riscos. A idéia de ser preso
pela imigração e não poder ver mais a Manuela- o que a deixaria em situação desesperadora-
simplesmente me aterrorizava de maneira petrificante.
Cheguei em casa bem mais tarde naquela noite.Entrei pela porta do conjugado e me deparei
com a Manuela sentada na mesinha de jantar, vestida com o meu pijama e tomando uma sopa de
legumes.
“Puxa vida, meu amor. Você demorou muito, eu já estava ficando preocupada. O que houve? “
indagou ela com o semblante de uma mãe preocupada.
Sem responder , eu a abracei e comecei a beija-la na cabeça continuamente. Então – sem que eu
precisasse dizer nada, ela já sabia que algo estava errado, já que ela conhecia a minha linguagem
corporal como ningúem.
“O dia deu errado não foi?” disse ela olhando fixamente nos meus olhos.
“É , deu errado sim”, respondi com um nó na garganta.
Contei tudo que se passara e após ouvir tudo com muita atenção Manuela foi taxativa.
“Acho de verdade que você está perdendo o teu tempo com o tal Zafar. Não sinto seriedade nesse
projeto”.
“Eu vou tentar mais uns dias e ver o que vai acontecer. Não quero desistir assim de cara,”protelei
Nessa noite dormimos ainda mais enroscados um no outro do que de costume. Era mania minha, ,
envolvê-la nos meus braços e enganchá-la com as pernas antes de dormir, já que o cheiro do
pescoço dela e o fato de apertá-la contra o meu peito me acalmava e me encorajava, apesar dela às
vezes reclamar que eu vivia embaraçando os seus cabelos.
No dia seguinte saí bem mais cedo e visitei quinze comerciantes em Miami Beach e nada.
Ninguém queria pagar adiantado. O mesmo se passou no dia em que se seguiu. Resolvir relaxar
durante o final de semana e então na segunda-feira tentar novamente convencer Zafar de que a
estratégia dele estava errada e que seria impossível angariar clientes se continuássemos a pedir
dinheiro adiantado. Passei esses dois dias um pouco tenso e preocupado com o fato de ter passado
mais uma semana sem ganhar nenhum dinheiro, apesar de ter ido a casa do Cindinho no Domingo,
convidado para um churrasco onde não faltou pagode, cerveja e besteiras.

Subi as escadas da editora ansioso para falar com Zafar. Eu já tinha tudo o que ia dizer na
ponta da língua, pois havia ensaiado sobre o tema durante o fim de semana. Abri a porta que dava
para a recepção e para a minha surpresa a sala estava vazia, sem nenhuma mobília. Então em meio
a grande espanto, entrei no corredor principal da editora e me deparei com um prédio
completamente vazio e com muito lixo espalhado pelo chão. Não havia mais nada. Todo os móveis
e o maquinário haviam desaparecido misteriosamente e não havia ninguém nas dependências do
imóvel. Desci correndo pela escada de madeira e entrei em uma loja de conveniências próxima ao
prédio da editora, a fim de obter alguma possível informação.
“O indiano fugiu- disse o cubano por trás da caixa registradora da loja.
“Não pagou ninguém e sumiu com todos os móveis e equipamentos. Ouvir dizer que já estava
sendo procurado por um outro golpe parecido que ele havia dado no Havai,”informou o dono da
pequena loja com um risinho de escárnio.
Saí da loja completamente desorientado, sem saber o que pensar. Apertei o passo e comecei a suar
em bicas, caminhando instintivamente em direção a Dowtown Miami, onde cheguei uns vinte
minutos depois, todo ensopado de suor e ofegante. O calor e a umidade do ar naquela manhã me
pareciam insurpotáveis. Entrei então em uma loja de eletrônicos para me refrescar com o ar
condicionado central do recinto e logo notei que ali todos falavam português. Então, de maneira
quase que automática pedi para falar com o dono da loja que se dirigiu a mim falando em
português de Portugal.
“Aurélio, seu criado. “Em que posso ajudá-lo senhor?’
“Muito prazer, meu nome é Toni”retuquei.
“Estou procurando trabalho e me informaram que vocês estão contratando”, inventei na hora.
“O senhor tem papéis”, perguntou o português me olhando fixo nos olhos.
“Tenho Social Security válido para trabalho”respondi, devolvendo o mesmo olhar fixo..
“Me acompanhe ao meu escritório,” disse ele com altivez .
Depois de preencher uma aplicaçào de trabalho, fui entrevistado por Aurélio por uns quinze
minutos e após a entrevista ele revelou que precisava de um relações públicas e motorista e que o
trabalho consistia em atrair turistas que caminhavam pelas calçadas – principalmente os brasileiros
– para dentro da loja e também dirigir uma das vans da empresa, levando e buscando clientes
hospedados em hotéis de Miami.
“Eu pago trezentos dólares por semana e nessa época de verão se trabalha os sete dias da semana,
sem folga. O senhor está interessado?”Perguntou taxativo o lusitano.
“Claro, claro que sim,”respondi gaguejando.
“Então esteja aqui amanhã as nove da manhã para começar. Mais uma coisa, o senhor tem carteira
de motorista válida nos Estados Unidos, não tem?” Indagou franzindo a testa.
“Tenho sim senhor”respondi tirando a minha recém tirada “Florida Driver’s License” da carteira e
exibindo-a com orgulho.
Sai da loja saltitante. “Puta que o pariu” pensei. “Nunca – nesses meus trinta e cinco anos de
vida, havia arranjado um emprego de maneira tão fácil. “O Zafar e a largatixa que se fodam. Agora
eu tenho um emprego de verdade”disse em voz alta, atraindo olhares curiosos e intrigados de
transeuntes que cruzavam o meu caminho. Entrei então em um mercadinho da Flagler Street e
comprei duas garrafas de “Marques de Cáceres”, vinho tinto espanhol, o que na verdade, era uma
certa extravagância, em se consideranto o meu orçamento no momento, mas “What the Hell? Nós
merecemos,”pensei, ansioso para dar as boas novas a Manuela.

Capítulo IV: “Laranja madura na beira da estrada tá bichada, Zé, ou tem


marimbondo no pé:” ) Refrão do samba de Ataulfo Alves, composto em
1966).

Manuela compartilhou parte do meu entusiasmo comigo ao saber do novo emprego mas não
deixou de fazer a pergunta que eu não queria ouvir:
- Mas e se imigração aparecer por lá, você não pode ter problemas? Eu sei que a gente precisa do
dinheiro, mas a gente não ignorar os riscos que envolvem esse tipo de trabalho, Tony.”
“ Meu amor, eu não quero pensar sobre isso agora. Mesmo porque existem outras pessoas
trabalhando por lá nas mesmas condições que eu, só com um Social Security válido. Além disso,
eu tenho um visto de jornalista e isso me dá certas prerrogativas”, contemporizei sem muita certeza
sobre o que estava dizendo.
Na verdade a conversa me deixou um pouco irritado, pois fez emergir os mêdos que eu estava
tentando camuflar. Abri então uma das garrafas do Marques de Cáceres enquanto a Manuela
acabava de fritar os camarões que eu havia comprado por três dólares a libra no “Publix”, a rede
de supermercados mais popular de Miami. Os crustáceos- pelo preço – foram um verdadeiro
achado. Comecei a bebericar do Marques e devorar os camarões,tendo cuidado para também não
comer o quinhão da Manuela. Enquanto eu comia e bebia, ela me observava sem nada dizer.
Então, de súbito, tocou novamente no assunto:
“Meu amor, tem certeza que não tem perigo? Eu morreria se não pudesse mais te ver”disse com
olhar de preocupação.”
Já sob os efeitos relaxantes do vinho espanhol, a pergunta dessa vez já não caiu tão mal assim.
“Tenho minha boneca – respondi segurando o queixo dela. “Vou estar sempre atento para não me
expor demasiadamente. Pode deixar que eu sei o que estou fazendo, afinal sou dez anos mais velho
que você e mais sábio, não se esqueça disso meu bebê,” brinquei sorrindo e dando um tapa na
perna dela, sendo retribuido da mesma maneira.
Naquela noite dormimos novamente mais enroscados do que de costume, talvez pela
necessidade da certeza de que pertencíamos um ao outro e que nenhum evento ou circustância teria
o poder de nos separar.

Cheguei nas dependências da Aurelio’s Eletronics as 8:45 da manhã e me deparei com o


português tomando café e conversando com dois dos seus funcionários – ambos brasileiros.
- Bom dia seu Aurélio, bom dia pessoal,” cumprimentei , apertando a mão dos três.
- Olá Toni, bom dia. Pessoal esse aqui é o Toni. Tony esse aqui é o Marcelo que já trabalha
comigo há 5 anos e é o meu supervisor e esse é o Lessa, na empresa há três e o Toni aqui, pessoal,
é nossa mais nova aquisição”, proseguiu Aurério com o processo introdutório.
O dois funcionários me deram um “muito prazer”meio chocho e frio, sem dispensar maiores
atenções à minha presença. Aurélio então disse ao Marcelo que chamasse um tal de Amaro e me
informou que êle me treinaria para o trabalho. O patrão me apresentou ao Amaro e fui bem
melhor recebido por êle do que pelos outros dois. Caminhamos pela loja até o trecho da calçada
em frente a porta do estabelecimento e Amaro me informou que aquele seria o nosso território.
‘Toda a ação acontece por aqui” disse êle com ares de entendido.
Amaro era bem falante – apesar do mal português - e simpático, mas por uma razão que eu não
sabia explicar, não me inspirava confiança. Êle me revelou que era de Madureira, subúrbio do Rio
de Janeiro e que somente vinha a Miami durante a temporada de verão para trabalhar na Aurélio’s
Eletronics e depois da temporada voltava para casa, em Madureira.Ele estava nesse vai e vem já
fazia três anos.
- É mesmo,”perguntei surpreso. E você nunca pensou em viver aqui de vez?”
- Não, tá maluco? Nem pensar. Isso aqui é uma merda. Eu somente fico aqui durante os três meses
de temporada, levanto uma grana e depois me mando de volta pro Rio”, afirmou o carioca.
- Mas porque você diz que isso aqui é uma merda”, indaguei intrigado.
- Por poucas e boas razões – respondeu sem pestanejar. “Não tem Maracanã; aqui tu não pode
tomar cerveja na praia; as festas são chatas; todo mundo só trabalha o tempo todo; só tem
brasileiro filho da puta e aqui tu não come ninguém”, respondeu taxativamente.
Com excessão ao ítem referente a abstinência sexual – já que eu não experimentava esse tipo de
escassez, vi sentido nas palavras de Amaro, cujo conteúdo exerceu influência imediata sobre o já
meio cético sentimento que eu nutria por Miami.
- E como você conseguiu papel para trabalhar, cara? Perguntei achando a pergunta indiscreta,
mas o que logo, logo me foi revelado ser válido entre os brasileiros nos Estados Unidos.
- Arrangei um Social frio aí com uns mexicanos”, revelou sem reservas.
- Frio! Quer dizer falso?”
- É, qual é o espanto? Quase todo mundo aqui tem um. Se tu quiser te arranjo um hoje mesmo
por cem dólares”, disse ele sem o menor pudor.
- Mas rapaz, e se te pegam com um troço desses?”perguntei abismado com a tranquilidade
dele.
“Bom, pra começar tu nunca anda com ele no bolso. Dá uma cópia para o empregador e aí
esconde o papel. Depois, se te pegam tu tá fudido que qualquer maneira, então pra mim não faz
diferença”, confabulou o carioca com a maior tranquilidade.
- Eu já tenho o meu Social válido”ratifiquei. Apliquei na agência do Social Security e eles me
mandaram um sem restrições, então eu acho que estou coberto,”expliquei já meio nervoso com o
teor da conversa.
- Mas tu tem Green Card? ” insistiu Amaro
-Não, mas tenho um visto de jornalista que me dá prerrogativas,”respondi sabendo que no
fundo as minhas palavras eram no mínimo ingênuas.
- Então tu tá fudido da mesma maneira se te pegam, cara. Não tem diferença nenhuma”.
Comecei a ficar bastante nervoso com a conversa, mais precisava saber mais e o Amaro me
pareceu ser um especialista no quesito” ilegalidades“.
- E qual é a estratégia para evitar ser abordado, se é que existe alguma”perguntei esperando
atento pela resposta.
- Não, é claro que tem jeito de evitar ser pego. O que eu faço é o seguinte. Antes de chegar na
loja dou uma andada pelo quarteirão pra ver se a van da imigração não está na área,”
explicou.”Normalmente eles quando estão por aqui estacionam há duas quadras daqui entre a
Flagler e a Fouth Street. É uma van branca, das grandes, com o letreiro “United States
Department of Justice. Imigration and Naturalization Service. Se eles estiverem na área é
melhor tu dá um tempo e pedir ao Aurélio para sair com a van da loja e tentar fazer contato nos
hotéis. Tu não pode marcar bobeira de jeito nenhum se eles estiverem por aqui. Aliás, nesse
trabalho você tem sempre que estar com um olho no padre e outro na missa. Não pode cochilar se
não o cachimbo cai”, concluiu.
Não foi preciso que Amaro me dissesse mais nada para que eu entendesse que o meu novo
emprego seria recheado por uma violenta dose de stresse, provavelmente durante as nove horas da
minha jornada de trabalho, a cada dia da semana. Mas eu não estava em posição de nem pensar
em desistir. Precisava do dinheiro e tinha que dar um jeito de ficar, contornando os possíveis
problemas.
- E esse negócio da imigração dar batidas por aí e prender gente trabalhando ilegalmente
acontece muito mesmo ou é exagero do pessoal?’insisti no assunto.
- Não acontece todo dia ou tôda semana, mas volta e meia acontece, geralmente quando há
denuncia” respondeu se aproximando de um casal que passava pela porta da loja, convidando- os a
entrar, no que obteve sucesso.
Resolvi então parar de pensar um pouco nesse assunto de imigração e começar a trabalhar, já que
notei estar sendo observado pelo Marcelo, o supervisor da empresa.. Então me aproximei de uma
senhora que passava pela calçada e- depois de saudá-la, convidei-a a entrar na loja e ela
prontamente me seguiu. Os clientes do Amaro passaram pouco mais de cinco minutos dentro da
loja e foram embora e ele se empenhou mais em conseguir outros eu eu fiz o mesmo.
Lá pela hora do almoço eu já havia puxado sete pessoas para dentro da loja e o Amaro cinco.
Todos os meus clientes haviam comprado alguma coisa, ainda que de pouco valor, com excessão
da senhora, o meu primeiro contato. Ela acabou comprando mais de cinco mil dólares em
mercadorias, o que era considerado uma excelente venda. A repercussão da venda foi grande por
entre os funcionários da loja. Aurélio mandou Marcelo me chamar e me congratulou
entusiasticamente na frente de vários outros funcionários. Me senti bastante orgulhoso com o
cumprimento apesar de ter notado olhares que expressaram um certo desconforto por parte de
alguns. Resolvi então dar uma parada para comer e me dirigi para o refeitório da loja, onde me
deparei com vários outros funcionários deglutindo o conteúdos de seus “tupwares”. Tirei o meu
sanduiche de atum preparado pela Manuela de dentro do meu saquinho térmico e comecei a
saboreá-lo, enquanto tomava uma “manzanila”,refrigerante mexicano de maçã, cujo gosto
lembrava bastante o do nosso guaraná. Notei – pela conversa – que todos no refeitórios eram
brasileiros e consegui identificar vários sotaques, como o mineiro, o paulista e o pernambucano.
Tentei então participar um pouco das conversas mas fui recebido com uma certa frieza. A única
escessão foi o paulista, o Pedro Paulo, responsável pelo estoque e almoxarifado da loja.
“Um paulista – como excessão do grupo - sendo simpático com um carioca”pensei. “Que
interessante!”
Pedro Paulo revelou ser paulista da capital e corintiano e quando revelei ser vascaíno me chamou
de freguês.
“Freguês?’, respondi. “Você está fazendo as contas erradas”’.
Então a conversa descambou para o lado do futebol e ficamos ali trocando jocosas farpas sobre o
esporte por quase meia hora, ainda que de maneira amigável. Então o paulista disse que tinha que
voltar a trabalhar , sugerindo que a gente converssasse mais depois.
- A propósito”, disse ao deixar o refeitório. “Parabéns pela venda de hoje, incrível.”
“Ah, obrigado, obrigado”respondi com um sorriso de satisfação.
“Sorte de principiante”, interrompeu um dos funcionários falando com sotaque pernambucano.
“Pode ser, quem sabe?”respondi saindo do refeitório sem dar importância ao comentário ou ao
seu autor.
Eu na verdade sabia que não era sorte de principiante. Eu havia feito quase o mesmo tipo de
trabalho na orla da Zona Sul do Rio, quando era Relações Públicas de Joalheria, no que eu era
muito bom. Me lembrei então de um episódio dessa época, quando todas as joalherias da orla,
montaram um esquema especial de marketing para tentar contactar um casal de joalheiros
milionários da Arábia Saudita, que – segundo fontes de informações das empresas da orla,
estariam no Rio para comprar pedras preciosas brasileiras e as usarem no desenhos de suas peças
na Arábia Saudita. Eles estariam se hospedando no Rio Palace Hotel. Essa indústria era muito
competitiva na época e os seus dirigentes não mediam esforços para tentar superar os concorrentes,
lançando mão de recursos que as vêzes incluiam cutuveladas e trapaças. Então, de posse da
informação, todos os joalheiros do Posto Seis, contrataram ou transferiram de outras filiais,
relações públicas de origem árabe que se revesariam e ficariam de prontidão o dia todo, esperando
caírem nas graças do casal saudita. Tecnicamente eu ficaria fora dessa disputa, já que não falava
árabe e o Abdel Hakem fora o RP da nossa empresa designado para a contenda.Mas resolvi ficar
alerta também. “Quem sabe?”pensei. “Não custa nada tentar.”
Mais ou menos as nove da manhã, o elegante casal saíu pela porta principal do Rio Palace e
começou a caminhar tranquila e lentamente em direção ao trecho onde ficavam os “Showrooms”das
joalherias. Notei então que os RPs árabes ficaram imóveis e um silêncio geral pairou sobre todas as
lojas vizinhas ao luxuoso hotel. A missão desses RPs seria a de fazer contato incial com o casal e-
depois de atraí-los para dentro do “Showroom” - convencê-los a entrar em uma das luxuosas
limusines estacionadas em frente ao hotel e levá-los para as matrizes de suas empresas, onde
estavam montado todo o seus aparatos de venda, incluindo os cofres recheados com as cobiçadas
pedras. O casal passou por cada uma das lojas, contemplando as vitrines esplendorosamente
decoradas para a ocasião e – com um constante e discreto sorriso, fizeram o percurso sem dar a
mínima atenção aos ansiosos convites dos árabes para que entrassem.
Eu, o Rodrassis, o Delson e o Zé Carlos e o Daniel observáva-mos a cena à distância, tomando café
em um restaurante próximo. Achamos cômico o desfecho do episódio, apesar de que estivéssemos
torcendo para que o nosso argelino fosse o vencedor da disputa.
No dia seguinte de manhã, a mesma cena se passou: A caminhada lenta do casal passando por
todas as lojas; o discreto e constante sorriso nos lábios, a total indiferença aos RP’s árabes e a
mesma frustação estampada nos semblantes deles. Eu e a mesma turma do dia anterior estávamos lá,
no mesmo bar, tomando café e rindo dos árabes, ainda assim torcendo para que o Abdel Hakem se
saísse vitorioso.
Nesse mesmo dia á tarde resolvi dar uma volta pelo shopping anexo ao Rio Palace , pensando,
talvez em tomar uma caipirinha e ouvir o pianista do bar do shopping tocar Billy Joel, uma constante
em seu repertório . De repente não é que avisto o casal saudita saindo de uma loja de souvenirs,
aconpanhado por uma moça que a distância me parecia muito bonita. Para a minha surprêsa, ao me
aproximar um pouco mais, constatei que a moça era a bela e sofisticada Amélia, ex-colega de turma
de Aliança Francesa.
“Amélia, mas que surpresa”disse eu exagerando no entusiasmo.
“Oi Toni, você anda sumido”. Respondeu ela em tom bem mais discreto.
Falando um francês fluente e elegante, Amélia me apresentou ao casal e uma breve conversa teve
início nesse idioma. Resolvi convidá-los para uma caipirinha, me esquecendo momentaneamente,
que bebidas alcóolicas são proibidas na Arábia Saudita e a expressão de espanto da Amélia me
lembrou no mesmo instante de que eu cometera uma gaffe. Mas eles aceitaram o convite. Sentamos
em frente ao pianista que no momento cantava “I love you just the way you are” e a mulher precisou
ir ao banheiro, no que foi seguida pelo marido. Ficamos na mesa somente eu e a Amélia. Ela me
explicou então que havia sido contratada por uns amigos de seu pai para ser guia do casal saudita
durante a permanência dêles no Rio.
“Êles são multi-milionários e – além da joalheria em Jedah - têm diversos negócios pelo mundo,
incluindo uma redes de Spas no Brasil e na Argentina, em sociedade com esse amigo do
papai”revelou.
- Judeus e árabes em sociedade, isso é uma surpresa para mim Amélia”, cutuquei.
“Não seja sarcástico Toni. Você sabe tão bem quanto eu que o dinheiro fala mais alto do que
convicções e credos”, respondeu ela com a sua sempre charmosa autoridade.
“Amélia, você tem que trazê-los para a minha loja”, disse eu sem fazer rodeios.
“Vou tentar, Toni, pois também não posso botar muita pressão. Tenho que ser discreta, mas quero
dez por cento do valor das vendas,”disse taxativa.
“Dez por cento Amélia?”, respondi surpreso com a pedida.” É muito alto para os padrões desse
tipo de negócio.
“Toni, você pode apostar que qualquer um desses jolheiros aí me daria dez por cento. Somos
amigos mas negócio é negócio” lembrou ela.
Apesar de proceder de uma abastada família judia do Rio de Janeiro e de seus somente 23 anos de
idade, Amélia Weisenberg, era astuta e versada em questões financeiras e não perdia uma
oportunidade de faturar. Eu já a conhecia há alguns anos e havíamos mantido um casinho de alguns
meses, marcado por vários hiatos e sem maiores envolvimentos ,pois ela era comprometida com o
filho de um figurão da sociedade carioca.
“Está bem Amélia, eu vou transmitir aos donos da empresa as tuas condiçoes, mas vamos tentar
levá-los á minha loja ainda hoje”, disse eu em tom baixo, notando que o casal estava de volta
“Combinado ”, concordou Amélia. Então você faz o convite que eu dou o apoio.”
Tomei a minha caipirinha tentando disfarçar o nervosismo e ao notar que que eles também haviam
esvaziado o seus copos, fiz o convite. Os dois olharam para a Amélia simultaneamente e ela acenou
positivamente com a cabeça. Apesar de o bar ser proximo da joalheria onde eu trabalhava, possso
dizer que aquela foi uma das mais longas caminhadas da minha vida.
Entramos na loja pela porta de trás. Quando as recepcionistas me viram entrar com o casal
emudeceram e arregalaram os olhos. Mandei chamar o gerente, o Simões Velozo, um angolano
culto e poliglota , que também falava francês fluentemente. Ao ver o casal saudita dentro da loja,
Simões, já muito branco de natureza, ficou quase que transparente, mas consequiu manter o
profissionalismo. Depois de uns quinze minutos de conversa, eles concordaram em visitar a matriz.
Chamei então apressadamente o João, o nosso motorista, que jogava purrinha com alguns colegas de
profissão, de baixo de uma amendoeira, na área de estacionamento Jogando então os palitos na
mesa, João ajeitou a gravata e alinhou o quépi de motorista na cabeça e, entrando apressadamene na
limusine, a estacionou bem em frente da porta da loja. Então, sob os olhares atônitos dos RPs árabes,
abri a porta do veículo para que os três entrassem e lá se foram êles a caminho da matriz.
Esperei, sentado por mais der quatro horas em uma das mesas da calçada do Bar do Farol, pelo
retorno da Limusine. As lojas já estavam fechadas e os RP’s não esvavam mais na área. Então
chegou a limusine, parando em frente a porta do hotel. O porteiro do estabelecimento abriu a porta
do veículo com uma vênia e os três passageiros saíram e se dirigiram para dentro do hotel. Amélia, a
última do grupo, olhou para mim , e a ajeitando os longos cabêlos ruivos, me deu um farto sorriso,
destacados pelos alvos dentes e os grossos lábios -que me lembravam dois morangões maduros-
antes de desaparecer por dentro da porta giratória do Rio Palace. Quinze minutos depois ela desceu,
vindo ao meu encontro no bar , e puxando a cadeira do outro lado da mesa, sentou-se bem próximo
a mim. Então, me olhando bem fixo com os grandes e expressivos olhos azuis, soltou a bomba:
“ Eles compraram 310 mil dólares.”
- O que, 310 mil dólares! Você está brincando não é Amélia?”
- Eu não brinco com essas coisas, Toni. Eles compraram 310 mil dólares em pedras soltas.
Esmeraldas, águas marinhas e topázios imperiais. Mas eu não quero ser vista conversando aqui com
você. Me dá meia hora e sobe para a gente conversar. Estou hospedada na suite 1008,” disse ela, me
desferindo um súbito e curto beijo nos lábios e desaparecendo em seguida.

“Acorda aí cara, fala com esse pessoal se não a concorrência pega,” disse Amaro me sacudindo
para fora do meu devaneio.
“Ah, tá legal cara”, respondi meio sem graça de ter sido fraglado divagando, quando deveria
estar atento ao trabalho.
Contactei o casal, e depois de uns dois minutos de conversa, bola na rêde. Os arrastei para dentro da
loja e eles compraram 150 dólares em miudezas. Senti que o dia passou mais rápido do que
imaginara e no final do expediente fui informado que a minha produção havia sido maior do que
todos os outros RP’s, incluindo o Amaro.
“Trabalhou bem hoje , malandro”, ressaltou o carioca.” Tua sorte é boa”.
“Obrigado, às vezes é muito bom a gente poder contar com a sorte meu amigo,” respondi com
humildade.
“Pode deixar que amanhã eu te ensino mais alguns truques do ofício”, prometeu ele com ares de
entendido.
“ Legal, agradeço qualquer ajuda que você possa me dar, retruquei terminando a conversa e me
despedindo.
Entrei pela porta do ônibus que vai de Downtown a Miami Beach e coloquei um dólar exato na
mão do motorista, já que eles não davam troco e se a quantia não estivesse certa você não viajava,
outro motivo que me fazia sentir antipatia pela cidade. Sentei no banco da frente, já sabendo que iria
ter que aturar a lentidão típica dos condutores de transportes coletivos de Miami. Aquilo me irritava
um pouco, principalmente quando voltava para casa, pois a ansiedade para ver a Manuela, estava
sempre presente quando eu não estava perto dela. Passei então a analizar mentalmente o meu
primeiro dia de trabalho e achei que não havia sido ruim. O montante das vendas tinha sido razoável,
o que na verdade não deveria fazer diferença nenhuma para mim, já que eu não ganharia nada a mais
com as vendas. Era só uma questão de ser produtivo para poder manter o emprego.“Muito diferente
da época de RP de joalheria”pensei.
Então esse pensamento me levou de volta à cena interrompida pela sacudida do Amaro. Me vi de
novo sentado naquele bar, esperando impacientemente pela meia hora que a Amélia havia me
pedido, pois queria saber todos os detalhes da fabulosa venda e também sondar a razão daquele
beijo, pois já havia tempo que nós não nos beijávamos. Quando estudávamos juntos na Aliança
Francêsa, às vêzes – depois da aula - costumávamos ir para um bar à beira da Baia de Botafogo,
onde ficávamos observando as embarcações que iam e vinham , elucubrando sobre a vida, quase
sempre com opiniões divergentes e acho que era isso – essa minha irreverência com ela, que a fazia
sentir-se atraída por mim. Então bastavam um ou dois drinks para que ela não resistisse mais aos
meus assédios. Eu adorava beijar a Amélia, pois os seus lábios eram grossos e macios e ficavam
logo inchados com os meus primeiros beijos. Além do mais ela era culta, enigmática e de uma
beleza exótica e tudo nela, incluindo as roupas o perfume, os trejeitos o charme e até as sardas me
transmitiam uma sensação de realeza, o que me fazia desejá-la, mas ao mesmo tempo me repelia.
Entretanto não passávamos disso, de um romancezinho à beira da baía, pois ela sempre deixou bem
claro que não poderia ter nada mais sério comigo e no fundo eu sabia que ela não era para mim.
Pertencíamos a dois mundos completamente diferentes. Ela era a dama e eu o vagabundo e eu bem
sabia que na vida real esses contos coloridos não se encaixam e geralmente não podiam ter um final
feliz.
Bati três vezes na porta da suite 1008 e Amélia abriu a porta de short e uma camiseta ligeiramente
curta , o que deixava a mostra o seu bem desenhado umbigo e a alva pele em volta da circunferência
da cintura. Os longos cabelos ruivos molhados, pendiam pela altura da cintura e suave fragância de
seu perfume permeava discretamente o ambiente. “Que beleza de cenário”, pensei sem nada dizer.
“Vem , entra Toni. Sente-se e fique a vontade, disse ela com uma certa formalidade.
“Então Amélia, me conta tudo, estou ansioso para saber”.
“Toma, isso aqui é pra você”, disse ela colocando uma caixa pesada – a tal ponto que tive que
ajudá-la - em cima da mesa de mármore da sala da suite. Abri a caixa e, removendo o papel fino que
clamuflava o seu conteúdo, me deparei com seis garrafas de Chivas Regal Royal Salute.
“Que iso Amélia?’perguntei intrigado.
“Isso é por causa disso”, respondeu, me mostrando um envelope médio de papel pardo, estufado
com notas de dólares.
“Vem, me ajuda a contar Toni”, pediu ela com um sorriso de satisfação.
Contamos nota por nota e para a minha surpresa o envelope abrigava a quantia de 33 mil dólares.
“Então é verdade, Amélia”, os árabes compraram 330 mil dólares?”
“Eu te disse que eu não brinco com essas coisas, Toni.”, reiterou ela.
Então gritando e pulando, abracei Amélia que por alguns segundos compartilhou da minha euforia.
“Me diz como foi, êles não quiseram também ver o que os outros joalheiros tinham a oferecer?”
“Não. Se apaixonaram pelas pedras da tua empresa e não quiseram ver mais nada. Só querem
agora é curtir o Rio, nos três dias em que ainda vão ficar por aqui. A tua comissão não vai diminuir
por causa dos meus dez por cento Toni. Isso foi uma das estipulações que eu fiz para que os meus
árabes comprassem com êles,” garantiu .
“Obrigado Amélia”, foi muito generoso da tua parte”, respondi dando um forte abraço nela ,
sendo correspondido com a mesma intensidade.
“Vamos comemorar”, disse eu tirando uma das garrafas do sofisticado “Scotch” de dentro da
caixa.
Sentamos então na varanda da suite, com os ombros encostados um no outro e começamos a
bebericar. A noite estava estrelada, e uma cintilante lua nova raiava o céu com a sua luminosidade,
que se espraiava verticalmente, dando pinceladas de dourado em certos trechos do mar. Apesar de já
passarem das dez, a praia ainda estava viva, iluminada pelas luzes de mercúrio e animada pelo
frenesi dos jogadores de volei. A serelepe brisa marítima volta e meia jogava camadas do cabelo da
Amélia no meu rosto, me fazendo sentir a o seu agradável aroma. Peguei a garrafa para reabastecer
os copos e observei que esta apresentava um desenho cheio de cores e detalhes, como que inspirados
em pedras preciosas como o rubi, a safira e a esmeralda. Ao comentar com a Amélia a minha
observação, ela disse que fazia sentido.
“O Royal Salute foi lançado em 1953, como um tributo a coroação da Rainha Elizabeth II. Na
ocasião, a coroa da rainha foi incrustada com rubis, safiras e esmeraldas. A tua observação foi
fantástica Toni. Meu avô, o Samuel Weisenberg, foi um dos convidados presentes à coroação”,
revelou ela.
“Como é que você sabe dessas coisas, danadinha”? questionei removendo mais alguns fios de
seus cabelos que o vento arremessara na minha boca.
“Eu sei, né querido, eu sei,”respondeu ela com um sorriso moleque.
Então não deu pra esperar mais. Abracei Amélia e beijei na boca com volúpia, sendo conrrespondido
ainda mais intensamente. Acariciando os seus cabelos, comecei a beijá-la por todo o pescoço o que
fez com ela se contorcesse e emitisse leves gemidos de prazer.
“De hoje não passa”, pensei com coração batendo forte.
Então, levando-o pela mão, fomos para o sofá da sala do hotel e, prostando-a no meu colo continuei
a beijá-la, levantando parcialmente a sua camiseta, deixando a mostra os seus alvos e erguidos seios.
Subitamente Amélia saiu do meu colo em um pulo e começou a andar de um lado para o outro
nervosamente.
“ O que houve Amélia, o que que é que há de errado?”pereguntei um tanto atônito.
“Não é com você Toni, é comigo”respondeu ela tentando conter um choro que se deliniava.
“Então me explica, não estou entendendo nada Amélia.
“Toni, disse ela se ajoelhando à beira do sofá, segurando as minhas duas mãos e me olhando
intensamente com seus imensos olhos azuis. “Eu estou de casamento marcado para daqui há um mês
e não posso estar fazendo isso,” desabafou.
“Você vai casar Amélia, mas que tragédia!”Respondi, me levantando, sem pensar no teor das
minhas palavras.
Sem deixar que ela retrucasse continuei: “Uma mulher como você não pode se casar Amélia, você
vai deixar vários homens viúvos, principalmente eu”, disse freneticamente.
Alternando soluços de choro com risos, ela me disse; - Só você mesmo Toni. Você nunca perde esse
teu tão cativante senso de humor. É essa uma das muitas razões que me fizeram te admirar e gostar
de você, mais até do que eu deveria.”
Sem ter coragem de dizer que eu estava falando a sério, resolvi deixar que ela continuasse a pensar
que eu estava brincando.
“Depois Amélia, qual a razão desse choro? Você acabou de ganhar trinta e três mil dólares.
Trinta e três mil dólares em cinco horas de trabalho! Isso é o equivalente a seis mil e duzentos
dólares a hora. Garanto que nem o teu pai ou o teu avô Samuel ganharam tanto dinheiro assim em
tão pouco tempo”, ressaltei com uma gargalhada forçada.
Amélia então passou a rir e a chorar compulsivamente, e sentando-se no sofá, escondeu o rosto com
as mãos e abaixou a cabeça, fazendo com que os longos e aromáticos cabelos ruivos se espalhassem
pelo tapete persa plantado de baixo da mesinha de mármore. Passou, então a chorar, somente a
chorar, como quem precisasse expurgar uma crônica dor da alma.
Levantando a sua cabeça a abracei, dessa vez fraternalmente e percebi que ela entendeu o gesto pois
me abraçou da mesma forma.
“ Desabafa um pouco comigo Amélia. Me diz, é isso que você quer mesmo, casar-se daqui há
um mês?”
“Não sei se é isso o que eu quero Toni, mas sei que é isso que o melhor para mim. Não só para
mim quanto para êle – o meu noivo - e também para as nossas famílias e para os nossos negócios. Eu
sei que é difícil ou até impossível para você entender essas coisas Toni, mas são coisas do mundo em
que eu vivo”, ponderou.
Então levantando-se , Amélia se recompos rapidamente e- após enxugar as lágrimas com um lenço
de linho artisticamnete bordado que tirou da bolsa, gentilmente pediu para que eu a deixasse só.
“Está bom minha querida”, disse eu atentendo ao seu pedido. Ela então me acompanhou até a
porta da suite, me ajudando a carregar a caixa com os”Royal Salutes” até o corredor e nos abraçamos
fraternalmente mais uma vez.
“Au revoir ma belle, bonne chance”, disse eu me despedindo.
“Adieu mon charmant, bonne chance aussi”, respondeu melancolicamente Amélia.
Então, a porta da suite se fechou, esvaziando o cenário , deixando à mostra somente o número 1008.
Depois desse episódio eu nunca mais a vi e nem tampouco soube dela.

Abri a porta do conjugado e me deparei com a Manuela sentada, de “Maria Chiquinha” e óculos,
estudando inglês. Corri para abraçá-la como se não a visse há dias. “Esse sim, é o grande amor da
minha vida,”pensei ao apertá-la contra o meu peito , beijando-a várias vezes na cabeça, com uma
convicção que jamais havia tido em toda a minha vida.
Cheguei em Downtown meia hora mais cedo e antes de me dirigir às dependências da
“Aurelio’s Eletronics”, dei uma volta pelo quarterão para estar seguro que a temida van da imigração
não estava por lá. Entrei entrão na loja e me deparei com Aurélio tomando café com o mesmo
grupinho do dia anterior. Dei um bom dia geral, mas somente fui correspondido pelo portugues.
“Alguma recomendação especial para hoje, seu Aurélio?” indaguei.
“ Não Toni, continue a fazer o mesmo que fez ontem, seguindo as instruções do Amaro”.
Como ainda faltavam quinze minutos para o começo do expediente resolvi atravessar a rua para
tomar um café no “El Cubanito”, uma espécie de ponto de encontro de RP’s que trabalhavam nas
várias lojas do centro de Miami. Amaro – que também acabara de voltar de sua ronda de
reconhecimento da área – veio em minha direção e pediu o mesmo que eu pedi, “un pan con
mantequilla e un cortadito”( café com leite do tipo média).
“Amaro”, disse eu quebrando o silêncio de alguns minutos. – Tenho a impressão que esse
pessoal da loja não foi com a minha cara”.
“Esse pessoal nunca gostou de nenhum novato, principalmente dos que despertam a atenção do
Aurélio. São tudo uma cambada de puxa-sacos”, respondeu com um certo mau humor.
“Mas nós somos todos brasileiros, Amaro. Vivendo em outro país. Onde está a tão falada
solidariedade e simpatia da nossa raça?”
“Aqui é que não está meu amigo. Não existe nenhuma união entre os brasileiros daqui. É um
querendo ferrar o outro. É melhor você ir aprendendo isso rápido, porque do contrário vai se ferrar
também”, disse o madureirense com o olhar fixo no copo de café.
Caminhamos em silêncio para a nossa área de ação e começamos a trabalhar. Aquela conversa tinha
me deixado de baixo astral, mas resolvi não fazer especulações e me concentrei no trabalho. Amaro
estava trabalhando mais agressivamente do que no dia anterior e eu fiz o mesmo, o que resultou com
que ficássemos pau-a-pau no número de clientes puxados para dentro da loja.
A semana decorreu dentro da mesma rotina, sendo que a única novidade foi o fato de eu ter sido
RP número um em produção, batendo o Amaro por pouco. Chegou o dia do pagamento e Aurélio
então resolveu reunir todos os RP’s e vendedores nos fundos da loja e, antes de distribuir os cheques
de pagamento, fez questão de ressaltar a minha proeza, enfatizando que “um novato tinha sido o
número um da semana”. Pediu então aplausos ao me entregar um bonus de cinquenta dólares,
juntamente com os meus outros trezentos.Recebi aplausos fracos e desordenados e olhares com
semblantes nada amigáveis.

Antes de chegar ao conjugado, passei em uma loja na Abott Avenue e comprei um vestido
indiano que a Manuela tinha gostado,mas não quis comprar para economizar. Usei os cinquenta
dólares do bonus e com o troco comprei uma garrafa de 1.5 litro de “Woodbridge Merlot.”
“Isso é pra você, minha linda”, dissse pondo a bolsa com o vestido em suas mãos.
“Toni, você não precisava ter comprado nada agora. Nós temos outras prioridades.”
“Você gostou pelo menos? Poxa vida”, disse eu simulando um desapontamento com a falta de
entusiasmo dela
“Claro que gostei, meu amor, adorei, obrigada. Obrigada mesmo,” enfatisou ela com um sorriso
de satisfação.
“Obrigado não. Isso vai ter um preço!
” Está bom Toni, qual é o preço?”perguntou já sabendo mais ou menos o que eu queria.
“Quero que você durma pelada comigo hoje.
“Mas pelada eu não consigo dormir direito. Eu durmo só de calcinha, tá bom?
“Mas eu não quero ter que te acordar de madrugada quando tirar a tua calcinha, Manuela.
“ Nao tem problema, tira bem devagarzinho e me pega de surpresa, como você sempre faz,”
concluiu ela com um olhar de menina sem vergonha.
Comemos ensopado de batata com carne moída, feijão de lata e arroz cubano – o que constituía
no meu segundo prato favorito, já que o número um é bacalhoada – e esvaziamos a garrafa de
Woodbridge. Em seguida fomos direto para a cama e dormimos a noite inteira, ela só de calcinha e
eu pelado, enroscados debaixo do lençol, sem que nada tivesse acontecido de madrugada ou em
nenhum momento.
Eu e o Amaro estávamos plantados em frente a Aurélio’s Eletronics, esperando pelos primeiros
clientes da manhã, quando se aproximou de nós uma mulher alta, de cabelos compridos e
ressecados, tingidos de um louro berrante. Notei que exibia seios enormes e as roupas colantes
faziam destacar o robusto corpo e ela aparentava uns quarenta e tantos anos de idade.
“E aí, Amaro, tudo bem.Quem é o novato?”Indagou ela me olhando fixamente.
“Oi Sandra, tudo legal”, respondeu Amaro. “Esse é o Toni. Começou a trabalhar com a gente na
semana passada e já é um puta RP”
“ Muito prazer, dona Sandra”,disse eu estendendo a mão para cumprimentá-la.
“Dona Sandra não, querido, Sandy”, respondeu com um sorriso artificial, mostrando os dentes
manchados de baton vermelho.”Bem vindo a corja, boa sorte,” disse se afastando com um
requebrado me me pareceu forçado.
“Quem é essa, Amaro? “ perguntei intrigado com a aparição
“Essa é a Sandra Parruda, RP da Valentino’s.”
“Sandra Parruda! Que nome e que figura exóticos,” ressaltei.
“É, mais ela gosta de ser chamada de Sandy. Fala ingles igual a índio mas tem mania de querer
ser americana,”ironizou. “Vou te contar uma estória mas não diz pra ninguém que foi eu quem te
contou.”
“Tá bom pode contar, sem problemas, eu não vou dizer nada.”
“ A Sandra Parruda é muito conhecida aqui em Downtown. Ela foi casada com um velho cubano
muito rico, naturalizado americano que deu cidadania a ela antes de morrer há uns cinco anos atrás,
deixando também toda sua fortuna para ela”.
“Mas porque então ela é RP de loja?” Indaguei surpreso.
“Porque ela gosta das ruas, não tem nada mais pra fazer. Ela mora numa tremenda cobertura na
Biscayne Boulevard, de frente para a baía e tem um Jaguar novinho e um Rolls Royce usado na
garagem. O pessoal diz por aí que – apesar do certificado de óbito do velho atestar que ele morreu de
insuficiência cardíaca, foi ela quem matou o marido”
“ É mesmo, mas ela não deveria estar na cadeia se isso fosse verdade?”
“Pois é, mas o negócio é que nunca ninguém conseguiu provar nada contra ela. Houve até uma
investigação, pois a família do velho levantou a hipótese de ele ter sido envenenado aos poucos por
ela, mas o caso foi arquivado por falta de provas”, revelou.
“ Essa é uma estória e tanto”, enfatizei.
“É, mais tem mais”continuou ele. – Todo mundo também acha que ela é cagoete da imigração e
já entregou muita gente, principalmente brasileiros”.
“Mas porque ela faria isso, Amaro. O que ela teria a ganhar?”
“Prestígio, reconhecimento das autorizades americanas, sei lá. Ela detesta o Brasil e tem mania
de americana, como eu te disse- e acho que carrega uma raiva encroada contra a própria raça.
“ Difícil de acreditar”, disse eu atônito.
“Eu também achei isso no começo, mas depois comecei a achar que pode ser verdade sim,
basedo em coisas que andaram acontecendo por aí.”
“Que tipo de coisa?”
“ Por exemplo, tinha um cara aí, um mineiro boa pinta que andava comendo ela . O cara a
dispensou num dia e no dia seguinte foi pego pela imigração trabalhando numa loja no Bayside”
“É mesmo?”
“ É, todo mundo sabe disso por aqui. Também teve um outro caso de uma menina de Goiás que
discutiu com ela porque ela andava dando em cima do namorado dela – um cubano gerente de
restaurante - e dias depois ela também foi presa e deportada”revelou.
“Parece então que a mulher pode ser mesmo perigosa”, concordei.
“É, pode ser que sim, cara. Ela também é uma tremenda fudedeira e ela é que gosta de escolher
quem vai comer, como ela própria diz. Não gosta que dêem em cima dela. Toma cuidado. Achei que
ela te olhou muito estranho, apesar dela não gostar muito de homens brasileiros.”
“Tá maluco cara, comigo não violão! Eu já tenho o que preciso”, lembrei.
“Tudo bem, só tou te avisando. Outra coisa, nunca se refira a ela como Sandra Parruda, se não tu
vai ver a mulher virar o capeta!”

Cheguei em casa exausto como de costume, após um outro dia bastante produtivo. O Aurélio me
havia dito no final do expediente que por causa da minha performance, o nível de produção da loja
havia subido uns trinta por cento pois os novos parâmetros naturalmente estabelecidos por mim,
haviam sacudido a galera e ninguém queria ficar por baixo. Apesar da boa performance não se
refletir no meu pagamento, era bom saber que eu estava sendo fator de progresso.
Comi o resto do ensopado do dia anterior e Manuela tomou uma sopa de legumes. Após o jantar e
o banho, fomos para o sofá e ela sentou no meu colo, com o livro de inglês nas mãos.
- O que é que você aprendeu hoje, querida?”perguntei dando beijinhos em sua nuca
- I am very happy to be here with you my love”respondeu ela com uma desenvoltura que me
surpreendeu.
“Que bonito meu amor, você está aprendendo rápido!”
“Toni, dentro de quanto tempo você acha que eu vou estar falando inglês”, perguntou
demonstrando uma certa ansiedade.
“ Mais ou menos um ano, Manuela, se você se dedicar como deve.
“Um ano! Isso tudo?”
“No mínimo, querida, no mínimo,”respondi pensando que na verdade eu gostaria mesmo era de
poder estar de volta ao Brasil antes disso”
“Manuela”, disse eu intensificando os beijos na nuca e acariciando a sua barriga. “Vamos agora
pra cama fazer o que deveríamos ter feito ontem mas não fizemos?
“ Vamos, deixa só eu escovar os dentes,”concordou com um sorriso.
Então nos deitamos e fizemos. Assim que deitamos e também no meio da noite, sem que eu
precisase te tido o trabalho der tirar a sua calcinha enquanto ela dormia, já que decidira dormir
completamente nua comigo.

Dei a minha costumeira volta matutina pelos quateirões adjacentes à minha loja, para ter certeza
que a barra estava limpa e quando voltei me deparei com a Sandra Parruda parada na esquina da
Fourth com a Flagler.
“ Oi Sandra, tudo bem?” a saudei passando de passagem.
“ Que pressa é essa, bonitão? Já te disse que é Sandy”.
“ Desculpe Sandy, estou meio atrasado. A gente se vê por aí, tenha um bom dia, disse eu
formalmente.
“ Depois eu passo por lá pra a gente tomar um café,” respondeu ela com o mesmo sorriso,
mostrando os da frentes manchado de baton.
“Tá bom Sandy”, respondi quase que resmungando.
Eu estava sentado, descansando em uma das mesa do “El Cubanito,” usando do pouco tempo
que ainda me restava dos meus 30 minutos de almoço, quando senti baterem as minhas costas. Olhei
pra trás e vi que era a Sandra Parruda.
“ Oi Sandy, já almoçou” , perguntei por perguntar.
“Não, vou almoçar agora. Quer me acompanhar, eu pago o teu almoço.”
“ Desculpe Sandy, seria um prazer, mas eu já almocei e tenho que voltar para o batente agora.
“ Está bem, então fico te devendo esse almoço, bonitão, dise ela em voz alta, despertando olhares
e risinhos de escárnio em outros RP’s que ainda estavam no restaurante, o que me deixou meio
embaraçado.
“Puta que o pariu, só me faltava essa agora”, pensei sem nada dizer.
Percebendo que eu estava muito cansado naquela tarde, Aurélio resolveu me deixar sair duas
horas mais cedo do que costume.
“Vai descansar Tony, não se preocupe que eu não vou te descontar nada. Te vejo amanhã as
nove.
“Obrigado Seu Aurélio, vou dormir mais cedo hoje. Amanhã vou estar novinho em folha”,
retruquei.
Ao atravesssar a Fourth Street a caminho do ponto do ônibus para Miami Beach, avistei
novamente a Sandra Parruda. Ao me ver ela se encostou na coluna de uma das lojas, segurando a
testa com uma das mãos, como se algo estivesse errado.
“O que houve Sandy, você está legal? ”perguntei meio preocupado
“Não estou me sentindo bem Toni, você pode chamar um taxi para mim? Eu moro somente há
cinco minutos daqui.
“Claro Sandy, claro!”concordei, deveras preocupado com ela.
Acenei para um taxi que passava e quando o automóvel encostou na calçada, Sandra Parruda me
pareceu mostrar sinais de piora, pois deu uma cambaleda da antes de entrar no veículo.
“Sandy, você quer que eu te acompanhe até a entrada do teu edifício?”perguntei levado por um
impulso solidário, me esquecendo naque momento das sérias acusações que ouvira contra ela.
“ Quero sim Toni, se não for nenhum problema pra você”respondeu ela ainda com a mão
apoiando a testa.
“ Problema nenhum Sandy, o mais importante é ter certeza que você vai estar bem.
O taxi seguiu caminho através do insuportável trânsito de final de tarde de Miami e levou meia hora
para fazer um percurso que normalmente tomaria cinco minutos. Durante todo o trajeto, Sandra
permaneceu com a cabeça baixa, apoiando a testa com a mão direita. Pensei em chamar uma
ambulância, caso ela não melhorasse, mais preferi esperar e não dizer nada para não alarmá-la.
O taxi parou na portaria de um luxuoso edifício na Biscayne Bay e tive que ajudá-la a sair do
veículo.
“ Driver, take this getleman to Miami Beach, here’s is the money”disse ela com um inglês
quebrado, estendendo uma nota de 50 dólares para o motorista.
Na verdade o que eu queria mesmo era seguir viagem dalí e deixar com que ela se virasse sozinha,
mas não sei porque com que cargas d’água, tive que ter um outro ataque de solidariedade naquele
momento.
“Não Sandy, é melhor ter certeza que você vai estar bem,” enfatizei, devolvendo o dinheiro, o
que encolerizou o motorista, fazendo êle sair dali cantando pneu.
“ Tem alguém na tua casa que possa te a ajudar? “
“Não, eu moro sozinha, mas posso ligar para uma prima que eu tenho em North Miami e estou
certa de que ela vem ficar comigo.”
“Se você quiser eu posso esperar até ela chegar”, me ofereci, ainda receioso pelo estado dela.
“Quero sim, se você puder Toni. Eu te agradeço.”
Entramos no elevador e subimos até a cobertura. Ao entrarmos me deparei com um enorme e
magistral apartamento, cuja decoração se acentuava pelo preto e o dourado em grande parte de seus
ítens, com movéis me pareciam caríssimos,apesar de não se coadunarem com o eu gosto. O chão da
ampla sala era revestido de madeira corrida negra, coberto por tapetes multi-coloridos em quase toda
a sua extensão. No centro do cômodo, havia um grande e suntuoso viveiro, repleto de periquitos das
mais diversas cores que - assim que sentiram a nossa presença - começaram a piar freneticamente.
Sandra se recostou no sofá de couro preto com detalhes em dourado e pegou o telefone para ligar
para a tal prima. Ninguém atendeu e ela deixou uma mensagem para que retornasse a ligação o mais
rápido possível. Os periquitos seguiam fazendo muito barulho, o que começou a me incomodar.
“Quiet”gritou Sandra, batendo forte no sofá três vezes em seguida, o que fez com que os
pássaros se aquietassem imediatamente. Impressionado com o controle que ela mostrou ter sobre as
aves, perguntei se ela queria que eu fizesse ou buscasse alguma coisa e ela acenou com a cabeça
dizendo que sim.
“ Toni, me faz um favor.Está vendo aquele armário ali do lado direito da cristaleira? Abre a porta
empurrando-a para dentro.”
Abri a porta do armário e me deparei com várias garrafas de uisque e outras bebidas.
“Está vendo essa caixinha de veludo preto na parte de baixo? Pega ela para mim e me traz
também uma garrafa de Johnny Walker Black Label e um dos copos da cristaleira, por favor.”
Botei a garrafa de scotch, o copo que me parecia ser de cristal fino e a caixinha de veludo em cima
da mesinha de granito preto em frente ao sofá . Sandra abriu a caixinha e tirou um saquinho de
dentro dela, derramando o seu conteúdo – uma espécie de pó marron escuro – no copo de cristal. Em
seguida, encheu o copo pela metade com o scotch e usando o longo indicador e a enorme unha
postiça em sua extremidade, misturou o pó com a bebida e tomou tudo de uma talagada só.
“Que pó é esse Sandy?”, perguntei curioso.
“É gengibre moído, querido. Misturado com “Johnny Black”, é o melhor remédio do mundo para
tudo”, disse ela já apresentando sinais de melhora e até esboçando um sorriso.
“ De verdade? Que interessante, nunca ouvi falar disso, parece que te fez melhorar na hora”,
observei.
“Fez sim querido, estou bem melhor”, disse ela , já agora com o seu típico sorriso esticado.
“Então tá bem Sandy, já que você está melhor então eu vou indo, quero ver se durmo mais cedo
hoje, pois ando cançado.”
“ Não, espera mais um pouco, querido, o trânsito agora está terrível”. Deixa eu te mostrar o
apartamento,” insistiu.
“Está bom, mas eu não posso demorar muito”, concordei a contragosto.
Ela me segurou pela mão e começou a andar pelo apartamento, me mostrando inicialmente a enorme
varanda, de frente para a Biscayne Bay, cuja vista era de tirar o fôlego. Eu disfarcei e tirei a mão mas
ela a segurou de nôvo, me trazendo para dentro do apartamento. Ela me fez ver todos os cômodos e
então ficou confirmado que o prêto e o dourado eram parte integrande da decoração da cobertura.
Mas o que me realmente me impressionou foram os adereços do quarto dela. Parecia um desses
cenários das mil e uma noites, com as paredes e o teto revestidos por tecidos de cores berrantes e
cintilantes e a cama de madeira negra era tão grande que daria para abrigar umas dez pessoas.
Almofadas pretas e douradas estavam espalhadas por toda a parte e um gigantesco lustre filigranado
de cristal , pendia cintilante do teto. Na parede do lado da cabeceria da cama, estava plantada uma
imensa bandeira americana, cobrindo metade de sua extensão.
“Muito linda a tua cobertura Sandy, obrigado por te me mostrado, mas agora vou indo nessa”,
disse eu, tirando a mão da mão dela e me dirigindo de volta para a sala.
“Não, espera aí Toni. Toma alguma coisa primeiro, depois você vai. Você acha que eu te faria uma
desfeita dessa. Trazer você na minha casa e deixar você sair sem te servir nada? O que é que você
quer beber, scotch, vodka, conhaque?”insistiu mais uma vez.
“Se você tem conhaque eu tomo um conhaque”, disse eu meio sem jeito.
Ela então botou uma garrafa de Remy Martin na mesa e indo a cosinha voltou com uma bandeija
com queijo Roquefort, castanhas de cajú, e um pacote com torradinhas. Tomando outra talagada do
Johnny Walker, dessa vez sem o gengibre, ele me pediu cinco minutos para “vestir algo mais
confortável.”
Pouco depois ela volta, trajando apenas uma longa camiseta branca , cuja transparência dava
visíveis mostras de que estava despojada de sutiã e usando uma minúscula calcinha preta. Sentou-se
ao meu lado e pousando a mão direita em cima da minha mão esquerda, me olhando com um olhar
meio torpe.
“Sabe que você é um cara muito gentil e atraente , querido?” disse se aproximando um pouco
mais.
“ Gentil eu até tento ser, Sandy, mas atraente acho que é exagero seu”, respondi numa tentativa
de conter a investida que para mim era iminente.
“Não é exagero não querido, é fato”, reiterou ela, reabastecendo o meu copo com mais conhaque.
Tomei a nova dose de um gole só, contrariando o costume que eu tinha de saborear esse tipo de
bebida a pequenos goles, especialmente quando se tratava de um Remy Martin ou coisa similar. Ela
se aproximou mais ainda e eu me levantei, pedindo para usar o banheiro. Quando voltei ela estava de
pé , mostrando uma alta dose de ansiedade.
“Vem cá querido”, disse ela me segurando fortemente pelos pulsos. Vou ser sincera com você.
Eu sou do povo de Aruanda e tenho uma Pomba Gira comigo. Ela hoje está de frente e estou cheia
de tesão. Quero fazer amor com você, quero fuder, fuder muito! Vem agora, nesse momento, pra
minha cama comigo ”.
Ao dizer isso, ela puxou a camiseta por cima da cabeça, expondo o robusto e bem cuidado corpo
semi-nu, exibindo os gigantescos seios, com suas veias ligeramentes esverdeadas e os seus bicos
protuberantes, rodeados por esparsos e negros pelos.
“Não, calma aí Sandra, não foi pra isso que eu vim aqui. Me desculpe, mas tenho que ir embora
agora”.
“Você está me rejeitando?”, perguntou, alterando rispidamente o tom da voz.
“Não, Dona Sandra, não estou rejeitando ninguém. Simplesmente já tenho a mulher que eu quero
e não ando por aí buscando nenhuma aventura”.
“Dona Sandra é o caralho! Tá afim de me sacanear, seu babaca”, berrou ela com o dedo na
minha cara, fazendo com que os periquitos voltassem a piar freneticamente.
“Quer saber de uma coisa?”Disse eu perdendo as estribeiras. “Vai a merda, Sandra Parruda, vê se
te enxerga”.
“Some daqui, seu filho da puta, some daqui agora!”, vociferou ela espumando pela boca.
Saí de pronto pela porta da sala e desci rapidamente os onze andares do prédio, sem me atrever a
esperar pelo elevador e , durante a minha descida, pude ouvir nitidamente o barulho de garrafas
quebradas, provavelmente arremessadas contra as paredas da cobertura. Saí apressadamente pelo
patamar de pedras que cortava o gramado, levando à entrada do edifício e ao passar pelo porteiro
diminuí o passso, receioso que êle notasse que algo estava errado. Ao alcançar as ruas apertei o
passo novamente e ,quase correndo, segui para o ponto do ônibus que me levaria a Miami Beach.
Sentei ofegante no banco de madeira debaixo do abrigo da parada de coletivos e, de repente,
comecei a sentir uma queimação no peito que , em questão de segundos, se tornou quase que
insuportável.
“Ai meu Deus, acho que estou tendo um enfarto.So me faltava essa agora, morrer aqui no meio
da rua, longe de tudo e de todos,”pensei apavorado.
Então a queimação foi descendo peito abaixo, passando pelo estômago e pelo baixo abdómen e se
instalou nas minhas genitálias, provocando uma ereção tão forte como a qual eu nunca havia tido em
tôda a minha vida.
“Que diabo é isso. O que será que está acontecendo comigo?” pensei ainda mais apavorado.
Resolvi então acenar para um taxi que passava na hora pelo ponto do ônibus e pedi ao motorista que
se dirigisse a Miami Beach, mesmo sabendo que me custaria uns vinte e cinco dólares, ao invés do
costumeiro um dólar,o valor da tarifa do ônibus.
Enquanto o táxi seguia pelas engarrafadas ruas de Miami, a queimaçào nas genitálias
aumentava, fazendo com que a ereção se intensificasse gradativamente, me dando a impressão que o
meu pênis poderia explodir a qualquer momento.
“O que será isso?” me perguntei sem entender nada. “Tesão não pode ser. Claro que não! Tesão
em quem? Não naquela mulher repugnante. Alguma coisa está errada comigo,” especulei temeroso.
O taxi parou em frente ao prédio do conjugado e , pagando a tarifa sem pena, saí as pressas do
veículo e entrei correndo porta adentro. Para a minha ainda maior aflição, Manuela não estava em
casa.
“Que merda, hoje ela tem aula de inglês”lembrei-me desapontado.
Então resolvi entrar no chuveiro e tomar um banho de água fria, na tentativa de amenizar aquele meu
estado de ebulição, o que deu parcialmente certo durante o banho gelado. Fiquei ali por mais ou
menos meia hora, mas assim que saí do chuveiro a rigida condição se intensificou de novo. Me
enxuguei rapidamente, assustado com aquele estado que se abatera sobre mim, quando ouvi a porta
se abrir e Manuela perguntar: “Meu amor você já chegou?”
“Cheguei, sim querida, disse saindo do banheiro enrolado na toalha e quando a tirei vi que Manuela
se espantou com o que presenciou.
“Que é isso Toni, já está assim?”
Sem nada dizer, tirei-lhe a saia e a calcinha e a levando para a cama, enganjamos em relações
sexuais por cinco vêzes em seguida, observando intervalos que me pareceram de menos de um
minuto.
“Que houve com você, Toni. Nunca te vi assim?”perguntou, banhada em suor e espantada com a
minha disposição.
“Desculpe querida, mas não tenho uma explicação para isso”.
“Desculpar o que, o fato de você não ser sempre assim?” brincou ela, com ares de quem havia
gostado, apesar de no começo haver reclamado da “excessiva rigidez e da incomum magnitude”.
Então já mais relaxado e despojado da alarmante condição – apesar de também ensopado em
suor, contei a Manuela tudo o que havia se passado, em cada detalhe, com relação ao episódio
envolvendo a Sandra Parruda, incluindo a conversa incial com o Amaro sobre ela. Ao ouvir a estória
ela expressou preocupação, mas em momento algum me criticou ou esboçou qualquer resquício de
dúvidas com relação a veracidade da minha narrativa.
“Toni, então vai ver que é por isso que você ficou nesse estado, ela deve ter colocado algum tipo
de afrodisíaco poderoso na tua bebida”, sugeriu.
“Não, acho que não tem nada a ver. Eu estive por perto o tempo todo e não notei nenhum
movimento estranho por parte dela,” respondi sem muita convicção.
“Mas se essa mulher é assim tão influente e perigosa como sugeriu o Amaro, isso pode ser um
problema. O que é que você vai fazer agora?’
“Não estou bem certo, mas acho que amanhã, antes do expediente, vou procurá-la e tentar pedir
desculpas. Afinal, ela não me pareceu tão má pessoa assim, nos primeiros contatos que tivemos.”
“Você é quem sabe, pode ser que seja uma boa idéia, mas vai com muita diplomacia, para evitar
um possível escândalo em público.”
“Não, pode deixar que eu sou bom nessas coisas, meu amor”, disse eu tranquilizando-a.
No dia seguinte cheguei mas cêdo e fiquei observando à distância a movimentação na porta da
Valentino’s, na esperança de poder avistar a Sandra e de uma vez por todas tentar me desculpar e
amenizar todo aquele mal estar. Fiquei alí por mais de vinte minutos e nada dela aparecer. Então já
atrasado, resolvir entrar na loja e perguntar a um funcionário por ela.
“A Sandy não vem trabalhar hoje, está doente,” respondeu o balconista sem se importar muito
com a minha presença.
Então caminhei às pressas na direção da Aurélio’s, onde cheguei quase quinze minutos atrasado. Ao
entrar na loja dei de cara com o português que – olhando para o relógio – fez questão de ressaltar o
meu atraso. Me desculpei, botando a culpa no trânsito e me dirigi para a área de ataque, em frente a
loja, onde o Amaro já estava em ação. Iniciei então a minha rotineira tarefa, sem mostar, entretanto
nada que lembrasse meu costumeiro entusiasmo, ficando nesse estado de semi-apatia durante todo o
expediente, o que se refletiu em uma sofrível performance.
No final do expediente o Aurélio me chamou para conversar e quis saber o que havia de errado
comigo, pois pela primeira vez desde que eu começara a trabalhar na loja, eu havia sido o lanterna
do dia em termos de produção.
“Acho que é porque eu não estou bem do estômago hoje, seu Aurélio, mas garanto que amanhã
vou trabalhar bem melhor”, prometi usando da improvisada desculpa.
“Ok, Toni, mas não me desaponte, todos sabem que tenho muita fé na tua capacidade; até
amanhã então”, pressionou sutilmente o lusitano.
Já no ônibus, de volta a Miami Beach, comecei a calcular mentalmente o meu tempo de trabalho
na Aurélio’s e me dei conta que já haviam três semanas que trabalhava direto, sem nenhum dia de
folga. Admiti então que a carga horária em si não me incomodava e o dinheiro, apesar de não ser
nem de longe o que eu estava acostumado a ganhar no Brasil nos meus tempos áureos, dava para
pagar as contas e por conseguinte seguir ficando no país e tentar buscar novas e reais perspectivas.
O que realmente me incomodava era o ambiente de trabalho – no meio daquela brasileirada
desunida, e a tensão que eu tinha que viver todos os dias, em função do mêdo de ser abordado pela
imigração.
“Mas que paradoxo”, pensei hesitante por um momento. “Imigrar para outro país com o único e
exclusivo intuito de melhorar de vida financeiramente e – por comparação – concluir que na verdade
piorei.”
“Mas essa é somente uma situação, passageira”pensei tentando ponderar com um súbito
positivismo. “Logo, logo tudo vai melhorar.”
O ônibus freiou subitamente, parando no meio da rua. Desviei, então o olhar do “ O amor nos
Tempos do Cólera”, obra de arte literária irretocável de Garcia Marquez que estava relendo pela
terceira vez, e me deparei com vários carros de polícia com suas reluzentes e giratórias luzes azuis e
vermelhas, bloqueando toda a extensão da única via de acesso à Miami Beach. Pressionei o rosto
contra a janela de vidro do coletivo e pude registrar nitidamente a cena que se desenrolava do lado
de fora.
A primeira vista vislumbrei uma fila de homens algemados sendo conduzidos para um pequeno
ônibus que constatei – pelas grades colocadas nas janelas – ser um desses veículos de transportes de
prisioneiros. Fixando mais intensamente o olhar na cena, notei – atônito – que o ônibus exibia a
famigerada inscrição que já tinha se tornado bastante conhecida para mim:
“United States Department of Justice. Inmigration and Naturalization Service.”
“Então é isso”constatei aturdido. “A polícia está dando cobertura a imigração para prender esse
grupo de pobre coitados.”
Notei então que toda a movimentação da cena se dava em frente a um hotel, provavelmente onde os
filhos da puta tinham dado a batida. Fiquei observando então aqueles miseráveis, um por um -
entrando cabisbaixos no ônibus, conduzidos por agentes de imigração vestidos com seus coletes à
caráter, assistidos à curta distância pelos policias.Fui então possuído por um intenso estado de
cólera. Naquele momento o que eu mais quis foi poder estar de posse de um rifle automático e da
coragem para sair atirando em toda aquela raça de repressores desumanos, mas como não me era
possível, fui dominado de imediato por uma profunda sensação de impotência. Então, ainda de olho
na cena, pude observar, que o último prisioneiro da fila, um sujeito baixo e franzino, sem camisa e
exibindo o que me pareceu uma protuberante hérnia umbilical, tentou resistir a entrada no ônibus.
Pressionado bruscamente por um alto e troncudo agente de imigração a entrar no veículo, o homem,
inesperadamente, desferiu uma fortíssima cabeçada no peito do agente projetando-o no solo. Em
seguida, apesar das mãos algemadas para trás, ele correu em disparada em direção ao canal marginal
à via, como quem almejasse se atirar na água, aos gritos de “hijos de puta, hijos de puta.” Então
um dos policias liberou da coleira um robusto cão pastor alemão que – com a velocidade de um raio,
interceptou a trajetória do desesperado homem, derrubando-o no chão com um certeiro bote. Após
derrubá-lo o cão passou a ladrar ferozmente- com os afiados e ameaçadores dentes a mostra- para o
homem prostado no solo, sem entretanto atacá-lo. Os policiais e os agentes de imigração cercaram
então o pobre coitado e eu pude ver nitidamente, apesar da aglomeração em torno dele, golpes de
cacetetes e vários chutes desferidos,sendo o agente que levou a cabeçada, o principal protagonista
das agressões. Saciados do desejo de agredir, eles trataram de desfazer a cena rapidamente, atirando
com violencia o pobre coitado dentro do ônibus e dando passagem imediata aos veículos retidos em
função do episódio.
Apesar de ter combinado com a Manuela que não beberíamos em dias de semana, com o
objetivo de controlar o orçamento, passei numa “liquor store” assim que desci do coletivo e comprei
uma garrafinha de “Early Times” um dos mais corriqueiros Bourbons do mercado, o que me custou
apenas 2.50 dólares. Apesar da proibição em beber nas ruas – o que pode dar cadeia no estado da
Flórida se o transgresor for apanhado, esvaziei o pequeno recipiente em três goles, antes de dobrar a
esquina, jogando o flagrante em uma lata de lixo e decidi voltar para comprar outra. Ao passar por
uma loja de conveniências, comprei também um pacoteda cerveja “Milwakee Best”, uma das mais
baratas do país, cuja qualidade era até bastante razoável , em se considerando o preço. Estava então
de posse do suprimento que precisava para aquela noite.
Cheguei de ressaca na Aurélio’s no dia seguinte e sem a menor vontade de trabalhar, apesar de
saber que não tinha outra alternativa a não ser encarar mais um longa e cansativa jornada. E o pior é
que justo naquele dia, o Amaro resolvera faltar ao trabalho e eu não tinha ninguém com que
conversar.
Entrei no banheiro e lavei o rosto por alguns minutos , na esperança da água fria melhorar um pouco
a ressaca. Passei no refeitório e filei cum copo de café recém coado e – respirando fundo – caminhei
pela loja em direção a área de ação, quando então me deparei com três homens entrando pela porta
da frente da loja, exibindo os mesmos coletes usados pelos agentes de imigração do episódio do dia
anterior. Olhei então em direção à porta lateral da loja e avistei outros três homens, trajando a
mesma indumentária. Fiquei estarrecido na hora, pois percebi que se tratava de uma incursão da
imigração. Apesar de ter sido dominado por um intenso estado de terror, ainda tive reflexo
suficiente para jogar o meu crachá na lata do lixo, junto com o copo de café , decidido a tentar me
fazer passar por um cliente.Sem fazer muito alarde, quatro dos seis agentes de imigração abordaram
os funcionários da loja, exigindo ver documentação, enquanto os outros dois bloquearam a duas
únicas vias de entrada e saída da loja.
“Estou perdido, e agora meu Deus, me ajuda eu não posso ser preso,tenho que conseguir sair
daqui”supliquei mentalmente ao Criador.
Então o Pedro Paulo, o corintiano chefe do almoxarifado, se aproximou me olhando fixamente nos
olhos, como se quisesse me transmitir uma mensagem telepática, me colocando nas mãos uma bolsa
de papel com o logotipo da Aurélios Eletronics e dizendo em voz alta: “Aqui está senhor, espero
que o seu filho goste. O seu recibo está dentro da bolsa.”
Em seguida ele balbuciou, quase que inaudivamente as palavras: “Age com calma, mas sai daqui
agora.”
Entendendo claramente a mensagem do paulista, caminhei a passos lentos em direção a porta lateral
da loja, tentando a todo custo disfarçar o pavor que se apossara de mim. O agente de imigração
plantado na porta se dirigiu a mim em um português perfeito, indagando: “O senhor é residente ou
visitante no país?”
“Visitante”, respondi sem rodeios.
“O seu passaporte, por favor”, disse ele com um certo olhar que me pareceu ser de desconfiança.
Tentando camuflar a tremedeira com movimentos breves e rápidos das mãos, entreguei a êle o meu
passaporte fechado, pois não quis correr o risco de folhear as suas páginas e revelar que estava
tremendo de pavor. O agente então me fitou nos olhos por alguns segundos e folheou lentamente as
páginas do passaporte, parando na que estava estampado o meu visto de jornalista.
“O senhor trabalha com a imprensa falada ou escrita”, indagou ainda com o olhar inquisitivo.
“Imprensa escrita”, respondi, também lhe fitando nos olhos.
“Onde o senhor está hospedado?”
“No Paradise Hotel, em Miami Beach.”
Nesse momento então o meu estado de pavor atingiu o seu ponto culminante, pois se ele me pedisse
provas de que eu estava hospedado no tal hotel, eu não tinha nenhuma e tampouco eu poderia ter
revelado o meu verdadeiro endereço, pois isso com certeza daria margens a um questionamento mais
intenso o que fatalmente implicaria na descoberta do meu status como imigrante indevido no país.
“Necessito ver o recibo da sua mercadoria, por favor”.
“Enfiei a mão na bolsa, alcançando o recibo e – com os mesmos movimentos curtos e rápidos,
lhe pus o meu salvo conduto nas mãos.
“Obrigado, senhor. Que tenha uma boa estadia nos Estados Unidos da América,” disse êle
formalmente, me devolvendo o recibo e me dando livre passagem.
Sai dalí tremendo de cima em baixo e, caminhando lentamente, passei ao lado da van da imigração
estacionada na porta da loja, podendo sentir nitidamente a suas lúgubres vibrações. Segui andando
sem olhar para trás, até dobrar a esquina , tomando o primeiro taxi que eu vi passar, ansioso por
desfazer a sinistra cena e sair de lá o mais rápido possível.
Capítulo V: “Meglio essere cornutu che malintesi”( é melhor ser corno
do que mal entendido) ditado milenar italiano de origem
desconhecida.

“Mas claro que isso foi obra da tal da Sandra Parruda Toni, Não tenha nenhuma dúvida sobre
isso”, afirmou Manuela com convicção ao ouvir pasma a minha estória.
“Pode ser, acho que sim, quem mais poderia ter orquestrado tudo isso? Todo mundo sabe que por
trás das batidas da imigração tem sempre um delator. Êles não aparecem só por rotina,” avaliei já
conhecedor do assunto.
“E agora. O que é que você pretende fazer, Toni?
“Não sei. Vou dar uma ligada para o Cidinho pra saber o que êle tem a dizer sobre o assunto.”
“Alô Toninho”, atendeu êle com aquele voz arrastada de sempre. – Como é que tá a parada aí? E
a bela Manuelita, já tá falando inglês?”
Resolvi ir então direto ao assunto sem nenhum prólogo: “Tá tudo bem nada cara. Tenho uma estória
para te contar. O negócio é o seguinte”.
Contei então a estória detalhadamente para o Cidinho, que me ouviu em silêncio até eu chegar na
parte em que fui parar na casa da Sandra Parruda.
“Tu só pode tá brincando, né malandro. Tu fez o que? Foi parar na casa daquela mulher?!”,
Perguntou denotando um grande espanto na voz.
“A mulher estava passando mal e eu só quis ajudar”, expliquei.
“O rapaz, isso foi um golpe que ela te deu, todo mundo conhece as artimanhas daquela jararaca
lá em Downtown, cara. E mesmo se ela tivesse passando mal tu tinha que ter deixado morrer. Aquela
filha da puta não vale nada”, enfatizou.
‘Pois é, cara. Mas agora é tarde, o erro já foi feito”, avaliei.
“Tu comeu ela pelo menos, né?”
“Claro que não, tá maluco cara?”
“Tu tá querendo me dizer que foi lá e dispensou a mulher?”
“Exatamente isso, Cidinho”.
“Aí, olha só o cara,”disse ele afastando a boca do telefone como se estivesse falando com mais
alguém. “Foi parar na casa da Parruda e dispensou a mulher.”
“Tu saiu de lá antes ou depois do uisque com gengibre”, perguntou como se fora conhecedor do
que se passara lá.
“ Depois”, respondi apreensivo.
“Puta que pariu cara. Tu largou a mulher lá cheia de tesão e foi embora?”.
“Como é que tu sabe dessas coisas Cidinho?’perguntei espantado.
“Todo mundo sabe disso, cara. Ela toma esses negócios pra dar tesão toda vez que leva um
macho na casa dela. Esse negócio de remédio é cascata. Tu bebeu alguma coisa lá?”
“Tomei um conhaque que ela me ofereceu”respondi cada vez mais intrigado.
“E tu saiu de lá com o pau tão duro que quase furou as calças, não foi?”
“Isso também é verdade, Cidinho,”concordei boquiaberto.
“ Foi o tal do pó de vulcão que ela botou no teu conhaque. Ela sempre faz isso com os homens
dela, depois de tomar o gengibre com uisque. Essa estória já é velha. ”
“Pó de vulcão, o que é isso?!”
“É isso aí mesmo – polvo de volcán - um preparado que o velho dela tomava para poder
aguentar com aquela cadela no cio. O troço vem lá dos confins de Cuba. Ninguém sabe o que tem na
fórmula, mas quem tomou disse que é fulminante. Aposto que foi a Manuelita que pagou o pato, não
foi?”ironizou êle com aquela risadinha irritante.
Sem responder, contei então o que se passara na loja e ao ouvir a narrativa Cidinho foi taxativo:
“Cara, tu não pode nem pensar em voltar mais lá. Foi tudo armado só pra te ferrar”.
“Pois é rapaz”, continuei. “O pior é que o meu parceiro, o Amaro poderia ter dançado também.
Por sorte êle faltou ao trabalho hoje.”
“Tu tá falando daquele malandro que mora na Pavuna e vem aqui todo verão?”
“E êle mesmo.”
“Aquilo é outro filho da puta, rapaz. Se não veio trabalhar hoje é porque com certeza foi avisado
que nêgo ia dar o bote”, acusou com convicção.
“Tu só pode tá brincando, né Cidinho?” respondi pasmo.
“Brincando porra nenhuma, Toninho. Naquela loja ninhuém vale nada, meu amigo. O único cara
legal lá é o paulista do almoxarifado. O resto não presta. Eu conheço essa turma toda.”
“Pois é Cidinho. Foi o paulista que me salvou a pele”, revelei, contando a boa ação do
corintiano.
“Benza Deus, salve o Corínthians”, louvou Cidinho.
“Salve o Corinthians”,entoei, sentindo, no momento, um grande apreço por todos os paulistas.
Após me perguntar se êles tinham o meu endereço na Aurélios e receber resposta positiva de minha
parte, Cidinho enfatizou a necessidade de nos mudarmos imediatamente para outra moradia..
‘ “Mas agora sem emprego vai ficar complicado Cidinho”.
“Emprego tu arranja outro mole. Tu tem que tratar agora é de proteger a ti e a tua mulher”,
frisou.
Discuti a possibilidade com a Manuela, após desligar o telefone e ela me falou de uma amiga
brasileira que fizera no curso de inglês onde estava estudando a noite numa escola pública de North
Bay Village, uma ilhazinha adjacente a Miami Beach, não muito distante de onde vivia o Cidinho.
Algumas escolas da rede pública de Miami, ofereciam esses cursos gratuítos a estrangeiros com o
intuito de reforçar a supremacia do idioma inglês, independente de seus status imigratórios. O único
problema é que muitas das vêzes os estudantes saiam de lá falando mais espanhol do que o idioma
do Tio Sam, em funcão da grande quantidade de hispânicos frequentando os cursos.
“Essa minha conhecida, a Maria Inêz, vive me dizendo que nós deveríamos morar em North Bay
Village e que vai vagar um dos apartamentos no prédio dela em alguns dias. Ela vive com os pais
em um quarto e sala, de frente para a baia e o prédio tem piscina.Segundo ela, são só setenta e cinco
dólares a mais do que nós pagamos aqui nesse conjugado”.
“Não é por lá lá que o Cidinho mora? ”, indaguei.
“É, só que o Cidinho mora no lado oposto da ilha. Ela vive falando bem do lugar, não custa nada
agente dar uma olhada”, sugeriu Manuela.
Fomos lá no dia seguinte de manhã e à primeira vista não achei ruim o que ví. O prédio, apesar de
um tanto quanto antigo, apresentava linhas arquitetônicas agradáveis ao olhar e fora projetado no
estilo “Courtyard,”com os apartamentos enfileirados em um único andar na parte de cima, dispostos
em um quadrilátero. No andar térreo havia um patio onde ficavam a piscina e as lavanderias. O
imóvel dava para um canal e abrigava uma pequena doca, onde havia um belo barco ancorado.
Conversamos com o síndico, um tal de Rick e constatamos que o barco era dêle. Ele explicou
que não nos seria possível ver o apartamento que iria vagar, pois os inquilinos, uma família de
indianos, não queriam ser incomodados enquanto ainda estivessem lá. Êle nos disse, porém, que o
apartamento onde vivia a família da nova amiga da Manuela apresentava disposição idêntica ao que
queríamos alugar e, caso êles não se incomodassem, poderíamos dar uma olhada lá e ter, então, uma
idéia bem próxima do que seria a nossa nova moradia. Não gostei muito do jeito que a coisa me foi
apresentada mas deixei a minha mulher tomar a frente das negociações, já que ela me parecia tão
entusiasmada com a idéia.
“A Maria Inês já disse que não tem problema,”frisou Manuela. Ela está em casa agora e podemos
ir lá olhar.”
“Então olhem e me digam o que vocês acham que eu cuido do resto”, prometeu o síndico.
Fomos recebidos com extrema cortesia pelos três : a Inês, o seu pai Jonas e a sua mãe Cleide, todos
paulistanos. Apesar de que o relógio cuco da sala dos Di Martinos – sobrenome da família que
revelou ser de origem italiana da área do Bexiga – estar marcando somente 10:30 da manhã, Jonas já
estava tomando uma latinha de ”Bush,” semi-camuflada por um porta-cerveja que carregava com êle
enquanto andava pela sala. Ao notar que eu percebi a façanha, êle resolveu se justificar:
“Hoje é o meu dia de folga. Normalmente passo os meus dias de folga na piscina, lendo e tomando
cerveja. Hoje eu não vou mover uma palha”, frisou êle com um sorriso encolhido, tentando ocultar a
falta de dentes nas laterais da parte superior da bôca.
“Tudo bem, é sempre bom poder relaxar, quando se está de folga. Afinal a gente
merece,”respondi solidário.
“Toma uma aí comigo, está geladinha”.
“Não obrigado, Jonas, ainda está cêdo e nós temos várias coisas para resolver hoje, mas com certeza
ainda vamos beber algumas juntos,”prometi.
Enquanto Manuela conversava entusiasticamente com a ala feminina dos Di Martinos, fazendo
planos com relação a nova moradia, eu fiquei ali a observar o que me pareceu uma simpática e
humilde famíla.
Jonas – quem aparentava uns cinquenta e poucos anos, era alto e branco e tentava disfarçar a parcial
calvície, pentiando o cabelo todo para frente. Tinha jeitos e trejeitos de um cara esperto e vivido e
pensei, no momento, que poderia vir a ser um agradável companheiro de copo. Cleide, a mãe da
Inês, chamada carinhosamente pela filha de “a minha gordinha”, parecia ser um desses adultos com
eterno espírito de criança. Ela ria de tudo o que era dito, arregalando os olhos e sacudindo
simultaneamente a cabeça.
Maria Inês, talvez um pouco mais jovem que a Manuela, era uma menina vistosa que se destacava
pelas finas maneiras, os compridos cabelos castanhos e pelos olhos azuis, da mesma tonalidade e
formato dos do pai.
Deixei a casa dos Di Martinos até um pouco entusiasmado com a idéia da mudança, mas em
nada se comparando com o entusiasmo da Manuela, que parecia estar explodindo de alegria.
Acertamos, então, com o síndico o preço final do aluguel e o dia da mudança, que aconteceria dentro
de cinco dias.
“Vou deixar o apartamento em perfeita condições pra vocês”, garantiu Rick.
Chegamos em casa animados com o plano da mudança, mas lá no fundo a idéia de ter que procurar
outro emprego me preocupava, pois eu definitivamente resolvera não voltar mais na Aurélio’s, já
que não queria correr nenhum risco. Eu já havia me demitido, comunicando a decisão ao Aurélio
pelo telefone,com a desculpa que iria me mudar para Orlando e autorizei que ele entregasse a
Manuela o que restava do meu último soldo. Para tanto, fomos juntos a Downtown, e fiquei espiando
à distância ela entrar na loja e em seguida sair de lá com o envelope do pagamento nas mãos.
“Toni, porque você não tenta arranjar um emprego nesse jornal brasileiro aí de Miami, aquele
que você trouxe para casa outro dia?” sugeriu Manuela.
“Você está falando do “Florida News”, não é? Já tentei, passei por lá na semana passada mas
êles não precisam de ninguém. Êles já têm um editor que faz tudo e como o jornal vive somente de
matéria fria, não há vaga para repórter.Êles me convidaram a escrever como colaborador, mas como
não há dinheiro nisso, eu não me interessei,”exliquei.
“O que quer dizer matéria fria?”, indagou.
“É matéria não perecível, que não precisa ser publicada logo, ao contrário do que se aplica as
notícias. Por exemplo: se mataram um cara a facadas ontem em Downtown, a notícia tem que sair na
edição de hoje. Ao passo que um pretenso artigo sobre a prostituição velada nos bares de strip tease
de Miami, não teria a mesma urgência em ser publicado. É isso que a gente chama de matéria fria”,
exemplifiquei.
“Humm, mas que homem mais inteligente e charmoso!”Disse ela me desferindo um rápido mas
carinhoso beijinho na boca.
Chegado o dia da mudança, carregamos as nossas coisas em uma van caindo aos pedaços que o
Cidinho usava como depósito ambulante de peças e equipamentos de automóveis. Durante o curto
trajeto, ao expressar a minha preocupação com a situação de desemprego, Cidinho coçou o queixo,
olhou para mim franzindo as sombrancelhas e disse: “Quer ser meu ajudante? Estou precisando de
um ajudante.”
“ Ajudante de quê. Tu tá de sacanagem né Cidinho?”, repliquei.
“Não cara, não é corrida de ganso não. Tô falando sério. Quer se meu ajudante ou não quer?”
“Ajudante de mecânico? Mas eu não entendo nada de mecânica”, revelei.
“Não tem problema, cara. Sou eu quem tem que entender. Eu só preciso do teu trabalho braçal e
da tua capacidade de buscar e entregar carros a clientes, já que tu tem uma “Florida Driver’s
License”. Enquanto isso tu vai aprendendo.”
“Sério mesmo Cidinho?”
“Podes crer Toninho.”
“É pra começar quando? ”, perguntei bastante interessado.
“Assim que tu quiser. Que tal depois de amanhã, quando as tuas coisas já estiverem mais
organizadas no novo AP? Tu pode ir e voltar comigo todo dia, agora que a gente vai morar perto.
“Não vejo porque não, meu amigo. E a questão da grana. Quanto é que tu tem em mente?”
“Não é muito não cara, mas vai dar pro teu gasto. Tudo vai depender da produção”, respondeu
evasivo.
“Então está combinado Cidinho. Vamos dar uma tentada para ver como é que fica”.
“Tá fechado, Toninho,”confirmou êle apertando a minha mão e piscando o olho para a Manuela.
Ele então nos ajudou a colocar as nossas coisas no pé da escadaria que dava acesso ao apartamento
e saiu em seguida, dizendo ter hora marcada com um cliente. Deixamos as coisas alí e fomos até o
apartamento do Rick para pagar o dinheiro do primeiro mês e do depósito, como havíamos
combinado e então pegar as chaves.
“Muito bem,”disse ele tirando do bolso um caderninho de notas e jogando-o sobre a mêsa.”
Vocês me devem 912 dólares”
“912 dólares? Mas isso são quase 240 dólares a mais do que havíamos combinado”, respondi
surpreso, após ter mentalmente efetuado a improvisada conta.
“Vocês estão mudando no meio do mês, e é de praxe que eu cobre os primeiros 45 dias
adiantados mais o depósito. O nosso sistema funciona assim”, disse ele com uma dose de arrogância.
“Olha Rick, independente de qualquer sistema, trato é trato. E não foi isso que combinamos.
Aqui está o que você escreveu, 675 dólares”, retruquei mostrando o cartão de visitas onde ele havia
anotado o montante original.
“ Esses são os números básicos do aluguel. Os outros 15 dias são uma questão de lógica”,
insistiu.
“Rick, isso não está certo e tampouco temos esse dinheiro. As nossas coisas estão no pé da
escada e entregamos o outro apartamento. Então por favor, aja corretamente e nos entregue as
chaves mediante ao pagamento do preço combinado”insisti.
“Então vocês podem ir para um motel ou para um hotel até que decidam o que querem
fazer”sugeriu indiferente a gravidade do problema que ele mesmo estava criando.
“O que? Você só pode estar brincando. Nós não vamos arredar o pé daqui até que você nos
entregue as chaves, respondi me levantando bruscamente.
Nesse momento, Jonas caminhava em frente a janela aberta do apartamento do síndico e notou o
tumulto.
“ Olá Rick, olá Toni e Manuela, bem vindos a nova moradia”, saudou sorrindo.
“Estamos tendo um problema aqui, Jonas”afirmei com o intuito de denunciar a desonestidade so
síndico.
“Deixem o Mr. Di Martino fora disso”, disse Rick alterando a voz.
“Não, espera um pouco pessoal, eu não me incomodaria nem um pouco em mediar o problema,
do que se trata?”Perguntou mostrando abilidade e adentrando ao apartamento do síndico.
Explicamos o problema a Jonas, que ao ouvir ambas as versões, pediu a Rick que reconsiderasse a
decisão, sob a alegação de que “ estava lidando com pessoas distintas”.
Após fazer um prólogo, tentando justificar a atitude picareta, Rick resolveu nos entregar as chaves
pela quantia anteriormente combinada.
“Vou abrir uma excessão em consideração ao pedido do Mr. Di Martino, mas fiquem sabendo que
essa é a unica excessão que farei”, afirmou com a arrogância que já o havia caracterizado.
“ Não vou te dar mais nenhuma chance de me sacanear, seu filho da puta”, pensei ao mesmo
tempo que simulava um sorriso de agradecimento.
Subimos e descemos as escadas por algumas vêzes carregando as nossas coisas, enquanto Jonas
nos observava, tomando cerveja, sentado em uma das mesinhas da piscina. Após por tudo dentro de
casa, demos uma olhada mais detalhada no apartamento e constatamos vários focos de sujeira,
principalmente na cosinha, apesar haver traços de atividade de aspirador de pó em quase todos os
cômodos do apartamento. A geladeira apresentava restos de comida e o teto da cosinha, na parte
localizada acima do fogão, estava impregnado de uma substância amarelada, o que me pareceu
resíduo de “curry”, tempero de aroma forte, muito utilizado na cosinha indiana.
“Esse síndico limpou o apartamento igual a cara dêle”disse com irritação Manuela.
“Não concordo com você. Acho que o apartamento se apresenta bem melhor do que a cara
dele,”respondi com sarcasmo.
Conduzindo uma inspeção mais minuciosa no imóvel, constatamos várias evidências da negligência
do tal síndico, incluindo a detecção de focos das populares baratinhas de Miami Beach,
principalmente na pia da cozinha, onde elas pareciam usar o encanamento como uma espécie de
“tobogan”. Tentando evitar a criação de mais dramas e confrontos com relação ao presente
momento, sugeri, então, que fôssemos ao Publix mais próximo para comprar veneno de matar
baratas.
“Amanhã, a gente fala com ele”, disse eu abrindo a embalagem com o veneno.”A gente só não
pode se esquecer de deixar um pouquinho desse treco pra tentar botar em umas das latinhas de
cerveja que ele sempre deixa do lado de fora da janela dele”, observei com o costumeiro toque de
humor do qual eu sempre lançava mão para tentar aliviar a pressão nos momentos de tensão.
Cidinho parou a desengonçada van em em frente a entrada do meu novo prédio, onde eu o
estava aguardando por mais de meia hora, recostado em uma de suas pilastras azuis.
“E aí Toninho, tá pronto pra começar a levantar um troco?” Perguntou, sorridente, exalando no
hálito um inconfundível cheiro de maconha
“Nem me pergunte cara. Mal posso esperar a hora de sentir o tilintar das moedas no meu bolso”,
respondi com um sorriso forçado.
Chegamos às dependências da tal oficina em Hialeah e fiquei chocado com o que ví. O negócio do
Cidinho se resumia em uma barracão de madeira semi-demolido, localizado nos fundos de um
matadouro abandonado de porcos, cuja área era o verdadeiro retrato da desolação. Na parte do
barracão que ainda estava de pé, estavam abrigadas um a mesa coberta por uma infinidade de papéis
caoticamente dispostos. No canto direito da mesa, havia uma estante com alguns livros de mecânica,
editados em inglês, misturados com peças de automóveis, lambuzadas de graxa e, no canto esquerdo,
jazia um velho e capenga aparador de madeira , em estilo colonial que sustentava uma imagem de
São Jorge e que cuja acentuada descaída, motivada pela falta de um dos pés do móvel, dava a nítida
impressão de que o Santo Guerreiro poderia vir a se estatalar no chão a qualquer momento.
“ São Jorge, é o meu guerreiro santo e protetor. São Jorge é o cavaleiro que o meu Rei
mandou,”cantarolou Cidinho, fingindo – com gestos simulados – estar tocando, talvez, o seu
cavaquinho, enquanto tentava nivelar o lado cambeta da antiguidade, apoiando-o sobre um tijolo.
“Gostou do meu São Jorge, Toninho?” perguntou êle, tirando a poeira da imagem com uma
flanela suja de graxa. “ Êle já me fez ganhar muita mufunfa”.
“Gostei Cidinho, é sempre bom contar com um santo protetor. Cuida dele”, aconselhei.
Eu disse isso mas na verdade nunca fora muito ligado em imagens, pois creio que esse tipo de
proteção está ligada à chama eterna que habita dentro de cada um de nós e que passamos a obtê-la
na medida em que começamos a nos identificar com ela. E isso, segundo o que eu aprendi e
assimilei, se manifesta através de atos, pensamentos e palavras, principalmente quando se trata das
nossas atitudes para com os nossos semelhantes. Entretanto, sempre respeitei as crenças alheias e
nunca fui dado a manifestar minha opinião com relação a esses princípios, talvez pelo receio de
enveredar pelo campo da demagogia, como tantos outros ditos “bons samaritanos” por aí.
“Onde é o banheiro, Cidinho. Tenho que tirar uma água do joelho”.
“Tu tem que ir lá no matadouro cara, aqui no barracão não tem banheiro,” respondeu ele meio
sem graça.
Dei a volta por trás do barracão, seguindo as direções do Cidinho e quando abri a porta do tal
banheiro dei de cara com um sumidouro no chão, estufado com fezes e folhas de jornais, cujo mau
cheiro ia bem além dos limites da tolerância humana. Saí de marcha à ré do recinto e resolvi urinar
do lado de fora, sentindo uma certa satisfação em batizar com o meu mijo carrasco parte daquele
ambiente degradante.
“Cidinho, só uma perguntinha: Como é que tu faz quando quer dar uma cagada aqui? Não vai
me dizer que tu usa aquele sumidouro?”Indaguei, deixando a diplomacia de lado.
“Pô, desculpa aí Toninho. Eu sei que tá mal. Duas vezes por semana eu jogo um galão de
Clorox lá, mas só que essa semana ainda não tive tempo”, respondeu envergonhado.
“Mas os teus clientes, cara. Como é que fazem quando tem que ir ao banheiro? Aquilo lá
arrebenta com a imagem da oficina. Estou te falando isso como amigo”frizei, não podendo evitar a
crítica.
“Não cara. Os clientes não vêm aqui não. Sou eu quem busco e levo os carros. É por isso
também que eu preciso de tú aqui. Nosso serviço é personalizado”, ressaltou ele com aquele já
familiar e irritante risinho de escárnio.
Trabalhamos sem parar durante quase todo o dia .Além de dar uma arrumação no
“almoxarifado”do barracão, catalogando peças e organizando o pequeno mas caótico estoque,
trabalhei na tradução de várias seções dos livros de mecânica do meu agora chefe. Também fomos
duas vêzes a Miami Beach pegar carros de clientes brasileiros. Lá pelas cinco da tarde Cidinho deu
por encerrado o expediente: “Ai Toninho, vamo cantar pra subir.”
“Tu deve tá com fome né cara”, observou ele atinando para o fato de que não havíamos comido nada
o dia inteiro. “Aí, tu gosta duma asinha de frango?”
“Com certeza, gosto muito cara! ”Enfatizei já com água na boca.
“Então hoje tu vai comer a melhor asa de Miami. E é por conta da firma”, afirmou, ensaindo
uns passes de samba, denotando alegria com a idéia.
Cidinho parou a van em frente a entrada principal de uma bar que exibia o letreito em neon “Pollo al
Carbón”. “Essa aqui é a melhor Happy Hour de Miami. Olha só as gatas”, ressaltou ele, se
referindo as garconetes do bar.
Sentamos numa mesa de madeira do recinto e prontamente se aproximou de nós uma linda e jovem
morena sorridente, com os longos e lisos cabelos negros caído pelo meio das costas, trajando um
curto e justo short cor de rosa e uma camiseta branca exibindo o letreito “Pollo al Carbón” em letras
douradas, de onde se projetavam os fartos e proeminentes seios.
“Mira quién está aquí, El Cid !” disse ela dando um forte abraço em Cidinho e ao mesmo
tempo me fitando com os seus grandes olhos negros, adornados pelos salientes e espessos cílios.
“Alejandra, mi amor. mi favorita”, a saudou Cidinho de braços abertos, correpondendo ao
abraço.
“Quién és su amigo?”Perguntou ela com um sorriso dígno dos comerciais de dentifrícios.
“ Esto aquí es Toninho, un amigo brasileño que acaba de llegar”, respondeu ele, me
surpreendendo com a fluência do espanhol.
“Mucho gusto, Toninho ; bienvenido a Miami”, me saudou ela com o mesmo lindo sorriso e com
um forte aperto de mão.
“Que te traigo lo de siempre, Cidinho?” indagou Alejandra.
“Si, mi amor, lo de siempre”, respondeu o chefe com o semblante de um paxá.
“Dame unos minutos, ya vuelvo”, disse a bela Alejandra, jogando os cabelos para o lado, com
uma charmosa guinada de pescoço e saindo em seguida.
“Caramba Cidinho, quem é essa menina tão linda ?”perguntei abismado com o prestígio do
conterrâneo.
“ Já conheço a Alejandra há alguns meses, mas nunca pude dar o bote, porque estava enganchado
com uma brasileira, mas agora que ela voltou para o Brasil, tá mais do que na hora,”afirmou ele
esfregando as mãos uma na outra.
“Mas uma beleza dessas não pode estar sozinha”, analizei.Como é que vai ser se ela tiver um
namorado?”
“Soube ontem, pelas minhas fontes que ela dispensou o cara dela, um cubano dono de uma
cooperativa de táxi.
“É mesmo; te disseram o porquê?”
“Parece que ela descobriu que malandro andava metido com uma turma da pesada, que vendia
drogas, e ela tem pavor disso”, explicou.
“Ela também é cubana”?
“Não, cara. A gata é peruana, é nossa vizinha, mas já está aqui há muitos anos e tem até
cidadania americana”, enfatizou ele. “Vou dar o golpe do Green Card!”, disse em tom de
brincadeira, quase que sussurando.
A conversa foi interrompida pela chegada de Alejandra, equilibrando com a palma da mão direita
virada para cima, uma enorme bandeja de madeira. Fiz mensão em ajudá-la, mas Cidinho me
impediu dizendo: “Não, pode deixar cara; ela dá conta do recado. Essas meninas fazem isso o tempo
todo.
Então, habilmente pousando a bandeja em um aparador ao lado da mesa, ele colocou diante de
nossas famintas e sedentas figuras, uma vasilha de madeira repleta de crocantes e fumegantes
asinhas de frango; um suado cântaro com cerveja gelada, e uma outra vasilha menor cheia de aipo
cortados em tiras, acompanhados por um potinho de “Blue Cheese”.
Dividindo o olhar entre as convidativas iguarias e a bela garçonete, eu esperei que Cidinho
começasse a comer para saber se havia algum traquejo especial para deglutir as gulozeimas.
“Buen provecho”, disse Alejandra. “Hablamos después”.
Comemos e bebemos com a breca, como se estivéssemos desfrutando do manjar dos deuses.
Enquanto comia, comecei a olhar a minha volta e notei que o bar encheu de repente e não havia mais
mesas vagas. Também notei que não havia nenhum barbado servindo os fregueses. As belas
meninas, com os seus shortinhos curtos compunham o”staff” do “Pollo al Carbón”. Não foi preciso
observar muito para constatar que todas elas eram bonitas, apresentando mais ou menos o mesmo
perfil e destacando-se pelos cabelos escuros, lisos e compridos. Mas inegavelmente, Alejandra era a
mais bonita de todas.
“ Que lugar legal esse aqui Cidinho”, observei enquanto destrinchava mais uma asa e tomava um
gole de cerveja.
“ É, não te falei Toninho. Apesar das asas aqui serem as melhores da cidade, essa rapaziada toda
que tu tá vendo aí vem aqui mais por causa das gatas do que qualquer outra coisa,”justificou ele
com a boca cheia de aipo com Blue Cheese.
“Boa idéia, essa do dono do restaurante, em contratar essas meninas como garçonetes”,observei.
“É, o dono daqui é um cubano muito rico. Chegou aqui fudidinho da Silva, na época dos
*Marielitos e hoje é dono de vários negócios em Miami,”revelou Cidinho com autoridade.
“Já conheço essa estória – em outras versões - de cubano que chegou aqui ferrado e agora é rico.
Parece que isso já se tornou lugar comum aqui em Miami, Cidinho.”
“É, a gente tem que reconhecer que os caras são foda. Não é a toa que eles é quem mandam na
cidade. Eles estão sempre dando cobertura um pro outro. Muito diferente dessa nossa raça desunida,
onde a um tá sempre querendo comer o outro vivo”, analizou.

Termo oriundo do nome”Mariel”,um povoado de Cuba localizado na baía do mesmo nome, em Havana. Em 1980 milhares de cubanos
protagonizaram a famosa partida do Porto de Mariel para os Estados Unidos.Estes expatriados passaram a ser chamados
de”marielitos”. Os marielitos eram os inconvenientes do regime, o grande grupo formado por dissidentes criminosos, doentes mentais
e homosexuais. Com total endosso do governo castrista, sob pressão dos cubanos já residentes em Miami e com a imigração
americana fazendo vista grossa, aconteceu o êxodo de milhares de indesejáveis. O governo revolucionário castrista, mais tarde,
explicou a sua atitude como tentativa de “depurar a sociedade e purificar a pátria.”
Trecho do texto sobre a vida do poeta cubano Reinaldo Arenas, editado por Maria Luna para “Luna e Amigos.” Pesquisa feita
por Teresa Pires(www.euprocuropravoce.cjb.net)
“Tu gosta de Miami Cidinho?”Perguntei sem comentar a comparação.
“Claro cara. Como é que não?”
“E porque sim?”insisti.
“Cara, aqui tem tudo o que tu quer. Praia, mulher bonita, comida boa, dinheiro, uma tremenda
natureza. Além do mais, Toninho, aqui a gente não se sente discriminado por esses ratos brancos
desses americanos, porque quase todo mundo aqui é latino. Quando tu mora em um desses estados lá
pra cima no norte é que tu vê a diferença”.
“Tu já morou em outra cidade desse país?”
“Morei em Boston logo que cheguei aqui e te digo, Toninho, ‘ Boston é uma bosta’. Morei
também em New Jersey, outro cocô deprimente. É por isso que eu amo Miami. Isso aqui é a melhor
cidade desse país,”afirmou categórico.
Pensei então, diante da expressão de afeto do Cidinho por Miami, que talvez eu estivesse sendo
intransigente com a cidade. Afinal ele tinha razão em certos pontos. Miami era na verdade um lugar
de natureza muito bonita, onde a pluraridade cultural acentuada pela latinidade de seus componentes,
realmente davam um toque bastante especial ao lugar. “Mas então porque é que eu me sinto como
um peixe fora d’água aqui. O que há de errado comigo?”pensei inquisitivo.
“Engraçado Cidinho. Uma vez conversando com aquele cara de Madureira que trabalhou comigo
em Downtown, ele meteu o malho em Miami, dizendo que isso aqui é uma merda”, lembrei.
“Aquilo é um pela-saco, Toninho. Se tu der ouvidos pra esse tipo de gente tu vai acabar sendo
infeliz aqui”, aconselhou.
“Mas essa desunião entre os brasileiros, isso não te encomoda?” insisti.
Já me incomodou, Toninho, mas agora não incomoda mais. Tenho um grupo de poucos e bons
amigos e vou vivendo a minha vida, sem dar bola para os pelas-sacos.Converso com todo mundo,
mas não me envolvo em corrida de ganso”.
“Já sei Cidinho. Tu é adepto da filosofia da banareira,” complementei, lembrando da máxima
muito usada pela a minha irmã Maria.
“Como é que é isso?”
“Filosofia da bananeira. O vento sobra de frente, a bananeira se curva pra trás. Sopra de um lado
ela se curva para o lado oposto, e por aí vai. Sem resistir, sem se quebrar”, expliquei.
“É isso aí mesmo, garoto, gostei do lero. Filosofia da bananeira, vou incorporar no meu
vernáculo!”.
Cidinho pagou a conta, deixando uma polpuda gorjeta para Alejandra e a a caminho do
estacionamento do bar, ele a abordou brevemente para se desperdir – respeitando a sua visível
sobrecarga de trabalho naquele momento. Ela ,então, puxou dois cartões de visitas de dentro da
pochete que usava dizendo, “ ahora trabajo también como masajista en mi tiempo libre. Para
usteds hago un precio especial”. Nos entregou os cartões com o mesmo arrebatador sorriso, e saiu
apressadamente, carregando mais uma bandeija repleta de iguarias.
Cidinho me deixou na entrada do prédio de North Bay Village, marcando de me pegar no dia
seguinte as oito da manhã. Agradeci mais uma vez pela refeição e entrei em seguida ansioso pra ver
a Manuela. Já ia subindo as escadas de acesso ao nosso apartamento quando uma voz vinda da
piscina interrompeu a minha trajetória. Olhei em direção ao chamado e notei um grupo de pessoas
sentadas em duas mesas contíguas.
“Aqui Toni, estou aqui, vem cá,” disse a minha mulher com um aceno. Me aproximei do grupo,
aplacando gradativamente a falta de visibilidade gerada pela penumbra e percebi que ali estava
havendo uma espécie de confraternização entre vizinhos. Manuela estava sentada em uma das mesas
com os Di Martinos e um outro casal que eu não conhecia e, na mesa adjacente, havia mais quatro
pessoas, três homens e uma mulher, também desconhecidos.
“Senta aqui comigo, meu amor”, disse Manuela, abrindo espaço para que dividíssemos a sua
cadeira, pois não havia mais assento disponível no ambiente.
“Hi Toni, how was your day today?” indagou Jonas em inglês, indicando que havia gente no
grupo que não falava português.
“Not bad, Jonas, not bad”, respondi. “Good evening everybody”, disse em seguida, me
dirigindo ao grupo.
Jonas, então, incorporando o papel de mestre de cerimônias, me apresentou – um por um – aos
desconhecidos presentes ao encontro, adicionando uma breve descrição do perfil de cada um, durante o
processo introdutório. O casal de meia idade, sentado na mesa em que eu agora também ocupava eram o
Stan e a Jennifer, recém chegados do frio estado de Maine e disseram estar se sentindo no sétimo céu,
com a mudança para Miami. “Your woman is gorgeous; congratulations,”ressaltou ele com o
semblante abestalhado, ignorando o enciumado olhar da mulher. Na mesa ao lado estavam o Jeff e a
Suzanne, também recém chegados, vindo de Connecticut, sob a alegação de que escolheram a Flórida
para viver, “por ser este o estado ideal para casais na idade da razão.” Logo ao lado deles estava o
Capitão Petrovic, que segundo um prólogo feito por Jonas, era um ex-comandante da marinha mercante
iuguslava, mas que já vivia nos Estados Unidos há mais de vinte anos, quinze dos quais em Miami.
“You must really like it here, Captain”, observei simulando uma continência.
“It’s the best place in the world to live, young man”, afirmou o robusto iuguslavo, retribuindo a
continência.
Ao lado do Petrovic, estava o introvertido Jacob, um Nova Iorquino solitário, aparentando idade já
bastante avançada que, quebrando a introspecção, revelou sem o menor pudor que tinha vindo para
Miami com o único intuito de se relacionar sexualmente. “Women here are easy to get,”observou. “All
you gotta do is to pay cash”.
Não fiz comentários sobre a afirmação do Nova Iorquino e notei que Jonas emitiu uma camuflada
gargalhada de escárnio, diante da boca rota do “old timer”.
Depois de uns quinze minutos de conversa coletiva, os vizinhos – com excessão dos Di Martino – se
despediram, se dirigindo aos seus apartamentos. Ficamos somente eu,Manuela, o Jonas e a Cleide, já
que Maria Inez havia ficado em casa, conversando com o namorado pelo telefone.
“E então Toni, o que achou dos novos vizinhos?”Perguntou Jonas?
“Me pareceram bem simpáticos”, respondi sem ter mais o que acrescentar.
“Meu amor, você deve estar com fome. Você não que subir pra jantar agora?’
“Não na verdade não estou com fome. O Cidinho me levou pra comer umas asinhas num bar muito
legal. Tenho que te levar lá. Você vai adorar”, afirmei, sabedor da paixão que Manuela nutria por asas
de frango.
“É mesmo, como ó o nome desse bar?”
“Pollo al Carbón”. Não fica muito longe daqui”.
“Você foi no Pollo al Carbón e nem me chamou, seu esperto!”interrompeu Jonas com um sorriso
matreiro. “Isso não se faz”, disse ele, levando um tapa da Cleide no braço, como que em sinal de
reprovação.
“Qual é o mistério sobre o tal Pollo al Carbón?” Perguntou Manuela intrigada.
“ Sem tem algum mistério lá eu não sei. O que eu sei é que as meninas mais bonitas de Miami
trabalham lá, não é verdade Toni?” indagou Jonas com uma dose de sarcasmo no olhar.
“ É, na verdade as garçonetes são bonitas lá, mas nada que se compare com a beleza da minha
menina aqui”, retruquei abraçando a Manuela.
“ Esses homens todos iguais, não é mesmo Cleide?” disse Manuela sorrindo e correspondendo ao
meu abraço, denotando não ter se importado com o comentário de Jonas.

Mesmo ainda sem fome, resolvi comer um pouquinho do puré de batata com carne moída que
Manuela havia preparado. Enquanto comia dei a ela uma breve descrição de como havia sido o meu
primeiro dia como ajudante de de mecânico e quando descrevi as condições do banheiro da oficina,
parei de comer na hora.
- Mas é difícil de acreditar que em Miami, existam lugares assim. Como é que o Cidinho foi abrir
uma oficina num barracão atrás de um matadouro abandonado?”indagou ela surpresa.
- Bem, segundo ele me disse, foi um dos seus clientes – um marroquino – que sensibilizado com a
situação dele, ofereceu o local como uma alternativa, já que o matadouro – de propriedade de sua
família, havia sido transferido para outro local.
- E qual foi a situação que sensibilizou o marroquino?
- O Cidinho fazia mecânica clandestinamente no estacionamento do edifício onde mora. O escritório
dele era essa van que ele tem.Como alguns vizinhos denunciaram a prática à polícia, ele ficou sem ter
como trabalhar, pois foi proibido de usar o estacionamento, sob pena de ir preso se desobedecesse a
ordem.
- Mas que coisa. Como é que alguém pode chamar a polícia por uma coisa dessas? Afinal de contas,
ele estava só trabalhando.
- Pois é, e ele me disse que usava um cantinho no final do estacionamento, sem incomodar ninguém.
Mas parece que aqui eles têm a mania de chamar a polícia por qualquer razão.
- Manuela, disse eu mudando de assunto. - Você não achou que o Jonas foi meio maldoso quando
fez aquele comentário sobre a minha ida ao Pollo al Cabón?
- Claro que não Toni, ele estava apenas brincando. Que pergunta é essa, você por acaso tem culpa
no cartório? Já sei, você deve ter se impressionado com alguma beldade lá, não é? Será que ela é
mesmo mais bonita do que eu? – disse ela brincando, com um sorriso assanhado. Em seguida levantou a
camisola, deixando a mostra aquele corpo que tantas vezes me levara à loucura.
- Não existe no mundo mulher mais bonita que você neném; nem mais bonita, nem mais cheirosa e
nem mais gostosa - respondi, levando-a para o edredão do nosso quarto, já que não havia cama na nova
moradia.

Cidinho parou a van na entrada do prédio as oito em ponto. – E aí Toninho, pronto pra mais um dia
de folia?- perguntou com o sorisso de sempre, emanando pelo bafo o mesmo cheiro de maconha do dia
anterior.
- Estou sempre pronto para uma boa causa Cidinho - respondi, retribuindo o bom humor.
Ele passou pela casa de uma cliente brasileira para que eu pegasse o seu “Toyota Camry “que
precisava de uma regulagem geral , e o levasse para a oficina
Chegamos quase simultaneamente no barracão, depois de mais de uma hora de batalha contra o
trânsito matinal de Miami. Após estacionar o Toyota na área improvisada para reparos, ajudei Cidinho a
tirar de dentro da van, alguns ítens que ele havia comprado, dentre eles seis galões de desinfetante.
- Tá vendo esses galões aí Toninho? Joga uns três lá no sumidouro pra ficar formoso - disse ele,
iniciando as ordens do dia.
Tirei então do bolso um pregador de roupas que havia vindo do Brasil na nossa bagagem por acaso e
o preguei no meu nariz. É que assim que eu havia visto o sumidouro, lembrei do apetrecho e resolvi
guardá-lo entre os meus pertences, sabendo que nais cedo ou mais tarde teria que enfrentar situações
como a presente.
Joguei os três galões no buraco imundo e sai oura vez de macha à ré, cuspindo para todos os lados.
‘Não sei se vou aguentar fazer isso toda semana”, pensei naquele momento.
- Toninho, me dá uma força aqui na tradução,” pediu Cidinho - folheando as páginas do manual de
mecânica e parando na seção sobre os modêlos da Toyota.
Trabalhei no manual por mais de uma hora, traduzindo para Cidinho detalhes sobre o “Tune-up”, ou
seja, a regulagem do Camry. Depois de muita tentativa e caras de frustação, Cidinho me disse para
seguí-lo e, sem muitas explicações, entrou no Camry e saiu apressado. Fiz o mesmo com a van, tentando
não perdê-lo de vista.
Ele parou então em frente a uma oficina e, abaixando os vidros do carro, me disse que eu
estacionasse a van e esperasse por ele. Em seguida, entrou com o veículo dentro da área de serviço do
estabelecimento. Ele ficou lá por uns quinze minutos e, através do vidro da porta da oficina, percebi que
ele conversava –gesticulando muito - com um homem de aparência latina, trajando um macacão de
mecânico. O tipo escutava e respondia calmamente às elocubrações de Cidinho e no final da conversa
deu-lhe dois tapinhas nas costas, o que no meu entender, tratou-se de um gesto tranquilizador.
“Senta a pua aí Toninho, vamos voltar para o barracão”, disse ele ao entrar na van, com o risonho
semblante de volta.
No caminho de retorno perguntei a ele o que havia se passado e – sem me dar maiores detalhes –
ele disse que o amigo mecânico ficou de conseguir um tal rotor, - peça vital para o tune-up do Camry -
que estava em falta no mercado. Achei meio esquisita a explicação mas não quis me aprofundar no
assunto.
Fizemos mais três viagens para pegar carros de clientes e o restante do meu dia foi dedicado à ajuda
de novas traduções do manual de mecânica, com relação as sistema de operação desses veículos - e à
instrumentação de ferramentas, quando Cidinho começou a trabalhar em um deles.
- Tá aprendendo rápido Toninho. Já sabe até o que é uma chave de fenda”, ironizou ele diante da
minha dificuldade em indentificar as ferramentas que ele me pedia.
- Não sou tão inteligente quanto o senhor, mas um dia chego lá, El Cid - ironizei de volta, sem
perder a esportiva.

Cheguei em casa bem cansado, pois havíamos trabalhado até que a luz do sol permitisse. Como
Manuela ainda estava no curso de inglês, resolvi dar uma sondada na casa dos Di Martino para saber das
novidades. Peguei então um “six pack” de cerveja e fui bater na porta deles. Jonas abriu a porta e na
hora percebi que estavam jantando, devido ao movimento mastigatório de sua boca e à visão da mesa
ainda posta no fundo da sala.
- Me desculpem, não quis incomodar, volto outra hora. Voltem a comer em paz”, disse eu dando
meia volta.
- Não, Toni, volte aqui rapaz. Vem comer um pouco com a gente”, disse ele com veemência.
- Que isso Toni? Com a gente não existe esse tipo de coisa, vamos entrando”, reiterou Cleide, se
levantando da mesa e vindo ao meu encontro.
Jonas guardou as latinhas de Budweiser no congelador enquanto Cleide me fez um prato da carne de
porco com batatas assadas que estava numa travessa sobre a mesa, enchendo uma taça do vinho branco
que estavam tomando e colocando-a ao lado do meu prato.
- Excelente Cleide. Qual é o segredo desse gostinho especial?”perguntei a título de elogio.
- Não fui eu quem cozinhei hoje, foi o Jonas”, respondeu ela meio sem jeito.
- Jonas, então é você o mestre cuca da casa, que surpresa. Bem que eu queria ter essas aptidões, mas
infelizmente não tenho,”confessei.
- Não Toni, só cozinho de vez em quando, mas “seu cuzinho eu não lavo”, não é mesmo Cleide? -
disse com deboche, enquanto Cleide ria com os olhos arregalados e sacudindo a cabeça, parecendo não
haver entendido o trocadilho.
Cleide fez um outro prato dizendo que era para Maria Inês e o guardou na geladeira. Tentou então
reabastecer o meu prato mas eu recusei, dizendo já estar satisfeito.
- Bom, então para digerir essa carne de porco, vamos tomar uma cerveijinha”, disse Jonas trazendo
duas latinhas do congelador.
- E a Cleide, não gosta de cerveja?” perguntei, notando que ele a havia excluido do rol.
- Não a Cleide já bebeu a cota dela hoje. Se beber mais, depois vai querer fazer saliências comigo na
cama e hoje eu não estou pra isso”, disse êle com o seu sorriso encolhido.
- Para com essa brincadeira Jonas – disse ela sem graça. - Quer que o rapaz pense mal de mim?
- Não se preocupe Cleide. Nós também somos adeptos dessas brincadeiras lá em casa”, admiti.
- É, mas já notei que toda vez que você brinca com a Manuela, sempre diz uma coisa bonita no
meio”, observou ela.
- Se eu tivesse uma mulher assim, também faria o mesmo, respondeu Jonas .
- O que é que você quer dizer com isso? Que eu não mereço ouvir coisas bonitas?”reagiu Cleide ao
comentário, se levantando de supetão da mesa.
- Não é nada disso mulher. Você está colocando palavras na minha boca, disse Jonas balançando a
cabeça em sinal de reprovação.
- Se não é isso é o que então? Eu não sou essa estúpida que você pensa que eu sou,”disse ela agora
com os olhos úmidos e expressão de choro.
- Para de fazer cena Cleide. Respeita a presença do amigo aqui.
- Desculpe Toni- disse ela com os olhos rasos d’água. – Não é nada com você. É que eu já estou
cheia de tanto descaso”. E assim dizendo, saiu apressadamente da sala se dirigindo ao quarto do casal,
em meio a audíveis soluços.
Nesas alturas, mais do que constrangido com a situação – eu que sempre fora avesso a esse tipo de
desavença doméstica – me levantei da mesa, pedindo licensa a Jonas para me retirar.
- Mas que situação – disse ele. - Me desculpe Toni, mas essa mulher as vezes me parece ter perdido
o juízo. O que é que eu fiz pra ela ter essa reação tão impusiva e ridícula ?”perguntou
-Jonas, vai lá e conversa com ela com carinho. Tenho certeza que isso não passa de uma rajada de
carência afetiva”, aconselhei , me dirigindo a porta da sala.
- Me desculpe mais uma vez Toni”, reiterou ele, balançando continuamente a cabeça, em desalento,
enquanto se dirigia para o quarto do casal, com ares de quem estava diante de enfadonha tarefa.

Comentei o incidente com a Manuela e ambos concordamos que a reação da Cleide deve ter sido
em função do tão conhecido fenômeno da gota d’água, onde emoções reprimidas são liberadas à partir
de um estímulo que pode parecer irrelevante para o expectador, mas que para o participante, é o
suficiente para o rompimento das compotas.
“ Deve ter muito mais coisa por trás disso do que a gente pensa”, avaliou Manuela.
Capítulo VI: Montando no Porco
* “Pela mesma boca voce põe pra fora o calor e o frio?”
“Ah, não quero negócio com essa gente!”

Passamos por South Beach – antes de seguirmos para a oficina - para pegar um Pontiac
Grandham que – segundo a proprietária, uma mineira de Belo Horizonte – estaria com a potência
sensivelmente reduzida.
- Pode ser que esteja funcionando com apenas dois ou três cilindros”, arrisquei um palpite, tentando
impressionar o chefe.
- Pode ser isso mesmo Toninho. Tá ficando cada vez mais, safo meu garoto – ironizou como de
costume.
Estacionei o Grandham na área de serviço ao lado do barracão e Cidinho, após mexer e remexer no
motor por mais ou menos uma hora, me disse que o seguisse com a van e, com o mesmo semblante de
frustação de antes, conduziu o veículo em direção à misteriosa oficina, para onde havia antes levado o
Toyota Camry. Após conversar nervosamente com o mesmo mecânico por vários minutos ele entrou na
van, ainda com a expressão de ansiedade, permanecendo calado durante todo caminho de volta ao
barracão.
- Problema de falta de peça outra vez, Cidinho? – perguntei ao sairmos da van, na chegada a oficina.
- É, outra vez cara – respondeu ele sem fazer maiores comentários.

Caminhei em direção ao matadouro e urinei do lado de fora, na entrada do sumidouro, depois de


haver me segurado o máximo que eu pude. No caminho de volta ao barracão, senti no ar aquele
inconfundível cheiro de maconha e ao entrar no recinto, me deparei com Cidinho fumando um baseado
com a maior tranquilidade, recostado na cadeira e com os dois pés prostrados na mesa, parecendo não se
importar nem um pouco com a minha presença ou com a eventual chegada de outras pessoas.
- Quer dar um tapa aí, Toninho? – disse ele esticando o braço, me oferecendo da cannabis sativa.
- Não, não estou a fim não Cidinho, obrigado – agradeci, ao mesmo tempo em que peguei um dos
livros de mecânica e comecei a folheá-lo, simulando indiferença ao “fumacê.”
- Pô cara, não vai me dizer que tu não fuma unzinho de vez em quando?- perguntou com um certo
desdém.
- Não fumo não cara. Não gosto de maconha. Nem de maconha nem de droga nenhuma, afirmei
ainda com os olhos fixos nas páginas do manual.
- Pô, mas que carioca é tú que nem fuma um bagulhinho de vez em quando?- insistou com ele com
deboche.

* Alusão a um apólogo de Aniano: No máximo rigor do inverno, um camponês recebeu um sátiro em sua cabana. Ao ver que o
camponês soprava os dedos, perguntou-lhe o sátiro: “ Porque faz assim?” Ao que o outro respondeu: “Para me esquentar com o
calor do bafo. Mais tarde, posta a mesa, vendo o sátiro que o camponês soprava uma comida muito fria, perguntou-lhe porque
fazia o mesmo com a comida. Ao que respondeu o camponês: “Para esfriá-la”. Então o sátiro levantou-se subitamente e lhe disse:
“Como?! Pela mesma boca voce põe para fora o calor e o frio? Ah, não quero negócio com essa gente!” E, assim dizendo saiu a
correr ( Do “Elogio da Loucura” – Erasmo de Rotermam – 1511 – traduzido do website: © 2003-2009 Project Gutenberg Foundation ).
- Cara, o negócio é o seguinte – disse eu botando o manual na mesa e fixando o olhar nele . – Se
você quer fumar maconha você fuma, mas eu não fumo simplesmente porque não tem nada a ver
comigo.
- Mas como é que tu sabe se não tem nada a ver contigo. Tu já deu um pega alguma vez? – insistiu
mais uma vez, já sob os efeitos da erva.
- Já, cara já dei sim, uma vez quando era adolescente. Mas, desde então tive certeza que não queria
ser maconheiro – frisei, querendo instilar um tom pejorativo na afirmação.
- Falou, Toninho, falou, mas tu não sabe o que tá perdendo – disse ele com aquele semblante típico
do maconheiro doidão.

Nesse momento então, a minha memória me transportou para os meu dezesseis anos, quando eu
morava em uma chácara nos arredores de Nova Iguaçu. Na época, o consumo da maconha estava se
tornando cada vez mais popular entre os adolescentes e havia uma espécie de divisão de castas entre
esse grupos de jovens: os doidões e os caretas.Os doidões compunham uma espécie irmandade secreta,
sobre a qual os caretas não podiam ter nenhum tipo de informação. A coisa evoluiu de tal forma que os
caretas foram considerados uma ameaça a pretensa soberania dos doidões, como se fossem uma espécie
de vendilhões do templo ou coisa parecida..
Eu tinha na época dois amigos bem próximos, o “Mário China” e o “ Luis Vovô” que subitamente
passaram a me evitar, sem nenhuma razão aparente. Incomodado com a atitude deles, resolvi investigar
e - por intermédio de uma amiga da minha irmã - descobri que os dois haviam aderido a casta dos
doidões e estavam me evitando por eu ser careta. Depois de muita relutância, resolvi um dia procurar os
dois e transmitir a eles a minha decisão: eu queria ser parte da casta dos doidões.
Pedalei a minha bicicleta até o centro do bairro onde vivíamos, e me deparei com os dois encostados
no balcão da “Panificação Nova Lisboa” – na época uma espécie de ponto de encontro dos locais –
tomando Grappete e comendo pão dôce.
“Fala aí Vovô; como é que é China?”, saldei os dois, sendo recebido com uma certa indiferença.
- Você estão sumidos, o que é que houve?”insisti
- A gente está sempre por aqui, quem sumiu foi você- respondeu Luis Vovô, enquanto Mário seguia
calado.
- Estou querendo levar um papo sério com vocês – disse eu despertando um olhar de curiosidade nos
dois.
- Que que tá pegando?”perguntou Mário meio inquieto.
- Tô afim de fazer a cabeça, disse eu diminuiundo o tom de voz.
- Tu tá sabendo o que tá falando, cara?’indagou Luis Vovô com uma certa desconfiança.
- Se eu não soubesse não estaria falando – respondi incisivo.
Os dois se entreolharam por alguns segundos e – depois de pagar a conta na padaria – me pediram
que eu os acompanhassem até a casa do China.
Assim que entramos no sobrado onde Mario China vivia com a família, percebi que não havia
ninguém em casa e ele confirmou a ausência dos pais, dizendo que eles estavam trabalhando no
armazém localizado na parte de baixo do prédio.
- Tá limpeza vovô- disse ele, sinalizando para que o companheiro iniciasse os trabalhos.
Então, obedecendo a uma espécie de ritual, China tirou da capa um LP dos Rolings Stones enquanto
“Vovô “apertava um baseado da grossura de uma cigarilha. China levantou a tampa da eletrola
“Telefunken Dominante”, e colocou a agulha do toca discos na faixa “Sympathy for the Devil”,
enquanto Vovô acendia o baseado.
Então, com a indrodução da música – vista por muitos como uma apologia a satanás - ao fundo,
Vovô deu a primeira tragada, segurando a fumaça com a respiração por alguns segundos, passando o
baseado para o China.
.......” Please allow me to introduce myself, I’m a man of wealth and taste”, ecoava a voz de
Mick Jagger enquanto eu dava uma forte tragada no baseado, segurando a fumaça com a respiração, da
mesma maneira que faziam os meus asseclas.
.......”I’ve been around for a long, long year, stole many a man’s soul and faith......” e então dei
mais uma tragada.
......”Please to meet you, hope you guess my name, but’s what’s puzzling you is the nature of
my game”..... chegou novamente a minha vez na rodada.
......”So if you meet me, have some courtesy, have some sympathy, have some taste”..... e já
havíamos queimado a metade do petardo.
.......”But what’s puzzling you is the nature of my game. Mean it, get down. Woo, woo, oh yeah,
get on down”....... e aí então Luis Vovô apagou o que restava do baseado, guardando a bagana numa
caixa de fósforo vazia.
“Já fumamos bastante, principalmente você Toni. Tem que pegar de vagar na primeira
vez,”observou Vovô.
Na verdade eu não estava sentindo nada, como se a droga não tivesse feito efeito. Descemos as
escadas do sobrado e assim que eu pisei na calçada, * ARRANFLAM!!! Fui acometido por uma terrível
sensação, caracterizada pelo entorpecimento de todos os meus sentidos e por um total descontrole sobre
os meus movimentos. Parecia que uma força invisível me entortava para o lado esquerdo, enquanto eu
lutava para me virar para o lado oposto e vice versa.
- Estou passando mal, acho que vou desmaiar- disse eu aos dois amigos, apavorado com o estranho
fenômeno.
- Fica calmo. As vezes isso acontece. Toma leite que enfraquece o efeito – disse Vovô com
autoridade, me levando pelo braço em direção a padaria.
Tomei quase um litro de leite, e em seguida vomitei parcialmente na porta do estabelecimento,
conseguindo,entretanto, segurar boa parte da lactose no estômago, o que promoveu uma leve melhora,
apesar da estranha força ainda seguir me entortanto. Resolvi então ir para casa, pedalando em disparada
a minha velha “Caloi Panamericana 63”, tentando contralabançar a incógnita força, tarefa essa que ficou
ainda mais árdua, sentado sob duas rodas.
Ao chegar ao inacabado casarão de dois andares, onde vivíamos eu, a minha mãe e as minhas três
irmães, tentei me esgueirar pela porta de trás, com o intuito de não ser notado mas, ao passar
furtivamente pela cozinha, dei de cara com a Dona Vera, manipulando a massa do que seria mais um
lote dos seus inesquecíveis biscoitos de nata.
- O que hove Toni, que cara é essa?”, perguntou ela, parecendo desconfiar na mesma hora que eu
não estava no meu estado normal.
- Não foi nada não mãe- respondi de esguelha, me dirigindo à parte de cima do casarão e me
trancafiando no banheiro.

* Uma espécie de neologismo onomatopéico inventado pelo meu amigo jornalista Germando Gonçalvez. Conta ele que certa vez, à
bordo de uma aeronave da Transbrasil em rota para Manaus, onde vivia grande parte de sua família, se viu acometido por um
estranho fenômeno. Em pleno vôo, após tomar várias doses de uísque, ingeridas com a finalidade de lhe tirar o mêdo de voar, o
jornalista foi atacado de supetão por um estrondo dentro de sua cabeça, o que ele chamou de um ARRANFLAN. Na hora ele se
apavorou com o fenômeno, mas logo em seguida, a bizarra sensação foi sendo aplacada por intermédio de
sucessivos”arranflanzinhos,”até desaparecer por completo.
Abri o chuveiro e tomei um banho frio que cuja extensão me pareceu bem mais longa do que de
costume. Assim que sai do banho senti um arraflanzinho, indicando uma melhora no meu estado geral.
Sentei então na cama da minha mãe, enrolado na toalha e fiquei por um tempo comtemplando a minha
imagem refletida no espelho da velha pentiadeira de mogno que ela havia mandado laquear de branco,
junto com o resto da mobília. Notei então, ao me fixar na minha própria imagem – que o meu rosto
mudava de formas e que as minhas orelhas oram cresciam, ora encolhiam no reflexo. Senti uma pequena
ponta de apavoramento, mas um novo arranflanzinho aplacou mais ainda o efeito, me livrando de um
novo provável estado de pânico. Ouvi , então os passos da minha mãe subindo as escadas da casa e corri
para o meu quarto para trocar de roupa.
- O que está acontecendo com você – perguntou ela batendo na porta. – Você está está agindo
estranho e me deixando preocupada!
Abri a porta do meu quarto e – sem conseguir articular direitos as palavras – contei para a minha
mãe – sem reservas – exatamente o que havia occorido. Após ouvir a estória , ela ,sem fazer nenhum
comentário, me chamou para descer e comer alguma coisa.
Sentou-se ao meu lado na mesa e me olhando fixo, enquanto eu comia o substancioso prato de
feijão com arroz e ensopado de batata com carne, perguntou: “Toni, você me promete que essa foi a
primeira e a última vez que você tocou nessa coisa?”
- Prometo mãe – respondi convicto, com algumas lágrimas escorrendo pelo meu rosto e gotejando
no ensopado. Desde então, decidi que seria melhor que eu fosse ignorado certos amigos do que
decepcionar essa que havia sido a melhor amiga da minha vida.

Fiquei sabendo tempos depois que o Mário China e o Luis Vovô descambaram para o lado das
drogas pesadas, como a cocaína a heroína e outras. Ambos tiveram várias passagens por centros de
reabilitação, mas logo em seguida nada mais soube, pois perdi o contato com eles, em função da minha
mudança para o Rio de janeiro. Vários anos depois, durante uma ida a Nova Iguaçu, fui informado que o
Vovô havia se matado, ao se jogar da janela do edifício onde vivia, durante uma crise desencadeada por
uma overdose. China, por sua vez – havia se tornado pastor de uma igreja evangélica e dirigia uma
entidade anti-drogas patrocinada pela congregação.

Cidinho me entregou o envelope com o dinheiro do meu primeiro pagamento e tomei um susto
quando ví o cheque.
- O que isso Cidinho, Setenta e seis dólares. Onde está o restante do dinheiro?!”perguntei atônito.
- É isso aí mesmo Toninho”, respondeu ele sem jeito.
- Mas como, isso não é dinheiro. O que é que eu vou fazer com setenta e seis dólares? Isso não dá
nem para pagar a comida da semana,” protestei com veemência.
- A despesa foi alta na semana passada Toninho. Por isso não lucrei quase nada. Mas isso não quer
dizer que na semana que vem tu não possa receber um cheque bem mais gordo.” justificou ele com um
tapinha nas minhas costas.
- Mas Cidinho, isso me deixa numa situação muito difícil. Eu tenho que pagar o aluguel, comprar
comida e suprir outras necessidades básicas minhas e da minha mulher. Onde é que vou arrumar esse
dinheiro?”argumentei.
- Tenta ir quebrando o galho com essa gordurinha que eu te garanto que na semana seguinte a
mufunfa vai ser bem melhor. Quando é que vence o teu aluguel?”
- Em menos de três semanas – respondi amargurado.
- Então cara, não precisa ficar preocupado que a gente dá um jeito”, disse ele de maneira simplista,
parecendo não atinar para a gravidade da minha situação.
E assim dizendo – provavelmente na tentativa de esvaziar o confronto – ele me avisou que precisava
sair por umas duas horas para resolver um problema. Me sugeriu, então, que eu trabalhasse na tradução
do sistema de freios do Toyota Corolla, o próximo veículo da fila, e saiu apressadamente.
Sentei desolado na mesa do barracão, onde um emaranhado de papéis, caderninhos cheio de
anotações e os manuais de mecânica se amontoavam desordenadamente. Puxei bruscamente o manual da
Toyota do bolo, fazendo despencar uma pilha de papéis que – que depois de resvalarem nas minhas
pernas – foram todos parar no chão. Então num súbito acesso de cólera , atirei violentamente o grosso
volume porta afora e – em meio a vários safanões - espanei para fora da mesa o restante do acúmulo.
“Não vou traduzir é porra nenhuma!” berrei com toda a força dos meus pulmões, arrancando
simultaneamente do solo, os quatro pés da escrivaninha com um ascendente e violento pontapé .
Respirei fundo, tentando tomar consciência da minha atitude irrascível e ao perceber o teor de
incoerência contida naquela maneira de encarar a presente situação, consegui trazer a razão de volta.
Levantei lentamente da cadeira e peguei o manual, limpando-o e colocando-o de novo em cima da mesa.
Em seguida comecei a recolher, um a um, os papéis espalhados pelos quatro cantos do barracão, quando
me deparei com várias faturas referentes a serviços prestados pela oficina “El Coche Chevere” a Sidney
dos Santos. Olhando minuciosamente as faturas, constatei que refletiam despesas de serviços como
regulagem de motores, trocas de embreagens, regulagem de freios, reparos elétricos e outros triviais
serviços de mecânica de autos.
“Então é isso – conclui. “ O Cidinho não sabe como fazer a maioria dos serviços necessários a
recuperação e manutenção dos carros dos seus clientes e usa a outra oficina como ponto de apoio. Ele é
só um intermediário e não um profissional. Não passa de um curioso no assunto.”
“Nunca vou conseguir fazer dinheiro nenhum aqui”- segui conjecturando. “Estou perdendo o meu
tempo. Ele mau deve ganhar para se manter, já que as despesas com a outra oficina devem lhe sugar
quase todo o lucro.”
Agindo rápido, espalhei os papéis e todos os outros apetrechos pela mesa, simulando a mesma
bagunça de antes, pois não queria que Cidinho desconfiasse da minha constatação. Nessas alturas eu já
sabia que urgia que eu tomasse uma rápida decisão e fizesse alguma coisa em prol da minha
sobrevivência, mas o bom senso me dizia para não fazer alarde. É que – a exemplo do que eu havia
assimilado em uma das passagens do livro “Os Três Mosqueteiros” – obra de Alexandre Dumas que
esteve na minha cabeceira por um bom tempo - uma maneira certa de angariar uma inimizade, é deixar
que alguém saiba que você descobriu uma de suas desonras veladas. E a última coisa que eu precisava
no momento era de um novo inimigo.

Quando Manuela chegou do curso de inglês eu já havia assinalado mais de vinte anúncios de
empregos, extraidos de um jornal de bairro que circulava em North Bay Village, sendo a grande maioria
delas referentes a serviços de limpeza de residências. Havia um em particular que me havia despertado a
atenção: Se tratava de de uma firma que estava contratando casais para fazerem juntos a limpeza da
residência de seus clientes. O Dono da empresa- que se anunciava como Scott Stevenson, estaria
entrevistando casais no dia seguinte – sábado – à partir das nove da manhã.
Assim que Manuela chegou, expus a situação de emergência que se delineara e apresentei o que eu
achava que poderia ser uma possível solução, mostrando-lhe os anúncios que eu havia selecionado.
- Eu concordo com você, Se não acharmos uma solução rápida vamos acabar ficando na rua. Desse
mato do Cidinho é capaz de não sair nenhum coelho – analizou ela..
- Mas então. Você concordaria em fazer limpeza temporariamente, Manuela?” indaguei.
- É claro que sim. Eu nunca descartei essa possibilidade. Você é que parecia nem querer falar no
assunto - lembrou ela.
- Pois é, meu amor. Isso era uma coisa que era contra os meus princípios, mas nessas alturas do
campeonato já não sei mais nem o que é princípio, haja visto o fato de eu estar trabalhando como
ajudante do Cidinho – frizei.
- Toni, vamos deixar de drama e encarar a realidade. Você já limpou uma casa alguma vez na vida?-
perguntou ela com ironia.
- Não que eu me lembre – respondi tentando puxar pela memória. - Ah, sim, claro que sim –
lembrei - quando pequeno, eu era encarrregado de lavar o banheiro e de encerar o chão de taco do
apartamento onde morávamos pelo menos duas vezes por semana.”
- Bem, o teu curriculum no assunto não é dos mais sólidos, mas junto com o meu, creio que dá
equilibrar - disse ela com humor.
- Mas o gerente dessa firma aqui do anúncio que contrata casais afirma que eles oferecem
treinamento, não exigindo experiência. Quem sabe ele não gosta da gente?” disse eu, mostrando o
anúncio a ela.

Chegamos no endereço da tal firma as oito e meia, pois queríamos ser um dos primeiros da fila e não
havia mais ninguém aguardando. Constatamos, então, que se tratava de um endereço residencial e
depois de meia hora, fomos atendido pelo tal de Scott. Tipo bem falante e energético, Scott nos pareceu
a primeira vista ser um sujeito agradável. Ele operava a empresa à partir de uma escritório improvisado
na casa. Ao saber que éramos brasileiros ele fez uma festa.
- Brazil! I love Brazil! The best food and the most beautiful women in the world”, afirmou ele
olhando detalhadamente para a Manuela.
- Have you ever been to Brazil”? perguntei curioso.
- No, but I know a lot about it. I even speak a little Spanish. “A mi me gusta hacer nuevos
amigos” disse dando mostras da típica ignorância americana com referência a geografia e a cultura de
outros países.
- Mr. Stevenson- disse eu com a correção de seu comentário na ponta da lingua.... Mas beliscado
pela Manuela, interrompi o diálogo.
- Yes Toni – replicou ele parecendo perceber a minha súbita interrupção.
- You have a very nice house – respondi conseguindo disfarçar.
Toquei ali então, por acaso, num assunto do maior agrado do americano. Logo após ao elogio a
residência, ele passou mais de quinze minutos nos explicando como ele, o pai e o irmão construiram a
casa sozinhos e o que o imóvel representava para ele. Manuela e eu nos entreolhamos com olhares de
“estamos contratados”e não estávamos enganados.
Agindo então, como se já estivéssemos selecionados, ele informou que pagava trinta e cinco dólares
por limpeza e que cada seção durava em média de uma hora e meia a duas horas e que havia casais
trabalhando para ele que faziam até cinco casas por dia.
- Is this something you guys would be interested in doing”? perguntou ele.
- Yes, yes, without a doubt- respondi enfático, sendo avalisado com gestos positivos pela Manuela.
Passamos então de imediato para a fase do treinamento que era feito na própria casa do americano. O
primeiro passo foi nos explicar quem faria o que. Eu, o homem, limparia os banheiros e passaria
aspirador de pó em todos os cômodos da casa, sem que houvesse necessidade de lavar nada. Tudo nos
banheiros: as pias, os espelhos as banheiras, os vasos sanitários os boxes do chuveiro e quaisquer outras
peças eram limpos com produtos de limpeza e papel toalha. O mesmo se passava com o trabalho da
mulher, ou seja, a limpeza da cozinha e a remoção do pó da casa. O casal faria as camas juntos, em
mútua ajuda. Nesse tipo de “cleaning” não estavam incluídos a limpeza de geladeiras, janelas, tetos,
varandas etc., mas somente ítens básicos. Ele forneceria todo o material de limpeza, incluindo o
aspirador de pó.
Passando por todos cômodos da casa, ele nos mostrou – com detalhes - como se processaria a
limpeza, de acordo com os padrões americanos.
- Poxa, mas que moleza,” sussurei para a Manuela, enquanto Scott pegava, numa sala contígua, os
papéis que tínhamos que preencher para que começássemos a trabalhar.
Ficou acertado então que começaríamos dentro de três dias prenchendo lacunas, pois o horário da
semana já estava praticamente feito e ele nos colocaria, portanto, onde ainda houvessem hiatos no
calendário. Na semana seguinte, então, começaríamos em rítmo integral, o que nos pareceu perfeito,
pois eu ainda teria a oportunidade de ir tentiando com o Cidinho, lhe dando tempo para arrumar outro
ajudante.
Antes de sairmos, ele nos disse que naquele mesmo dia, haviam duas “cleanings”marcadas para a
parte da tarde que teriam que ser remarcadas, pois o casal assinalado para fazê-las teve um problema e
não poderiam honrar o compromisso. Nos perguntou então se queríamos fazê-las, lembrando que ele
pagava mediante a conclusão do trabalho e ele providenciava o devido transporte. Topamos no ato.

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