Você está na página 1de 28

O CASO

DO PNEU
FURADO Baseado na obra de Juan Angel Cardi
Amiel Lobato, Kaiser Lupowitz, Colino Bustamante, Vladimir Perea,
o Tio, Trigo, Ronzo, Anatólia Lloveras, Bernardo Henares
1

CENA 1
SALA POLICIAL. INQUÉRITO.
Créditos enquanto os detetives entram na sala de interrogatório
Os nomes de cada detetive aparece na lateral. Na sala tem
escriturários e o barulho de máquinas escrever é constante.

KAISER LUPOWITZ
(Voz off)
Tínhamos certeza de que o homem estivera –
entre as doze horas e cinquenta minutos e as
treze e dez – numa casa de Miramar onde se
escondia um perigoso infiltrado,
o qual mantínhamos sob constante vigilância
desde o exato momento do seu desembarque,
efetuado três meses antes.

BERNARDO HENARES
o detido, com obstinação.

Não. Não. Nada disso!


Eu tenho testemunhas que confirmam o que eu
disse.

VLADIMIR PEREA
calmamente
Parece vídeo tape...
repete sempre as mesmas palavras
e até os mesmos gestos e trejeitos.

KAISER LUPOWITZ
Looping...

VLADIMIR PEREA
O que?
KAISER LUPOWITZ
Looping...
A coisa fica repetindo sem parar... looping.

AMIEL LOBATO
Que é o capitão
Insistam... pela última vez.

para o detido, atenciosamente

Sente-se bem, senhor Henares?


2

BERNARDO HENARES
Fisicamente, sim.
VLADIMIR PEREA
E, existe outra maneira de alguém sentir-se bem?

BERNARDO HENARES
Sim... Moralmente. Moralmente me sinto mal.
Tenho muito o que fazer e há mais de cinco horas
que estou aqui ouvindo vocês...

VLADIMIR PEREA
parte pra cima do Bernardo Henares

... este traste...

COLINO
Detetive meticuloso

Calma Perea... calma ou perdemos a razão...

para Bernardo Henares

O seu ‘mais o que fazer’,


já verifiquei hoje à tarde,
é recolher frascos de maionese vazios para com
eles fabricar lamparinas de querosene e vendê-
las a cinco pesos cada.
Na ampla garagem de sua casa,
no bairro de El Domingos, não é?...
o senhor tem uma...
indústria artesanal e clandestina,
onde explora várias pessoas,
pagando-lhes um peso diário por dez ou doze
horas contínuas de trabalho.

AMIEL LOBATO
Certamente isso é ilegal, senhor Henares.
Pode estar certo, senhor Henares,
que sentimos muito,
mas, também estamos trabalhando e somos
obrigados a perder este tempo.
Quer fazer o favor de nos repetir o que o senhor
fez hoje, entre as doze e cinquenta e treze e
dez?
3

BERNARDO HENARES
Outra vez?
KAISER LUPOWITZ
Sim, senhor.
Por experiência, sabemos que muita gente tem a
memória curta.

BERNARDO HENARES encara KAISER LUPOWITZ com ar sardônico.

O fato, senhor Henares,


é que uma companheira sua afirma que o senhor
esteve hoje, entre as referidas horas,
numa casa da Rua Terceira, em Miramar.
E que o senhor deixou seu carro estacionado na
Rua Trinta e Quatro,
a duas quadras da casa que o senhor visitou.
Não foi isso?

BERNARDO HENARES
BERNARDO HENARES impassível.

Isso é impossível, tenente.


Não se pode estar em dois lugares ao mesmo
tempo.

KAISER LUPOWITZ
É a sua palavra contra a de uma testemunha
presencial.

BERNARDO HENARES
Essa senhora pode ter-se equivocado.
Em Havana existem muitos Chevrolets verdes.

KAISER LUPOWITZ
É verdade,
mas apenas um com a chapa noventa e oito
noventa e sete.

BERNARDO HENARES
Se o outro carro,
o que se encontrava em Miramar,
estava fazendo qualquer coisa ilegal,
naturalmente usava uma chapa fria.
4

AMIEL LOBATO tamborilava a mesa com um lápis. VLADIMIR PEREA


encostado na janela; COLINO com os braços sobre o espaldar da
cadeira, encarava o homem com intensa atenção.

KAISER LUPOWITZ
Afinal, onde foi mesmo que o senhor,
disse que se encontrava àquelas horas?

BERNARDO HENARES
Estava na Rua Mercaderes,
a mil léguas de Miramar.
Furou o pneu do meu carro e...

VLADIMIR PEREA
E de onde vinha o senhor?

BERNARDO HENARES
De vários lugares. Não me lembro.
A agenda estava cheia.

KAISER LUPOWITZ
Que pneu o senhor disse que furou?

BERNARDO HENARES
O traseiro da esquerda.

COLINO BUSTAMANTE
E o senhor estacionou do lado esquerdo?

BERNARDO HENARES
Rindo.
Não!
Já repeti três vezes ao tenente que parei à
direita.

KAISER LUPOWITZ
E o que o senhor fez ao estacionar?

BERNARDO HENARES
Outra vez, oficial?

KAISER LUPOWITZ
Sim, senhor Henares. Tenho péssima memória.

BERNARDO HENARES
Abri o porta-malas,
5

tirei as ferramentas e o pneu sobressalente,


coloquei o macaco, levantei o carro,
tirei o pneu furado, substitui pelo outro,
apertei as roscas, baixei o macaco,
recoloquei-o no porta-malas com o resto das
ferramentas e o pneu furado.

KAISER LUPOWITZ
Quando o senhor diz pneu...
quer dizer a roda completa?

BERNARDO HENARES
Claro que sim.

KAISER LUPOWITZ
A que horas mesmo o pneu furou?

BERNARDO HENARES
Às cinco para a uma.
Terminei de trocar o pneu a uma e vinte, por aí.

VLADIMIR PEREA
Por que demorou quase meia hora numa
operação tão simples?

BERNARDO HENARES
Os senhores não se cansam?
Já expliquei isso também:
aquela é uma rua muito estreita,
o que me obrigava a trabalhar do lado de lá,
bem no meio da rua.
Àquela hora, como acontece sempre,
o trânsito era intenso,
de forma que a cada momento eu tinha que me
levantar para deixar passar os carros.

KAISER LUPOWITZ
Como soube a hora exata em que o pneu furou?

BERNARDO HENARES
Enfadado.

Porque olhei o relógio, tenente.


Tinha um encontro com um amigo...
à uma da tarde. Quando estava tirando as roscas,
passou uma senhora amiga minha
6

e por um instante ficamos conversando.


Cheguei ao encontro um pouquinho depois de
uma e meia.
Quer que diga mais uma vez onde se deu o
encontro?

KAISER LUPOWITZ
Por favor... Se isso não o incomoda...

BERNARDO HENARES
Então vamos lá! Foi no Restaurante La Roca.
Meu amigo já fizera o seu turno
e almoçamos muito bem.

KAISER LUPOWITZ
A que horas terminaram de almoçar?

BERNARDO HENARES
Às duas e meia.

AMIEL LOBATO
Que fez o senhor ao deixar o La Roca,
senhor Henares?

BERNARDO HENARES
Voltei para o meu trabalho.

AMIEL LOBATO
E onde o senhor trabalha?

BERNARDO HENARES
Num café de San Miguel del Padron.

AMIEL LOBATO
E qual a hora de sua entrada?

BERNARDO HENARES
Quatro horas.

AMIEL LOBATO
E a que horas chegou?

BERNARDO HENARES
As dez para as quatro.
Mas já disse também ao tenente que tomei umas
cervejas ao passar por Concha y Luyano.
7

AMIEL LOBATO
parou de tamborilar, olhou Henares demoradamente.

É... ali tem uma excelente cerveja.


Levem-no. Ele precisa descansar.

BERNARDO HENARES
Contrariado.

Até quando pretendem me manter aqui,


sem provas? Afinal, que fiz eu?
Por que não chamam as testemunhas a que me
referi?

AMIEL LOBATO
sempre paciente.

Acalme-se, senhor Henares!


Vamos checar suas declarações com as das
testemunhas.

BERNARDO HENARES
É que tenho um negócio importante a fazer esta
noite.

AMIEL LOBATO
enrolando o dedo na espiral do fio telefônico.

Sabemos disso, senhor Henares.


Sabemos perfeitamente qual o negócio que o
senhor tem planejado para esta noite.

BERNARDO HENARES mudou por completo a fisionomia, medroso e


balbuciante. COLINO BUSTAMANTE teve necessidade de segurá-lo
por um braço para ajudá-lo a andar. Saíram sob observação de todos.
O barulho das máquinas para. Recomeça depois que saem.

AMIEL LOBATO
Não é uma sorte para nós que essa espécie de
gente seja feita de material tão frágil?

KAISER LUPOWITZ
Capitão... Alguns resistem mais.

AMIEL LOBATO
8

Mas o fato é que num determinado momento...


todos acabam de joelhos.

VLADIMIR PEREA
Por mim eu já descia o braço.
E que conclusão o senhor tirou disso tudo,
capitão?

AMIEL LOBATO
anda pela sala.
O assunto está complicado, Vladimir.
Se não podemos provar que esse indivíduo não se
encontrava em Mercaderes,
teremos de libertá-lo,
pois não podemos retê-lo sem provas.
E se o soltarmos,
logo ele providenciará para que os demais sejam
alertados, especialmente o homem de Miramar.
Resultado: será suspensa a reunião que tinham
combinado,
o que significa, em resumo, que irá abaixo a
operação que preparamos para daqui a pouco.
E, meses de trabalho perdido!

COLINO BUSTAMANTE
Retornando.
Não seria melhor não soltá-lo?
E, segui-lo?

AMIEL LOBATO
Aí é que está a falha, COLINO.
Para levar a cabo o nosso plano precisamos
prender um do bando,
para que possamos tomar conhecimento da
senha combinada...
e conseguir, com ela,
ter acesso ao lugar da reunião.
Escolhemos para isso o tal Companys;
mas ontem o infeliz bateu com o carro e agora
está recolhido ao hospital de Jaguey, em estado
grave.
Como eles devem saber,
sua senha já não nos serve.
Aí apareceu esse senhor Henares.
Agora sim, poderíamos provar que esteve ali,
9

o processaríamos por cumplicidade com um


agente infiltrado da CIA.
Em seguida, consumada a operação, poderíamos
acusá-lo frontalmente, porque ele,
como você sabe, é o chefe
e teria que estar presente à dita reunião...

COLINO BUSTAMANTE
Mas isto não é uma falha, capitão! É um... uma...

KAISER LUPOWITZ
Procure encontrar a palavra exata, COLINO,
para que possa falar com o advogado.

COLINO BUSTAMANTE
Que advogado?

KAISER LUPOWITZ
Conheço muito bem a mulher de Henares
e sei que é muito esperta.
Se o marido não chegar em casa antes das onze
da noite,

olha o relógio de parede.

e já passam das nove,


ela certamente ira mobilizar um par de sujeitos
para que localizem BERNARDO HENARES.
Já fez isto outras vezes.

AMIEL LOBATO
Ela sabe que o marido está envolvido com um
bando de contra revolucionários?

KAISER LUPOWITZ
Não. Certamente ele não lhe contou nada,
porque sabe que ela é muito indiscreta,
segundo me assegurou tia Alberta.
De qualquer maneira,
ela sabe que Henares compra frascos roubados
e que também anda metido com outros negócios
escusos.

Pausa. KAISER LUPOWITZ mexe no tabuleiro de damas. AMIEL


LOBATO rabisca numa folha de papel, inclina-se para trás em sua
cadeira.
10

AMIEL LOBATO
para COLINO.

Vá chamar a senhora.

Entra mulher de Trinta anos, loura oxigenada, de estatura mediana,


rosto agradável e corpo esbelto, cintura estreita. Senhora de si e
sorridente.

AMIEL LOBATO
Sente-se por favor, senhora Lloveras.

ANATOLIA LLOVERAS
Obrigada, capitão.

AMIEL LOBATO
Senhora, desejamos verificar sua declaração.
A que horas a senhora disse que se encontrou
com o senhor Henares na Rua de Mercaderes?

ANATOLIA LLOVERAS
A uma em ponto da tarde.

AMIEL LOBATO
Como sabe que era exatamente essa hora?

ANATOLIA LLOVERAS
Porque ia almoçar no El Templete
e dei uma olhada no relógio...
quando me encontrei com Bernardo.

AMIEL LOBATO
Conversaram durante muito tempo?

ANATOLIA LLOVERAS
Não. Apenas alguns minutos.

AMIEL LOBATO
Pode-se saber do que falaram?

ANATOLIA LLOVERAS
Claro, tenente! Como lhe disse antes,
falamos de coisas sem importância,
nos limitamos quase a nos cumprimentar.
Perguntei como ia sua senhora.
11

Ele me disse para onde estava indo. Enfim...

AMIEL LOBATO
Desde quando a senhora conhece o senhor
Henares?

ANATOLIA LLOVERAS
Há vários anos.

AMIEL LOBATO
A senhora sabe que o senhor Henares foi
sentenciado?

ANATOLIA LLOVERAS
Sim.

AMIEL LOBATO
E a senhora costumava visitá-lo na granja onde
ele cumpria pena?

ANATOLIA LLOVERAS
Já lhe disse que não, capitão.
Eu não tinha direito a isso.
Sua mulher é que o visitava.

KAISER LUPOWITZ
Que espécie de relações...
a senhora mantém com esse homem?

ANATOLIA LLOVERAS endureceu a fisionomia, engoliu em seco.

A senhora tem liberdade de responder ou não.

ANATOLIA LLOVERAS
Prefiro não responder.

VLADIMIR PEREA
Que fazia Henares,
quando a senhora passou por ele?

ANATOLIA LLOVERAS
Afrouxava umas roscas com algo parecido com
uma cruz.

KAISER LUPOWITZ
De que pneu ele tirava as roscas?
12

ANATOLIA LLOVERAS
De um da parte traseira do carro.

KAISER LUPOWITZ
A senhora almoçou sozinha no El Templete?

ANATOLIA LLOVERAS
Sim.

KAISER LUPOWITZ
O que a senhora almoçou?

ANATOLIA LLOVERAS
Tenta lembrar-se olhando para cima e contando nos dedeos.

Sopa de aletria, galinha frita e sobremesa.


Ah! Também tomei um sorvete.

AMIEL LOBATO
No El Templete fazem um excelente sorvete.

KAISER LUPOWITZ
De que era o sorvete?

ANATOLIA LLOVERAS
De chocolate.

KAISER LUPOWITZ olha AMIEL LOBATO. Ele balança a cabeça.

AMIEL LOBATO
COLINO, acompanhe a senhora. E traga Trigo.
Faça com que sirvam café e refresco para a
senhora Lloveras. Cuidem bem dela.

Saem.
AMIEL LOBATO
O sorvete do El Templete é muito bom...
Mas não fabricam sorvete de chocolate...
Só de frutas nativas.

ENquanto isso TRIGO vem entrando com COLINO. Trigo se senta sem
cerimônia. Corte direto para o rosto de Trigo.

TRIGO
Os senhores dirão...
13

AMIEL LOBATO
Enérgico.
Tenha a bondade de ficar em pé.

TRIGO obedece e resmunga.

Qual o seu nome?

TRIGO
zombando, fala e olha os detetives.

Venâncio Trigo Querejeta, natural de Havana,


quarenta e seis anos de idade, casado,
alfabetizado e residente na Rua Arnau sem
número, subúrbio de La Lira.
Passei pela Rua Mercaderes a uma e quinze e vi
meu amigo Bernardo trocando um pneu,
e então lhe disse:
"Agora não deves encher de ar, deves por rum
Coronilla",
e então ele me mandou para a casa do caralho e
eu...

AMIEL LOBATO
Paciente.
Leva ele daqui, Colino.
Lave a boca dele com sabão.

TRIGO
Não me toque, que sei caminhar sozinho!
E o senhor, capi, quando vai me soltar?

AMIEL LOBATO
Logo que você esteja disposto
a se comportar decentemente.
Há muitas senhoritas aqui...
sujeito mal educado.

TRIGO dá de ombros e sai com certa bossa.

Traga o outro, Colino.

O outro era um gordo, satisfeito, balofo, petulante, prepotente.


Chapéu na mão. KAISER LUPOWITZ faz sinal para AMIEL LOBATO.
14

KAISER LUPOWITZ
Sente-se, senhor Ronzo.
senta-se brusco, olhou para AMIEL LOBATO, mas AMIEL na sua
cadeira e se volta para a parede. Kaiser pega de um bloquinho e vai
lendo.

O senhor nos disse que esteve em La Roca...


almoçando com seu bom amigo...
Bernardo Henares,
entre uma e meia e duas e meia da tarde.
É verdade?

RONZO
Altaneiro.

Sim, senhor.

VLADIMIR PEREA
E, ele lhe disse se havia acontecido algo?

RONZO
Sim.
Me disse que um pneu do seu carro havia furado,
lá na Rua Mercaderes.

KAISER LUPOWITZ
Disse também que vira alguém enquanto trocava
o pneu?

RONZO
Sim.
Que encontrara sua amiga Anatólia.
Uma gostosa...
E que pouco depois passara por ali um tal...
um tal de Frigo... Drigo... algo assim.

KAISER LUPOWITZ
O senhor conhece a senhora Lloveras?

RONZO
Sim... Sim, senhor.

KAISER LUPOWITZ
Como e quando?

RONZO
15

Foi Henares quem me apresentou a ela,


já tem algum tempo.
KAISER LUPOWITZ
Por acaso...
não teria sido num bordel da Rua dos Animais?

RONZO
Surpreso. Morde os lábios.

Sim. Mas isso é coisa do passado.


A senhora se regenerou.

KAISER LUPOWITZ
O senhor acredita nisso?

RONZO
Tenente, a Revolução...
Ou regenera ou paredão...

KAISER LUPOWITZ
Por favor, responda-me:
o senhor crê realmente que essa senhora tenha
se regenerado?...

ele baixa a cabeça.

Não quer responder? Pois eu lhe digo: Não!

Pausa.

Outra pergunta:
pode dizer-me que relações existem entre ela e
Henares?

RONZO
Não me imiscuo na vida privada das pessoas.
Puxa! Mas talvez possa dizer que ela está se
superando.

Lembra-se.

Estava estudando idiomas...

KAISER LUPOWITZ
Eu sei. Está estudando grego...
por conta própria. E sabe por que?
16

Para entender-se melhor com os marinheiros


mercantes dessa nacionalidade.
Ela e Henares se especializaram em explorá-los.

RONZO
Eu não sabia disso.

KAISER LUPOWITZ
Claro que sabe,
já que vem emprestando sua casa para tais
encontros clandestinos.

RONZO
Os senhores me vigiam?

KAISER LUPOWITZ
Será que o senhor já não esteve envolvido em
atividades contra revolucionárias?

RONZO
Constrangido.

Para que lembrar isso agora?


Já cumpri um ano de prisão. Já...

KAISER LUPOWITZ
O senhor conheceu Henares na granja de Melena,
certo?

RONZO
Bufando. Nervoso. Aperta o chapéu.

Sim.

VLADIMIR PEREA
A que se dedica o senhor agora?

RONZO
A nada.
Era proprietário de vários edifícios,
que me foram tirados.

KAISER LUPOWITZ
Não! não lhe foram tirados.
A Revolução os nacionalizou,
através de uma lei popular.
17

O Estado não lhe paga um subsídio?

RONZO
Sim. Recebo seiscentos pesos mensais.

KAISER LUPOWITZ
E por acaso o senhor não gasta mais do que
recebe?
RONZO
Não, senhor. Vivo apenas do que recebo.

KAISER LUPOWITZ
Seiscentos pesos mensais são vinte pesos diários.
Quanto o senhor gastou hoje no almoço?

RONZO
Uns quarenta pesos, incluindo os aperitivos.
Mas não faço isso todos os dias, tenente!
Era uma comemoração...

KAISER LUPOWITZ
Pois sabemos que o faz com bastante frequência,
sim!

RONZO
Os senhores estão me vigiando?

KAISER LUPOWITZ
Não, senhor.
Não podemos perder tempo vigiando-o.
Acontece, senhor Ronzo,
que o senhor tem fama de petulante,
pretensioso e insolente.
No quarteirão onde o senhor mora,
e que por acaso fica bem próximo da minha casa,
o senhor já teve vários problemas com vizinhos,
não é?

RONZO
É que o presidente do Comitê não faz outra coisa
senão implicar comigo.

KAISER LUPOWITZ
O presidente do Comitê do seu quarteirão,
senhor Ronzo, não implica com o senhor.
18

RONZO começa a se abanar, nervoso.


Ao contrário, é o senhor que se atrita com ele,
porque quando emborca alguns copos a mais
começa a insultar a Revolução,
e ele é um revolucionário.

COLINO BUSTAMANTE
Senhor Ronzo... está se sentindo mal?

RONZO
Não, não. É o calor.

COLINO BUSTAMANTE
Então, poderia nos dizer...
qual o motivo do seu encontro com Henares?

RONZO
Somente para almoçar.

COLINO BUSTAMANTE
Não se encontraram para tratar de algum
assunto?

RONZO fica mais tonto e se apoia na mesa. COLINO levanta os olhos


para KAISER LUPOWITZ.

KAISER LUPOWITZ
Responda: sim ou não?
Lembra que algumas coisas nós já sabemos
e outras ainda não...

RONZO
Inquieto.

Foi Henares quem lhe disse isso?

KAISER LUPOWITZ
Sim ou não...

RONZO
Já disse que só almoçamos...
O que ele falou, afinal?

KAISER LUPOWITZ
Por que supõe que foi Henares que nos disse?
19

RONZO
Não suponho nada, tenente. Eu...

emudece olhando para KAISER LUPOWITZ.

KAISER LUPOWITZ
O que o senhor ia dizendo?

RONZO
Eu... enfim...

KAISER LUPOWITZ
Amigável.

Bem, senhor Ronzo,


o senhor quer nos dizer o verdadeiro motivo do
encontro,
só para ver se coincide com o que disse Henares?

RONZO
se agita.

Quero um advogado!

AMIEL LOBATO
sem se voltar da parede.

Não há necessidade de advogado...


O senhor não está indiciado. Sequer está detido.
Compareceu aqui como testemunha de seu amigo
e com o simples objetivo de prestar algumas
declarações.
Compreende?

RONZO
Sim, sim, capitão.

AMIEL LOBATO
No entanto,
se o senhor exige um advogado para responder a
simples perguntas, pode fazê-lo.

oferece o telefone.

O telefone está às suas ordens.


20

RONZO
reluta e pensa.

Não, não. Se não estou preso, não é preciso.


Eu me precipitei.

KAISER LUPOWITZ
Capitão,
devemos compreender a situação do senhor
Ronzo:
o senhor Henares é seu amigo.
O senhor Ronzo veio aqui apenas para ajudá-lo
e agora se encontra diante do dilema de dar uma
resposta capaz de prejudicar seu amigo e
companheiro de prisão.
Não é assim, senhor Ronzo?

RONZO
Sim.

Percebe.

Companheiro de prisão?

KAISER LUPOWITZ
Isso significa.
Que o verdadeiro motivo do encontro era tratar
de um assunto clandestino,
ou secreto, ou particular...
que ele não pode relatar.

RONZO
Era um assunto particular!

KAISER LUPOWITZ
Está vendo?
Isso não coincide com o que disse Henares.

RONZO
Que é que ele disse?

KAISER LUPOWITZ
Não iremos cometer a bobagem de revelar,
senhor Ronzo.

AMIEL LOBATO
21

Gira e fica de frente para Ronzo.


Senhor Ronzo, não é verdade que o senhor
morava em Manzanillo, em 58?

RONZO
transpira muito.

Sim.

AMIEL LOBATO
Não se lembra de um jovem...
que bateu na porta de sua casa,
em busca de refúgio?

CORTE
AMIEL LOBATO VOZ OVER
Segue a cena que AMIREL LOBATO relata.

RONZO manda o jovem embora com as mãos.


Empurra o jovem. O jovem grita que MasFerrer e
seus assassinos o estavam perseguindo. Mas, o
senhor Ronzo não liga e dá de ombros.
Pelo menos... o senhor deve se lembrar...
que lhe bateu com a porta na cara,
depois de chamá-lo de bandido rebelde.
E logo depois o senhor não ouviu disparos?
Sabe que idade tinha aquele menino, ao morrer?
Quatorze anos.
Sabe para onde o jovem pretendia ir?

AMIEL LOBATO VOZ ON


Queria ir para as montanhas lutar pela liberdade
e contra a exploração.
O senhor sabe que aquele menino era o meu
irmão mais moço e o mais querido?

RONZO murcha.

Levem-no, por favor.

VLADIMIR PEREA e COLINO o carregam arrastado.

Ai vai outro... feito covardia e de exploração.

Pausa. VLADIMIR PEREA retorna.


22

VLADIMIR PEREA
Que tipos mais cronometrados, vocês não acham?

KAISER LUPOWITZ
Sim. Sabem seus papéis de cor.
Em tempo e medida.

VLADIMIR PEREA
A única coisa que não convenceu foi a tal história
referente ao assunto que trataram durante o
almoço.

AMIEL LOBATO
Sim.
Mas o fato é que não fizemos qualquer progresso.

VLADIMIR PEREA
É provável que Ronzo tenha ajudado Henares a
preparar o álibi...
esse álibi cheio de mentiras cronometradas.

COLINO BUSTAMANTE
Retorna.

Mas por que prepararam esse álibi?

AMIEL LOBATO
Sabemos... e todas essas mentiras o confirmam,
que não pode ser outro senão Henares o visitante
da Rua Terceira.
Sem dúvida, ele deve ter visto algo de suspeito
antes de entrar ou ao sair.
Por isso preparou o álibi.
Quem estava de guarda aquela hora?

VLADIMIR PEREA
Polanco.
Ele também viu o Chevrolet verde passar na
direção de Havana.

KAISER LUPOWITZ
Polanco é discreto e conhece o seu oficio.

VLADIMIR PEREA
Também lá estava uma viatura nossa, chapa fria;
mas o motorista não viu nada, porque naquele
23

momento exato recebeu uma chamada urgente


da Chefatura.

COLINO BUSTAMANTE
É possível que tenha visto a presidente do Comitê
anotando o número da chapa...

KAISER LUPOWITZ
É difícil.
Esses companheiros já não cometem tais erros.
Inclino-me a crer que o homem se assustou
sozinho.
Deve ter acontecido... apenas...
alguém ter passado, e, olhado para o Chevrolet
por simples curiosidade.
Isso acontece com frequência.
Não esqueça que essa gente sofre de mania de
perseguição.
Sabem que o povo está contra eles e,
por isso,
qualquer um que os encara os faz tremer.

VLADIMIR PEREA
E não podia também ser uma tática?

KAISER LUPOWITZ
O que você quer dizer?

VLADIMIR PEREA
Que preparam álibis de antemão para poderem
realizar uma operação.

AMIEL LOBATO
Vamos tomar nota disso, Perea, apesar de que,
se fosse assim, o nosso infiltrado no bando,
já o teria sabido.
Enfim, estamos num beco sem saída.

o telefone toca. AMIEL tirou o fone do gancho.

Sim?
surpresa, preocupação.

Hum!
Desliga.
24

KAISER LUPOWITZ
Que aconteceu?

AMIEL LOBATO
Lá embaixo há um advogado esperando. Vem
acompanhado da mulher de Henares.
Ela está fazendo escândalo.

COLINO BUSTAMANTE
Diga-lhes que Henares não está aqui, capitão.

AMIEL LOBATO
Enérgico.

Não podemos fazer isso, Colino!

esmurrou a mesa.

Perea, trate de libertar...

A entrada de ‘TIO’, enxugando as mãos em uma toalha, que deixa


de lado, corta a fala de AMIEL. TIO: Rosto sombrio e tédio.

KAISER LUPOWITZ
Que está acontecendo, Tio?
Pisaram-lhe no pé no ônibus?

TIO
Não! Lá embaixo, na rua,
há um chevrolet estacionado,
e esse moleque malcriado estava tirando,
com a ajuda de um prego,
o ar do pneu sobressalente que estava guardado
– e muito bem guardado! –
no porta-malas aberto. Agarrei o moleque,
e sabem o que e me disse?
"Que lhe importa isso, velho bobo?"

KAISER LUPOWITZ
Espere, espere.
É um Chevrolet ano 58... verde?

TIO
Sim.

KAISER LUPOWITZ
25

... e o número da chapa... sabe?

TIO
É noventa e oito e noventa e sete.

KAISER LUPOWITZ
Tio,
você tem certeza de que esse pneu sobressalente
estava cheio?

TIO
Está me chamando de mentiroso?

KAISER LUPOWITZ
Perdoe, Tio. É o meu estilo...

AMIEL LOBATO
pega do fone.

Manolo, ai embaixo tem um carro estacionado.


É um Chevrolet verde... Sim... O do preso.
Traga-o para o nosso estacionamento e que
ninguém toque nele.
Aproveita e traz o preso...

Amiel sinaliza com a cabeça e saem para o estacionamento.

CORTE
INT. ESTACIONAMENTO.

KAISER LUPOWITZ
Amiel, já perguntamos ao dono do carro
se ele já consertou o buraco do pneu?

AMIEL LOBATO
Não. Por que?

KAISER LUPOWITZ
Porque agora ele dirá que sim.

VLADIMIR PEREA
E se lhe perguntarmos em que oficina ele fez
isso?

KAISER LUPOWITZ
Dirá que foi ele mesmo que o fez.
26

Teve muito tempo para isso entre as duas e trinta


e as três e cinquenta.

No estacionamento, chega o detido com Colino, param ao lado do


carro. KAISER olha o porta-malas. Passa a mão pela roda e pelo
pneu, olha os dedos, sujíssimos, limpa com um lenço branco. Pensa,
coça o queixo.
KAISER LUPOWITZ
Por que não viramos a roda?

VLADIMIR PEREA o faz. Examinam.

Tinha que ser assim.


Vejam o que diz esta etiqueta.

VLADIMIR PEREA
arranca a etiqueta.
"Casa de Pneus Santa Catalina.
Senhor: Bernardo Henares.
Por um conserto no pneu: um peso. A data é
cinco anos atrás.

KAISER LUPOWITZ
Como?
Quer dizer que este pneu estava há cinco anos
sem sofrer um só remendo?

AMIEL LOBATO
Também isso encaixa.
Vladimir, quer colocar a roda no chão?

Kaiser fala no ouvido de Amiel, este faz um gesto de dúvida, coçou


a barba e, consente.

Tragam as ferramentas para desmontar o pneu.

KAISER LUPOWITZ
para BERNARDO HENARES.

Reconhece esta roda como sendo sua?

BERNARDO HENARES
Sim... Sim, senhor.

KAISER LUPOWITZ
Então...
27

sabe que o pneu não está furado.

KAISER LUPOWITZ abre a válvula e o ar se esvai. BERNARDO HENARES


baixa a cabeça olhando o pneu. Em seguida o pneu foi desmontado
por COLINO. KAISER LUPOWITZ enfia a mão no interior. Surgiram
joias.
Kaiser olha o relógio.

Capitão,
tem vinte minutos para mover um processo
contra Bernardo Henares!
Leve em consideração os antecedentes.
E proceda legalmente para que as joias fiquem
como propriedade do Estado.
Colino, conduza o prisioneiro.
Perea, diga a esse advogado que se dirija aos
tribunais populares.

enquanto se movem.

AMIEL LOBATO
Senhores... Todos aqui de volta na hora habitual!
A operação Tornado vai começar.
BERNARDO HENARES olha para KAISER LUPOWITZ
enquanto é levado.

Você também pode gostar