Você está na página 1de 11

20 DE AGOSTO DE 2021

NEGRINHA
Roteiro de Coelho De Moraes sobre obra de Monteiro
LobatoPersonagens: Negrinha, Mãe Preta, Dona Inácia, Padre,
Amiga 1 e 2, Senhora 1 e 2, Cavalheiro, Criada mais velha,
Coroinha, pessoas na igreja.
marcoantoniocoelhopdemoraes@gmail.com
1.

CENA 1
EXT. ESTRADA. DIA
Negrinha caminha pela estrada. Vemos que é pobre. Mulatinha
escura, de cabelos ruços e olhos assustados. Entrada pela
porteira e passa pela senzala. Caminha pelos cantos escuros
das áreas externas. Roupa de farrapos. Dona Inácia caminha
pela casa principal, na varanda. Dona Inácia – gorda senhora,
rica - vê a garota.

DONA INÁCIA
Foge daqui, menina.

Negrinha sai correndo e se esconde.

Se te pego vagabundando já sabe.


Não gosto de criança.

CENA 2
INT. IGREJA. DIA.
Ladainhas na Igreja. Pessoas cumprimentam Dona Inácia que
entra.

CAVALHEIRO 1
Excelente senhora.
Bons dias.

Dona Inácia o cumprimenta com a cabeça.


Mulheres ao lado observam e cochicham, invejosas.

SENHORA 1
Gorda...

SENHORA 2
Gordíssima...

SENHORA 1
Rica...

SENHORA 2
Riquíssima...

SENHORA 1
Se acha a dona do mundo...

SENHORA 2
Mimada pelos padres...

Dona Inácia se senta em certo local que o coroinha aponta.

SENHORA 2
2.

Com lugar certo na igreja...


e camarote de luxo no céu.

CENA 3
INT. CASA INÁCIA. NOITE.
Iluminação de lamparina. Grilos lá fora. Inácia entaladas as
banhas no trono uma cadeira de balanço na sala de jantar /
borda. A mucama se apresenta e lhe fala algo. Logo em seguida
entram amigas e o padre. Sentam-se e conversam. Dona Inácia
ordena algo à mucama que se vai.

PADRE
Dona Inácia...
dama de grandes virtudes apostólicas,
esteio da religião e da moral.

AMIGA 1
Ótima.

DONA INÁCIA
Tenho paciência para tudo...
Mas não admito choro de criança.
Ai! Isso me põe nos nervos em carne viva...

A mucama reaparece com chás e bolos.


Depõe sobre uma mesa central enquanto conversam.

AMIGA 2
Também... Viúva sem filhos,
não a calejara o choro da sua própria
carne...

PADRE
Serve-se do chá.

Uma virtuosa.
... e por isso não pode mesmo suportar o
choro da carne escrava,
que é uma carne menor.

De repente um vagido ao longe.

DONA INÁCIA
Quem é a peste que está chorando aí?
Quem havia de ser?
A pia de lavar pratos??
O pilão??
3.

Em outro aposento a mãe da Negrinha abafa a boca da filha e


corre com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em
caminho beliscões desesperados.

MÃE PRETA
Bate Be belisca a menina.

Cale a boca, peste do diabo!!

NEGRINHA
Fome, mãe...

MÃE PRERTA
Fica quieta.

NEGRINHA
Frio, mãe.

CENA 4
INTERIORES. CÔMODOS VÁRIOS. MOMENTOS DIFERENTES DO DIA.
Negrinha em vários cômodos. É empurrada. Toma pontapés.
Batem-lhe sempre. Pega pela orelha é trazida para perto de
Dona Inácia. Fica ali de pé enquanto a Dona Inácia borda.
Negrinha se senta no chão e toma tapas na cabeça.

DONA INÁCIA
Levanta peste suja.
Pensa que vai ficar às soltas,
reinando no quintal, estragando as plantas?
Sentadinha aí, e bico!! Hem??

Negrinha imobiliza-se no canto.

Braços cruzados, já, diabo!!

Negrinha cruzava os bracinhos, a tremer, sempre com o susto


nos olhos. O relógio bate uma, duas, três, quatro, cinco
horas. Negrinha se diverte com um cuco tão engraçadinho!
Sorria-se, então.

Peste, fecha esse sorriso, seu diabo...


sua coruja velha.

CENA 5
Sucessão de cenas cortes em que se alterna o rosto da menina,
rosto assustado ao choro, e o rosto de Dona Inácia que a
xinga repetidamente.

DONA INÁCIA
4.

Barata descascada, bruxa, pata choca, pinto


gorado, mosca morta, sujeira, bisca, trapo,
cachorrinha, coisa ruim, lixo. Peste
bubônica.

CENA 6
Varredura pelo corpo de Negrinha. Sinais roxos, cicatrizes,
vergões. Então a mão de alguém... se descarrega em coques na
cabeça de Negrinha, que tenta se defender.

CENA 7
INT. SALA DE DONA INÁCIA. TARDEZINHA
Negrinha está ao lado da porta.
Hora do chá com bolos.

AMIGA 2
A excelente D. Inácia...

AMIGA 1
Mulher de envergadura... firme..

PADRE
Vem da escravidão, a nossa anfitriã...
fora senhora de escravos.

DONA INÁCIA
Nunca me afiz ao novo regímen...
essa indecência de negro igual a branco;
e qualquer coisinha,
a polícia vem tirar satisfações!!

PADRE
Sim... Qualquer coisinha.

AMIGA 1
Antes muito mais fácil...
a gente assava uma mucama ao forno,
porque se engraçou dela o senhor.

AMIGA 2
Ou uma novena de relho,
porque reclamou da sinhá.

DONA INÁCIA
O 13 de maio tirou-me da mão o chicote,
mas não me tirou da alma a gana.
Conservo esta Negrinha em casa como remédio
e lembrança.
Venha cá, Negrinha!
5.

Negrinha se aproxima.
Toma uma saraivada de coques e nem pode sair do lugar.
Se Negrinha sai do lugar uma das Amigas a puxa pelas orelhas
e a põe no lugar. Dona Inácia aperta o baixo-ventre de si
mesma.

Ai!
Como alivia a gente uma boa roda de coques
bem fincados!...

AMIGA 1
Puxões de orelha: o torcido,
de despegar a concha...
bom! bom! bom! gostoso de dar!...

AMIGA 2
E o a duas mãos?
O sacudido?

AMIGA 1
Prefiro beliscões: do miudinho,
com a ponta da unha, a torcida do umbigo,
equivalente ao puxão de orelha.

PADRE
No seminário tínhamos a esfregadela:
roda de tapas, cascudos,
pontapés e safanões tudo de uma vez...
enquanto passávamos por um corredor de
batinas...
divertidíssimo!

DONA INÁCIA
E fez algum mal?

PADRE
Claro que não... olhe onde vim parar.
A vara de marmelo, flexível, cortante:
para doer fino, nada melhor.
Educação é imprescindível.

AMIGA 1
É... Mas essa Lei Áurea...
antes isso do que nada.

DONA INÁCIA
Lá de quando em quando vinha um castigo maior
para desobstruir o fígado e matar saudades
do bom tempo.
6.

AMIGA 2
Foi assim com aquela história do ovo quente?

Amiga 1
Que ovo?

AMIGA 2
Não sabe?? Não sabe padre?

PADRE
Conheço, conheço sim...

DONA INÁCIA
Ora!
Uma criada nova havia chegado...

CENA 7
Negrinha come a um canto e separa um pedaço de carne para o
fim. Uma criada nova que havia chegado, mais velha, branca,
furta, do prato de Negrinha, a carne.

NEGRINHA
Peste!! Espere aí!! Me devolve a carne.

CRIADA
Você vai ver quem é peste.
A criada vai à sala de Dona Inácia.

CRIADA
Dona Inácia...
a Negrinha me chamou de peste...
na frente das pessoas.

D. Inácia se levanta.
corpanzil.
azeda.

DONA INÁCIA
Eu curo ela!

Dona Inácia vai à COZINHA, rufam as saias.


Dona Inácia vê que fervem ovos.

Tragam um ovo!!

A criada trouxe o ovo numa colher.


Negrinha encolhidinha a um canto,
trêmula, olhar esgazeado.

Venha cá!!
7.

Negrinha aproximou-se.

Abra a boca!!

Negrinha abre a boca. Dona Inácia, com a colher enfia na


boca de Negrinha. E suas mãos fecham a b oca da menina até
que o ovo arrefecesse. Negrinha urra surdamente, pelo nariz.
Esperneia. Dona Inácia a solta.

Diga nomes feios aos mais velhos outra vez!!


Ouviu, peste??
Dona inácia retorna à sala.
No mesmo momento o padre entra.

Ah! Monsenhor!
Não se pode ser boa nesta vida...
Estou criando aquela pobre órfã, filha de Cesária;
mas que trabalheira me dá!

PADRE
A caridade...
de mãos dadas à educação...
é a mais bela das virtudes!

DONA INÁCIA
Sim, mas cansa...

PADRE
Quem dá aos pobres, empresta a Deus!

DONA INÁCIA
Suspira piedosamente.

Ainda é o que me vale...

CENA 8
EXT. VARANDA DA CASA DE DONA INÁCIA. DIA
Passagem de tempo. Duas sobrinhas pequenas, louras, ricas
chegam na casa. Dona Inácia sai em festejos.

DONA INÁCIA
Que felicidade... minhas sobrinhas.
Que belas férias teremos...

Negrinha, do seu canto, na sala, viu-as, alegres, pulando e


rindo. Negrinha vê aquilo como diversão... roda aos
pouquinhos a saia. Entra no ritmo das brincadeiras, ainda em
seu canto. Á medida que as meninas vão abrindo presentes.
Negrinha se vê quase dançando pela sala. Negrinha levantou-
8.

se e veio para a festa infantil, fascinada. Mas uma tremenda


bofetada no rosto de Negrinha a faz cair longe.

Já, para o seu lugar, diabo preto!!


Não se enxerga??

Negrinha encorujou-se no canto de sempre.

MENINA 1
Quem é, titia?

DONA INÁCIA
Quem há de ser?!

Suspira.

Uma caridade minha.


Não me corrijo,
vivo criando essas pobres de Deus..
Uma órfã... Mas, brinquem, filhinhas!!
A casa é grande. Brinquem por aí a fora!!
Brinquem!!
Vou mandar arrumar o quarto de vocês.

Dona Inácia sai.


Negrinha olha a saída de Dona Inácia. A palavra ‘BRINQUEM’
ecoa enquanto as meninas brincam e Negrinha está no canto em
posição fetal. Olhos esbugalhados.
As meninas abrem os presentes.
Abrem caixas de brinquedos. Saem casinhas... Um cavalo de
rodas!... Negrinha arregala os olhos, fica de pé, olha tudo
aquilo. Uma das meninas puxa uma boneca que fala, que
dorme... Negrinha está deslumbrada.

NEGRINHA
É feita??...

Negrinha está extasiada. Enlevada, Negrinha aproxima-se da


boneca. As meninas a olham. Negrinha olha a boneca com
assombro e encanto. As meninas admiraram-se daquilo.

MENINA 1
Nunca viu boneca??

NEGRINHA
Boneca??
Chama-se Boneca??

Riram-se as meninas.

MENINA 2
9.

Pode pegar...

MENINA 1
E você, como se chama?

NEGRINHA
Negrinha.

As meninas torceram-se de riso; percebem que o êxtase da


Negrinha perdura, estendem a boneca.

MENINA 1
Pegue!!

Negrinha olha para os lados, ressabiada. Depois, pega a


boneca. E muito sem jeito, como quem pega uma criança de
verdade, sorri para a boneca e para as meninas, com relances
de olhos assustados para a porta.

CENA 9
A sala se transforma em um trono celeste. Negrinha com a
boneca nos braços. Anjos a rodeiam... um filhinho de anjo
adormeceu em seu colo.

CENA 10
Dona Inácia entra na sala e vê Negrinha ninando a boneca.
Negrinha está de olhos fechados, sorrisão, rosto virado para
o alto. D. Inácia entreparou, feroz, e esteve uns instantes
assim, imóvel, presenciando a cena. As sobrinhas estão
alegres olhando Negrinha. Ao perceber Dona Inácia na sala,
Negrinha treme, passa-lhe num FLASH as imagens do ovo quente,
dos chutes, dos beliscões, dos tapas, FLASH ornados de gritos
e ecos. Dona Inácia se aproxima. A boneca cai... a boneca
grita um longo som... Negrinha se defende para não apanhar
muito. Lágrimas de pavor assomam os olhos de Negrinha. Dona
Inácia vê tudo aquilo e desmonta a pose de ferro.
Apieda-se.

DONA INÁCIA
Vão todas brincar no jardim!!
As meninas já saem. Catam a boneca.

...e vá você também!!


mas veja lá!! Hem??

Negrinha ergue os olhos para a patroa, olhos ainda de susto


e terror. Compreendeu e sorriu. As meninas a foram puxando
para a fora. Brincaram ao sol sob o olhar de Dona Inácia.
10.

CENA 11
EXT. VARANDA. DIA.
Passam-se dias e dias no calendário. As meninas, levando a
boneca, entram no carro e partem dando adeus. Negrinha foca
na boneca e dá adeus. Negrinha fica sozinha na varanda
enquanto todos entram. Dona Inácia baixa a cabeça e observa
Negrinha que olha o carro se afastando.
Negrinha deita na rede. Enfraquece. Dona Inácia a olha, mas
se afasta. Um médico a ausculta, mede a febre, e, desengana
a menina para Dona Inácia. Negrinha, relembra as férias.
FLASHS: abraçada, rodopia com a boneca, anjos, céu, vozes
apagadas, cuco, Brincadeiras ao sol, no jardim. Brincara com
a boneca que dizia papai... cerrava, a boneca, os olhos para
dormir. O Cuco vai cantando cada vez mais alto depois
devagar, vai silenciando em meio ao burburinho do delírio.
Até o cuco para de cantar, restando o tique taque do relógio
que também para.
Morre na rede rota.

Você também pode gostar