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Tratamento em 2020

PUTA
COM
PHD
Personas: Kaiser, Mulher das pipocas, Boca Mole,
Psicanalista, Flossie, garotas, Geise, Vendedor
Petúnias, Meninas: Loira / Morena, Persky, Emma
Bovary, Aluno na Biblioteca, Edna bibliotecária.

marcoantoniocoelhodemoraes@gmail.com
1.

CENA
EXT. RUA. DIA
Kaiser na rua se prepara para invadir uma casa / pé ante pé /
Vê pela janela a mulher que come pipoca / muito atenta / em
frente ao televisor sem tirar os olhos do aparelho /
Risos na TV / ela esboça um sorriso cheio de pipoca.
Kaiser entra e vai para o banheiro sem que a mulher perceba e
se bate irritado.

KAISER
O que adianta ser o melhor detetive que
há por aqui...
se tenho que encarar coisas como essas...
Trabalho que ninguém quer fazer.

Grita para a porta.

Mulher! Você é uma zebra televisiva...

A mulher se vira como se ouvisse algo / mas logo volta como


um zumbi para a TV com seu sorriso idiota / Kaiser está
assustado.

Será que ela me ouviu?


Não é à toa que o marido não quer saber dela.

Kaiser apaga e acende as luzes do banheiro, feito criança.

CENA
EXT. KAISER NA RUA.DIA.
Anda pensativo com as mãos no bolso / Aproxima-se Boca Mole /
Kaiser o vê de longe.

KAISER
(Voz off)
Uma coisa sobre ser um detetive particular:
você tem que aprender a seguir os seus
palpites.
Por isso,
quando um cara seboso chamado Boca Mole
Falador me parou na rua, e,
pôs as cartas na mesa,
eu devia ter confiado no calafrio que subia
pela minha espinha.
2.

BAB
Nervoso / irritadiço / um tanto suado de nervoso.

Kaiser? Kaiser Lupowitz?


Você é o famoso Kaiser?

KAISER
levanta a carteira de detetive na direção do rosto de Bab.

Isso é o que diz a minha licença, meu chapa.


O famoso Kaiser sou eu mesmo.

BAB
Treme / medroso / olha para os lados como que perseguido.

Você tem que me ajudar.


Estão me chantageado.
Por favor! Preciso de ajuda agora!

Kaiser demora um tempo a olhá-lo.

É a senhorita Clara Rosa...

FLASH:
Uma cena do tiro de morte que Kaiser desfere em Clara Rosa.

KAISER
Frio.

Isso é impossível. Ela está morta,


Você não sabe do que fala.

BAB
Rita Butkiss?

KAISER
Piorou...

BAB
Por que?

KAISER
Clara Rosa ou Rita Butkiss vestiram o pijama
de madeira, meu chapa.
São a mesma pessoa.
Eu estava presente quando isso aconteceu.
3.

FLASH: cena do tiro.

BAB
Não foi Soninha Pastora?

KAISER
Pensa / fecha os olhos.

É... pode ser... essa é meio fantasmagórica.


Se bem que as três fazem a trindade
criminosa.

Olha e aponta.

Vamos até aquela birosca da esquina.


Eu te pago um trago...
você se acalma e me conta o que quiser.
Está bem?
Se a história for ruim você paga a conta.
Se a história for boa você me paga.

Bab hesita. Olha para os lados com medo. Kaiser o toma pelo
braço, aponta o caminho. Saem.

CENA
ABERTURA – música tema e elenco

CENA
INT. CONSULTÓRIO DE ANALISTA. TARDE.
Kaiser no divã

KAISER
Anota em seu livrinho.

O senhor me entende...
preciso de todas as informações possíveis.
Como poderia adivinhar que as pessoas ficam
desse jeito somente por causa da literatura?
A mulher tinha a boca cheia de pipoca...
e não tirava os olhos da TV.

PSI
Necessidade de fantasia além do normal...
evidente... não tem fantasia na realidade,
4.

tem que buscar fora... filmes, games...


literatura. Fantasia e prazer.

KAISER
Mas... o que é considerado normal?

PSI
Sorri.
Para uns, assim e, para outros, assado.
Não tem essa coisa de normal,
senhor Lupowitz...
Chupar o dedão do pé para alguns...

KAISER
Estou à procura de certas mulheres que ainda
não relaxaram tanto assim, e,
nem inflaram como um balão publicitário.

PSI
O seu caso me parece muito interessante,
caro Kaiser...
Me parece uma rede de prostituição.

KAISER
Sei que ganham algum dinheirinho por
fora...

PSI
.. e por dentro também...

Ri sem graça.

... Dentro e fora, dentro fora ...

Mais sem graça ainda.


Kaiser não ri.

KAISER
… o que, em si,
não é razão para esses debates intermináveis
sobre Machado de Assis, Eça de Queiroz...
ou Augusto dos Anjos...

PSI
... mas... que também não machucam...
Kaiser!
5.

Elas atendem a qualquer tipo de clientela?


Será que terão Freud na lista de leituras...
Lacan, talvez.

KAISER
Pelo que vi... tudo e todos.
Sim... tudo, doutor. Tudo.

PSI
Mesmo os carecas?

KAISER
Claro... qualquer tipo... calvo, peludo,
oblongo, narigudo... com barbicha...

PSI
Não me entenda mal, detetive...
sei que calvos e peludos são muito gente,
apesar de suarem muito...
Mas...
você deve saber que as pessoas estão
formatadas pela mídia e seguem a moda
imposta pelas revistas...
Aquela bundinha assim...
aqueles seios turbinados...

KAISER
Sei sei... As pessoas não fazem o que querem.
Alguém deseja por elas...
compro um guarda-chuva e acabou-se, não é?

PSI
Não sei...
não estou aqui para saber de nada...
Sou apenas um psicaslista.

PSI Vai à biblioteca / abre um livro / Lê.

Aconselho o seguinte:
Precisa conhecer uma mulher dessas...
precisa tirar suas conclusões in loco.
Vivenciar a coisa.
Precisa ter um caso. Sabe?
Faça-se de cliente delas... é uma saída.
Sabe, aquela coisa da Imersão no Trabalho?...
entre de cabeça... de cabeças... de cabeça.
6.

KAISER
Pode ser...
Terei que reabilitar o velho Marx...

PSI
O comunista?

KAISER
Não... o comediante.

Sorri. Misterioso.

Marx... Groucho Marx.


Posso não parecer,
Mas... sou romântico pra chuchu!

PSI
Acredito que há, aí,
uma estagnação nas vias afetivas dessas
pessoas que desejam conversas literárias de
alto nível e baixo meretrício.
Está me ouvindo?

KAISER
Em devaneio. Anota tudo.

Baixo meretrício, sei sei...


Preciso namorar,
preciso de delicadezas e muita imersão...
debates literários...
grupos de poeta sem mais o que fazer...
porra louca, filósofos, artistas...
vagabundos...

PSI
Terá que fazer um esforço...
Mas, cuidado...
não chegue a ponto de o convidarem para ser
Diretor de Cultura. É o fundo da poça.

KAISER
Cai em si.

Sei que não estou ficando mais novo a cada


dia e, antes que seja tarde demais,
quero me apaixonar em Veneza,
flertar com (nome de atriz famosa),
7.

... trocar olhares de mormaço com gatinhas à


luz de velas,
tomando vinho e discutindo Fernando Pessoa...
e suas várias personalidades.

PSI
Para resolver esse caso...
você tem que fazer igual a todo mundo,
meu velho...
Mas, um caso não resolverá nada.
Você tem que imergir no caso... porém...

Pausa.
...não se envolva... ou perderá o rumo,
eu já disse...
Você tem que ser realista o tempo todo.
Há um caso em questão...
você deve estar focado.

KAISER
Sei... manter a discrição,
afinal esse é meu trabalho.
Não posso me dar ao luxo de queimar livros em
praça pública.
A Academia de Letras me chuparia o sangue!

PSI
Mas a Secretaria de Estado o parabenizaria...
Kaiser!

KAISER
... E nem pode ser com qualquer garota da
cidade, nem da Fatec, nem da Funvic ou
qualquer outra fonte de literatos sábios...
Para o PSI.

... muitas delas trabalham nesses lugares...


Para dizer a verdade,
nenhuma delas me dá tesão.
Mas, quem sabe,
uma secundarista de saias curtas...
saias plissadas...

PSI
Sr. Kaiser.

KAISER
8.

Já que estou aqui...


Tive um sonho ontem à noite.

PSI
Conte... conte...
Sonhos me interessam.

KAISER
Sonhei que estava me esgueirando entre uns
arbustos,
carregando uma cesta de piquenique.
Na cesta estava escrito: Alternativas.
Só que a cesta estava furada!

PSI
Rígido.

Por isso que prefiro os sonhos da padaria.


Kaiser Lupowitz...
a pior coisa que o senhor poderia fazer seria
dar tanta bandeira.
Contente-se em expressar os seus sentimentos
aqui,
e tentaremos analisá-los juntos.
Sou apenas um analista, não um mágico.

KAISER
Então, acho que preciso de um mágico.

Kaiser agradece tocando a aba do chapéu e para na porta, como


num ato cinematográfico clichê.

Me lembro de uma anedota do velho Groucho:


Se um gato preto cruzar seu caminho,
isso significa que o animal vai a algum
lugar...

Kaiser dá uma piscadela sábia para o PSI e sai.


O Analista fica um tempo olhando para a porta. Toca o relógio
sinalizando fim da sessão, aperta um botão e fala para uma
máquina.

PSI
Senhorita.
Daqui dez minutos mande entrar o próximo.
9.

PSI abre uma revistinha do Pato Donald / põe os pés, sem


sapato, sobre a mesa e ri à beça, com a história,
chacoalhando os dedinhos.

CENA
INT. BIROSCA. LUZ FRACA
BAB e KAISER / os dois sentados / tomada de longe dos dois,
BAB falando mais que a boca / não se ouve o que falam / bebem
uísque / aproxima-se a câmera.

KAISER
Suponha que você relaxe
e conte-me tudo sobre ela,
desde o início.
Do jeito que está fazendo agora...
está mais bagunçado do que o Cosmos
e eu não entendo coisa alguma,
meu chapa.

BAB
Eu ...
eu não quero que minha esposa saiba!
Além disso... eles são violentos.

KAISER
Ninguém quer que a esposa saiba...
até ai não vejo novidade.
Você não me disse nada
e nem sei do que se trata o caso...
... se é que é um caso.
Abra-se comigo, Boca Mole.
Posso chamá-lo de Boca Mole?
Mas...
adianto que não posso fazer promessas.

Bab tenta encher outro copo / treme / barulheira com os copos


/ muito líquido cai no chão / Kaiser segura-lhe as mãos /
olham para os lados sem graça.

Mas, acalme-se assim mesmo.


Vamos estudar o caso, meu chapa.

BAB
Eu sou um cara do trabalho, Kaiser,
eu vivo para o trabalho...
da casa para o trabalho
10.

e do trabalho para casa.


Nada mais do que isso.

KAISER
O que é que você faz, afinal?

BAB
Manutenção mecânica...
eu construo e ofereço serviço de campainhas
divertidas...
você deve saber...
aqueles brinquedos que dão choque quando
você aperta a mão de alguém...

KAISER
Grande porcaria aquilo.

BAB
... É eu sei...

Ri de tolo.

Os pequenos e divertidos truques...

Bate palmas, nervoso.

... tolices... nada mais do que isso, Kaiser.

KAISER
Então?

Debocha.

As crianças o ameaçam com um processo?

BAB
Não...

Repete muitos 'nãos'.

É que...
descobri que muitos executivos,
capitães de indústria,
religiosos do alto clero,
professores universitários,
políticos graúdos gostam de brincar com isso
lá entre eles...
11.

não sei por que...


nos gabinetes... nos consultórios...
na câmara de vereadores...

KAISER
Disperso. Bebe.

Curioso.

BAB
Fizemos uma pesquisa de mercado com eles.
Particularmente os banqueiros...

Tapa a boca e pisca um olho.

... e muito mais ainda...


empresários de clubes fechados.
Se é que me entende.
Sociedades secretas...

Pisca o olho, verificando se está seguro.


Olha para os lados.

KAISER
Não... não entendo...
está com algum problema nos olhos?

BAB
Não... não... preste atenção, Kaiser...
Clubes... clubes com cartão de plástico...
Sociedades secretas...
dessas de triângulo e estrelas...

Faz repetidos movimentos de passar cartão na máquina.

KAISER
Só entendo o que falam clara e diretamente...
Quais Clubes fechados, meu chapa?
Fale de uma vez. Dê nomes...

BAB
É...
esses grupos de ajuda social e tal. Sabe(?)
promoção social, auto-ajuda,
apoio aos desprovidos e coisas assim...
não sei o que fariam se não houvessem os
bobos e os pobres de espírito...
12.

KAISER
... mas são eles mesmos que inventam e criam
os pobres e os bobos...

BAB
É… você tem razão. Kaiser, você tem razão...
tem que ter pobre no mundo
ou não tem caridade.

KAISER
Sim...
pobres e bobos existem antes da caridade...
E por que você acha que Rosa Clara Rosensweig
ou Soninha Pastora têm sempre alguma coisa a
ver com isso?
A mulher que usava esses nomes morreu,
meu chapa.
Foi esse o final do ultimo caso.
Vá direto ao ponto, Boca Mole.
Meu saco está torrando.

BAB
Está bem... está bem... Olha bem...

Chateado.

Eu fico na estrada, viajando,


durante muito tempo...
sabe como é – solidão...

Cara de tédio do Kaiser e leve bocejo.

Oh, não não...


não é o que você está pensando,
Kaiser, eu sou basicamente um intelectual.

KAISER
Basicamente...
Você fabrica choquinho de mão
e é um intelectual?
Ri.

Tem uns caras na cidade de onde venho que


fabricam gelatina...
são intelectuais, também? Progressistas?
13.

BAB
O que quero dizer, Kaiser,
é que um cara pode se encontrar com qualquer
biscatinha por ai...
Mas, as mulheres realmente inteligentes não
são tão fáceis de encontrar...
a curto prazo.

KAISER
Concordo... Continue a falar.
Está me interessando.

BAB
Pausa.

Bem, eu ouvi falar de uma jovem deliciosa...


Uma estudante universitária...
Por um bom preço, ela viria ao meu quarto
para discutir qualquer assunto...
Proust, Yeats, antropologia,
troca de ideias básicas sobre a fenomenologia
de Schopenhauer... uma conversa pós Kant.

Troca de olhares.

Sabe... essas coisas corriqueiras...


Você vê onde eu quero chegar ?

KAISER
Balança a cabeça afirmativamente, lentamente.

Não... exatamente.
Mas, fale assim mesmo,
antes que eu durma.

BAB
Se desespera.

Quero dizer... a minha mulher é muito legal,


não me interprete mal.
Mas ela não vai discutir José Saramago
comigo.
Ou T.S. Eliot. Ou William Faulkner...
Ela só vê novela e come pipoca!!!
Ana Maria Braga e Palmirinha...
entendeu agora?
14.

KAISER
Sei... O Som e a Fúria...
profundidades Shakespearianas...
nada disso...

BAB
Isso...
ou ainda Inácio de Loyola...
aí é que não mesmo.

KAISER
O jesuíta?

BAB
Não... o escritor... de Araraquara.
Dentes ao Sol.

KAISER
E quando se casou você não sabia disso?

BAB
Não! Eu não sabia disso...

KAISER
Namoro serve para isso, Boca Mole.
Você apostava que sua esposa poderia
enveredar pela literatura durante o
casamento...?

BAB
Sim... Na verdade, de certo modo,
fui enganado...
tentei com que ela lesse Cem Anos de Solidão,
mas só sobrou a solidão...

KAISER
Mas... eu repito...
para que é que serve o período de namoro,
meu caro?

BAB
Ela me enganou...
Falava em Drummond, Drummond, Drummond...
ela fazia parte de um Círculo de Poetas que
tinha que declamar descalço...
sobre um tapete persa... falso persa.
15.

KAISER
Anota na caderneta.

Tapete persa ou tapetess Parahyba,


nunca se sabe...
Como se chamava esse grupo de poetas...

BAB
Grupo... fim... Grupo Fim...
É O FIM... ou algo parecido...

KAISER
Que mais?

BAB
Ela só falava nesse grupo, e,
nem percebi que só sabia dele...
Do Drummond e mais ninguém... entende...
Ela ouviu o nome na Tv, sei lá...

KAISER
Ela não o satisfazia? Drummond não basta?

BAB
Quando íamos para a cama não saía nem uma
poesia...
eu ficava horas recitando o monólogo do
punhal do Macbeth e ela nada...
me entende, Kaiser?
Nada...
Quando falei do punhal do Ionesco...
piorou...

KAISER
Boca Mole...
confesso que não sou um conselheiro
matrimonial e muito menos um literato...
Os mais longos textos literários que tenho
lido no momento são as minhas esburacadas
contas bancárias...
principalmente, a coluna de débitos...
O que posso dizer?
Matricule sua mulher num Curso de Literatura
por Correspondência e pronto...

BAB
Na verdade...
16.

Agarra a roupa do Kaiser.

Olha,
eu preciso de uma mulher que seja mentalmente
estimulante, Kaiser.
E eu estou disposto a pagar por isso;
eu não quero um envolvimento.
Eu só quero uma rápida experiência
intelectual, então,
eu quero uma garota para sair.
Uma garota de programa...
Por Deus, Kaiser, eu sou um homem casado...

KAISER
Você sabe que eu estive atrás de Deus, não é?

BAB
Como assim?

KAISER
Minha última missão...
Com Soninha Pastora, Rosa Buttkiss.
Me contratam para procurar Deus...
que havia sumido...
encontrei-o em um necrotério.
Um dos mais interessantes casos da face do
céu e da terra e de todas as coisas, manjou?
E, agora você me vem com esse negócio de
Literatura e choquinhos... sei não.
É decair muito na profissão.

BAB
Não... não sabia... ele sumiu?

KAISER
Passa o dedo na testa em decepção.

Parece que sim... e essa Clara Rosa...


é com ela que você se encontra?

BAB
Vexado.

Sim...

KAISER
17.

Curioso...
Há quanto tempo isso vem acontecendo?

BAB
Seis meses.
O nome dela mesmo é Clara Rosensweig.

KAISER
Anota em seu caderninho.

Eu sei... eu sei...
Rosensweig... A mesma garota que empacotei...
da sumida do tal Deus.

BAB
Soube que lá na Índia ainda tem um Krishna,
um Brahma...

KAISER
Não... esse não sumiu... foi o outro.
Mas, me fala... Qual a cor dos cabelos dela?

BAB
Bem, não sei...
O cabelo muda de cor... mas,
meu maior contato é com outra pessoa.
E, isso é que me dá medo.

KAISER
A puta-madre... a cafetina...

BAB
Sei lá... ela está sempre de touca...
Dá impressão de ser uma mulher careca...

KAISER
Calva... hein?
E, ainda assim é um tesãozinho?

BAB
Sempre que tenho esse desejo eu chamo
Flossie. A careca... Ela é a...

KAISER
A puta-madre... A cafetina.

BAB
18.

Ela é uma senhora com Mestrado em Literatura


Comparada.
Estudou em Cambridge, parece...

KAISER
É onde melhor fabricam gente desse tipo...

BAB
Ela sempre me manda uma de suas intelectuais
mais gabaritadas...
Flossie sabe que sou exigente...
das mais novinhas, sabe, com ideias frescas,
originais e vanguardistas...
Mas, Flossie me faz sentir muita câimbra.

KAISER
Ideias frescas... corpo perturbador...
Aposto que não tiram os pelos do sovaco.

(voz on)
Enquanto Kaiser enquanto olha em torno - enquanto se levanta
- na birosca / Kaiser olha os frequentadores do local /
pessoa a pessoa que mostram rostos característicos e
suspeitos. De vez enquanto retorna o olhar ao Bab que fala,
sem que ouçamos o que diz.

Então, ele era um daqueles caras cuja


fraqueza era, realmente, a mulher brilhante.
Eu senti pena do pobre coitado.
Eu percebi que havia um monte de palhaços em
sua posição,
famintos por um pouco de comunicação
intelectual com o sexo oposto
e pagariam os olhos da cara por isso.
As mulheres não querem se abrir...
então é preciso pagar por isso.

BAB
Agora ela está ameaçando contar à minha
esposa.

KAISER
Quem?

BAB
Flossie. A madame alcoviteira...
A puta-madre... a cafetina...
19.

Eles grampearam o quarto do motel onde eu


estava com Clara...

Desesperado.

São uma quadrilha, Kaiser...


Eles têm gravações minhas discutindo
‘O Paraíso Perdido de Milton’ com uma loira,
e, bem, pelos argumentos,
percebe-se que entramos em algumas questões
cruciais.

Pausa de medo.

Querem cem mil reais ou


me denunciam para minha esposa.
Ou me matam.

Mais desespero.

Kaiser, você tem que me ajudar!


Minha esposa morreria se soubesse que ela não
faz minha cabeça nesses assuntos.
E se minha esposa não morresse...
Eu morreria.
Minha esposa se entupiria de pipoca e
morreria. Morreria... morreria morta.

KAISER
Esse é o velho golpe das cafetinas
catedráticas e você caiu nele, meu chapa.
Mas pode ser que, através de Flossie,
eu chegue à verdadeira Clara,
ou Rita ou Soninha, a Pastora.

Vira-se perdido olhando o salão.

(voz over)
Afinal, quem foi que matei no caso de Deus?
Além de Deus, mais alguém morreu.

BAB
Todas putas?

KAISER
De certa forma... compráveis e vendíveis...
negócios à parte.
20.

BAB
Eu me sinto muito mal com isso.

KAISER
Me passa o telefone da tal Flossie.

BAB
O quê?

KAISER
É isso... Vou pegar o caso, Boca Mole.
Mas isso custa 100 pratas por dia,
mais as despesas.
Você vai ter que consertar um monte desses
anéis de choquinho, meu chapa...
se quiser levar o caso adiante.

BAB
Não importa...
Valerá a pena, se tudo der certo...
Estou preparado para isso...

Bab anota no caderninho de Kaiser.


Kaiser vai ao telefone da birosca.

CENA
INT. BORDEL. DIA
Flossie atende o telefone, de costas, em ambiente bacaninha /
se possível com algumas garotas sensuais espalhadas pelos
cantos.

FLOSSIE
Leve sotaque com “R” germânico.

Sim...
a quem tenho a honra de atender...?

KAISER
Aqui é Kaiser... Kaiser Lupowitz.
Você pode me ajudar a configurar uma hora de
bom papo,
se é que me entende.

FLOSSIE
Kaiser?
21.

Muito interessante... Claro, querido.


O que você tem em mente?
Temos um cardápio apetitoso.

Enquanto conversam pelo telefone Kaiser vira-se, varredura


sobre as mulheres da birosca / mulheres feias / paralela à
essa varredura Flossie olha as suas meninas de trabalho /
nota-as / todas belas e sedutoras / poses e maneios.

KAISER
Eu gostaria de discutir Melville.
Quem você me recomenda, Flossie?

FLOSSIE
Você fala de Moby Dick?
ou dos romances curtos?

KAISER
Qual é a diferença?

FLOSSIE
O preço. Isso é tudo.
Simbolismo é extra.

KAISER
Entendo, meu bem...
Sou completamente inexperiente em Melville...
Quanto isso me vai custar?

FLOSSIE
Virgem em Moby Dick, hein?

Flossie abre o livro de contabilidade,


enquanto sorri.

Cinquenta,
talvez cem por Moby Dick,
depende... do conteúdo, Kaiser...

KAISER
Claro...

FLOSSIE
Você quer uma discussão comparativa?
Melville e Hawthorne?
Isso poderia ser por uma centena de reais ou
dólares...
22.

Enfática.

... também depende.

KAISER
Tudo depende... Parece massa fina...
anote aí...
quarto número 514, no Plaza.
Decida e me manda. Surpreenda-me.
Uma mestra da literatura...
use seus gabarito e experiência.

FLOSSIE
Você quer uma morena,
loirinha em cima e embaixo,
como você deseja?

KAISER
Surpreenda-me.

Kaiser desligou e levantou o polegar para Bab / Flossie


deposita lentamente o fone. Chama alguém com o dedo.

CENA
INT. PLAZA. QUARTO.
Mostramos o prédio pelo lado de fora. Kaiser faz a barba /
bebe café / Le uns livros / tenta decorar algum material /
põe paletó / se prepara na higiene / coloca camuflagem /
bigodes e óculos de plástico tipo Groucho Marx / ridículo / a
campainha da porta soa / Kaiser abre / uma jovem bonita /
produzida de modo a confundir as pessoas / enfiada numa
minissaia cor de rosa / muito apertada a minissaia / a jovem
entra e desfila pelo quarto afetada, modeloide, esguia, cheia
de si.

GEISE
Oi, eu sou Geise.
KAISER
Pode me chamar de Marx...
GEISE
Karl?

KAISER
Não... Karl, não...
Tipo Bond.
23.

Marx...
Groucho Marx.

Circunda a garota / tomadas do corpo de Geise.

Estou surpreso que você não tenha sido parada


por algum policial,
caminhando pela rua vestida desse jeito.
Ninguém ligava para isso na sua Universidade?

GEISE
Mostra a mão em garra e mia.

Miau...
Não há nada que um pouco de Jorge Luiz Borges
não resolva...
Se alguém se aproximasse...
eu dava um jeito no intelecto do espertalhão

Geise mostra as mãos em garra.

Cinco dedos iam esfriar o cara.

Beicinho.

Mas tive problemas no passado...


ao passar na portaria de uma certa
Universidade...

KAISER
Aponta para o sofá.

Vamos começar?

Geise senta-se cruzando, criminosamente, as pernas /


exagero na dobradura.

KAISER
(Voz off)
Isso é fácil...
para quem tem dobradiça natural.

(Voz On)

Quer um cigarro?

GEISE
24.

Pega do cigarro / segura elegante.

Obrigada.
Acho que nós poderíamos começar por...
abordar a personagem Billy Budd de Melville
como justificativa dos caminhos de Deus ao
homem...

Kaiser tenta acender o cigarro mas não acerta a ponta do


cigarro que Geise mexe para todo lado / todas as vezes que o
Kaiser tenha acender Geise desvia e muda de assunto.

É que eu não fumo... apenas chupo.

Clima / olhares / lábios.

Qual sua opinião... senhor Marx?


a baleia branca era como o Deus inacessível..
como em Godot...

Afetada.

... n'est-ce pas?

KAISER
Por que justamente esse negócio de Deus...
outra vez isso?

GEISE
Sorri.

Temos que começar por algum lugar, não é?


Mesmo que neguemos tudo depois,
como Descartes o faria.
Um céptico fora de seu tempo...
negando os cépticos.
Até chegarmos a Nietzsche...

KAISER
O verdadeiro assassino.

GEISE
Como?

KAISER
Desculpe... eu me empolguei...
Sim, sim...
25.

Descartes faria isso na maior cara de pau...


Parece que o Renné está em todas... Sim...
você tem razão... espero curiosamente,
porém, não no sentido miltoniano.

Troca de olhares / Sorriso besta de Kaiser.

(Voz off)

Sorte que li frases do Paraíso Perdido,


de manhã.
Abri o carteado. Eu estava blefando.
Eu queria ver se ela cairia nessa.
Milton... o Paraíso Perdido...

GEISE.
Não.

Geise reflete, pensa / olhares / indecisões / busca na


memória um elo com o assunto.

Paraíso Perdido...?

Geise solta baforadas falsas sem fumaça e muito muxoxo.

... falta a subestrutura do pessimismo.

Incisiva.

E... eu sei que Deus já está fora do páreo...

Pausa.

...já que tocou no assunto...

Pisca para o Kaiser.


Corre o zíper lateral da saia.

...eu conheço o teu caso...


Saiu em todos os jornais...
a tua cliente Soninha Pastora não saía daqui.
Queria embarcar dólares para Miami, não é?
Ela ligava religião e literatura.

KAISER
Certo, certo. Deus fora do páreo...
você está certa. A Morte de Deus...
26.

GEISE
Tem certeza que é Melville que deseja
discutir?
Não será Nietzsche?
Nietzsche é mais apropriado...
para penetrarmos...

Geise esmaga o cigarro no cinzeiro / levanta-se e perambula


rebolando, sensualmente, pelo quarto.

Acredito que Melville reafirmou as virtudes


da inocência num sentido ingênuo,
mas sofisticado...

Geise vira-se.

... você não acha? Marx? Ou Kaiser?

Caras e bocas e babas do Kaiser que olhava a bunda dela...


enquanto isso ela fala sem som.

KAISER
(voz off)
Vidrado na bunda.

Eu a deixei ir adiante. Sabia quem eu era.


Geise, se era mesmo esse seu nome.
Ela tinha desenvolvido a instalação
fundamental do pseudo-intelectual.

Acompanha os voluteios da bunda.

Essa Geise sacudiu fora suas ideias


levianamente,
mas era tudo mecânico.

Mesmerizado na bunda.

Sempre que me ofereceu uma visão,


ela falsificou a resposta.

GEISE
Ah, sim... Sim,
Groucho querido,
isso é profundo.
Uma compreensão platônica do cristianismo –
27.

Põe o dedo no queixo enquanto a saia cai.

... por que eu não vi isso antes...?

CENA
PASSAGENS DE TEMPO. CORTES CURTOS.
Livros folheados, Kaiser e Geise juntinhos / pirulito que
bate bate / riem / relógio que gira, andanças pelo quarto,
poses sensuais, bebidinhas de licor, troca de carinhos
enquanto leem juntinhos / mãos juntas na mesma página /
carrinho de mão com Kaiser de quatro / as roupas se desfazem
/ retiradas de cabelos da testa / posição de conchinha... o
relógio bate / comem as folhas de livros / enfim, clichês de
romance.

CENA
INT. QUARTO
O relógio toca.

GEISE
Bem...
tenho que ir.

Geise se levanta / O Kaiser toma da carteira e a paga.

Obrigada, querido.

Geise cheia de charme / arruma-se no espelho.

KAISER
Há muito mais de onde veio essa.

GEISE
O que você está tentando dizer...?

Enfática / sapeca.

... meu gato...

Curiosa/ sentou-se / pousa mão sobre o joelho dele.

KAISER
Suponha que eu queira fazer uma festa?
28.

GEISE
Tipo assim...
uma festa diferente?
Tipo Brainstorm?
Várias cabeças pensantes...

KAISER
Eu pensava em uma cabeça só.
Uma que não pensa muito.

GEISE
Muita eloquência...
oratória...
o que chamamos de masturbação mental.

KAISER
Masturbação, isso... Isso...
orgia cerebral... suruba intelectual...
todo mundo lendo ao mesmo tempo...
desfolhando...

GEISE
Tema específico?

KAISER
Anda pelo quarto / refletindo.

Suponha que eu queira...


novamente, só de sugestão...
saber sobre Deus... origens do Universo...
por onde anda... sobre a morte de Deus...
quem o matou verdadeiramente...
detalhe por detalhe... nada de ouvir falar...
na batata... prova e contra prova.

GEISE
Quer que eu conte tudo?
Posso citar Epicuro?

KAISER
Sim... sim...
O que desejar...
Eu pensava... explicado por duas garotas...
você e mais alguém...?

GEISE
29.

Oh, uau! Menage a trois. Gostei da ideia.

KAISER
Se você preferir...

Hipócrita.

... podemos esquecemos o assunto...


deixar isso pra lá...

GEISE
Não... não... eu topo, mas, sabe...
Você terá que falar com Flossie...
ela e eu, talvez... Mas vai custar caro...
Sabe... duas mulheres... dialética e tal...
intromissão no íntimo alheio...
alguma coisa em torno de Kirkegaard...
Metafísica...

KAISER
Retira um emblema do bolso.
Geise tenta ler... põe óculos.

GEISE
Sociedade Protetora das Divindades
Decadentes.
O que é isso!?

KAISER
SPDD.
Discutir Melville a dinheiro é 171, doçura.

Geise se afasta / cobre-se pudica.

Fica sabendo que já trancafiei metade dos


sofistas e joguei a chave fora...

GEISE
Afasta-se.

Verme!

Geise tenta arranhá-lo / lutam / rasgam as roupas no embate


violento / pegam-se / Geise tenta sempre fugir / Kaiser se
desvia / Geise pespega uns belos tapas em Kaiser / Kaiser
pega da garota e dá uns tapas na cara dela.
30.

Você sabe que existe a lei Maria da Penha?

KAISER
Sei.

Dá outro tabefe.

É melhor ficar calma, garota...

GEISE
Tenta escapar / Kaiser a segura.

Solte-me seu verme.

KAISER
Para uma literata...
seu repertório de palavrões é muito pobre.

GEISE
Seu puto do caralho!

KAISER
Ops!
Palavrão banal...
Nem parece que o vestido rosa era seu...
Fique quieta...
ou terei que usar a técnica que mestre Bond
me ensinou.

GEISE
Solte-me seu canalha...
solte-me.

Kaiser desce um soco / ela cai.

Porco chauvinista!

KAISER
Porco, talvez...
chauvinismo, está fora de moda...
A menos que você queira contar a sua história
na polícia e eu não acho que isso pegaria bem
para você...

Ênfase.
... meu bem.
31.

GEISE
Chora.

KAISER
Não me venha com Stanislavsky.

GEISE
Para imediatamente de chorar / vai pegar do lencinho na bolsa
e Kaiser segura seu braço / bem forte.

Ai... seu bruto...

Geise mostra o lenço / Kaiser a solta.

Não me entregue, seu Groucho...


Eu preciso do dinheiro para completar o
mestrado na USP.
Fui rejeitada para uma bolsa do Capes...
eu queria uma subvenção.
O governador cortou os subsídios...
O presidente jumento meteu os pés pelas mãos.
O sindicato é pelego... sabe como é.
Oh, Cristo.

KAISER
Cristo? O filho?

GEISE
Não... é força de expressão...
se eu não tiver Mestrado...
Flossie me manda embora...
Não poderei mais trabalhar.
Estarei na sarjeta.

Geise decide-se.

Eu confesso... confesso tudo...


Tudo...
a casa caiu mesmo...
Confesso toda a história.

Geise anda pela sala, apertando as mãos.

Eu tive educação de elite...


fiz minha viagem à Disneylandia aos quinze
anos,
vomitei à beça na roda gigante...
32.

Ri.

Era socialista em acampamentos de verão...


transava todos os menininhos em troca de
provérbios socráticos, saca?
O oráculo de Delfos... Sei que nada sei...
por ai...

KAISER
Entendo...
Sei que nada sei...
Esse é meu lema...

GEISE
Recebe olhar duro do Kaiser.

Eu precisava de dinheiro, Groucho...


quer dizer, Senhor Groucho...
Flossie, disse que conhecia um cara casado,
cuja esposa não era muito profunda em
línguas.
Preferia pipoca...

Enfática.

Ela nunca usava a língua!

KAISER
Falso.

Que horror!

GEISE
... ele pagava bem...
Eu disse que sim,
por certo preço discutiríamos William Blake,
que era justamente o tema de meu TCC na
época.
Eu ia treinar um pouco.

Kaiser anda pela sala.

Eu estava nervosa no início.


Fingi que sabia muito mais do que sabia
realmente...
Mas...
33.

ele não se importava.


Na verdade queria expor seus dotes
masculinos...
mostrar que sabia Blake e tal...

Pausa.

Depois desse dia...


Flossie disse que haveria outros.

Esclarece nervosa.

Eu já fui presa antes, sabe?

CENA
INT. CARRO. TARDEZINHA.
Geise lê O Capital em um carro estacionado na esquina de
casa, perto da Rua Maria Antonia (alguma rua com valores
políticos) ... estava com o comandante Vladimir... Vladimir
estava com as mãos no meio das coxas dela... chega a
polícia... agarra os dois... lutam... camburão...

CENA
INT. PLAZA. QUARTO.

GEISE
... por favor, seu Grouchinho...
a polícia outra vez não...
eles só leem formulários de prisões e
discutem futebol...
seria um porre ficar presa outra vez...

KAISER
Então temos um acordo, meu bem...
Você me levará até Flossie...
Uma armadilha para que eu obtenha provas.

GEISE
Geise mordeu o lábio / pausa / hesita.

A Livraria Petúnias...
é uma fachada.

KAISER
Ah, é?!
34.

GEISE
Como essas lojinhas que expõe coisas que não
vendem... só para mostrar, despistar...
lavagem de dinheiro... iludir...
aqui na cidade tem muito disso...
Ninguém se interessa mesmo...
É uma espécie de acordo com a sociedade
civil...
Pacto Social...

KAISER
Sei... Rousseau...
a única coisa que decorei direito...

GEISE
Ninguém lê nada, mas, a loja está lá...
Você vai ver...
é uma cidade burra. Tudo pose.

KAISER
Kaiser vai para a porta e fala para Geise que resmunga, e,
acaba de se vestir.

Ok, meu bem.


Você está fora do gancho.
Mas não saia da cidade.
Vá para sua casa.
Posso precisar de você novamente.

GEISE
Cara fechada e beicinho / levanta a face / tenta agradar
Kaiser.

Eu posso recitar a poesia de Drummond,


de cor, se você quiser...

KAISER
Um outro dia, meu bem.

Dá uns tapinhas amistosos no rosto de Geise.

Um outro dia.

Kaiser sai / no corredor / para si.

Todo mundo só fala em Drummond.


35.

CENA
DA RUA PARA A LOJA PETUNIAS
Kaiser Lupowitz entra lentamente / O vendedor, um jovem com
olhos sensíveis e delicados.

VENDEDOR
Posso ajudar?

KAISER
Eu procuro uma edição especial de...
Conselhos Para Mim Mesmo.
Sei que o autor teve milhares de cópias
impressas em folhas de ouro para amigos...

Kaiser faz com os dedos: entre aspas.

... certos amigos.

VENDEDOR
Eu vou ter que estar verificando.

Vendedor observa o Kaiser de cima abaixo


e não dá nada por ele.

Nós estamos tendo uma linha de livros


especiais, vendidos a metro,
para ter de estar combinando com a cor da
sala ou a estante do cliente.
Se quiser dar uma olhadinha.
Pode ser a quilo ou a metro.

KAISER
Fixa-o com um olhar.

Sei...
os mesmos que o Pato Donald comprou?

VENDEDOR
O que?

KAISER
Deixa pra lá.
Não acredito que um gerundista entenda.
Ah! Fica sabendo que Geise me enviou aqui.
36.

VENDEDOR
Muda a atenção.

Ah, nesse caso,


o senhor pode ir ali para trás.

O Vendedor apertou um botão secreto. Uma parede de livros se


abre ou algo parecido com isso / Kaiser anda de leve,
suspeita. Entra no vestíbulo novo: pálidas, seminuas,
nervosas meninas com óculos de aro preto e corte de cabelo
sem corte desabavam sobre sofás, melífluas, enlanguescidas...
lêm livros vários em atitude provocativa / Kaiser caminha
entre elas...)

LOIRA
Grande sorriso, pisca para Kaiser,
aponta para um quarto em cima.

Que tal Machado de Assis?


Detalhes secretos sobre Capitu? Que tal?

Passa a língua pelos lábios.

MORENA
Ou quem sabe Filosofia Existencialista?
O Ser e o Nada? Sartre? Camus?

KAISER
(voz off)
Aqui é um prato cheio para pedófilos...

Devaneios sob música enquanto Kaiser avança pelo corredor /


para cada ambiente que passa há uma cor local.
Tais cenas se mesclam com a realidade do corredor.
Vemos, em tomadas rápidas:
Kaiser e uma mulher / Kaiser e duas mulheres que se esfregam
nele lendo textos em livros nas mãos / Kaiser três mulheres
que usam pesados óculos de aros largos / As mulheres se
esfregam com livros / Kaiser com seu chapéu... quase
mastigando seu chapéu / Kaiser dá uma nota de 50 -
Coreografia de obtenção do orgasmo em aproximação / Kaiser
dá uma nota de 100 - uma garota lhe empresta um vinil ou CD
de Bartok / Kaiser e a jovem jantam à luz de vela enquanto
ouvem / A jovem muda a cada tomada. Mulheres diferentes na
mesma lingerie. A jovem bebe um drinque. Kaiser a assiste
enquanto ela se excita masturbando lombadas de livros. Kaiser
37.

põe mais 50 sobre a mesa, dial de radio FM – toca um


contemporâneo – Duas jovens leem uma bíblia gigante. Duas
outras leem o Alcorão. Kaiser deposita três notas de 100 /
outra garota entrega seu TCC. Na capa do TCC está “À PROCURA
DE DEUS”. Kaiser se vê passeando de braços dados com cinco
jovens pelo Museu. Uma jovem, aos berros, discutiria sobre a
concepção freudiana das mulheres (toma-se um texto aleatório
pois é vinheta de inclusão na cena pouco se ouvindo o que a
jovem fala) e, em seguida a jovem toma de várias facas e as
enfia nela. Cai em sangue espetada por muitas facas.
Finda o devaneio.
Kaiser perambula pelas mulheres no corredor.

Uma noite de mestre.


Grande cidade essa, mas,
tenho que sair imediatamente daqui.
Já vi o que queria.

CENA
INT. BANHEIRO. DIA
Kaiser está a apagar e acender as luzes do banheiro, feito
criança / Close / Kaiser olha atento / assustado / observa
escondido pela fresta / a mulher que come pipoca em frente ao
televisor sem tirar os olhos do aparelho / Risos na TV / ela
esboça o sorriso cheio de pipoca. / Toca o telefone / ela
olha / atende / fala / Kaiser observa / ela sai / bate a
porta / Kaiser vai ao telefone / retoma o número / chama /
ouve.

PERSKY
Alô! Senhorita Soares...

KAISER
Alô.

PERSKY
Êpa... quem fala?

KAISER
Kaiser...
Kaiser Lupowitz.
Eu sou amigo da senhorita G...
se é que me entende...

PERSKY
Não... não entendo...
38.

Aqui é Persky. E dai?


Ela acabou de partir para um encontro com
Cassandra Rios.

KAISER
Quem?

PERSKY
Cassandra Rios...

KAISER
Não... quem é você?

PERSKY
Persky.
Talvez o senhor me conheça como...
O Grande Persky.

KAISER
Pensa.

Eu vou até ai...


temos que conversar...
sr. Persky, O grande.

CENA
INT. EDIFÍCIO VELHO. DIA
Kaiser a subir escadas. Aperta a campainha. Casa do Grande
Persky, está escrito na porta / um sujeito estranho, muito
estranho, abre a porta / ao abrir a porta olham-se.

KAISER
Presta muita atenção em Persky.

Ainda vou me arrepender disso.


Você é Persky, O Grande?

PERSKY
Enfático / olhando-o de cima a baixo e para todos os lados,
enfia a cabeça para fora e olha em torno.

O Grande Persky.
Está na tabuleta.

KAISER
Eu sou o Kaiser... Kaiser Lupowitz.
39.

PERSKY
Entre. Aceita um chá?

KAISER
Não.

Kaiser olha em torno.


Curioso.
Pausa.

O que eu quero é romance,


literatura, amor e beleza!
Disseram que você poderia me ajudar com uma
pista.

PERSKY
Quer tudo isso, e não quer um chá?
Estranho! Sente-se.

Persky sai. Som de mobília arrastada. Kaiser continua sua


vistoria. Persky reaparece, empurrando um enorme móvel sobre
rodinhas rangentes. Um guarda roupa. Abre a porta do guarda
roupa e sai muita poeira.

KAISER
Persky ...
se isto é uma piada...

PERSKY
Preste atenção.
O senhor tem procurado em toda a cidade por
um médico capaz de acrescentar um pouco mais
de exotismo a sua vida. E não encontra...
então, precisa de um mágico...
Estarei errado?
Sua satisfação garantida ou seu dinheiro de
volta.
Inventei isto para um encontro com Ben-Hur,
mas minha cliente deu o bolo.
Entre no armário.

KAISER
Eu não quero ver o Ben-Hur...

Irritado.
40.

O que você vai fazer?


Atravessar espadas através dele?

PERSKY
Está vendo alguma espada por aqui?

KAISER
Persky, estou avisando que...

PERSKY
Não torre o saco!

Desmonta e monta coisas, dentro do armário.

A coisa funciona assim:


se eu jogar qualquer livro nesse armário
quando você estiver dentro,
fechar as portas e der três pancadinhas...
você se será projetado para os acontecimentos
dentro do livro!

KAISER
Se levanta / constata que o cara é maluco.
Vai para a porta.

Persky, adorei te conhecer, mas...

PERSKY
É garantido!
E não apenas romances.
Delírios.
Contos, peças, poemas, o que você quiser!
Você poderá conhecer qualquer das grandes
mulheres criadas pelos maiores escritores.
Qualquer uma com quem tenha sonhado!
E vai se dar bem com elas.

Persky normal.

Quando quiser voltar,


basta dar um grito e eu o trarei ...

Estala os dedos.

... numa fração de segundo.

KAISER
41.

Aturdido, apontando o armário. Certo medo de tocá-lo.

Persky, você não é meio biruta?

PERSKY
Esse é outro assunto, não é?
Estou dizendo que funciona,
mesmo com essas roupas que você usa.

KAISER
Esta tentando me provar...
que essa baiuca pode me transportar a
qualquer lugar com que eu sonhe?

PERSKY
Por 20 mangos.

KAISER
Só vou acreditar quando ver.

Persky abre os braços, estende a mão / Kaiser paga.


Persky embolsa sorridente.

PERSKY
Bem... vamos lá...
quem você gostaria de conhecer?

Com um espanador tira mais pó, abre portas,


olha no interior do armário.

Ligeia, Morella, Berenice...


as grandes personagens de Edgar Allan Poe?
Isadora Wing, a heroína de Medo de Voar...
um tesão!
Ou será que você é mais para Moby Dick e o
perneta do Ahab?

Pisca.

KAISER
Esfregando as mãos.

Tenho que unir o útil ao agradável.


Flossie oferecerá seus serviços na
universidade...
Tenho que pegar um professor, ao menos,
de surpresa, na sala de aula,
42.

com a boca na botija...

PERSKY
Que tal Nana, de Émile Zola?

KAISER
Não quero ter de pagar mais nada.

PERSKY
E Natasha, de Guerra e Paz?

KAISER
Não... muito frio...

PERSKY
Estala os dedos.

Madame Bovary...

KAISER
É... Madame Bovary.
Boa ideia... Vi um filme uma vez...
Era Bresson?
É isso ai: Emma Bovary! É perfeita!

PERSKY
Não é perfeita, mas, tudo bem...
tudo bem, Keiser...

KAISER
...não é Keiser... é Kaiser...

PERSKY
Nem dá bola para a correção / está atento com o guarda-roupa.

Está bem... está bem...


Olha!... Assovie quando quiser voltar...
ou grite... o que der para fazer na hora.

KAISER entra no armário, se encolhe humilde,


e em seguida PERSKY joga uma edição de bolso do romance de
Flaubert.

KAISER
Não podia ser um com capa dura?
Tem certeza de que isso não é arriscado?
43.

PERSKY
Arriscado?

Balança a cabeça, enquanto arruma as coisas.

Claro que é arriscado...


O que não é arriscado nesse mundo louco,
não é?

Enquanto Kaiser abre a boca e tenta sair, PERSKY fecha a


porta, dá três pancadinhas na porta do armário, dá um tempo,
ausculta, e então abre as portas de par em par. Vazio.

CENA
INT. CASA ANTIGA. DIA.
KAISER surge numa cama em casa antiga e vê uma mulher, Emma,
de costas, dobrando lençóis. A mulher se vira e se assusta.

EMMA
Meu Deus, quem é você!?

KAISER
Sem graça.

Ainda bem que estou numa versão traduzida!

EMMA
Vamos lá.
Diga algo!
Você me assusta, com essas roupas esquisitas!

KAISER
Perdão, perdão...
meu nome é Kaiser Lupowitz,
sou detetive particular...
estou num caso que envolve literatura e
algumas mortes...

EMMA
Ela dá um sorriso sacana.

Meu marido mandou você?

KAISER
Não...
44.

EMMA
Olha para os lados / quebra o gelo.

Gostaria de beber alguma coisa?


Um vinho, talvez?

KAISER
Embevecido.

Você é linda... sim, quero vinho...


Vinho, aceito....
Branco. Não, tinto. Não, branco.
dizer, rosé.

EMMA
Desafiadora.
Rosé é para mocinhas...

KAISER
Não estou muito convicto hoje...
coisas estranhas aconteceram...

EMMA
... mas... você é fã de literatura...
O que está fazendo aqui, enfim...

Serve o vinho.

KAISER
Sou...
mas, sei que Charles ficará fora o dia todo.

Bebe.

Que página é essa mesmo?...


Tenho que estar numa aula às 15 horas,
eles abrem a página 111.

EMMA
Não sei do que você está falando...
O vinho não lhe agrada?
Já está fazendo efeito?

KAISER
Sim... sim...
realmente estou com muita sede...
É muito bom.
45.

EMMA
Depois do vinho...
daremos uma volta pelo jardim.

Ela sorri e deposita mais vinho nas taças.


Sempre imaginei que, um dia,
um misterioso surgiria em Yonville...
me resgataria da cruel monotonia dessa
grosseira existência rural.
Vacas, bois, gado, café...

Bebem e se olham. Ela segura as mãos de KAISER.

Vamos. Adoro suas roupas.


Nunca vi nada igual por aqui.
São... tão... modernas!
Isso é tão romântico.

Lembrando.

Sabe que meu marido nunca segurou em minhas


mãos?

KAISER
Romântico.

Ora,
é apenas um terno desses que você compra com
duas calças, nas Lojas Barão.

De repente, Kaiser a beija.


Leva a Emma para fora...
Sexo no mato. Passagem de tempo.

Preciso ir. Mas não se preocupe.


Voltarei breve.

EMMA
Suspira.

Espero que sim.

Abraçam-se.
KAISER tomou o rosto de Emma em suas mãos,
beijou-a novamente.
Fica em pé e grita como Tarzan... sorri para ela.
46.

KAISER
Assobia com os dedos entre os lábios.

OK, Persky! Vamonessa!


Tenho de estar em casa às 3 e meia!
Ruído tipo pop! e KAISER está de volta / sai do armário /
Levanta o polegar para Persky..

CENA
INT. SALA DO PERSKY. TARDE.

PERSKY
Então?
Não era verdade?

KAISER
Olhe, Persky, preciso correr agora,
tenho que pesquisar uns horários em que os
professores da Universidade levam Emma para o
banheiro...
eu me perdi com Emma na casa dela
e não fiz coisa alguma...
mas, quando posso voltar?
Amanhã?

PERSKY
A hora que quiser.
Os negócios estão em baixa.
Há muito tempo vago.
O prazer será todo meu.
Basta trazer os vinte e cinco mangos.
E não fale disso para ninguém.

KAISER
Mas não era 20?

Persky fica a olhar / abre os braços / e levanta a


sobrancelha. KAISER sai rapidamente, bufando.

CENA
INT. BIBLIOTECA. TARDE.
Um aluno se aproxima da bancada e fala com a atendente /
Aluno aturdido, abre o livro.
47.

ALUNO
Dona Edna... Dona Edna...
Quem é esse sujeito de chapéu que entrou na
historia por volta da p. 100 e já foi logo
beijando Madame Bovary?

EDNA
Abana a cabeça e nem dá resposta.
Vira-se para o computador e digita algo.

(voz off)
Meu Deus, esses meninos de hoje,
com a cabeça cheia de ácido!
O que não passa por suas mentes!

CENA
INT. LOJA. TARDE.
KAISER entra correndo na loja e encontra GEISE que compra
lingerie.
Kaiser se esconde, não se deixa ver... Kaiser a segue por
todos os cantos até ela encontrar outra mulher / as duas
discutem muito, acaloradas, e saem...

CENA

KAISER
Corre para dentro do armário.
Não se esqueça de me botar no livro antes da
p. 120.

Lá de dentro.

Só posso encontrar Emma até não se ligar ao


tal de Rodolphe.

PERSKY
Por que?
Não é páreo para ele?

KAISER
Páreo? O cara é ricaço.
Não tem nada para fazer,
exceto namorar e andar a cavalo.
Para mim, é um daqueles bonecos que você vê
nos anúncios de publicidade.
48.

Só que com um penteado tipo galãzinho de tv.


Mas, para EMMA, é o máximo.

PERSKY
E o marido?
não suspeita de nada?

KAISER
É manso. Nem sabe o que tem em casa.
Às 10 da noite, vai de camisola para a cama,
justamente quando ela está a toda,
querendo dançar... se é que você me entende.
Ora, esqueça.
Me mande pra lá.
Tenho muita pesquisa de campo para fazer...

Pop.

CENA
INT. CASA DE EMMA. PENUMBRA.
EMMA passa a mão pelos seios e desce ao ventre e pula na
direção da câmera. Sexy. Cai sobre KAISER. Conversam brincam
e sexo. Atrás do sofá. Roupas pulam por todo lado.

KAISER
No êxtase.

Meu Deus, estou trepando com Madame Bovary!

Pausa.

Logo eu... não mereço...


eu que fui reprovado em literatura francesa!

Sexo / fim.
E ai, teteia?

Bebericam.

EMMA
Oh, Kaiser. Como isso é bom.
Você é um expert...
Se você soubesse o que tenho que aguentar!
Ontem à noite,
Charles dormiu durante a sobremesa com o
rosto no soufflé.
49.

Eu, com o coração aos pulos,


sonhando com o balé e o Maxim's,
... tive que ouvir os roncos ao meu lado!

KAISER
Todo galante.

Tudo bem, chuchu, estou aqui agora.

Abraça-a.
Eu não mereço isto mas,
o mundo não é justo mesmo.
Sofri demais e ainda tem essa vida de
detetive que não ajuda a buscar um sentido
para a vida.
Você é jovem, e, cheia de paixão.
Bastou que eu entrasse no capítulo certo,
algumas páginas depois de Leon...
e antes de Rodolphe,
para dominar a situação.

EMMA
Meio sorridente.

Mas... do que é que você está falando?


Tem hora que não entendo nada do que você
diz...
parece que veio de outro mundo.

KAISER
Esquece teteia.
Vamos falar das noites de Nova York,
das peças da Broadway,
dos filmes de Hollywood,
dos restaurantes em São Paulo,
praias cariocas.

EMMA
Fale-me de novo sobre essas coisas
maravilhosas...
esses caras de estendapi.

KAISER
O que mais posso dizer?
São tidos como gênios.
Pensam que são atores... coitados.
50.

Seus filmes são sempre profundos como a sola


do meu sapato.
Eles copiam tudo o que tem na internet e
posam de artistas profundos...

EMMA
Internet?

Sonhadora. Deita-se no travesseiro.

E os prêmios da Academia?
Daria tudo para ganhar um Oscar,
um Cesar, um Urso, uma Palma de Ouro...

KAISER
Primeiro você tem de ser indicada.

EMMA
Eu sei. Você me explicou.

KAISER
Mas, me fala mais da tua vida...
teus interesses...

EMMA
Tenho certeza de que poderia ser ótima atriz.
Claro, teria que tomar uma ou duas lições.
Talvez com esse Lee Strasberg que você fala
tanto...

KAISER
... uma ou duas aulas sobre o método.

EMMA
Mas, se você me arranjasse um bom agente...

KAISER
Podemos ver isso. Vou falar com Persky.
Mas antes eu tenho que ir até a Universidade.
Preciso chegar na aula correta.

Kaiser bate palmas e pop.

CENA
INT. SALA DO PERSKY.
51.

KAISER
Tira a poeira do paletó.

Quero trazer Emma para visitar-me...


aqui na cidade.

PERSKY
Científico. Retira o lápis de detrás da orelha.
Calcula numa caderneta.

Deixe-me pensar.
Talvez de pé. Já fiz coisas mais difíceis.
Como.... como...

Estala os dedos... leva-o à boca / Anda pela sala.

CENA
INT. ESCRITORIO DO KAISER. ESTILO NOIR.
Kaiser entra em seu escritório / persianas vazando luz.
encontra Geise, fatal.

GEISE
Close.

Onde tem se enfiado o tempo todo?

KAISER, chega / olha para todos os lados.


Suspeita de armadilha.

Transando com alguma piranha de boceta


cabeluda, seu puto?

KAISER
Que é isso, Geise.
Tô te estranhando.
Cadê a educação?

GEISE
Aproxima-se de Kaiser e começa a cheirá-lo.

Você está me fazendo baixar de nível.


Por sua causa...

Deda o peito de Kaiser.

...estou perdendo minha pós-graduação.


52.

Seu bosta!

KAISER
Calma, meu bem...

Vai à cozinha beber água / curioso / meio com medo. Fala de


lá.

Como é que você entrou?

GEISE
Eu sei como...
Fecha a porta com chave que ninguém entra.

Kaiser a observa e vai olhar a fechadura.

KAISER
Faz bem o seu gênero.

Bebe.

Fui visitar Leonard Popkin.


Discutimos ‘uma cara’ sobre o socialismo
agrário da Polônia.
Popkin é maluco por essas coisas.

GEISE
Prepara-se para voltar ao quarto.

Você anda muito esquisito ultimamente.


Distante. Não se esqueça de que temos um
trato sobre a obra de Aluisio Azevedo.
A reunião será na casa de Flossie.

KAISER
Está bem, está bem...

GEISE
Minha família inteira vai comparecer.
Sei lá por que...
ver os gêmeos, também...
... finalmente você vai conhecer o primo
Hamish.
Não seja estúpido com ele como é com os
outros.
53.

Kaiser sorri amarelo / fecha a porta da cozinha e pensa e


bebe. Lembra-se e grita]

KAISER
Lembra que eu vou a São Paulo para um
simpósio na semana que vem e que só retorno
na segunda-feira?

Kaiser se contrai como que esperando uma xingação pesada.


Geise, sem que Kaiser veja, puxa de uma lâmina, um punhal, e
esconde na bolsa.

CENA
INT. QUARTO DE HOTEL MODERNO. DIA
Pop.
KAISER e EMMA abraçados em um hotel.

EMMA
Deslumbrada.

Que maravilha!
É exatamente como sonhei que seria estar na
cidade moderna!

Rodopia e observa tudo. Olha pela janela.

Que barulheira.
Os jardins, os edifícios...
É tudo tão divino!

Emma abre caixas que estão sobre a cama.


Tira roupas e prova outras, ofegante, frente ao espelho.

Tudo pra mim?

KAISER
Comprei numa liquidação,
mas você ficará parecendo uma rainha.
Venha cá neném. Um beijo.

EMMA
Nunca me senti tão feliz!
Tão excitada!

KAISER
Então venha, meu bem...
54.

Essa é a parte melhor...


vamos para a cama...

EMMA
Quando fico excitada eu broxo. Vamos sair!
Quero ver Chorus Line, visitar o Guggenheim e
conhecer estes atores Globais de quem você
fala tão mal.
Está levando algum filme deles por ai?

CENA
INT. BIBLIOTECA. DIA
Edna folheia o livro Madame Bovary.

EDNA
Não consigo entender...
Primeiro, uma personagem chamada Kaiser
Lupowitz entra no livro.
Depois, Ema desaparece do romance.

Fala para os estudantes que a cercam.

Ou algum de vocês,
animais drogados...
colocou algum ácido no meu copo...

Volta ao livro.

Que loucura!
Bem, acho que os grandes clássicos da
literatura são assim mesmo,
podemos lê-los mil vezes e sempre descobrimos
coisas novas.
Novas interpretações. Novos ângulos.

CENA
CENAS SUCESSIVAS DE CORTE CURTO.
KAISER e EMMA foram ao cinema, jantaram, dançaram em
discotecas e viram TV. Sexo. Passeio no jardim. Pizza na
cama. Museu. Sexo no museu.

CENA
INT. CASA DO PERSKY.
55.

KAISER
Não posso trazê-la aqui frequentemente, mas,
de vez em quando,
será bom variar de Yonville.
Vilarejo chato.

EMMA entra no armário com suas bolsas. Beija KAISER, dá uma


piscadela marota, beijo de longe para Persky. Persky dá as
três pancadinhas no armário. Nada acontece.

PERSKY
Coça a cabeça.

Epa!

Bate de novo, nada.

Alguma coisa está errada.

KAISER
Persky, esta brincando?
Não está funcionando?
Que negócio é esse?
Acabou a pilha?

PERSKY
Calma, calma. O armário não usa pilha...
Ainda está ai, Emma?

EMMA
Sim.

Persky bate mais forte.

Ainda estou aqui, Persky.


É assim mesmo?

PERSKY
Calma, querida. Fique fria.

Olha para Kaiser, sério.

Está tudo sob controle.

KAISER
Estou vendo...
Persky, nós temos que mandá-la de volta.
56.

As minhas investigações estão paradas...


Não estou preparado para nada mais que um
flerte a essa altura!
Além disso,
tenho que manter o caso com Geise...
é minha infiltração no submundo.

EMMA
Geise?
Você está falando de outra mulher...?
Aqui na minha frente? Aqui na minha cara?

PERSKY
Não consigo entender.
O truque é tão simples!

Bate inúmeras vezes e desiste.

Vai levar algum tempo.


Vou ter de desmontar o armário inteiro.
Voltem mais tarde...

Abre a porta e Emma sai.

EMMA
Que Geise é essa?
Pode me explicar?

KAISER
Desesperado.
O que?

PERSKY
Voltem daqui a alguns dias.

Estala dos dedos olhando para Kaiser, enquanto Kaiser sai sob
os impropérios de Emma sobre Geise.

CENA
INT. CASA DO KAISER. QUARTO.

GEISE
Na cama. Coberta com lençol, mas nua.

Como foi o simpósio?


57.

KAISER
Ah!... foi ótimo, ótimo!

Desfaz-se da roupa / bota o pijama.

GEISE
Que houve?
Você parece uma pilha de nervos.

KAISER
Pilha... pilha...
Quem, eu? Ha-ha-ha…

Riso histérico.

Estou calmo como uma... brisa de verão.

Precipitado.

Vou dar uma volta.

Sai pela rua, de pijamas, correndo. Sobe as escadas. Entra no


quarto de Emma, pula na cama sobre ela / sexo rápido.

EMMA
Estou preocupada.
Charles vai acabar sentindo minha falta.

KAISER
Confie em mim, querida.
Você voltará para a página correta.

Acaba o sexo. Beija Emma / desce escadas / volta correndo /


refaz o percurso. Chega em casa. Vai para o quarto / cama
vazia / Geise pula sobre ele, nua / Kaiser sorri / rolam na
cama.

GEISE
Lembra que não estou cobrando nada de você.

Geise sobre ele / a cada fundida uma gemida do Kaiser.

CENA
INT. QUARTO DE HOTEL. DIA

EMMA
58.

Devolva-me ao romance ou case-se comigo.


Enquanto isso...
quero arranjar um emprego...
qualquer coisa...
porque ver televisão o dia inteiro é um saco.

Aperta a gordura da barriga.

Já tenho essa pochette.

KAISER
Ótimo. O dinheiro até que será útil.
O que você consome em serviço de quarto não
é uma coisa normal.

EMMA
Conheci um produtor de teatro ontem...
um tal de Ricardinho...
ele me disse que eu pareço perfeita para uma
peça que ele vai montar na Broadway.
O cara é bom.

KAISER
Broadway?

EMMA
É.

KAISER
Ricardinho.

EMMA
É... acho que é Broadway...
ou foi isso ou foi uma palavra parecida...
Arceburgo.

KAISER
Ah, é? Sei... sei...

EMMA
Enfim...
É um homem sensível, gentil e inteligente.
Chama-se Ricardinho de Não-sei-das quantas;
ele disse que posso até ganhar um Tony com o
papel.
59.

CENA
INT. CASA DE PERSKY. TARDE.
KAISER invade casa de PERSKY que trabalha No armário/máquina.

PERSKY
Calma, rapaz...
Desse jeito, você vai acabar tendo um troço.

KAISER
Já estou tendo um roço.
Calma! Ele diz... calma!
Estou com uma personagem fictícia às minhas
custas num hotel;
acho que minha Geise,
minha principal suspeita
do meu principal caso botou um detetive para
me seguir
... ainda vou ficar calmo!?

PERSKY
Estala os dedos.

Principalmente isso...
Eu sei, eu sei.
Estamos com um problema,
vamos tentar resolvê-lo.

Persky volta ao trabalho, usando martelo. Barulho.

KAISER
Tentar?!

PERSKY
Modo de dizer...
O que você quer que eu diga?
Vamos conseguir, vai dar tudo certo?
Sei lá.
Isso não é ciência exata.
É magia...
É um troço mais poético.

KAISER
Estou parecendo um animal acuado.
Tenho de andar me esgueirando pela cidade.
Emma e eu já não aguentamos a cara um do
outro.
Geise está me deixando à flor da pele...
60.

Para não falar na conta do hotel,


que já esta maior do que o salário de
Senadores em Brasília.
Resolvendo esse caso não ganharei o
suficiente para cobrir os custos...
E ainda tem esse Boca Mole que não sai do meu
pé.

PERSKY
E o que eu posso fazer?
Magia é assim mesmo...

Pondo a cabeça para fora.

É uma questão de nuance.

Estala os dedos.

KAISER
Nuance o catsaralho!
Estou derramando Don Pérignon pela goela de
Emma como uma bomba de gasolina,
e ela está mais recheada de caviar do que um
esturjão gigante,
além de ter comprado metade do estoque de
vestidos do Sack's pela internet.
Como se não bastasse, o professor Moacir me
persegue o tempo todo por causa do meu ultimo
caso...
ele jura que me viu nas páginas de Flaubert.

PERSKY
Moacir? O Filósofo religioso?

KAISER
Ou vice-versa...
É... foi preso...
rasparam os cabelos dele na prisão...

PERSKY
E isso é possível?

KAISER
De qualquer forma...
ele sempre teve inveja de mim,
61.

acabou de me identificar como a personagem


que aparece incidentalmente no livro de
Flaubert.
Lá se vai a minha discrição...
minha pesquisa...
Sabe o que isso vai significar?
Perder a licença de detetive...
Persky, entenda!
Eu não posso ser acusado de adultério com
Madame Bovary!

PERSKY
O que quer que eu faça?
Estou trabalhando nessa joça dia e noite!
Quanto à sua ansiedade, não posso ajudar.
Sou apenas um mágico, não um analista!

CENA
INT. HOTEL. NOITE
Emma se tranca no banheiro, batendo a porta.

EMMA
Não quero falar com você...
não quero... não quero.

KAISER
Desesperado olha pela janela.

(voz off)
Se não fosse tão baixo,
me jogaria agora mesmo.
E se eu fugisse para a Europa e começasse de
novo a vida?
Talvez pudesse vender o International Herald
Tribune, como aquelas garotas costumavam
fazer.

O telefone toca. Pausa. Dúvida se atende ou não. Telefone


toca. Emma abre a porta e olha / acena com cabeça para que o
Kaiser atenda.
(voz on)
Alô?

PERSKY
Kaiser.
62.

KAISER
Sim.

PERSKY
Uau! Não reconheci a voz...
O telefone está grampeado?

KAISER
Qual é, Persky...

PERSKY
Traga Emma... correndo.
Acabo de expulsar a última barata do armário!

KAISER
Esta falando sério?
Desta vez é pra valer?

PERSKY
Sem erro!

KAISER
Persky, você é um gênio.
É pra já!
Estaremos aí em menos de um minuto.

CENA
INT. CASA DE PERSKY. NOITE.
EMMa entra no armário abarrotada de malas e compras. Persky
fecha as portas, respira fundo e dá três pancadinhas, ruído
pneumático. Kaiser e Persky se olham. Persky abre as portas,
o armário está vazio. KAISER suspira, descansa sobre a mesa
/ pega drink para os dois / tomam um trago / aperta a mão de
Persky.

KAISER
Muito bem...
Acabou. Aprendi a lição.
Nunca mais juntar o trabalho com a
perdição...
Era para ser uma pesquisa de campo e deu
nisso... Gênio.
Preciso te dar uma gorjeta.

KAISER sai e Persky alisa o armário, embevecido.


63.

CENA
INT. CASA DE PERSKY.DIA
Batem à porta. Persky sai debaixo do armário e atende.
É Kaiser e Boca Mole.

PERSKY
O que foi desta vez, Kaiser?

KAISER
Só mais uma vez, Persky.
O dia está tão bonito e, sabe como é,
o tempo passa. Tempus fugit.
Você tem um exemplar de O Complexo de
Portnoy?
Lembra-se da Macaca?

PERSKY
O preço agora é 30 ‘pilas’ por causa da
inflação.
Mas...
devido a todos aqueles aborrecimentos que lhe
causei, a primeira é ‘de grátis’.

KAISER
A primeira e última.

PERSKY
Quem é esse?

KAISER
Ah! Desculpa... esse é Boca Mole...

Cumprimentam-se.

Um cliente.
A viagem é para ele...
Um cético.

PERSKY
Ahn! ... Tendi!

KAISER
Se é que me entende...

PERSKY
Entra ai...
64.

Senhor... Boca Mole.

KAISER
Você é gênio.
Vai funcionar direito?

PERSKY
Acho que sim.
Não usei muito o armário desde aquela
confusão.

BAB
Muito obrigado... nem sei como agradecer...
Sexo e romance.
O que um sujeito não faz por um rabinho de
saia...
Ela sabe bem de literatura grega e
pitagórica?

PERSKY
Ô!

PERSKY joga o livro, e, dá as três pancadas. Explosão. Raios.


Terremotos.

Persky e Kaiser apertam as mãos.

KAISER
Te devo essa, meu chapa.
Um a menos.

CENA
INT. LOJA DA FLOSSIE. PERSIANAS LISTRANDO A CENA NOTURNA.
Kaiser deitado no banco / chapéu sobre os olhos / bebida do
lado / entra Flossie, pega de surpresa.

FLOSSIE
Atrás de Kaiser sem ser mostrada inteiramente.

Gosta do que vê?

Kaiser virou-se de repente e estava frente a frente com um


revolver.

KAISER
(voz off)
65.

Eu sou um cara com um estômago forte,


mas desta vez ele deu uma dobrada que me
assustou.
Era Flossie, tudo bem.
A voz era a mesma, mas eu pessoalmente não
esperava por aquele tipo de Flossie.

FLOSSIE
O rosto escondido por uma máscara.

Você nunca vai acreditar nisso,


mas eu nem tenho um diploma de literatura.
Saí de lá por causa de baixas notas
e muitas faltas.
Jubilada... na verdade.

KAISER
É por isso que você usa essa máscara?

FLOSSIE
Montei um esquema complicado para assumir a
Biblioteca Nacional,
mas isso significava que eu tinha que passar
por problemas que só seriam resolvidos se
fosse ao México para uma operação.
Foi aí que me veio a ideia de matar Deus.
Contratei uma garota que se fizesse em três.

KAISER
Soninha Patora, Clara Rosensweig e Rita
Buttkiss. Esquizofrenia geral.
A cafetina madre por trás de tudo.

FLOSSIE
Uma esquizoide muito competente e gostosa.
Foi quando comecei a trabalhar do outro lado
da lei.
Mas, agora é tarde...
Groucho Marx... ou devo dizer...

Pausadamente e sibila o ‘z’.

Kaiser Lupowitz!

Flossie retira a máscara. É um homem. Kaiser pula sobre


Flossie / há briga terrível, longa e violenta, devidamente
coreografada / a arma cai para trás / Kaiser vai ao chão como
66.

uma tonelada de tijolos / Kaiser tenta agarrar a arma / toma


uma traulitada que o manda à parede / enquanto Flossie tenta
fugir, Kaiser, no timing da cena, calmamente, pega sua
própria arma, puxa o gatilho, não tem balas. Flossie pula
sobre sua própria arma / atira, mas, essa arma falha também /
Kaiser recarrega a sua rapidamente / Kaiser atira primeiro
mas a arma falha / Flossie corre para a gaveta e pega de
outra arma / Kaiser esmurra a sua, bate na parede com ela, a
soca como se fosse para fazer pegar / Flossie aponta para
Kaiser / Kaiser percebe que tem uma corda na arma, dá corda
em sua arma / Flossie engatilha / KAISER atira primeiro /
Flossie gruda na parede... e vem escorregando / Kaiser a olha
e suspira / Kaiser vasculha o espaço e vê na parede um
Diploma... de Flossie...

Titulo Magna Cum Laude... em educação física.

CENA PÓS FINAL


Boca Mole está preso em uma tabela periódica misturada a
tábua de logaritmos e luta contra números que o fazem engolir
vírgulas e átomos e elementos químicos.

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