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CONTO: FAMIGERADO - JOÃO GUIMARÃES fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já

ROSA ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia de


Foi de incerta feita – o evento. Quem pode esperar braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela,
coisa tão sem pé nem cabeça? Eu estava em casa, o de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se
arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me à porta o achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo
tropel. Cheguei à janela. de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas
Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco
cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada
exato; e, embolados de banda, três homens a cavalo. momento. Tivesse aceitado de entrar e um café,
Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem a-
nervos. O cavaleiro esse – o oh-homem-oh – com cara graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para
de nenhum amigo. Sei o que é influência de um se inquietar, sem medida e sem certeza.
fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer — “Vosmecê é que não me conhece. Damázio,
em guerra. Saudou-me seco, curto, pesadamente. Seu dos Siqueiras… Estou vindo da Serra…”
cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O
suado. E concebi grande dúvida. feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas
Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se
haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam verdade, que de para uns anos ele se serenara —
a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais
constrangidos coagidos, sim. Isso por isso, que o tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo!
cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, Continuava:
desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora — “Saiba vosmecê que, na Serra, por o
se encostavam. Dado que a frente da minha casa ultimamente, se compareceu um moço do Governo,
reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados rapaz meio estrondoso… Saiba que estou com ele à
avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, revelia… Cá eu não quero questão com o Governo, não
espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem estou em saúde nem idade… O rapaz, muitos acham
obrigara os outros ao ponto donde seriam menos que ele é de seu tanto esmiolado…”
vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter
contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não começado assim, de evidente. Contra que aí estava
dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, com o fígado em más margens; pensava, pensava.
tomando ganho da topografia. Os três seriam seus Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as
prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes.
proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha.
jagunço até na escuma do bofe. Senti que não me Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu
ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu monologar.
não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e
adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos,
medo é a extrema ignorância em momento muito insequentes, como dificultação. A conversa era para
agudo. O medo. O medo me miava. Convidei-o a teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas
desmontar, a entrar. entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim
Disse de não, conquanto os costumes. no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele
Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a enigmava: E, pá:
descansar na sela — decerto relaxava o corpo para dar- — “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer
se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado… faz-
respondeu-me que não estava doente, nem vindo à megerado… falmisgeraldo… familhas-gerado…?
receita ou consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase.
calma; a fala de gente de mais longe, talvez são- Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu,
franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença
alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a
perverso brusco, podendo desfechar com algo, de desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso
repente, por um és-não-és. Muito de macio, suspendia-me: alguém podia ter feito intriga,
mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou: invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele
-- “Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse,
explicada…” vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória
Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua satisfação?
farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, — “Saiba vosmecê que saí ind’hoje da Serra, que
quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra
imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro…”
melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a Se sério, se era. Transiu-se-me.
ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu — “Lá, e por estes meios de caminho, tem
sempre na cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo — o livro
ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas — que aprende as palavras…
e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de
É gente pra informação torta, por se fingirem de
menos ignorâncias… Só se o padre, no São Ão, capaz,
mas com padres não me dou: eles logo engambelam…
A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no
pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já 01 – Quem conta a história?
lhe perguntei?” 02 – Como a história começa?
Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes: 03 – Observe como, no início do conto, o narrador
— Famigerado? estuda o valentão. O que a aparência do visitante
— “Sim senhor…” — e, alto, repetiu, vezes, o denota?
termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de 04 – Todos os visitantes tinham a mesma aparência?
foco. E já me olhava, interpelador, intimativo — Explique.
apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. 05 – Depois da identificação do visitante, o
— Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu personagem-narrador ficou mais ou menos apreensivo?
me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por 06 – O que queria o valentão?
socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, 07 – O que pensava o visitante sobre o significado da
intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio: palavra?
— “Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. 08 – Qual foi sua atitude quando soube do real
São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho…” significado da palavra?
Só tinha de desentalar-me. O homem queria 09 – “Certa vez” é uma fórmula muito usada para
estrito o caroço: o verivérbio. iniciar contos populares. De que maneira o autor
— Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, inverte essa expressão?
“notável”… 10 – Releia a seguinte frase: “Seu cavalo era alto, um
— “Vosmecê mal não veja em minha grossaria no alazão; bem arreado, ferrado, suado.” Observe que a
não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? frase aproxima-se da poesia. Por quê?
É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?” Por causa da rima, da organização rítmica e das
— Vilta nenhuma, nenhum doesto. São relações originais que o autor estabelece entre as
expressões neutras, de outros usos… palavras.
— “Pois… e o que é que é, em fala de pobre,
linguagem de em dia-de-semana?” 11 – A expressão “O medo me miava” foi criada pelo
— Famigerado? Bem. É: “importante”, que autor. A leitura do conto, porém, permite atribuir-lhe
merece louvor, respeito… sentido. Que significado pode ser dado a tal expressão?
— “Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão Fiquei com muito medo. A expressão intensifica o
na Escritura?” medo do personagem narrador.
Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o
diabo, então eu sincero disse: 12 – A expressão “cabismeditado” também é uma
— Olhe: eu, como o sr. Me vê, com vantagens, criação linguística do autor. O que pode significar?
hum, o que eu queria uma hora destas era ser Cabisbaixo, o personagem meditava.
famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!…
— “Ah, bem!…” — soltou, exultante. 13 – “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me
Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-me-
em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, gerado... famisgerado... familhasgerado...?” Observe a
outro. Satisfez aqueles três: — “Vocês podem ir, criatividade linguística de Damázio: não dominando o
compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição…” sentido da palavra, ele a desdobra em várias
— e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, possibilidades de significação. Relacione a palavra
beirando-me a janela, aceitava um copo d’água. Disse: “famanasse” com o sentido de famigerado.
— “Não há como que as grandezas machas duma “Famanasse” se relaciona com “fama”.
pessoa instruída!” Seja que de novo, por um mero, se
torvava? Disse: — “Sei lá, às vezes o melhor mesmo, 14 – “Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses
pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei trizes.” O que sugere essa frase sobre o estado de
não…” Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. espírito do narrador?
Disse: — “A gente tem cada cisma de dúvida boba, Medo e indecisão. Por um triz, ele poderia ser
dessas desconfianças… Só pra azedar a mandioca…” morto por Damázio.
Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria
de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o 15 – Observe que, depois do pedido de Damázio para
alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto que o narrador explicasse o sentido da palavra, o
rir, e mais, o famoso assunto. narrador pergunta duas vezes: “Famigerado?” Por que
faz isso?
ROSA, João Guimarães. O narrador procura encontrar formas para retardar
Famigerado. In: Primeiras estórias. 15. ed. a sua explicação.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001, p. 56-61.
Entendendo o conto: 16 – “Não há como que as grandezas manchas duma
pessoa instruída.” Essa frase foi um elogio ao
narrador? Explique.
Sim. Damázio louva o poder de linguagem do Fiquei com muito medo. A expressão intensifica o
narrador, o qual considera uma “grandeza macha”. medo do personagem narrador.

17 – O narrador analisa os gestos, atitudes e expressões 12 – A expressão “cabismeditado” também é uma


faciais do valentão. Não só o que ele diz, mas também criação linguística do autor. O que pode significar?
como diz significa muito. De que forma essa ideia Cabisbaixo, o personagem meditava.
também pode ser aplicada à literatura?
Na literatura, também importa o como se dizem as 13 – “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me
coisa. ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-me-
gerado... famisgerado... familhasgerado...?” Observe a
01 – Quem conta a história? criatividade linguística de Damázio: não dominando o
Um narrador em primeira pessoa que, vai se saber sentido da palavra, ele a desdobra em várias
mais tarde, tem o “poder” da linguagem. Tal como o possibilidades de significação. Relacione a palavra
autor do texto. “famanasse” com o sentido de famigerado.
“Famanasse” se relaciona com “fama”.
02 – Como a história começa?
Com a chegada de quatro homens a cavalo. 14 – “Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses
trizes.” O que sugere essa frase sobre o estado de
03 – Observe como, no início do conto, o narrador espírito do narrador?
estuda o valentão. O que a aparência do visitante Medo e indecisão. Por um triz, ele poderia ser
denota? morto por Damázio.
Rudeza, violência, esperteza, braveza,
perversidade. 15 – Observe que, depois do pedido de Damázio para
que o narrador explicasse o sentido da palavra, o
04 – Todos os visitantes tinham a mesma aparência? narrador pergunta duas vezes: “Famigerado?” Por que
Explique. faz isso?
Não. Os outros três pareciam ser prisioneiros do O narrador procura encontrar formas para retardar
primeiro. a sua explicação.

05 – Depois da identificação do visitante, o 16 – “Não há como que as grandezas manchas duma


personagem-narrador ficou mais ou menos apreensivo? pessoa instruída.” Essa frase foi um elogio ao
Ficou com muito mais medo. Afinal, o visitante era narrador? Explique.
conhecido como homem perigosíssimo, já havia Sim. Damázio louva o poder de linguagem do
matado muita gente. narrador, o qual considera uma “grandeza macha”.

06 – O que queria o valentão? 17 – O narrador analisa os gestos, atitudes e expressões


Saber o significado de uma palavra: famigerado. faciais do valentão. Não só o que ele diz, mas também
como diz significa muito. De que forma essa ideia
07 – O que pensava o visitante sobre o significado da também pode ser aplicada à literatura?
palavra? Na literatura, também importa o como se dizem as
Pensava ele que poderia ser uma ofensa. coisa.

08 – Qual foi sua atitude quando soube do real


significado da palavra?
Sorriu, libertou seus prisioneiros, agradeceu e foi
embora.

09 – “Certa vez” é uma fórmula muito usada para


iniciar contos populares. De que maneira o autor
inverte essa expressão?
Utilizando a expressão “incerta feita”.

10 – Releia a seguinte frase: “Seu cavalo era alto, um


alazão; bem arreado, ferrado, suado.” Observe que a
frase aproxima-se da poesia. Por quê?
Por causa da rima, da organização rítmica e das
relações originais que o autor estabelece entre as
palavras.

11 – A expressão “O medo me miava” foi criada pelo


autor. A leitura do conto, porém, permite atribuir-lhe
sentido. Que significado pode ser dado a tal expressão?

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