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DOSTOIÉVSKI, UM DISSONANTE
André Dias
RESUMO
A
o terminar de ler pela primeira vez a novela Memórias do Subsolo, escrita
por Dostoiévski no ano de 1864, a sensação que tive era de que acabara
de ser atingido por um violento soco, que não sabia exatamente de
onde havia vindo. A narrativa, apesar de relativamente curta, trazia ao longo
de suas pouco mais de uma centena de páginas a perturbadora trajetória de
um homem, no mínimo, indigesto, que se apresentava a nós leitores, ainda nas
duas primeiras linhas da história, como: “um homem doente... Um homem
mau. Um homem desagradável.”1. Aquela estranha figura aguçou minha curio-
sidade de buscar saber mais sobre sua constituição. Por isso, segui em frente
desbravando os parágrafos seguintes e as páginas subsequentes, esperando
1
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do Subsolo. Trad: Boris Schnaiderman, 5. ed., São Pau-
lo: Editora 34, 2007. p. 15.
292 Dias, André. Dostoiévski, um dissonante
2
REIS FILHO, Daniel Aarão. À procura de modernidades alternativas: a aventura política dos
intelectocratas russos em meados do século XIX. MIMEO, 2004. p. 4.
294 Dias, André. Dostoiévski, um dissonante
3
FRANK, Joseph. Pelo Prisma Russo: Ensaios Sobre Literatura e Cultura. São Paulo: EDUSP,
1992. p. 67.
4
Idem, p. 68.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras, linguística e suas interfaces no 40, p. 291-308, 2010 295
5
HOETZSCH, Otto. A Evolução da Rússia. Lisboa: Editorial Verbo. 1966. p. 80, 83.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras, linguística e suas interfaces no 40, p. 291-308, 2010 297
6
FRANK, Joseph. Pelo Prisma Russo: Ensaios Sobre Literatura e Cultura. São Paulo: EDUSP,
1992. p. 71.
298 Dias, André. Dostoiévski, um dissonante
7
Idem, p. 72.
300 Dias, André. Dostoiévski, um dissonante
A maneira como aconteceu a abolição da servidão pode dar uma boa me-
dida do tamanho da frustração da intelligentsia russa frente às reformas efetua-
das pelo governo. As condições pretendidas pelas diversas correntes libertárias
para que a abolição da servidão acontecesse eram muito diferentes daquelas
que, na prática, foram implementadas pelo império russo.
8
REIS FILHO, Daniel Aarão. À procura de modernidades alternativas: a aventura política dos
intelectocratas russos em meados do século XIX. MIMEO, 2004. p. 13.
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Idem, p. 20.
302 Dias, André. Dostoiévski, um dissonante
10
Idem, p. 21.
304 Dias, André. Dostoiévski, um dissonante
Mais do que tudo, Tchernichévski fez da luta política o eixo central que
guiava o itinerário das demais atividades desenvolvidas ao longo de sua exis-
tência. Com coerência e desvelo manteve-se firme aos seus princípios até o
fim. Mesmo não concordando com a maneira belicista escolhida para con-
duzir sua luta, reconheço que este homem soube infundir perseverança às
disputas sociais e políticas do seu tempo. Apesar de tudo isso, ou melhor, em
razão disso mesmo, devo dizer que me incomoda bastante a atribuição da
aura de semideus auferida a qualquer pessoa, quer seja ela a mais comum ou a
liderança mais expressiva de um movimento. Pois, na maioria das vezes que al-
guém age no sentido de monumentalizar um indivíduo, está dado o primeiro
e definitivo passo para que este saia da esfera do humano e se instale no campo
do divino. Como sabemos, as esferas divinas são regidas pelos dogmas e, onde
há dogma, não sobra espaço para dúvidas, questionamentos ou críticas. Nesse
sentido, é preciso atenção com aqueles que falam em nome das grandes causas,
mas suprimem o inegociável direito da livre manifestação do outro. Como as
questões que os motivam são sempre muito elevadas, urgentes e imprescin-
díveis, não podem e não querem perder tempo com banalidades, tais como:
indagações, hesitações e opiniões divergentes das suas.
Entre as várias contradições presentes no pensamento e nas práticas de
Tchernichévski que saltam aos olhos está o fato de que, apesar de socialista e re-
volucionário, ele aceitou de maneira irrestrita as premissas do utilitarismo inglês,
em particular as formulações de Jeremy Bentham e de seu discípulo John Stuart
Mill. O primeiro preconizava, por exemplo, a ideia de que o indivíduo deve
procurar sempre reconciliar-se com a sociedade, mesmo que para isso seja neces-
sário o sacrifício de supostos direitos humanos. Para o filósofo, o que realmente
importava eram os interesses da comunidade em geral, o bem comum em de-
trimento das dores dos indivíduos. Um dos problemas desta visão é saber quem
teria a autoridade para definir o “bem comum”. Já Stuart Mill procurou fazer
uma modulação da posição de Bentham, para isso convencionou que a moral
utilitarista deveria considerar que o ser humano, em nome do bem comum,
seria capaz de abrir mão do seu próprio bem. Por mais estranho e antagônico
que possa parecer, Tchernichévski conseguiu unir na construção de sua doutrina
radical o cientificismo determinista, o utilitarismo inglês, a visão messiânica pro-
veniente do cristianismo ortodoxo russo e o socialismo utópico ocidental. Tudo
isso em nome da causa revolucionária de libertação do povo russo.
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FRANK, Joseph. Pelo Prisma Russo: Ensaios Sobre Literatura e Cultura. São Paulo: EDUSP,
1992. p. 216.
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12
Idem, p. 217.
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RESUMEN
Recebido: 30/04/2010
Aprovado: 09/06/2010