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■ ANO 21 ■ Nº 6 ■ OUTUBRO/2013 ■

tiragem: 20 000 exemplares

Liderança dos Estados


E mais...
● Editorial – STF anula,
Unidos é testada na Síria
na prática, o julgamento
do mensalão. A mais alta
corte está dizendo que a
A Síria não é a Líbia. Dois anos atrás,
diante da ameaça de um massacre dos
insurgentes na cidade de Benghazi, os Estados
lei não alcança os homens Unidos e seus aliados europeus deflagraram
de “sangue azul”. uma campanha aérea contra Muammar Kadhafi
Pág. 3 que desempenhou papel decisivo na queda do
● Há 110 anos, pelo Tra- regime líbio. Agora, na Síria, mesmo depois de
tado de Petrópolis, o uma série de ataques químicos contra civis – o
Acre foi incorporado ao último dos quais matou 1,4 mil pessoas no fim
Brasil.
de agosto –, os Estados Unidos piscaram.
Pág. 3
Na Síria, trava-se uma “guerra civil regional”
● Cristina Kirchner per-
que envolve os pincipais vizinhos – especial-
deu as eleições prévias
mente o Irã, a Turquia e a Arábia Saudita. A

© Louai Beshara/AFP
na Argentina. Multi-
plicam-se os indícios de Síria é um componente central da geopolítica
que o kirchnerismo vive do Oriente Médio e um firme aliado da Rússia.
seu outono. O conflito evoluiu de levante popular contra o
Pág. 4 regime para confronto de fundo sectário entre
● Diário de Viagem – Os sunitas, de um lado, e alauítas (xiitas) e cristãos,
parques nacionais sul- de outro. A hipótese de uma fragmentação da
africanos revelam a for- Escombros em bairro de Damasco explicitam um impasse que envolve
Síria recoloca, em novos termos, o antigo pro-
ça e a persistência his- as grandes potências mundiais e interesses regionais
blema do nacionalismo curdo.
tórica do nacionalismo
O ataque químico introduziu um novo ingre-
romântico africânder.
Pág. 5
diente na tragédia. Barack Obama classificou, há um ano, a hipótese de uso de armas químicas como uma “linha vermelha” que
o regime de Bashar al-Assad não poderia ultrapassar. Mas, depois da ultrapassagem, o presidente americano recuou: no lugar da
● “Eu tenho um sonho”
– o célebre discurso de
represália militar, aceitou um complexo acordo proposto pela Rússia que pode – ou não – resultar na desmontagem do arsenal
Martin Luther King, químico da Síria. A valsa oscilante de Washington evidencia que, depois das guerras no Iraque e no Afeganistão, a sociedade
pronunciado meio século americana resiste a novos envolvimenos no exterior. A tentação do isolacionismo atinge a credibilidade da hiperpotência. “Os
atrás, oferece inspirações iranianos não devem concluir que, porque não atacamos a Síria, não atacaremos o Irã”, disse um Obama preocupado com o valor
para nacionalistas, libe- de sua palavra. Mas o Irã, como o resto do mundo, presta mais atenção nos atos – ou na falta deles – do que nos discursos.
rais e social-democratas Veja as matérias às págs. 6 a 9
nos Estados Unidos.
Pág. 12

● Visite nossa página no Fa- Brasil experimenta um novo ciclo Vinicius, 100
cebook. Ali você encontrará
indicações de textos, livros, social e demográfico
filmes e atividades. Basta aces-
sar ao link: www.facebook.

O
com/JornalMundo PNUD, da ONU, e o IBGE divulgaram informações atualizadas sobre o Índice
de Desenvolvimento Humano dos municípios brasileiros (IDH-M) e sobre a
● Revista Pangea 2013: Questões evolução das tendências demográficas do país. Uma leitura ufanista dessas informações
e visões do mundo contempo- produz a narrativa de uma marcha acelerada, inabalável, de desenvolvimento. Mas
râneo – A partir da segunda uma análise objetiva evidencia a permanência de antigas mazelas e a emergência de © Oliosi/Farabola/Leemage/AFP

quinzena de março e a cada novos desafios.


quinze dias, os interessados po- O IDH-M experimentou evolução positiva. Contudo, atrás das ilusórias médias
derão receber por e-mail textos gerais, ocultam-se os fantasmas da pobreza, da carência de serviços públicos e das
sobre assuntos da atualidade. desigualdades regionais. A transição demográfica brasileira atinge sua etapa final.
Para receber esses textos, acesse Paralelamente ao crescimento da proporção de idosos, vai se fechando uma “janela
ao nosso site e se inscreva (www. demográfica” favorável ao desenvolvimento econômico.
clubemundo.com.br). Págs. 10 e 11
18º Concurso Nacional de Redação­
Índice Geral de Mundo – 2013 Mundo e H&C – 2013
V ocê encontra aqui o índice de tudo o que foi publicado
no boletim Mundo – Geografia e Política Internacional
em 2013. Na primeira parte do índice, os assuntos são listados
Em seu 18º ano, a Comissão Julgadora recebeu 201 trabalhos, em sua imensa maioria escolhidos em concursos internos nas escolas. Isso
significa que o universo geral de alunos participantes foi muito maior e ajuda a explicar o ótimo nível dos trabalhos. A seguir, publicamos a
segundo o número da edição em que aparecem. Na segunda, o relação dos dez primeiros colocados e o texto vencedor, comentado. Aos alunos participantes, professores e escolas, nossos parabéns!
índice é organizado por região geopolítica ou tema. Os números
em negrito (fora dos parênteses) indicam o número da edição Conheça agora os vencedores
do boletim; dentro dos parênteses, indicam as páginas. Nome do aluno Colégio Município Professor(a)
● Número 1 – março de 2013 ■ 1º Letícia Nunes Cajra Instituto Dom Barreto Teresina (PI) Mauren Cavalcante
Convulsão política no “Grande Oriente Médio” ■ 2º Ana Letícia Turino Educativa-Inst. Ed. e Cultura São Carlos (SP) Bianca C. C. Ribeiro
A expedição francesa contra o jihadismo no Mali ■ 3º Flávio Vieira Marques Filho Colégio dos Jesuítas Juiz de Fora (MG) Genoveva M.L.C. Schiavon
Estupro e impunidade na Índia ■ 4º Eduardo Gayer B. Ribeiro Inst. Ed. Coração de Jesus Bragança Paulista (SP) Mateus Bego Bueno
Uma geopolítica da escassez hídrica ■ 5º Clara de Meiroz Luchtemberg Col. Marista Santa Maria Curitiba (PR) Ane L. Cecchet, M. Del Pilar
Porto Rico reivindica estatuto de estado dos EUA ■ 6º Valquíria Vitorino de Oliveira Colégio dos Jesuítas Juiz de Fora (MG) Genoveva M.L.C. Schiavon
Discurso inaugural de Obama flerta com isolacionismo ■ 7º Isabella Andrade Souza Colégio Santa Amália São Paulo (SP) Rute Augusto Possebom
Editorial: O preconceito antiislâmico ■ 8º Júlia Carolina Ghizzi Colégio São Luís São Paulo (SP) Amábile Bianca Nogueira
Diário de Viagem: Prisão de Alcatraz, na Califórnia ■ 9º Isabela Oliveira de Almeida Inst. Ed. Coração de Jesus Bragança Paulista (SP) Mateus Bego Bueno
O Meio e o Homem: O Índice de Pobreza de Água (IPA)
■ 10º Maria Vick Gonçalves Colégio Arbos São Caetano do Sul (SP) Flávio H. M. Dias Fouto
● Número 2 – abril de 2013
Crise do euro abala União Europeia
Voto italiano expressa rejeição à União Europeia
Os “nacionalismos regionais” na Europa empregados pela publicidade, ainda são constantes. As
críticas com relação às mulheres que optam por abrir
© Montagem/Reprodução

No Egito, Irmandade Muçulmana chega ao governo


Os dez anos da invasão americana do Iraque mão da maternidade e do casamento em favor da vida
Argo funciona como peça de propaganda ideológica profissional são duras. No entanto, decidir a respeito da
A Venezuela sem Hugo Chávez
Eixo da Igreja desloca-se para o Terceiro Mundo gravidez e de suas relações conjugais e sexuais cabe somente
Editorial: Propaganda política em material escolar à própria mulher.
● Número 3 – maio de 2013 Da mesma forma que a flor drummondiana, inúmeras
Ascensão chinesa remodela ordem global mulheres romperam o asfalto bem como o silêncio oca-
A Coreia do Norte na geopolítica asiática sionado por uma existência submissa, mostrando ter assaz
Crise cipriota expõe fragilidades do euro
Xisto sustenta a revolução energética americana As rosas do povo capacidade e inteligência para desempenhar funções antes
exclusivas do universo masculino. Entretanto, é preciso
O programa do papa Francisco
Margaret Thatcher (1925-2013) avançar na mentalidade de muitos homens e mulheres
Editorial: O Enem e os critérios da redação Letícia Nunes Cajra
para que o preconceito se torne reconhecimento diante

E
Diário de Viagem: Buenos Aires ntre atenienses e espartanas, brasileiras e indianas, do despertar da força e da beleza daquelas que são as rosas
O Meio e o Homem: A Bacia do Reno e o Vale do Ruhr
é certo que as mulheres tiveram sua inteligência e do povo.
● Número 4 – agosto de 2013 talento amordaçados por culturas dominadas por regimes
Bússola estratégica americana gira para a Ásia
Obama e os mega-acordos comerciais patriarcais, em uma história escrita por mãos masculinas Rosa/mulher
Aliança do Pacífico é desafio para o Mercosul nos mais diversos campos do conhecimento humano. É
Manifestantes defendem o Estado laico na Turquia
Deposição do presidente encerra “Primavera Egípcia”
impossível ignorar séculos de submissão forçada ao marido
ou mulher/rosa?
e aos filhos ou apagar um obscuro milênio em que, por
Empresas brasileiras buscam negócios na África
seus atributos físicos e intelectuais, foram caçadas e quei-
A herança política de Nelson Mandela
Editorial: Edward Snowden e a “obediência devida”
Diário de Viagem: Jordânia
madas como bruxas sob a cruz da Igreja Católica.
Apesar do papel político restrito destinado às mulhe-
L etícia alia engajamento político, discussão acerca
de gêneros e poesia com uma fluência singular,
considerando-se a pouca idade e o não hábito que hoje
O Meio e o Homem: O debate sobre Belo Monte res ao longo da história, muitas tiveram papéis decisivos
em dia se tem de discutir. Talvez a leitura de mundo de-
● Número 5 – setembro de 2013 lutando por seus ideais. Simone de Beauvoir, ícone do
Paz e guerra em Israel/Palestina monstrada em sua redação se deva às inquietações tão
feminismo mundial, defendeu através da obra O segundo
Os cem anos do Canal do Panamá próprias da idade. O que, porém, motiva uma garota a
O fantasma de Pinochet e as eleições chilenas sexo a condição feminina. A escritora francesa, conhe-
escrever para um concurso?
Lulismo moderniza a CLT de Getúlio Vargas cida pela célebre frase “não se nasce mulher, torna-se”,
Há 60 anos, nascia a Petrobrás transformou-se em um divisor de águas na busca pelos
Intolerância sexual na África e na Rússia direitos das mulheres. No Brasil, Patrícia Galvão – Pagu
(Leia a íntegra do comentário crítico em
Editorial: Francisco, a Igreja e os gays www.clubemundo.com.br)
Diário de Viagem: Uzbequistão –, escritora e feminista, integrou os movimentos antropo-
O Meio e o Homem: Água e fronteiras na Palestina fágico e modernista. Além disso, lutou contra os padrões
de seu tempo e contra a ditadura Vargas como militante
O Mapa de Mundo do Partido Comunista.
Globalização – 3:(7-12) 4:(6-7)
Geopolítica – 1:(4-5) 2:(12) 6:(6) As conquistas sociais femininas, como o direito ao E X P E D I E N T E
EUA e Canadá – 1:(11-12) 2:(4-5) 3:(5) 4:(3-8) 6:(12) voto, são recentes em diversos países. Em outros, porém, PANGEA – Edição e Comercialização de
Europa Ocidental – 2:(6-7-8-9) 3:(3-4) a submissão das mulheres está intrínseca à sua cultura, es- Material Didático LTDA.
CEI e Europa Oriental – 5:(12) pecialmente em países do Oriente, onde os avanços rumo
Oriente e Pacífico – 3:(6-8-9)
à igualdade sexual foram ínfimos. Seguir determinadas Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr.,
Ásia Meridional – 1:(3)
Nelson Bacic Olic (Cartografia).
Oriente Médio – 1:(6-7-8) 2:(3) 4:(4-12) 5:(6-7-8-9) religiões e doutrinas e “sujeitar-se” ao que elas defendem
6:(7-8-9) Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779)
é um direito dessas mulheres; contudo, é preciso que os Revisão: Jaqueline Rezende
África do Norte – 4:(5)
América Latina – 1:(10) 2:(10-11) 3:(10) 4:(9) 5:(4-5)
órgãos internacionais estejam atentos para os atos que ul- Pesquisa Iconográfica: Odete E. Pereira e Etoile Shaw
6:(4) trapassam a linha tênue que separa os costumes da tortura, Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise
África Subsaariana – 1:(9) 4:(10-11) 6:(5) ferindo muitas vezes os direitos humanos. Endereço: Rua Dr. Dalmo de Godói, 57, São Paulo – SP.
Brasil – 2:(3) 3:(3) 4:(3) 5:(10-11) 6:(3-10-11) CEP 05592-010. Tel/fax: (011) 3726.4069 / 2506.4332
Mesmo nos países ocidentais, a violência doméstica,
Ciência e cultura – 1:(3) 3:(11) 5:(3) E-mail: pangea@uol.com.br – www.facebook.com/JornalMundo
o desrespeito e os estereótipos acerca do corpo feminino,

MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 2013 OUTUBRO 


E D I T O R I A L
Crime sem castigo
Dezoito de setembro, dia da infâmia: nessa saltar a antiguidade desse instrumento jurídico que autoridades políticas não podem ser julgadas nos
data, o Supremo Tribunal Federal (STF) acatou está no regimento do STF, porém não mais encontra tribunais inferiores. A conjunção desse “direito
os embargos infringentes dos principais condena- amparo na lei. As Ordenações Manuelinas são sistemas de foro” com o “direito” oriundo das Orde-
dos do mensalão. Com isso, a Corte virtualmente de preceitos jurídicos que compilaram a legislação nações Manuelinas forma uma certeza quase
anulou o julgamento no qual, pela primeira vez, portuguesa entre 1512 e 1605. absoluta de impunidade.
integrantes do alto círculo do poder foram tra- A referência esclarece quase tudo: o STF de- As cadeias do país estão cheias de acusados
tados como cidadãos comuns. É uma mensagem cidiu render-se à tradição do Estado patrimonial por pequenos delitos que aguardam meses presos
de impunidade – mas de impunidade seletiva. Os português que protegia a aristocracia do reino, antes de serem julgados. Também abrigam milha-
juízes encarregados de zelar pela Constituição tornando-a inimputável. Fazendo assim, afastou-se res de condenados que, depois de cumprirem suas
disseram, no fundo, que a lei não pode alcan- do princípio da igualdade perante a lei, que funciona penas, aguardam meses antes de obter a ordem
çar o núcleo da elite política. Ou, em outras como pilar das democracias contemporâneas. de soltura. Eles não têm sangue azul. No dia
palavras, que o Brasil é regido pelo critério do A denúncia do mensalão é de 2005; o processo da infâmia, o STF disse que desviar recursos
“sangue azul”. se iniciou em 2007 e o julgamento foi realizado em públicos para comprar parlamentares e partidos
Em seu voto, favorável à aceitação dos embargos 2012. Oito anos depois da denúncia, os principais é um crime sem punição. A mensagem foi ouvida
infringentes, o ministro Ricardo Lewandowski condenados receberam o privilégio de um novo por toda a elite política.O problema é que foi
mencionou as Ordenações Manuelinas para res- julgamento. É um privilégio que se soma a outro: ouvida, igualmente, pelo resto do país.

As três repúblicas do Acre


H oje é até difícil acreditar, mas,
no início do século XX, serin-
encarregou de derru-
bar a república, um
© Fotos: Museu Paulista, São Paulo

gueiros e aventureiros brasileiros em mês depois. Como


busca de riquezas e terras proclama- consequência, em 6
ram três vezes a República do Acre, de agosto de 1902,
sempre em situação de conflito com o militar brasileiro
o governo boliviano. Os ânimos só Plácido de Castro,
foram apaziguados há 110 anos, em enviado para o Acre,
17 de novembro, com a assinatura do proclamou a terceira
Tratado de Petrópolis, concebido pelo república – daquela
então ministro das Relações Exteriores vez, com o apoio do
José Maria da Silva Paranhos Júnior, A questão do Acre Construída com imenso sacrifício então presidente bra-
mais conhecido como Barão do Rio humano, por força do acordo sileiro Rodrigues Alves.
P E R U
Branco. Rio Amazon
as com a Bolívia, a Madeira- Antes mesmo de a Bolívia reagir
O Brasil pagou, à época, 2 milhões Mamoré corta 366 quilômetros com alguma medida de força que
de libras esterlinas (equivalentes a A M A Z O N A S de mata amazônica, no estado de pudesse levar à guerra com o Brasil, o
R$ 750 milhões em moeda de hoje) ira Rondônia, entre Porto Velho e Barão de Rio Branco propôs o acordo
de
pela anexação do território, além de Ma que passaria à história como Tratado
Rio Guajará-Mirim
ACRE
indenizações no valor total de 110 MATO de Petrópolis. O nacionalismo boliviano
GROSSO
mil libras esterlinas (cerca de R$ 41 articula-se, às vezes, como uma nar-
RONDÔNIA da de colonos brasileiros proclamou
milhões) por rupturas de contratos rativa de dolorosas perdas territoriais.
comerciais. Em contrapartida à trans- BOLÍVIA a República de Porto Acre, em 14 de O país perdeu, em guerras, sua saída
ferência do território, o Brasil ainda Traçado da EFMM julho de 1899. Teve curta duração: foi para o Pacífico, anexada pelo Chile, e o
cedeu algumas terras no Amazonas e dissolvida em 15 de março de 1900 por Chaco Boreal, anexado pelo Paraguai.
se comprometeu a construir a Estrada tropas enviadas pelo governo federal O Acre é um caso um tanto diferente,
de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM) ciaram o povoamento, levando junto brasileiro. Em seguida, a Bolívia organi- mas, mesmo assim, repetindo uma
para escoar a produção boliviana pelo com eles aventureiros e comerciantes. zou sua própria expedição militar para frase antiga, o presidente boliviano
Rio Amazonas (veja o mapa). Em 1898, a Bolívia obteve do governo ocupar a região, mas foi mais uma vez Evo Morales lamentou, em 2006, que
A região onde hoje fica o estado do brasileiro o reconhecimento de que o impedida pela resistência dos colonos, o território tenha sido “trocado por
Acre pertencia à Bolívia desde 1750, território lhe pertencia, e enviou uma agora apoiados pelo novo governador um cavalo”.
quando o país ainda fazia parte do missão de ocupação ao Acre. Foi o do Amazonas, Silvério Neri. Cumprindo o tratado, o Brasil deu
Império Espanhol e se chamava Alto estopim de uma revolta armada dos Seguindo os passos de seu anteces- início, em 1907, à construção da Ma-
Peru. Apesar disso, por ser uma área colonos brasileiros, que contaram sor, Neri enviou um novo grupo para deira-Mamoré, concluída em 1912,
de difícil acesso, a região permanecia com o apoio do então governador do garantir a ocupação do território, deno- após um número incontável de mortes
praticamente inexplorada. Atraídos Amazonas, Ramalho Júnior. minado Expedição dos Poetas, que pro- e tragédias, o que lhe valeu o apelido
pela possibilidade de enriquecimento No primeiro momento, o governo clamaria a segunda República do Acre “ferrovia do diabo”. Mas isso é outra
como produtores de látex, seringueiros boliviano recuou. Por orientação de em novembro de 1900. Porém, desta história.
do Brasil subiram pelo Rio Purus e ini- Ramalho Júnior, uma expedição arma- vez, a própria tropa militar boliviana se

 OUTUBRO 2013 MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO


Argentina

“É o outono do kirchnerismo”,
sonha a oposição
Newton Carlos Néstor Kirchner assumiu a presidência em 2003, e sua mulher, Cristina, governa
Da Equipe de Colaboradores desde 2007. O longo ciclo kirchnerista parece, depois das eleições primárias, próximo do
esgotamento. Mas a presidente luta para estendê-lo

H á um trauma argentino de instabilidade política


que não se esgota com a chegada e permanên-
cia em palácio da família Kirchner, a partir de 2003.
Naquele ano, no rescaldo de uma crise financeira que
resultou em violentos protestos de ruas, repressão poli-
cial com 23 mortos e renúncia do presidente Fernando
De La Rúa, as eleições conduziram o peronista Néstor © Antonio Cruz/ABr
Kirchner à Casa Rosada. Foi, a rigor, um novo lance
da disputa de poder entre o peronismo e seu adversário

© Leandro Kibisz (CC BY-SA 2.0)


histórico, a União Cívica Radical (UCR), partido do
presidente renunciante, que antes vencera as primeiras
eleições pós-ditadura militar.
A ditadura durou sete anos, de 1976 a 1983. Na eleição
inaugural da redemocratização, triunfou o radical Raúl
Alfonsín, outro desastre no exercício do poder. Com ele,
© Leandro Kibisz (CC BY-SA 2.0)

os argentinos se viram encharcados numa inflação, ou


hiperinflação, que chegou a 4.923%, e o presidente se viu
constrangido a entregar o poder a um peronista, Carlos Milhares de argentinos, principalmente de classe
Menem, seis meses antes de completar seu mandato.
média, fazem um cacerolazo (panelaço) contra a
Menem, em novo segmento do trauma argentino, foi tam-
presidente Cristina Kirchner, em Buenos Aires,
bém acusado de ter dado trato suave a expoentes de uma
em 18 de abril de 2013
ditadura cruel, com 30 mil mortos ou “desaparecidos”.
Ele governou até o fim, mas acabou forçado pelos votos a
entregar a Casa Rosada ao adversário De La Rúa.
Néstor Kirchner assumiu o poder em 2003 com votos
que representavam apenas 22% do eleitorado. O estranho Néstor, nunca é demais recordar, chegou à presidência – e é possível que a escalada ainda esteja a meio caminho.
resultado refletia as distorções do sistema eleitoral argen- contando com apenas 22% dos votos populares. Mas os Entrou no campo político uma Frente Renovadora. Ela
tino, que oferece a oportunidade de apresentação de mais analistas sustentam que Cristina foi derrotada “de fato” esboça propostas “pensando no futuro”; sem Cristina, é
de uma candidatura por partido. Néstor elegeu-se pela nestas PASO, pois, além do recado negativo das urnas, uma claro. Mas seus dois líderes, autores dos apelos por mu-
sublegenda peronista Frente para a Vitória e, nas eleições Argentina ainda traumatizada experimenta panelaços sob o danças, já foram ministro da Economia de Néstor e chefe
de 2007, conduziu sua mulher, a senadora Cristina, à pano de fundo do aumento do custo de vida, de uma infla- de gabinete de Néstor e Cristina.
presidência. Sua morte súbita, em 2010, interrompeu o ção camuflada pela manipulação das estatísticas oficiais e da A presidente, acuada, promete “aprofundar as trans-
projeto de retorno à Casa Rosada. disparada do dólar que afeta, entre outras coisas, transações formações”, sem que se saiba com clareza o que mudou
Os Kirchner ocupam o palácio há uma década. Mas o imobiliárias só feitas com a moeda americana. “de modo significativo” depois de uma década de poder
trauma argentino, ao que se diz ainda em vigência, permi- A Argentina vive o final de um ciclo político, segun- kirchnerista. Pesquisas recentes indicam que 60% dos
tirá um novo mandato? Em 2009, uma reforma eleitoral do a convicção manifestada por líderes da oposição. É argentinos “desaprovam” a gestão de Cristina. Em 2012,
criou as Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias para eles que se voltam os olhos e os ouvidos de todos. uma tragédia ferroviária em Buenos Aires matou 52 pes-
(PASO). Nessas eleições prévias abertas ao conjunto do Recheados de gestos de declarado otimismo, os oposicio- soas. A presidente tardou seis dias para se manifestar a
eleitorado, devem ir às urnas todos os partidos com suas nistas dizem abertamente que o kirchnerismo é passado. respeito – e tratou de evitar percursos que passassem pela
respectivas sublegendas. O resultado foi uma derrota Um ex-aliado de Cristina, que se deslocou da chefia do estação Once de Septiembre, local do acidente, que se
amarga para Cristina. gabinete presidencial para os palanques da oposição, converteu em lugar de manifestações de luto e protesto.
A Frente para a Vitória, liderada pela presidente, tornou-se, nas prévias às eleições legislativas de 27 de As vésperas do aniversário da tragédia de El Once, um
entrou em campo com o galardão de vencedora de todas outubro, o mais votado na província de Buenos Aires, vazamento de gás matou dez pessoas na cidade de Rosário
as eleições realizadas na Argentina nos últimos 10 anos, onde vivem 38% dos eleitores argentinos. Cristina reage – e Cristina fez questão de marcar presença de imediato.
com a única exceção das legislativas de 2009. Contudo, como pode, dizendo que seu partido é o único presente A mudança de humor presidencial, como é mais do que
conseguiu menos de 30% dos votos e ficou apenas em nos 24 distritos eleitorais do país. claro, é fruto do resultado das PASO.
segundo lugar na província de Buenos Aires, que é quase Outubro, com a abertura das urnas das eleições legisla- O trauma argentino tem um novo capítulo nas legis-
uma Argentina. Pela primeira vez, desde 2003, nenhum tivas, estaria a caminho de se tornar mais um componente lativas de outubro. Elas indicarão se o outono do kirch-
membro da família Kirchner foi candidato. Cristina amar- do trauma argentino? Muitos argentinos interpretaram as nerismo é uma realidade ou apenas um sonho de verão
gou a oposição das urnas nos maiores distritos eleitorais PASO como uma promessa segura de mudança de rumo. das heterogêneas correntes oposicionistas, novas e velhas,
do país, inclusive na província patagônica de Santa Cruz, Mas nada garante que isso se tornará realidade. Os argen- de um país desencantado.
onde o patriarca iniciou-se no exercício do poder. tinos defrontam-se com uma montanha de frustrações

MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 2013 OUTUBRO 


Demétrio Magnoli
Editor de Mundo

Os parques nacionais e o culto


à natureza intocada
N ão havia tempo para todas as fotos
que as paisagens mereciam. Era
preciso acelerar, chegar antes de seis da
brancos sul-africanos de origem britânica.
De longe, a maior parcela dos visitantes
é constituída por africânderes, a “tribo
tarde, a hora fatal em que se fechariam os branca” sul-africana que descende dos an-
portões do Nossob Rest Camp, distante 160 tigos colonos bôeres. São eles que lotam os
quilômetros de Twee Rivieren, a entrada do parques, geralmente em enormes veículos
Parque Transfronteiriço do Kalahari, com- 4x4 e com equipamentos de camping de

© Fotos: Elaine Senise Barbosa


partilhado entre África do Sul e Botsuana última geração. Não se engane: os ricos são
(veja o mapa). Os três campos do parque ínfima minoria; a classe média africânder
– o principal, que é Twee Rivieren, o Nossob mantém uma relação vital com os parques
e o Mata-Mata – permanecem fechados à e investe sua poupança nos SUV e na vasta
noite, como proteção dos visitantes contra parafernália de camping.
leões e leopardos. Nos percursos de carro A relação entre os africânderes e os
pelas estradas de terra e cascalho, muito parques nacionais tem um profundo
bem sinalizadas e conservadas, a regra é não sentido emotivo – e nos remete aos mitos
sair do veículo. Springboks ao redor de um poço no Kalahari, parque transfronteiriço na identitários da “tribo branca” sul-africana.
O parque do Kalahari estende-se ao África do Sul e em Botsuana. O pequeno antílope é o símbolo nacional Os bôeres chegaram no Cabo, ponta meri-
longo dos vales paralelos de dois rios da África do Sul dional do continente africano, em meados
fósseis, o Nossob e o Auob, cursos d’água do século XVII. Quase dois séculos mais
que deixaram de fluir há milhares de anos. tarde, escapando ao poder colonial britâ-
Atualmente, eles constituem aquíferos sub- nico, empreenderam o Great Trek, a épica
terrâneos, que renascem episodicamente migração rumo aos altos platôs interiores,
como rios em períodos de chuvas excep- onde fundaram as colônias autônomas do
cionais: o Nossob fluiu pela última vez Orange e do Transvaal. Finalmente, na
em 1964; o Auob, em 1973 e 1974. Mas virada para o século XX, combateram os
a presença de água a pouca profundidade britânicos na Guerra dos Bôeres, utilizando
sustenta uma vegetação de estepe e até ousadas táticas de guerrilha e conhecendo
algumas árvores típicas de savanas, pro- as agruras dos mais antigos campos de
duzindo um nítido contraste entre os vales concentração da história militar. O na-
verdes e as desoladas áreas circundantes. Kalahari, parque transfronteiriço cionalismo africânder articulou-se como
Antes do Kalahari, visitamos o parque Chalés para visitantes no Parque NAMÍBIA
BOTS.
uma narrativa de fusão dos colonos bran-
A

de Augrabies Falls, mais ao sul, também cos protestantes com a natureza intocada
ATLÂNTICO

Nacional de Augrabies Falls, na


OCEANO

ÁFRICA OCEANO
DO SUL ÍNDICO

na província do Cabo Setentrional. Foram africana. Hoje, nos parques nacionais, os


I

África do Sul.
duas noites em Augrabies, uma unidade de africânderes – os pais e seus filhos, famílias
B

conservação organizada em torno das que- B O T S U A N A numerosas, idosos aposentados – revivem


Í

das e do magnífico cânion do Rio Orange. Nos parques, circula-se de carro livremente os mitos e recontam o passado ao redor
– e, no caso de Augrabies, onde não exis- ÁFRICA
M

No Kalahari, ficamos uma noite em Twee DO


de fogueiras.
Rivieren e outra no Nossob. Depois, iríamos tem leões ou leopardos, pode-se também SUL Parques são fragmentos conservados do
A

ainda para o parque Ais-Ais, na Namíbia, caminhar. Contudo, mediante uma taxa, meio natural. Nem os mais vastos deles são,
N

onde se situa o Fish River Canyon – o sempre é possível participar de caminha- Campos de alojamento contudo, “natureza intocada”. No Kalaha-
segundo maior cânion do mundo –, e para das ou safáris motorizados de observação Poços de água ri, os animais se concentram em torno de
Estradas principais
uma visita rápida ao Kruger, o mais célebre conduzidos por guias especializados (e, no Estradas secundárias
poços artificiais, implantados a distâncias
parque sul-africano, nas proximidades da Kalahari, armados). Estradas apenas para de cerca de dez quilômetros um do outro,
veículos 4x4
fronteira com Moçambique. Os parques sul-africanos são admi- ao longo dos vales dos rios fósseis. Mesmo
Parques na África do Sul provocam um nistrados por um órgão público, South o Parque Nacional Kruger, com 19.633
sentimento irreprimível de vergonha em African National Parks (SANParks). O secundário de Mata-Mata – que trocamos quilômetros quadrados, o equivalente a
brasileiros. Em Augrabies e no Kalahari, conceito orientador é o mesmo que vi- pelo Nossob. No Brasil, pelo contrário, sob dois terços da área da Bélgica, não poderia
por algumas dezenas de dólares, alugamos gora nos Estados Unidos: quanto mais o influxo do ambientalismo anacrônico do sustentar sua diversa fauna de grandes ma-
chalés impecáveis de pedra e madeira, visitantes, melhor. Preços acessíveis dos Instituto Chico Mendes (ICM-Bio), vigora míferos sem intervenções humanas repre-
divididos em amplos quartos, banheiro, chalés e áreas demarcadas de camping, uma orientação implícita de restringir a sentadas por barragens e lagos artificiais.
cozinha equipada e varanda. Lojas básicas com infraestrutura completa, propiciam a visitação das unidades de conservação. Os parques são obras da civilização, que
oferecem vinho, cerveja, refrigerantes visitação em massa. Reservamos os chalés Entre os visitantes dos parques sul- tenta por meio deles reconstituir os laços
e alimentos para preparo nos chalés. A no Brasil, com meses de antecedência. africanos, contam-se poucos negros – algo imemoriais do ser humano com o meio
alternativa, não disponível nos campos se- Mesmo assim, devido à procura gerada que se explicaria, em tese, pelo baixo poder que serviu como alicerce para a evolução
cundários do Kalahari, é o restaurante, que pelas férias escolares de inverno na África aquisitivo da maioria da população do biológica e a socialização.
serve deliciosos pratos de carne de caça. do Sul, não conseguimos lugar no campo país. Contudo, contam-se também poucos

 OUTUBRO 2013 MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO


guerra civil regional

Cláudio Camargo
Especial para Mundo Enigma sírio desafia a lid
A s cenas do massacre correram o
mundo. As fotos mostravam ca-
dáveres de civis – na sua maioria, idosos,
(…) por quase sete décadas os Estados Unidos têm sido a âncora da segurança global. Isso significa mais que forja
com que eles sejam cumpridos.
Os fardos da liderança são, muitas vezes, pesados – mas o mundo é um lugar melhor po
velt disse, certa vez: “Nossa determinação nacional de ficar de fora de guerras e conflitos externos não deve nos imp
mulheres e crianças – vítimas da ação de quando os ideais e princípios que valorizamos são desafiados.” Nossos ideais e princípios, assim como nossa segurança n
armas químicas despejadas em ondas su- nossa liderança num mundo em que procuramos garantir que jamais sejam utilizadas as piores
cessivas por caças Mig e Mirage. Cerca de
5 mil pessoas morreram e outras milhares [Barack Obama, em discurso à nação, em 10 de setembro de 2013]
ficaram gravemente feridas, algumas com
sequelas pelos efeitos do gás mostarda,

© James Gordon (CC BY 2.0)


como cegueira, problemas respiratórios
e desordens neurológicas. Você pode
imaginar que estamos nos referindo à
Síria, onde, em agosto último, circularam
© James Gordon (CC BY 2.0)

denúncias de que a ditadura de Bashar al-


Assad usou armas químicas contra civis.
Essa barbárie teria sido a razão pela qual
países como Estados Unidos, França, Grã-
Bretanha e Turquia propuseram uma ação
militar contra o regime sírio.
Ledo engano! A tragédia descrita acima
aconteceu em 1988 na cidade curda de
Halabja, no Iraque. O autor do massacre,
o ditador Saddam Hussein, era na época Ao contrário do que podem sugerir as
um aliado de Washington e do Ocidente, Hafez al-Assad (imagem acima) implantou

© Fabio R. Pozzebon/ABr
aparências, as circunstâncias que possibilitaram
já que Bagdá estava numa cruzada contra o uma ditadura militar sangrenta, entre 1971
a deposição do ditador líbio Muammar Kadhafi
Irã dos aiatolás xiitas. O bombardeio ocor- e 2000 (quando morreu), que conseguiu
(foto à dir.) por uma intervenção da Otan, em
reu porque Saddam Hussein desconfiava preservar a estabilidade interna e relações
2011, em nada se assemelham ao que ocorre na
que a minoria curda iraquiana ajudara os externas estáveis; as tensões, no contexto da
Síria, a começar pelo fato de que a Líbia não
invasores iranianos, e ele queria puni-la. Primavera Árabe, eclodiram no governo de
tinha um exército nacional, mas uma tropa de
Não é preciso dizer que ninguém conde- seu filho e sucessor Bashar (foto à dir.)
nou de fato esse ataque, nem pensou em mercenários pagos por Kadhafi
lançar uma ação punitiva contra o ditador.
Quando isso finalmente aconteceu, em o uso de armas químicas. Se Assad a ul- Obama teve de reagir. Ele ameaçou punir aprovação do Congresso. Contudo, a pos-
2003, o Iraque já não dispunha mais de trapassasse, os Estados Unidos poderiam a Síria com ações militares pontuais, mas sibilidade de uma derrota da Casa Branca
armas de destruição em massa. atacar a Síria. supostamente dissuasórias. Afinal, o man- era grande, já que os congressistas estão
Voltemos à Síria. A guerra civil na Atacar, mas não invadir o país com datário da única hiperpotência mundial atentos ao crescimento do sentimento iso-
qual se digladiam a ditadura de Assad e tropas terrestres, como ocorreu no Afe- não poderia ser desafiado impunemente lacionista dos americanos após uma década
uma miríade de grupos rebeldes, entre ganistão e no Iraque. Ao optar por essa pelo ditador sírio. Só que a operação mi- de intenso envolvimento militar externo
os quais jihadistas islâmicos, foi o último possibilidade restrita de ação, o presidente litar americana se resumiria ao lançamento do país. Era um abacaxi de razoáveis pro-
rebento da chamada Primavera Árabe. Ela tinha em mente o que aconteceu naqueles de mísseis de cruzeiro Tomahawk a partir porções nas mãos do presidente.
já dura dois anos e custou a vida de cerca países e na Líbia, onde ações para derru- de navios e submarinos, além de eventuais Inadvertidamente, o secretário de Esta-
de 100 mil pessoas. Por que só agora essa bar regimes hostis a Washington, além de ataques de caças lançados de porta-aviões do John Kerry deu a deixa para uma saída
preocupação com os massacres? É verdade muito custosas, levaram ao fortalecimento no Mar Mediterrâneo. Uma operação, honrosa: numa entrevista, ele sugeriu que,
que, historicamente, Washington sempre de rebeldes fundamentalistas islâmicos, an- portanto, que não teria a capacidade de se o regime sírio desistisse de seu arsenal
manteve um pé atrás diante do regime tiamericanos e ligados a grupos jihadistas e mudar a relação de forças na Síria. de armas químicas, os Estados Unidos po-
sírio, inimigo jurado de Israel, aliado da até à Al-Qaeda. E Obama também levou Mesmo para uma operação limitada deriam cancelar o ataque. Só que a deixa,
Rússia e com fortes ligações com o Irã e em conta a opinião pública – já que hoje, dessa natureza, Washington não buscou a quase casual, foi aproveitada por um Vla-
com grupos fundamentalistas islâmicos ao contrário do que acontecia na época aprovação do Conselho de Segurança da dimir Putin alarmado com a possibilidade
como o Hezbollah, do Líbano, e o Hamas de George W. Bush, apenas uma minoria ONU, onde certamente seria vetado pela de uma ação militar americana na Síria,
palestino, que controla a Faixa de Gaza. de americanos acha que a superpotência Rússia. Washington obteve o apoio de o principal aliado russo na região (veja a
Mas a Síria, embora esteja numa área de deve funcionar como polícia do mundo. O aliados da Otan, como a Grã-Bretanha, a matéria à pág. 7). Assim, numa ofensiva
influência americana – o Oriente Médio presidente calculou que Assad – tirânico, Turquia e a França do socialista François diplomática, Moscou convenceu Assad a
–, nunca afetou diretamente os interesses mas racional – jamais ultrapassaria a tal Hollande, talvez o mais “atlantista” dos aceitar, ao menos em tese, um plano para
nacionais dos Estados Unidos. “linha vermelha”. presidentes franceses em toda a história. colocar suas armas sob controle interna-
Mas, há um ano, pressionado por asses- Cálculo errado. Em fins de agosto, ao Mas, em 29 de agosto, inesperadamente, cional. Obama respirou aliviado.
sores liberais que defendem a “intervenção emergir a notícia de que cerca de 1,4 mil ci- o Parlamento britânico vetou o envolvi- Ou talvez nem tanto. Como escreveu
humanitária” dos Estados Unidos em vis sírios foram massacrados na periferia de mento do país no conflito, deixando o no The New York Times a colunista Mau-
conflitos que envolvam trágicas violações Damasco por armas químicas, que os servi- primeiro-ministro David Cameron de reen Dowd, Putin, “que deixa membros de
de direitos humanos, Barack Obama con- ços de inteligência americanos garantiram mãos abanando. Alarmado, Obama recuou uma banda de garotas rebeldes apodrecer
cordou em traçar uma “linha vermelha”: que foram lançadas pelas forças de Assad, e resolveu submeter a operação militar à na cadeia, atirou uma boia de salvação”

MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 2013 OUTUBRO 


derança global dos Estados Unidos
jar acordos internacionais; significa fazer
orque os carregamos. (...) Franklin Roose-
pedir de sentir uma profunda preocupação
nacional, estão em jogo na Síria, junto com
Não é o que parece
de todas as armas.
O desenrolar mais imediato dos fatos sugere que pode se repetir na Síria uma situação como a verificada na Líbia, em
2011. Nada poderia estar mais distante da realidade.
As ameaças de um eventual ataque militar à Síria promovido por uma coalizão internacional de forças liderada pelos Estados
Unidos trazem à tona, quase que automaticamente, comparações com a operação que derrubou o ditador líbio Muammar
Kadhafi. De fato, no plano mais superficial, há varias semelhanças: os ataques contra Bashar al-Assad, em nome da defesa
© MC2 Jesse Awalt/CJTF-HOA/PAO/U.S. Navy

dos direitos humanos do povo sírio, seriam feitos por via aérea: não haveria engajamento de tropas ocidentais em combates
terrestres. A operação militar teria um tempo limitado e objetivos precisos. Mas as semelhanças terminam aí. Há um abismo
de diferenças entre os dois países, tanto no âmbito de suas relações com o mundo, quanto no âmbito doméstico.
A Líbia ocupava um lugar geopolítico relativamente marginal, e derivava sua importância do fato de ser um grande ex-
portador de petróleo. A Síria quase não tem reservas de petróleo, mas está no centro da geopolítica do Oriente Médio, além
de situar-se em área de passagem obrigatória de dutos que deverão ser eventualmente construídos para levar gás e petróleo
para a Europa.
A preservação da ditadura de Assad é fundamental para a Rússia. Ela garante aos russos a manutenção de sua única base
militar no Mediterrâneo, situada em Tartus. Isso explica os esforços feitos pelo governo de Vladimir Putin para impedir qual-
quer ataque militar à Síria. Em contrapartida, explica também, em parte, os interesses de Washington na derrubada de Assad.
O pano de fundo é a disputa estratégica pelo controle do Mare Nostrum. Para a Casa Branca, não é suficiente a hegemonia
assegurada pela Otan: a presença russa é um “incômodo” a ser extirpado.
A China também tem interesses estratégicos na área. Depende do petróleo do Irã – que, por sua vez, sustenta a ditadura
de Assad (cuja família é alauíta, um ramo dos xiitas, que são predominantes no Irã). O Irã, por sua vez, disputa com a Arábia
Saudita (de maioria sunita) a liderança dos países do Golfo Pérsico. É vital, por isso, assegurar que o governo sírio não caia sob
a influência dos sauditas. Nesse quadro, a China alinha-se taticamente ao Irã, até porque interessa a Pequim o enfraquecimento
das posições dos Estados Unidos na região.
Temos, então, um imenso e complexo nó de interesses que se entrelaçam na Síria e que envolvem as grandes potências do
planeta, situação muito distinta da experimentada pela Líbia. Mas isso ainda não é tudo. A Síria também figura como um
importante protagonista na arena regional.
A ditadura de Hafez al-Assad e, desde 2000, de seu filho Bashar, mantém uma convivência tensa, mas pacífica, com Israel.
Apesar da retórica beligerante, especialmente em torno das Colinas de Golã, ocupadas por Israel em 1967, quase não houve
incidentes sérios envolvendo os dois países nas três últimas décadas. A desestabilização da ditadura síria pode, potencialmen-
para Obama. Trata-se, no entanto, de uma te, elevar a tensão na região, principalmente se for substituída por um governo indisposto ou incapaz de preservar relações
boia traiçoeira. “O objetivo da Rússia é ser estáveis com o vizinho judeu. Os israelenses vacilaram bastante sobre a posição a adotar diante da guerra civil síria. Decidiram
vista como uma potência como os Estados pressionar por um ataque limitado de Washington apenas porque isso enviaria um sinal eloquente para o Irã, cujo programa
Unidos. E ela será vitoriosa se puder ser nuclear atemoriza Israel.
vista como protagonista; se puder pare- Finalmente, a ditadura dos Assad conseguiu manter sob controle a minoria curda, que promove uma luta histórica pela
cer que Washington se absteve de atacar criação de um Estado independente (veja a seção O Meio e o Homem, à pág. 9). Essa questão ganha relevo regional quando
[a Síria] em razão das manobras russas. se considera que os curdos são ativos também no Iraque e na Turquia, onde conquistaram uma expressão política importante,
Assim, o peso [geopolítico] de Moscou em especial com a atuação do Partido Curdo dos Trabalhadores (PKK, na sigla em inglês). A última coisa que o governo
aumentará dramaticamente”, analisa o turco quer é uma retomada da agitação curda em seu território, o que poderia ser estimulado pela fragmentação da Síria. Isso
site de geopolítica e estratégia Stratfor. Os teria, provavelmente, consequências ainda mais graves entre os curdos do Iraque – que, aliás, habitam as regiões mais ricas
homens do Kremlin esperam que os Esta- em petróleo do país.
dos Unidos sejam percebidos pelo resto do Mas a Síria também é diferente da Líbia em virtude da maior coesão do aparelho estatal. A Líbia praticamente não dispunha
mundo como a superpotência enrascada de um exército nacional. Kadhafi comandava uma tropa de cerca de 10 mil mercenários, muitos dos quais estrangeiros, que
e trapalhona que foi salva pela iniciativa deviam fidelidade pessoal a ele. A Líbia era um país fortemente fragmentado por profundas divisões tribais. A Síria é um caso
política de Moscou. totalmente distinto. Mesmo após dois anos de guerra fratricida, com pelo menos 100 mil mortos, registrou-se um número
Ainda é cedo para se tirar conclusões, pequeno de deserções no exército regular. A ditadura dos Assad não se resume ao poder pessoal de Bashar ou, antes, de Hafez.
ainda mais porque existe um abismo Ela está fincada sobre uma teia de compromissos e acordos que envolvem amplos setores da classe média, especialmente os
entre a oferta verbal de renúncia às ar- alauítas e os cristãos.
mas químicas e a eliminação real desse Além de tudo, a Síria cultiva um forte sentimento nacionalista, que não joga um papel secundário no conflito. Damasco
arsenal sírio. Mas o recuo de Obama na é a capital mais antiga do planeta, com idade calculada em 6 mil anos. Sua história é motivo de orgulho para os sírios. A pre-
Síria pode indicar que a era do ativismo sença de combatentes jihadistas estrangeiros entre as forças que lutam para derrotar Assad constitui, nesse sentido, um grande
mundial americano, que se iniciou mais problema para a formulação de uma estratégia de formação de um governo pós-ditadura.
de 70 anos atrás, no momento do ataque Uma das alternativas possíveis seria a “balcanização” do país – ou seja, sua divisão em áreas controladas por alauítas, sunitas
japonês a Pearl Harbor, talvez esteja com e curdos. Mas tal divisão aprofundaria todos os problemas, pois multiplicaria as áreas de instabilidade. O problema se agrava,
os dias contados. aliás, quando se considera que a Síria, ao contrário do que se dizia do Iraque, de fato possui armas de destruição em massa
– no caso, um poderoso arsenal químico. Se partes de tal arsenal caírem nas “mãos erradas”, podem se tornar fonte dos piores
Cláudio Camargo é jornalista pesadelos na arena política mundial. Não há, aqui, qualquer analogia com o caso da Líbia.
e sociólogo

 OUTUBRO 2013 MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO


oriente médio

Rumo a um condomínio turco-persa?


Na moldura da retração estratégica dos Estados Unidos e do enfraquecimento dos Estados árabes, Turquia e Irã emergem como polos de
poder rivais no Oriente Médio

O conflito na Síria já se encontra em sua


terceira etapa. A primeira, um levante
popular contra a ditadura de Bashar al-Assad,
O contexto regional do conflito na Síria
O pano de fundo da rivalidade entre
a Turquia e o Irã é a retração evidente da
influência regional dos Estados Unidos.
MAR NEGRO RÚSSIA
durou apenas até os massacres inicias de civis GEÓRGIA Barack Obama retirou as forças americanas
promovidos pelo regime. A segunda, uma do Iraque e assistiu, mais ou menos impo-

MAR CÁSPIO
guerra civil nacional, adquiriu as feições de TURQUIA ARM. AZERB. tente, às reviravoltas da revolução egípcia.
um confronto sectário de forças rebeldes TURCOMENISTÃO Enquanto a hiperpotência reorganiza sua
sunitas contra um aparato estatal apoiado estratégia global, colocando ênfase no de-
pelas minorias alauíta e cristã. A terceira, em safio representado pela ascensão chinesa, os
MEDITERÂNEO

curso há meses, deve ser definida como uma SÍRIA atores regionais do Oriente Médio adqui-

AFEGANISTÃO
MAR

“guerra civil regional”. O regime de Assad tem LÍBANO rem maior autonomia e liberdade de ação.
o apoio militar direto de forças da Guarda Atualmente, os objetivos estratégicos de
ISRAEL IRAQUE
Republicana do Irã e de milícias de elite do IRÃ Washington no Oriente Médio se resumem
Hezbollah libanês. Os rebeldes, por seu lado, a garantir a segurança de Israel e da Arábia
JORDÂNIA
recebem armas e munições da Arábia Saudita, Saudita, evitando que o Irã se transforme
do Qatar e da Turquia. A Síria transformou-se em potência nuclear.
em cenário de um jogo de poder que abrange No complexo tabuleiro da rivalidade
MA

GO
LFO
grande parte do Oriente Médio. turco-persa, uma das peças mais enigmá-
RV

ARÁBIA SAUDITA


ERM

O Irã e a Turquia, potências regionais ticas são os curdos. No horizonte utópico

RS
ICO
não árabes, são protagonistas desse jogo. A EGITO
ELH

desse povo não árabe figura a constituição


O

influência regional de ambos amplificou- de um Estado independente, o Curdistão


se paralelamente à redução do poder dos Países com maioria de população xiita (veja a seção O Meio e o Homem, à pág.
principais países árabes. O Iraque deixou de Países que apoiam os rebeldes da Síria 9). Contudo, as fronteiras geopolíticas
ser um ator relevante desde a invasão ame- Concentração da população alauíta (xiitas) da Síria existentes criam circunstâncias diversas,
ricana e a derrubada do regime de Saddam nas quais se movem os curdos iraquianos,
Hussein. As ondas de choque da Primavera Hezbollah libanês (apoio ao regime sírio) turcos e sírios. Na Síria, pela primeira
Árabe provocaram uma retração do Egito, IRÃ Principal aliado do governo sírio vez, com a guerra civil, os curdos emer-
às voltas com o problema da estabilidade gem como atores relevantes. Eles querem
interna, e anularam a influência da Síria. A guerra civil síria pode ser interpretada como elemento se livrar de Assad, mas não confiam nos
Entre os países árabes, apenas o Egito projeta poder na de um “levante sunita” de alcance regional. Os rebeldes sírios rebeldes sunitas. No norte do Iraque, os curdos experi-
escala regional. Mesmo assim, os sauditas não são capazes têm o apoio da Arábia Saudita, dos pequenos emirados do mentam elevado grau de autonomia regional e procuram
de rivalizar com os dois grandes protagonistas. Golfo Pérsico e dos sunitas iraquianos. Enquanto esteve alternativas para escoar o petróleo extraído de suas terras,
Séculos antes de Cristo, o Império Persa expandiu-se no poder, o governo egípcio da Irmandade Muçulmana que hoje depende do porto de Basra, no sul iraquiano.
por amplas áreas do Oriente Médio, subjugando a Me- perfilou-se ao lado dos insurgentes, exigindo a renúncia de Na Turquia, após longos ciclos de lutas separatistas, o
sopotâmia, o Crescente Fértil e o Egito. O Irã atual às Assad. A Liga Árabe, organismo de cooperação internacio- Partido Curdo dos Trabalhadores (PKK, na sigla em
vezes enxerga a si mesmo como herdeiro do antigo poder nal com maioria formada por governos sunitas, condenou inglês) ensaia negociar a paz com o governo central.
persa. Desde a Revolução Iraniana de 1979, o Estado sistematicamente o regime sírio e, na crise deflagrada pelo As ruas da cidade de Erbil, na região curda do Iraque,
teocrático xiita procura exercer influência regional. Os ataque químico de agosto, ofereceu um suporte mais ou estão pontilhadas de sinais da presença turca, sob as
iranianos firmaram uma aliança com a Síria do regime menos explícito à ameaça americana de retaliar contra As- formas de investimentos, empresas e turistas. A hipó-
dos Assad, que se apoia sobre a minoria alauíta, uma ver- sad. Mas, bem antes disso, a Turquia declarara seu apoio às tese de um acerto entre Erdogan e o PKK descortina a
tente islâmica alinhada com os xiitas. A aliança abrange forças rebeldes, rompendo relações com Damasco. possibilidade de um acordo estratégico da Turquia com
também o partido armado libanês Hezbollah, cuja base Durante quase quatro séculos, até a Primeira Guerra o governo autônomo curdo do Iraque. Nos cálculos dos
social se encontra entre os xiitas, que são cerca de 27% Mundial, o Império Turco-Otomano dominou a maior dois lado, encontra-se o projeto de construção de dutos
da população do país. parte do Oriente Médio. Depois disso, ao longo de oito dé- que, atravessando território turco, assegurem o escoa-
Ironicamente, a invasão americana do Iraque abriu um cadas, a República da Turquia voltou as costas para a região. mento do petróleo curdo até os portos do Mediterrâneo.
novo campo de difusão da influência do Irã. Os árabes Um novo interesse turco pelo mundo árabe evidenciou-se Desse modo, a Turquia estenderia sua influência para a
formam cerca de três quartos da população iraquiana. O há dez anos, com a ascensão do partido de Recep Tayyp porção setentrional do Iraque e, potencialmente, para as
regime de Saddam Hussein apoiava-se sobre a minoria Erdogan, de raízes islâmicas. No início, a “política árabe” regiões curdas da Síria.
sunita e marginalizava os xiitas, que constituem maioria de Erdogan caracterizou-se pelo pragmatismo e incluiu Quase um século atrás, quando terminou a Primeira
relativa. No novo arranjo de poder no país, porém, os xiitas acenos diplomáticos para Irã e Síria. Contudo, na hora da Guerra Mundial, o Oriente Médio árabe foi repartido nas
detêm a maior parte dos cargos de governo – e a retirada Primavera Árabe, o governo turco inclinou-se na direção esferas de influência britânica e francesa. Hoje, esboça-se
das forças americanas provocou uma aproximação da elite da Irmandade Muçulmana egípcia e dos insurgentes sírios. um novo condomínio geopolítico, desta vez articulado
política xiita iraquiana com o Irã. Como fruto desses de- A Turquia aposta no sucesso do “levante regional sunita” e em torno da Turquia e do Irã. Será uma triste ironia se
senvolvimentos, configurou-se um “Crescente Xiita” que posiciona-se para restaurar a antiga influência otomana no a Primavera Árabe conduzir, no fim das contas, a esse
se estende do Líbano ao Iraque e se conecta ao Irã por laços Oriente Médio. Essa estratégia a colocou em campo oposto resultado.
culturais, comerciais e estratégicos (veja o mapa). ao dos iranianos no teatro de guerra da Síria.

MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 2013 OUTUBRO 


Nelson Bacic Olic
Da Equipe de Mundo

A saga dos curdos


Mapa 1

H á cerca de 5 mil anos, tribos de


pastores se estabeleceram numa
Os curdos no Oriente Médio
MAR NEGRO RÚSSIA
te na Turquia e no Iraque, o que deu
origem a organizações curdas de luta
ao final da Guerra do Golfo (1991), quando
a ONU autorizou a proteção internacional

CÁSPIO
MAR
região montanhosa da porção setentrional GEÓRGIA
armada. O exemplo mais notável é de uma região curda no norte do Iraque, que
do Oriente Médio, localizada de forma o Partido dos Trabalhadores Curdos ficou resguardada de ataques do ditador ira-
ARM. AZERB.
mais ou menos equidistante dos mares (PKK, na sigla em inglês), criado em quiano Saddam Hussein. A proteção externa
T U R Q U I A
Mediterrâneo, Negro, Cáspio e do Golfo 1984 na Turquia, que atua também a permitiu aos curdos conquistar substancial
Pérsico. Permaneceram nessa região e partir do lado iraquiano da fronteira autonomia regional.
absorveram influências culturais – o isla- comum. Por inúmeras vezes, o go- Em 2003, quando os Estados Unidos
mismo, por exemplo – dos povos que ao SÍRIA verno turco atacou bases do PKK em invadiram o Iraque, os curdos desempe-
MAR
longo do tempo dominaram a região. Essa MEDITER. IRÃ território do Iraque. Depois de dé- nharam papel importante na derrubada
é a origem dos curdos. cadas de luta, em março de 2013, a do regime de Saddam Hussein. Em 2005,
Atualmente dispersos por uma vasta área IRAQUE organização decretou um cessar-fogo com a eleição de um governo de transição,
do Oriente Médio que abrange regiões de EGITO JORDÂNIA unilateral com o governo turco. os curdos assumiram postos-chave na nova
cinco países (Turquia, Iraque, Irã, Síria e Ar- No Iraque, por décadas, os curdos administração iraquiana, inclusive a presi-
GOLFO
mênia), os curdos constituem não só a mais ARÁBIA SAUDITA PÉRSICO sofreram com a violenta e sistemática dência do país. Desde aquele ano, eles pro-
numerosa minoria da região como também repressão por parte do governo do curam conservar sua influência no governo
o maior grupo étnico do mundo que não Zona de povoamento curdo país. A situação começou a mudar central e preservar a autonomia regional no
possui um território nacional próprio. Cul- Países com maioria contexto de um Iraque federalista.
turalmente, eles estão na encruzilhada dos de população muçulmana Mapa 2 Todavia, a criação de um
mundos árabe, turco e persa. A Turquia e o Projeto da Grande Anatólia Curdistão independente é uma
O que eles denominam de Curdistão MAR NEGRO GEÓRGIA RÚSSIA utopia. Nenhum dos países
– o “país dos curdos” – não tem limites que têm populações curdas
precisos, mas se estende a partir das Mon- AZERBAIJÃO abriria mão da soberania sobre
tanhas Zagros no Irã, abrangendo também T U R Q U I A ARM. seus territórios. Além disso,
© Jan Sefti (CC BY-SA 2.0)

o norte do Iraque, a porção setentrional u f r a tes um Curdistão independente


Rio E
da Sí­ria e a Turquia Oriental. De maneira que abrangesse as tradicionais
geral, é uma região montanhosa, com áreas de povoamento curdo
mais de 500 mil quilômetros quadrados, seria excepcionalmente rico
I R Ã
parcialmente banhada pelos rios Tigre e em petróleo, por conta das
Rio
Tig
Eufrates (veja o mapa 1). valiosas jazidas do norte do
O número exato de curdos é motivo S Í R I A re
I R A Q U E Iraque, e em recursos hídricos,
de controvérsias. Algumas fontes falam em
Vista panorâmica de Arbil, pois as nascentes dos rios Tigre
27 milhões, enquanto outras indicam um região curda do Iraque e Eufrates estão no sudeste da
Áreas aproximada do Projeto da Grande Anatólia
total de 36 milhões. Isso se deve ao fato de Turquia (veja o box).
Países que fizeram parte da União Soviética
que os governos dos países que os abrigam Quanto aos curdos das cidades, eles estão
produzem estatísticas pouco confiáveis representados basicamente pelos centros
sobre o delicado tema. Cerca de metade
dos curdos presentes no Oriente Médio
urbanos do Iraque – ligados à indústria e à
prospecção do petróleo – e pelo migrantes
A questão hídrica na Mesopotâmia
vivem na Turquia, onde representam curdos de Istambul, na Turquia. No mundo atual, 260 bacias hidrográficas são reconhecidas como internacionais. Existem
aproximadamente 20% da população total Os anseios de um Curdistão indepen- zonas potencialmente hidroconflitivas nas áreas onde a água é escassa. Um caso notório é o
deste país. No Iraque, também são 20%; na dente ganharam força no fim da Primeira da região da Mesopotâmia, que envolve as bacias dos rios Tigre e Eufrates, cujas águas são de
Síria, 8%; no Irã, 7%; na Armênia, pouco Guerra Mundial (1914-18), quando se grande interesse para Turquia, Síria e Iraque.
mais de 1%. imaginava que o país dos curdos surgiria Os dois rios têm suas nascentes nas regiões montanhosas do leste e do sudeste da Turquia.
Os curdos não falam uma única língua com o fim do Império Turco-Otomano, que Ao deixar o território turco, o Tigre atravessa o Iraque, enquanto o Eufrates cruza áreas da Síria
antes de banhar terras iraquianas. A Turquia controla 98% do débito do Eufrates e 45% do
e nem sequer professam uma religião co- dominou a região por séculos. Na hora das débito do Tigre. O Eufrates e seus afluentes são as principais fontes de água da Síria. Mais de
mum, ainda que a parcela majoritária deles negociações de paz, o presidente dos Estados 80% da população do Iraque depende do uso da água dos dois rios (veja o mapa 2).
seja adepta do islamismo sunita. Generica- Unidos Woodrow Wilson apresentou seus Nos anos 1980, o governo turco elaborou uma política hidráulica ambiciosa, denominada
mente, os curdos podem ser enquadrados célebres 14 Pontos – e o 12º destes pontos Projeto da Grande Anatólia (PGA). O PGA se destinava a mudar radicalmente a paisagem
em três categorias: os das montanhas, os tratava de uma nação curda. O Tratado de do sudeste da Turquia, incorporando ao país vastas áreas de terras irrigadas, grandes reserva-
das planícies e os das cidades. Os primei- Sévres, de 1920, previa autonomia para tórios e mais de uma dezena de centrais hidrelétricas, com o objetivo declarado de melhorar
ros vivem basicamente do pastoreio e do os curdos, mas o de Lausanne, de 1923, as condições de vida dos habitantes daquela região.
Mas o PGA fazia parte das estratégias geopolíticas internas da Turquia, pois a região é a base terri-
comércio informal que ignora as fronteiras derrubou aquelas aspirações. torial da minoria curda, sobre a qual se sustentam correntes políticas separatistas como o Partido dos
nacionais estabelecidas. Tais áreas mon- A partir de então, por inúmeras vezes, os Trabalhadores Curdos (PKK). As obras do PGA, especialmente a construção de barragens, serviram
tanhosas abrigam mais de trinta tribos, curdos se revoltaram, mas invariavelmente como justificativa para desalojar populações curdas de suas áreas tradicionais. Ao mesmo tempo, a
cujas rivalidades tradicionais muitas vezes foram reprimidos pelos governos dos países melhoria da infraestrutura viária estimulou as migrações de turcos para a região curda.
se sobrepuseram às lutas por autonomia. aos quais estavam submetidos, especialmen-

 OUTUBRO 2013 MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO


brasil

O que os números do IDH-M realmente dizem


Atlas do PNUD com indicadores municipais atualizados funcionou como pretexto para
Axé Silva
uma torrente de avaliações otimistas. Mas a análise dos índices evidencia disparidades
Especial para Mundo
intoleráveis

N o final de agosto, o Programa das Nações Unidas


para o Desenvolvimento (PNUD) divulgou um
novo trabalho intitulado Atlas do Desenvolvimento
se à interpretação geral dos números. A análise mais atenta
e detalhada das informações do Atlas revela disparidades
extremas, que encontram expressão cartográfica (veja o
Uma análise menos eufórica permite, ainda, jogar luz sobre
as enormes desigualdades regionais de desenvolvimento, uma
marca peculiar do Brasil que tem raízes históricas profundas. O
Humano no Brasil 2013. Nele, encontram-se dados mapa). mapa evidencia que as cidades classificadas com IDH-M muito
atualizados sobre o Índice de Desenvolvimento Huma- Entre os 5.565 municípios do país, 2.233 (40,1%) exi- alto e alto concentram-se, esmagadoramente, em manchas lo-
no dos 5.565 municípios brasileiros (IDH-M). Esta é a bem médio IDH-M e outros 1.367 municípios (24,6%) calizadas nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Em contraste,
3ª edição do Atlas produzido pelo órgão da ONU. As apresentam baixo IDH-M. O IDH-M alto, média geral nos municípios das regiões Norte e Nordeste prevalecem as
anteriores foram divulgadas em 1998 e 2003. do país, caracteriza apenas cerca de um terço dos muni- categorias de médio, baixo e muito baixo IDH-M.
Segundo o PNUD, entende-se por desenvolvimento cípios (1.889). No polo extremo, o IDH-M muito alto O próprio Atlas do PNUD fornece outras informa-
humano o processo de ampliação das liberdades pessoais e as aparece em escassos 44 municípios (0,8%), proporção ções preocupantes. O IDH-M Longevidade apresentou
capacidades e oportunidades a seu dispor, criando assim pos- semelhante à do polo oposto, de IDH-M muito baixo, valor médio de 0,0891 para o país. Mas, nada menos que
sibilidades para escolher a vida que desejam ter. O IDH-M é onde se encontram 32 municípios (0,6%). A média geral 1.589 municípios (28,5% do total) ficaram muito abaixo
um indicador composto por três variáveis: vida longa e saudável mais esconde do que revela: afinal, quase dois terços dos da média, enquanto outras 1.799 cidades (32,3%), apre-
(longevidade), acesso ao conhecimento (educação) e padrão municípios brasileiros (ou 64,7%) estão abaixo do espera- sentaram índice inferior à média. Nesse caso, também, a
de vida (renda). Tais critérios são diferentes dos utilizados no do para um desenvolvimento humano digno e, também, média nacional oculta acentuadas disparidades.
IDH Global e também se distinguem daqueles utilizados para abaixo da média geral do país (que é puxada para cima O IDH-M Renda evoluiu de 0,647 nos idos de 1991
avaliar os municípios brasileiros em 1991 e 2000. Os dados pelos municípios mais populosos). para 0,739. Em termos efetivos, descontada a inflação, a
utilizados são os do Censo Demográfico de 2010, feito pelo renda per capita dos brasileiros aumentou R$ 346,31 nos
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para últimos 20 anos. Nesse quesito, cerca de 70% dos muni-
cada variável, atribui-se uma nota, de zero a um. cípios apresentaram crescimento da renda per
Quanto mais próxima de zero, pior o desem- capita superior à média nacional. Contudo, a
penho; quanto mais próximo de um, melhor. O IDH-M (2010) manutenção da concentração econômica está
Posteriormente, calcula-se uma média ponderada VENEZUELA GUIANA implícita na análise do indicador: dos 5.565
GUIANA
entre as três variáveis para obter o valor final. Os COLÔMBIA SURINAME
FR. OCEANO municípios, apenas 620 – o equivalente a
ATLÂNTICO
resultados são distribuídos em cinco categorias: 11% – exibem IDH-M Renda superior àquele
muito alto (0,800 a mais), alto (0,700 a 0,799), observado para o país (0,739).
médio (0,600 a 0,699), baixo ( 0,500 a 0,599) e Das três variáveis contidas no IDH-M, foi
muito baixo (0 a 0,499). a educação que apresentou maior evolução.
No último levantamento, o IDH-M en- Entre 1991 e 2010, o índice cresceu quase
contrado para o Brasil é de 0,727. Segundo 130%, saltando de 0,278 para 0,637. Pode
as categorias de desenvolvimento humano parecer muito – e existem avanços efetivos.
municipal, estabelecidas no Atlas de 2013, o Entretanto, os brasileiros ainda têm escolari-
país situa-se na faixa de alto desenvolvimento dade média de apenas sete anos, a evasão no
humano, o que decorre de significativa melho- ensino fundamental é superior a 24% e o país
ria em relação aos levantamentos anteriores. PERU abriga um contingente imenso de analfabetos
Em 1991, o país encontrava-se na categoria funcionais. No fundo, a evolução é absurda-
BOLÍVIA
de muito baixo desenvolvimento humano mente lenta, ainda mais se comparada à de
(0,492) e, em 2000, atingira a de médio IDH- países asiáticos com renda per capita similar.
M (0,612). O resultado mais recente gerou O levantamento do PNUD deveria ser
uma euforia um tanto exagerada. lido como uma sentença de acusação. O Brasil
CHILE
Parte dos meios de comunicação e das PARAGUAI continua a conviver com um grave processo de
entidades ligadas à pesquisa anunciou a gran- exclusão social, que condena parcela significa-
de evolução do IDH-M. Ao observarmos o OCEANO tiva da população à impossibilidade de exercer
PACÍFICO ARGENTINA
resultado final (0,727), é inquestionável o plenamente sua capacidade intelectual e produ-
avanço estatístico obtida pelo país ao longo tiva. Contudo, admitir tal realidade significaria
das últimas duas décadas. Porém, o primeiro 0 240 480 conferir impulso aos questionamentos sobre
URUGUAI
problema a ser identificado encontra-se na km
a eficiência dos significativos gastos públicos
caracterização de alto IDH-M. Exposta su- Níveis de IDH-M realizados sob o rótulo do combate à desigual-
perficialmente, a notícia dissemina na opinião Muito baixo (0 a 0,499) dade e à pobreza. Para evitar transtornos à elite
pública a ilusão de que alcançamos padrões de Baixo (0,500 a 0,599) política, é mais conveniente ler as informações
desenvolvimento socioeconômico similares com óculos especiais, destinados a esconder
aos de nações classificadas na categoria de Médio (0,600 a 0,699) nossas misérias. Assim, com a finalidade de
IDH muito alto. Entretanto, de fato, estamos Alto (0,700 a 0,799) mascarar o fato, nasce o factoide.
bem longe disso – e galgar o último patamar Muito alto (0,800 a mais)
Axé Silva é geógrafo formado pela USP,
é tarefa mais difícil que avançar pelos estágios professor e coautor do material didático do
anteriores. Um segundo grave problema refere- Sistema Anglo de Ensino

MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 2013 OUTUBRO 10


brasil

País ultrapassa a barreira dos 200 milhões de habitantes


Informações do IBGE confirmam as tendências de redução na taxa de fertilidade e aumento da expectativa de vida. A “janela
demográfica” favorável à expansão econômica se fecha num horizonte de dez anos

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística


(IBGE) acaba de divulgar que a população bra-
sileira atingiu, no primeiro dia de julho, a marca de
quanto a fecundidade. A redução da taxa de fecundidade,
observada desde meados da década de 1960, acentuou-se
nos últimos anos e vem reduzindo o ritmo de crescimento
qualquer natureza e violência. Sem o incremento desse
fator, a esperança de vida da população seria, hoje, dois
ou três anos maior que a verificada. Mesmo assim, a ex-
201.032.174 habitantes. A barreira simbólica de 200 populacional. Em 2007, essa taxa chegou a 2,1 filhos por pectativa de vida vem crescendo rapidamente. Em 1940,
milhões teria sido superada no dia 2 dezembro de 2012. mulher, o nível mínimo de reposição da população, e deverá era de 45,5 anos; saltou para quase 73 em 2008 e deverá
O órgão também divulgou dados e projeções demográficas reduzir ainda mais. alcançar pouco mais de 81 anos em 2050.
até 2060, uma informação de suma importância tanto No sentido oposto, o IBGE identificou como fator O Brasil se beneficia ainda de uma condição demo-
para planejadores do governo quanto para investidores relevante da dinâmica demográfica as mortes prematuras gráfica especial para o crescimento: o chamado “bônus
da iniciativa privada. de jovens em decorrência de causas como acidentes de demográfico”. Essa condição resulta da diferença muito
O primeiro recenseamento realizado no Brasil data positiva entre o contingente de população ativa e o
de 1872. Ele indicava que o contingente demográfico contingente de população definida como dependen-
do país era de quase 10 milhões de habitantes. Cerca de te (a soma de jovens que não atingiram a idade de
A população das unidades federativas do Brasil
um século depois, a população atingiu a marca de 100 (2013 e 2030*) trabalho e idosos aposentados). Em 2000, para cada
milhões, número que dobrou nos últimos 40 anos. Isso VENEZUELA SURINAME GUIANA indivíduo com mais de 65 anos existiam 12 pessoas
FR.
significa que a população brasileira cresceu um pouco COLÔMBIA 0,5 OCEANO em idade ativa. Mas essa “janela de oportunidades”
GUIANA ATLÂNTICO
0,7
mais de duas Argentinas nas últimas quatro décadas. 0,6 deverá se fechar em 2023. Em 2050, para cada idoso
0,98
Segundo o IBGE, a população brasileira continuará haverá apenas três pessoas em idade ativa. O fenômeno
a crescer até 2042, quando atingirá o teto máximo de 3,8 3,4 demográfico causará impacto enorme nas contas da
6,8 8,8
228 milhões, começando a diminuir a partir daí. As 4,7
8,0
9,6
3,9 Previdência Social, caso não sejam feitas profundas
7,4
projeções indicam para 2060 uma população de 218,3 9,3
3,2
3,9 4.3 reformas no sistema de aposentadorias.
milhões, patamar demográfico praticamente idêntico 0,8
0,97 1,7 1,5
3,2 9,2 10.1
3,3 Em termos regionais, como já vinha ocorrendo
ao de 2025 (veja o gráfico 1). 2,0 3,2 1,7 3,5 nas últimas décadas, todas as cinco macrorregiões do
15,0
2,2
Nas duas últimas décadas, o Brasil permaneceu na PERU
3,7
2,8 15,9 país experimentarão aumento em suas populações
3,8 2,5
condição de quinto país mais populoso do mundo, BOLÍVIA absolutas. Não se esperam mudanças relevantes na
7,7
atrás de China, Índia, Estados Unidos e Indonésia. 6,4 20,6 distribuição da população pelo território nacional,
2,6 3,8
Estima-se que, no horizonte de 2020, o Brasil perderá 3,0
22,2
pois o crescimento vegetativo é relativamente baixo
43,7 4,5
posições nesse ranking populacional, pois deverá ser PARAGUAI 48,4 16,4 em todas as regiões, e não existem indícios de fluxos
CHILE 11,0
ultrapassado pelo Paquistão, pela Nigéria e talvez 12,0
17,4 migratórios expressivos.
também por Bangladesh. A responsabilidade por OCEANO ARGENTINA
6,6 No interior dos círculos, As migrações interregionais perderam a força e,
PACÍFICO 8,0 a população em 2013
isso encontra-se no recuo das taxas de crescimento 11,2 hoje, não são nem uma sombra do que foram nas
11,5 No interior dos
vegetativo. retângulos, a décadas de 1960, 1970 e 1980. As regiões Norte e
0 240 480 população em 2030
Os recenseamentos nacionais são feitos a cada km
URUGUAI
Centro-Oeste, justamente as menos populosas, conti-
FONTE: IBGE
dez anos e o próximo só será realizado em 2020. Nos * Em milhões de habitantes e números arredondados nuarão a desempenhar o papel de frentes de expansão
períodos intercensitários, especialistas em demografia econômica e demográfica, mas atrairão contingentes
fazem previsões baseadas em tendências estatísticas e Gráfico 1 migratórios relativamente pouco numerosos. O Sudes-
pesquisas por amostragem. Como todas as previsões, elas Brasil: evolução demográfica projetada te continuará a ser a região mais populosa, embora registre
podem se confirmar ou não – ainda com a necessidade (em milhões de habitantes) tendência a apresentar queda discreta em sua participação
de serem revisadas periodicamente. Projeções feitas nos 250
218,1 no total nacional. O Nordeste manterá sua posição de
228,3
anos 1970 indicavam que o Brasil atingiria a marca de milhões segunda região mais populosa do país, com pouco menos
225
201,0
200 milhões de habitantes já no ano 2000, mas a marcha de 28% do total. Descrevendo trajetória similar à do Su-
Milhões

200
de redução das taxas de crescimento vegetativo foi mais deste, o Sul apresentará pequena diminuição relativa da
veloz do que previam, à época, os analistas. 175 população, ficando em torno de 14% do total. Juntas, em
As grandes transformações demográficas experimenta- 2030, as regiões Norte e Centro-Oeste abrigarão pouco
150
das pelo Brasil nas últimas décadas resultam da combina- 2010 2013 2042 2060 mais de 15% dos brasileiros.
FONTE: IBGE
ção de um conjunto de mudanças nas condições de vida O quadro de estabilidade se repete na escala de análise
e nos hábitos da população. O aumento da proporção de Gráfico 2 das unidades federativas. No horizonte de 2030, os esta-
idosos reflete um envelhecimento demográfico que está Brasil: dinâmica demográfica dos de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia
entre os mais velozes do mundo. A forte redução da taxa Mortalidade infantil (em mil nascidos vivos) Expectativa de vida continuarão sendo os mais populosos e, em conjunto,
(anos)
de mortalidade infantil evidencia melhorias médico-sani- 20,0 100 abrigarão cerca de 45% do total de brasileiros. As unidades
tárias generalizadas. Historicamente, a população brasileira 17,2
federativas que galgarão mais posições no ranking popu-
passou a viver mais e melhor (veja o gráfico 2). 15,0
81,2
lacional serão o Distrito Federal, que saltará da 20ª para
80,1
A abertura do mercado de trabalho para as mulheres, o 80 a 17ª posição, e o Amazonas, que passará da 15ª para a
aumento da escolaridade, sobretudo da população feminina, 10,0
73,3
13ª posição. Os cinco estados menos populosos em 2010
7,72 7,12
o uso de métodos contraceptivos e a melhoria das condições – Rondônia, Tocantins, Amapá, Acre e Roraima – conti-
de saneamento básico são fatores que, em conjunto, redu- 5,0
2010 2013 2042 2060
60
nuarão a ocupar o fim da lista em 2030 (veja o mapa).
ziram de maneira expressiva tanto a mortalidade infantil FONTE: IBGE

11 OUTUBRO 2013 MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO


Martin Luther King Jr.

I have a dream
Reivindicado por militantes situados em todos os segmentos do espectro ideológico, da extrema-esquerda à extrema-direita, o discurso
pronunciado há meio século, em Washington, ainda representa um desafio para a sociedade americana

M artin Luther King Jr. é uma figura singular na


história dos Estados Unidos. Meio século após
o seu famoso discurso I have a dream (“Eu tenho um
Para os nacionalistas, King é a personificação da Amé-
rica idealizada. Em seu discurso, o pastor cita e reivindica
os principais marcos da identidade nacional americana,
por si mesmas: que todos os homens são criados iguais.’”
Contra Barack Obama, que reivindica para si a trajetória
de King, a esquerda criou uma resposta anedótica: King
sonho”, em inglês), pronunciado durante uma marcha incluindo a Declaração da Independência, a Proclama- had a dream, Obama has a drone (“King tinha um sonho,
de 250 mil pessoas contra o racismo e pelo respeito aos ção da Abolição e a Constituição dos Estados Unidos. Obama tem um drone”).
direitos civis dos negros, realizada em Washington em “Quando os arquitetos de nossa república escreveram a King não pode ser enquadrado, rigorosamente, em ne-
28 de agosto, o pastor protestante é uma das raríssimas magnífica Constituição e a Declaração de Independência, nhuma parte do espectro ideológico. Ele não é democrata,
figuras políticas reivindicadas por todos os segmentos da eles estavam assinando uma nota promissória da qual todo embora tenha abraçado a perspectiva social-democrata de
sociedade americana. americano é herdeiro.” que o Estado é responsável pela promoção de mecanismos
Para os conservadores religiosos, mesmo aqueles vin- Para os esquerdistas, King é o profeta da igualdade: “Eu que assegurem o bem-estar social. Também não é republi-
culados ao Tea Party republicano, King é uma espécie de tenho um sonho, um ideal profundamente enraizado no cano, embora tenha afirmado a legitimidade da busca da
profeta do sonho americano. Seu discurso é dirigido aos sonho americano – um dia esta nação se erguerá e realizará felicidade individual como um bem supremo que faz parte
“filhos de Deus” e é pontuado por citações bíblicas, entre sua vocação: ‘Consideramos estas verdades como evidentes do american dream (“sonho americano”). Sua complexidade
as quais: “Chegará o dia em que todos os filhos de Deus deriva do fato de que ele representou, como ninguém, um
serão capazes de emprestar um novo sentido ao hino: ‘Meu momento decisivo da história dos Estados Unidos.
país é do Senhor, a doce terra da liberdade, eu canto em De um lado, o vertiginoso desenvolvimento econômico
teu louvor. Terra em que meus pais morreram, terra do verificado após a Segunda Guerra Mundial, que conduziu
orgulho dos peregrinos, de todos os lados das montanhas, o país à condição de superpotência, confundia-se com as
que soe o sino da liberdade.’” políticas de justiça social alavancadas pelo New Deal de
Para os conservadores não religiosos, King faz um Franklin Roosevelt, nos anos 1930 e 1940. Os adversários
apelo inspirado na ética capitalista, como em outro famoso republicanos do New Deal tinham pouco espaço para se
trecho de seu discurso: “Os Estados Unidos passaram ao opor aos democratas no campo específico da economia,
povo negro um cheque sem fundos. Mas nós nos recu- especialmente após a criação, pelos acordos de Bretton
samos a acreditar que o Banco da Justiça foi à falência. Woods, das instituições internacionais (Banco Mundial
Não acreditamos que não existem fundos suficientes nos e Fundo Monetário Internacional), que asseguravam aos
grandes cofres da oportunidade desta nação. Então, vie- Estados Unidos o papel de “banqueiro do mundo”. Eles

© Biblioteca do Congresso, Washington


mos descontar esse cheque, um cheque que nos garantirá, tinham mais possibilidades de mostrar suas garras no cam-
sempre que reivindicado, as riquezas da liberdade e a po dos direitos civis e raciais, e foi aí que se deram algumas
segurança da justiça.” das grandes batalhas ideológicas dos anos 1960.
Para os liberais, King é a representação do indivíduo Os bolsões racistas do Sul – que também incluíam
preocupado com justiça social, cujas expectativas são cen- políticos do Partido Democrata – esgrimiam o discurso
tradas na própria família e na busca da felicidade, mas num libertário de extrema-direita, que repudiava a “intromis-
caminho trilhado ao lado de outros tantos indivíduos com são” do governo federal nos “assuntos locais”, em especial
objetivos semelhantes. Aqui, ganha relevância o trecho contra as leis estaduais de segregação racial. Consideradas
em que o pastor cita sua própria família: “Eu tenho um as diferenças de época e as circunstâncias, é o mesmo
sonho de que meus quatro filhos pequenos viverão um debate que hoje opõe os setores contrários e favoráveis à
dia numa nação em que não serão julgados pela cor de A famosa Marcha de Washington, quando aprovação de leis federais que limitam o porte e o uso de
sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter.” Martin Luther King Jr. fez o discurso que armas de fogo.
galvanizou os Estados Unidos Nos anos 1960, o problema da segregação racial con-
centrava todos os outros debates: o tipo de sociedade que se
Trechos do discurso de 28 de agosto de 1963 pretendia construir, a natureza do Estado federativo, o grau
de liberdade que deveria ser concedido aos estados da fede-
“Eu tenho um sonho de que um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos dos descendentes de escravos e os filhos ração e aos indivíduos. Exatamente por isso, a mensagem
dos descendentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade. de King reverberou em todos os setores da vida americana,
Eu tenho um sonho de que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, e não ficou circunscrita a seu objetivo mais imediato: con-
que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça. quistar a igualdade de negros e brancos perante a lei.
[…] Eu tenho um sonho de que um dia, no Alabama, com seus racistas malignos, com seu governador que tem os lábios
King pagou com a vida por sua ousadia; foi assassinado
gotejando palavras de intervenção e negação, nesse justo dia no Alabama, meninos negros e meninas negras poderão unir as
mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje! em 4 de abril de 1968, em Memphis, Tennessee, aos 39
Eu tenho um sonho de que um dia todo o vale será exaltado, e todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos anos de idade. Passou à história como mito, hoje rejei-
serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e toda a carne estará junta. tado unicamente pelos setores racistas mais extremados
Essa é nossa esperança. Essa é a fé com que regressarei para o Sul. Com esta fé, nós poderemos cortar da montanha do e renitentes como os skinheads e os neonazistas. Mas,
desespero uma pedra de esperança. Com esta fé, nós poderemos transformar as discórdias estridentes de nossa nação em uma embora os Estados Unidos tenham eleito seu primeiro
bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé, nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, para ir encarcerar juntos, presidente negro, o país ainda está muito longe do sonho
defender a liberdade juntos, e quem sabe nós seremos um dia livres. Esse será o dia, esse será o dia quando todas as crianças
de King: basta analisar a composição racial da população
de Deus poderão cantar com um novo significado.”
encarcerada.

MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 2013 OUTUBRO 12

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