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■ ANO 20 ■ Nº 2 ■ ABRIL/2012 ■

tiragem: 20 000 exemplares

Um novo desenho
político no Grande
E mais...
● Editorial – Aziz Ab’Saber
T Oriente Médio
morreu em março. O pa- udo se move no Oriente Médio e na África
norama intelectual brasi- do Norte. Mais de um ano após a deflagração
leiro ficou mais pobre. da Primavera Árabe, a ordem antiga desmo-
Pág. 3
rona em todos os lugares, sob ritmos e formas
● Artemio, o último dos
veteranos das guerrilhas diferentes. A crise sangrenta, terminal, da di-
latino-americanas, reco- tadura síria de Bashar al-Assad transformou-se
nhece que “a luta armada no foco principal das atenções. Contudo, uma
acabou”. força política em ascensão evidencia linhas
Pág. 3 evolutivas no novo desenho do Grande Orien-
● Operações Especiais – eis te Médio.
o novo norte da estraté- A Irmandade Muçulmana, corrente suni-
gia militar dos Estados ta fundamentalista, venceu as eleições parla-
Unidos.
© Bulent Kilic/AFP

mentares no Egito e na Tunísia. Tentáculos


Pág. 4
● Diário de Viagem – No da organização internacional nucleada no Egi-
mundo dos glaciares do to operam em diversos países – inclusive na
Alasca, entre florestas e sublevação síria. A ascensão da Irmandade é Em Idlib, na Síria, manifestantes fazem ato pró-Assad, que se mantém no
avalanches. acompanhada por profecias sobre a instaura- poder graças ao complexo xadrez geopolítico regional
Pág. 5 ção de um “inverno islâmico”, no lugar da pri-
● O Meio e o Homem – A mavera democrática. O quadro, entretanto, não tem contornos tão simples como imaginam os profetas.
Sibéria está menos fria.
Circulam rumores sobre a iminência de um ataque israelense contra as instalações nucleares do Irã. O regime dos aiatolás,
As cidades árticas de seus
grandes rios conhecem
encurralado pelas sanções internacionais, não pode mais contar com a tradicional aliança com a Síria e teme uma retomada
uma escalada econômica das manifestações pela democracia. Um hipotético ataque de Israel provavelmente seria insuficiente para deter o programa
e demográfica. nuclear iraniano. Mas, quase certamente, forneceria aos aiatolás as ferramentas para restaurar uma coesão interna perdida.
Pág. 11 Vejas as matérias nas págs. 6 a 9
● Belo Monte não é apenas
uma usina hidrelétrica
grandiosa, mas também
a fonte de uma polêmica
Semana de Arte Moderna
econômica, regional e
Putin 2, o começo do fim 1922
socioambiental.
Pág. 12

N
© Coleção Museo de Arte Latinoamericana de Buenos Aires
inguém se surpreendeu: Vladimir Putin triunfou nas eleições russas e retoma
a cadeira presidencial que ocupou entre 2000 e 2008, antes de transferí-la para
Dmitri Medvedev. No primeiro ciclo, Putin engendrou um novo autoritarismo
grão-russo. No segundo, conhecerá o declínio do modelo político e econômico
que implantou.
O “putinismo” é o regime de uma burocracia estatal oriunda das agências de
inteligência da era soviética. Seu sucesso, após o caos da transição da economia
estatal para um capitalismo de máfias, sob o governo de Boris Ieltsin, decorreu
da elevação global dos preços do petróleo e do gás natural. No novo ciclo, Putin
é confrontado por demandas pela democracia e por desafios geopolíticos e eco-
nômicos.
Pág. 10
17º Concurso Nacional de Redação­ de
Mundo e H&C – 2012
Escreva e se inscreva!!!
Regulamento ■ Quais devem ser as características das redações?
As redações devem ter no máximo 40 linhas e, obri-
gatoriamente, conter título. Cada escola receberá,
Mundo o direito de publicar suas redações, sem remu-
neração autoral, no próprio boletim ou sob outra forma.
As redações enviadas não serão devolvidas.
■ Quem poderá participar? durante o mês de maio, cinco folhas pautadas e
Todos os alunos do Ensino Médio das escolas assi- numeradas para a transcrição dos textos selecionados. ■ Haverá prêmios para os melhores trabalhos?
nantes de Mundo. As folhas preenchidas deverão ser remetidas à sede da Sim. Os autores das dez melhores redações serão
Pangea. Este formato é obrigatório, inclusive para premiados por Pangea e empresas patrocinadoras do
■ Qual é a forma de participação? garantir o sigilo: a Comissão Julgadora não terá acesso concurso. O 1º colocado receberá um aparelho de
Cada escola poderá enviar até cinco redações. To- ao nome dos autores ou das respectivas escolas. som no valor de R$ 800. Do 2º ao 5º, todos receberão
mamos a liberdade de sugerir que as escolas realizem MP4 no valor de R$ 200. Do 6º ao 10º colocado,
um concurso interno de seleção. Todos os leitores ■ Quem julgará os trabalhos? serão ofertados prêmios em livros.
de Mundo podem participar, mas apenas mediante As redações serão avaliadas por uma Comissão Jul-
a intermediação das escolas. Por razões pedagógicas, gadora integrada por professores de Comunicação
não aceitaremos redações enviadas sem a anuência e Expressão de reconhecido saber e experiência no
da escola. Ensino Médio.

■ Qual é o prazo para o envio das redações? ■ As redações serão publicadas?


Serão aceitas redações recebidas na sede da Pangea, A redação vencedora será publicada e comentada na Mais informações: Veja “O tema da
em São Paulo (nosso endereço pode ser encontrado nesta edição de outubro de 2012 de Mundo. Outras redações redação” na pág. 2 do Boletim Mundo
página, no Expediente) impreterivelmente até 6 de poderão, eventualmente, ser publicadas. Importante: nº 1 – março/2012
julho de 2012. Os autores, ao participarem do concurso, concedem a

E X P E D I E N T E
PANGEA – Edição e
Comercialização de Material
Didático LTDA.

Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr., Nelson


Bacic Olic (Cartografia)
Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779)
Revisão: Jaqueline Rezende
Pesquisa Iconográfica: Odete E. Pereira e Etoile Shaw
Projeto e editoração eletrônica:
Wladimir Senise
Endereço: Rua Romeu Ferro, 501
São Paulo – SP
CEP 05591-000
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Assinaturas: Por razões técnicas, não oferecemos
assinaturas individuais. Exemplares avulsos podem ser
obtidos no seguinte endereço, em São Paulo:
• Banca de jornais Paulista 900,
à Av. Paulista, 900
Fone: (11) 3283.0340

www.clubemundo.com.br

Infelizmente não foi possível localizar os autores de


todas as imagens utilizadas nesta edição.
Teremos prazer em creditar os fotógrafos, caso se
manifestem.

2012 ABRIL
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 
E D I T O R I A L

A ziz A b’Saber (1924-2012)


“Ele tomou café, depois sentou na cama e textos que produzia : não é preciso ser geomorfó- fisticada classificação atual , proposta por
deu um suspiro. Morreu em seguida”, relatou logo, nem mesmo geógrafo, para entender seus en- Jur andyr Ross . Se você quer entender a re -
Nídia Pontuschka, irmã de A ziz Nacib A b’Saber, saios, uma fonte inesgotável de encantamento. organização do espaço amazônico promovi -
uma das maiores referências no pensamento ge- Em 1957, A b’Saber ajudava o renomado geó- da a partir da ditadur a militar , deve ler o
ográfico brasileiro, falecido na manhã de 16 grafo francês Jean Tricart numa investigação de que escreveu A b’Saber ( e também, sob outr a
de março. Aos 87 anos, A b’Saber continuava campo nas áreas de Jundiaí e C ampinas. O francês perspectiva , Bertha Becker). A lguns fanáti-
escrevendo e debatendo. O país fica mais pobre registrou a ocorrência de linhas de pedra, que cos pela especialização científica usam a pa-
sem a sua presença. aparecem tipicamente no Nordeste brasileiro. O lavr a “ ultr apassado” par a fazer referência
O jovem A b’Saber ingressou no curso de lugar onde estavam poderia ter sido, no passado, aos voos do geógr afo. E le se envolveu em
geografia e história da USP em 1940. É de um um domínio com caatingas ou cerrado. M ais tar- polêmicas diversas , sobre C ar ajás , hidrelé -
tempo diferente, anterior à estrita definição de, junto com Paulo Vanzolini, A b’Saber descobriu tricas na A mazônia , os projetos do M inis -
das especialidades na Geografia. Seu universo linhas de pedra na A mazônia. Nascia a teoria dos tério do M eio A mbiente de M arina Silva , o
era a Geomorfologia, mas ele transitava por refúgios, uma narrativa sobre o passado da flores- C ódigo Florestal – e , nesse percurso, dei-
cima das fronteiras da ciência, em busca das co- ta amazônica, fragmentada em núcleos dispersos xou desafetos . Sempre aceitou pagar o preço
nexões entre a esfera da gênese e das formas do rodeados por cerrados na última era glacial . de explodir a caixinha intelectual na qual
relevo e as do meio ambiente e da organização É de A b’Saber o quadro ger al de classifi- vivem, sem brilho mas confortavelmente ,
dos espaços regionais. Daí o interesse geral dos cação do relevo br asileiro, argamassa da so - tantos de nossos acadêmicos .

A rtemio e o outono das guerrilhas


Newton Carlos
Da Equipe de Colaboradores sangue derramado foi necessário “para ir- de um povo como os peixes na água, se-

C
rigar a revolução”. Lamentava, no entanto, gundo o lema de Mao Tsé-Tung.
© Jaime Razuri/AFP

as mortes de jovens soldados, mas com a Nesse espiral de violência se insere o


om a morte de Alfonso Cano, co- ressalva de que eles “defendiam interesses drama das esquerdas do Peru voltadas
mandante das Farcs, a guerrilha esquer- dos capitalistas e burgueses”. Calcula-se para a ação política. O próprio Mariáte-
dista da Colômbia, Artemio tornou-se o que morreram 70 mil peruanos, de um gui em nenhum momento pregou violên-
último de uma geração de líderes guer- lado e de outro ou mesmo de nenhum cia. Além do Partido Comunista, fundou
rilheiros da América Latina. Foi, afinal, lado, desde que o Sendero Luminoso co- a Confederação dos Trabalhadores do
capturado em fevereiro, significando o meçou a luta armada, em 1980. Peru e publicou ensaios sobre a realidade
fim da primeira geração de guerrilheiros É um passivo com o qual Artemio te- peruana na sua revista Amauta. Adotou
latino-americanos. Chefiava o que resta ria de lidar. Já o presidente Humala terá o marxismo como sacerdócio. Amauta
do Sendero Luminoso do Peru. Artemio de lidar com o que resta do Sendero, com signfica “mestre” em quéchua, dialeto
era o nome de guerra de Euleterio Flores o cuidado de que seus gestos não possam incaico. Foi preso em 1927, três anos an-
Hala e só pouco antes da captura permi- ser interpretados como “transigência” tes de morrer. Antes teve uma perna am-
tiu que seu rosto fosse fotografado, numa por parte de uma dura oposição de cen- putada e uma vida intensa, de lutas em
rara entrevista coletiva concedida na sel- tro-direita que tenta pintá-lo como parte nome do proletariado em organizações
va peruana. Era o único sobrevivente do do chavismo e, com isso, isolá-lo politi- sindicais. Casou-se com uma italiana, e
comitê central de uma guerrilha de ins- Lima, 1992: um ataque do camente na América Latina. É a razão seu mandamento, de que o Peru iria para
piração maoísta e também um dos mais pela qual circulam suposições – e não o socialismo num “caminho iluminado”,
grupo Sendero Luminoso
procurados pelos serviços de inteligência manifestações diretas – sobre negocia- percorreu a América Latina.
reduziu a escombros a
dos Estados Unidos. Ganharia US$ 5 ções com o grupo armado. O Peru já teve Num dado momento, com o golpe
embaixada da Bolívia
milhões quem ajudasse a localizá-lo. uma guerrilha urbana, que se dissolveu de 1968, os militares peruanos deram
O criador do Sendero Luminoso, numa espiral de violência. Foi o Movi- a entender que eles, e não guerrilhas e
Abimael Guzman, foi preso em 1992 e em aberto. Jornalistas foram levados até mento Revolucionário Tupac Amaru. partidos políticos, tocariam a caminha-
a guerrilha entrou em declínio. Sendero a selva para ouvi-lo dizer, entre outras Tinha poucos recursos, comparados aos da imaginada por Mariátegui. Tinham
Luminoso, ou “caminho iluminado”, era coisas, com seu rosto afinal revelado, que do Sendero. sufocado guerrilheiros em La Concepci-
por onde o socialismo chegaria ao Peru, “a luta armada acabou”, pois “a realidade O Sendero se “mimetiza e se disfar- ón e aprendido que o mais eficaz instru-
segundo José Carlos Mariátegui, o inte- hoje é outra” e o certo seria “participar do ça, enquanto o Tupac Amaru, nome de mento de promoção social são reformas
lectual que, em 1928, fundou o Partido processo político”. Se uma trégua fosse um inca que se levantou contra os colo- e não fuzis. Mas acabaram deixando o
Comunista peruano. Artemio convocou adotada, prometia manter somente um nizadores espanhóis, reivindicava ações e poder desmoralizados e de cabeça baixa.
uma entrevista coletiva com jornalistas pequeno grupo com armas “para o caso assassinatos cruéis”, disse um estudioso Formou-se uma esquerda unificada, a Es-
levados ao seu território, para propor ao de sermos atacados”. Soube-se, depois da da guerrilha peruana. “Assim morrem os querda Unida, que conseguiu avançar no
novo presidente do Peru, Ollanta Huma- entrevista, que o novo presidente do Peru traidores”, foi o cartaz deixado no pescoço campo político. Chegou a conseguir um
la, uma trégua depois de 30 anos de ações estaria disposto a negociar. de uma das suas vítimas. O Tupac Amaru terço dos votos em eleições municipais,
armadas, e negociações envolvendo um Isto não foi dito claramente, porque recordou os velhos tempos do “foquismo” mas terminou não indo adiante, vítima
cessar-fogo e anistia ampla. dizê-lo significaria o reconhecimento da de Che Guevara, que pareciam obsoletos. de comoções internas, um pecado co-
O guerrilheiro declarou que se dispu- guerrilha como um ator no xadrez político Já o Sendero asssumiu recomendações mum das esquerdas latino-americanas.
nha a negociar com Ollanta com agenda peruano. Além disso, segundo Artemio, o maoístas: a guerrilha se move no interior
ABRIL 2012
 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
Estados unidos

Imaginando a guerra do século XXI


Newton Carlos O debate se concentra na estrutura e nas linhas de comando das Operações Especiais.

O Da Equipe de Colaboradores

s traumas do Afeganistão e do Iraque, onde morre-


Enquanto cresce a aversão a guerras como as do Iraque e do Afeganistão, a Casa Branca
aperfeiçoa uma nova fórmula de ação militar

ram, só no Iraque, mais de cinco mil soldados america-


nos, abrem espaço a um tipo de guerra que até agora só Os drones, aviões
tem acontecido no que especialistas chamam de “cantos não pilotados de
obscuros da diplomacia dos Estados Unidos”. Seria, a ri- reconhecimento e
gor, um tipo de guerra alternativo aos embates conven- ataque, são símbolo
cionais, feitos com emprego maciço de tropas, de armas da “nova guerra”.
e de poder de fogo. Seu núcleo central já existe: é o Co- Mas também são
mando de Operações Especiais (USSOCOM, na sigla uma das principais
em inglês), cujas ações mais recentes foram o assassinato causas da crescente
de Bin Laden, nunca encontrado pelas forças de invasão resistência da
do Afeganistão, e um resgate de reféns na Somália. população afegã
O chefe das Operações Especiais, almirante William aos Estados
McRaven, fala em novo tipo de guerra e se empenha em Unidos, pois seus
conseguir um modelo de autoridade que permita que bambardeios
suas unidades de rápido deslocamento atuem ao largo
causam, com
do mundo, de modo independente, onde os serviços de
frequência, vítimas
inteligência indiquem a necessidade de intervenção mi-
entre crianças e
litar. Não mais com os limites estabelecidos pelos canais
civis
de comando do Pentágono, considerados ultrapassados
© US Air Force

tendo em vista, inclusive, pressões emanadas do próprio


establishment militar em favor de emprego mais frequente,
sob nova perspectiva, das chamadas operações especiais.
O objetivo é, também, ampliar sua presença em re-
giões nas quais praticamente não operaram nos últimos
dez anos, especialmente na África e América Latina. para Barack Obama, mas criou dificuldades políticas e que. De acordo com o novo conceito, um contingente
Não será tarefa fácil, em razão de dificuldades recentes diplomáticas na Ásia Central. significativo de tropas, projeção inicial de 12 mil ho-
dos Estados Unidos no campo da “diplomacia militar”. Isto daria razão a diplomatas inquietos, o que pode mens, será colocado à disposição das operações especiais
O Pentágono quis criar um comando africano e não dificultar os planos de McRaven de maior autonomia para ações em qualquer lugar do planeta.
conseguiu. Nenhum país da África aceitou abrigá-lo. e mais emprego do que é chamado de “novo formato” Há limites que constam do próprio projeto. As uni-
A Junta Interamericana de Defesa, da Organização dos das operações especiais. Obama e a liderança do Pen- dades especiais só seriam empregadas em “missões espe-
Estados Americanos (OEA), com incidência nas Amé- tágono manifestam reservadamente, em grau cada vez cíficas” e a mando de comandantes regionais que sejam
ricas e predominância americana, esvaziou-se quase por maior, sua preferência pelo emprego de forças de ope- generais de quatro estrelas. “Não se trata de travar uma
completo. rações especiais, ou de elite. Mas enfrentam resistências guerra global contra o terrorismo”, ressalva o próprio
Não se fala mais em Doutrina Monroe. O ex-presi- dos comandos militares regionais e também do corpo McRaven, distinguindo-se do discurso do governo de
dente Bill Clinton liquidou-a com mensagem ao Con- diplomático do Departamento de Estado. George W. Bush. Na última década, na moldura da
gresso dizendo que a América Latina não estava mais Os comandos regionais temem a erosão de suas au- “guerra ao terror”, as forças especiais dos Estados Unidos
sob ameaça de intervenção externa. O esvaziamento da toridades e embaixadores em áreas de crises manifestam se concentraram no Grande Oriente Médio e no sudes-
Junta Interamericana de Defesa exprime um grau im- receios de que tais ações podem ser encaradas como aten- te da Ásia. O projeto, como se vê, é espalhá-las, sem o
portante de rejeição hemisférica à presença militar dos tados à soberania dos países onde são executadas. Caso, gigantismo dos últimos tempos, que se revelou inconve-
Estados Unidos, que já perderam a base que tinham no por exemplo, dos amargos ressentimentos do governo e niente e de mobilidade pesada.
Equador. Na América Latina, hoje em dia, o Pentágono dos militares paquistaneses com a caçada a Bin Laden. O Comando de Operações Especiais conta, no mo-
conta apenas com assessores militares visíveis na Colôm- A Casa Branca, no entanto, junto com chefes militares, mento, com nada menos que 66 mil homens e orçamen-
bia e com a missão específica de ajudar na erradicação senadores e deputados, faz campanha velada em favor to de US$ 10 bilhões. Mas executa ações concentradas,
do comércio de coca. dos planos de McRaven. É quase certo que as operações quatro quintos delas no Grande Oriente Médio. As
A guerrilha colombiana sobrevivente e encorpada, as especiais terão seu orçamento e pessoal aumentados, em regras em vigor subordinam estritamente as forças es-
Farcs, tem na coca um dos seus instrumentos de sobre- contraste com os cortes nos gastos gerais de defesa dos peciais à cadeia de comando do Pentágono. McRaven
vivência. Há suspeitas bem fundadas de que assessores Estados Unidos. tenta mudar esse cenário, obtendo permissão para exe-
militares dos Estados Unidos têm um grau importante O presidente Obama e a secretária de Estado Hillary cutar operações com “rápida mobilidade e de abrangên-
de presença também na luta contra as Farcs – e contra Clinton, bem como seus assessores diretos, recusam-se a cia universal”. De acordo com um ex-oficial que atuou
o Exército de Libertação Nacional colombiano, menos comentar publicamente o projeto de McRaven. De acor- ao seu lado ele procura desenvolver “agilidade global”
letal. Trata-se de presença informal, encoberta, e por do com analistas, ele “coloca em pauta um novo modelo com unidades leves e comando próprios. “Se sua rede
isso é difícil mensurar suas dimensões. Já o assassina- de guerra numa época de redução do orçamento mili- de ações não for elástica, não acompanhará a agilida-
to de Bin Laden, feito por um comando do almirante tar”. A ideia de redução do emprego de tropas está em de do inimigo”, argumenta McRaven em defesa de seu
McRaven e sem o conhecimento prévio do governo do compasso com declínio do “apetite popular” por guerras projeto.
Paquistão, representou um sucesso político maiúsculo e ocupações de grande porte, como se vê no caso do Ira-
2012 ABRIL
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 
Regina Ayres
Especial para Mundo

A lasca, a terra do gelo, das


águas e das avalanches
N o verão boreal passado, estive no
Alasca. Voei de São Paulo até Vancouver,
Navegamos rumo a Skagway, quase
na fronteira com o Canadá – uma cidade
com alturas entre um e dois metros.
Skagway já foi uma cidade bastan-
Mais uma noite de navegação e ama-
nhecemos em Juneau, a capital do Alasca,
no Canadá, onde fiquei uma semana. com cerca de 800 habitantes que convi- te importante – nos tempos distantes da com 30 mil habitantes, acessada apenas
Depois, Anchorage, ponto de partida de vem, durante o inverno, com temperatu- corrida do ouro. Mineiros lá chegavam pelo mar ou pelo ar. Nas suas proximi-
um cruzeiro pelo litoral do Alasca. Fo- ras próximas a 40 °C negativos e ventos e descobriam que deveriam ainda cami- dades, encontra-se o glaciar Mendenhall,
ram sete dias de deslumbramento com de 100 km/h. Não é à toa que Skagway nhar muitos quilômetros, em montanhas com 19 quilômetros de comprimento e
paisagens fantásticas. quer dizer “terra do vento forte”. No in- cobertas de neve, uma vez que não havia 2,5 quilômetros de largura e uma face
De ônibus, fomos até o Porto de verno, as pesadas nevascas cobrem de ouro nos arredores da cidade, mas apenas imponente, com mais de 30 metros de
Whittier, onde embarcamos no navio branco todo o cenário. Na rodovia, para em território canadense. Lembrei-me do altura. No caminho ao Mendenhall, per-
que seria nossa morada por sete dias. No que os veículos possam identificar as mar- filme Em busca do ouro, de Charles Cha- corremos trilhas que atravessam córregos
traslado já nos deparamos com paisagens gens do caminho, existem marcadores de plin. Na cidade, cultua-se esse passado repletos de salmões e avistamos os mais
diferentes: grandes vertentes, árvores pe- neve, na forma de estacas, com altura de épico: museu, livros, um teatro interativo variados pássaros. Naquele trajeto, a pre-
trificadas, lagos congelados e neve, apesar quatro metros. Brrrr, que frio! onde turistas pagam mico minerando em sença de ursos é comum – mas , felizmen-
de estarmos no verão. Aquela ideia de que Percorremos, de ônibus, aproximada- um galpão. A ferrovia, um feito considerá- te, não nos deparamos com nenhum.
o Alasca é frio é verdade. Frio e úmido. mente dez quilômetros dessa rodovia, su- vel de Engenharia civil, facilitou o acesso De volta a Juneau, subimos de telefé-
Mas com paisagens lindas! bindo cerca de 1,2 mil metros. Conforme à região aurífera, poupando muitas vidas. rico, a partir das docas, até o Monte Ro-
Em certo momento, o ônibus parou subíamos, diminuíam as temperaturas e Fizemos um passeio de trem, em busca berts, um dos picos que rodeiam a cida-
no meio da estradinha – susto geral. Pa- intensificava-se, assustadoramente, o vento. das paisagens e sensações daqueles aven- de. Passando acima de uma floresta bore-
rou pois teríamos que atravessar o Anton A vegetação é um espelho dos climas: no tureiros do passado. Hoje, em Skagway, al, chegamos a 1,8 mil metros de altura
Anderson Memorial Tunnel, de aproxi- nível do mar, árvores com 10 a 15 metros uma “corrida do ouro” ainda acontece em – vista incrível! No topo está o Centro
madamente quatro quilômetros. O túnel de altura; lá em cima, arbustos e gramíneas cerca de três dezenas de lojas de joias. de Natureza do Monte Roberts, um dos
serve tanto à rodovia quanto à ferrovia. focos do culto americano à águia. Ali,
Passa apenas um veículo por vez. Sabe- formam-se filas para admirar e fotografar
mos que é seguro, mas a sensação de que águias que vivem em cativeiro.

© Fotos: Regina Ayres


de repente surgirá uma locomotiva ator- Após uma outra noite de navegação,
menta toda a travessia. chegamos a Ketchikan, a mais antiga ci-
Nas primeiras horas de navegação dade do Alasca, autoproclamada a “capital
planejamos – e compramos – passeios mundial do salmão”. O marco de memó-
em cada uma das cidades em que apor- ria da cidade é a rua Creek, que margeia
taríamos. Não aportamos nos dois pri- o Ketchikan Creek e abriga construções
meiros dias de navegação. Tomamos café feitas sobre armações de madeira e estacas
da manhã avistando grupos de baleias à beira d’água. Nos tempos da corrida do
e almoçamos tendo como paisagens o ouro, a Creek era zona de prostituição.
Hubbard Glacier, no primeiro dia, e o Hoje, está pontilhada por finas butiques
Glacier Bay, no segundo. No decorrer e galerias de arte. Ketchikan é uma cida-
das manhãs avistamos pequenos icebergs. de construída “sobre a água”, cercada por
Alguns serviam como plataformas para A rua Creek é o centro da diques e apoiada em estacas. Reza a len-
aves que descansavam. A temperatura memória histórica de Ketchikan, da que, por lá, não se mede a quantidade
caía muito, rompendo a barreira do zero a mais antiga cidade do Alasca, de chuva em polegadas, mas em pés. São
grau. Navegávamos tendo sempre “terra quase 4 mil milímetros de chuva por ano,
envolta por uma paisagem gelada
à vista”: montanhas com cumes brancos média muito superior à de quase toda a
na maior parte do ano
e vertentes verdejantes que acabavam no Amazônia. De Ketchikan, no mais incrí-
mar. Avistávamos encostas acometidas vel passeio da viagem, sobrevoamos uma
por avalanches e imaginávamos a força geleira, por 30 minutos, de hidroavião.
das águas de degelo. Bem perto do centro de Ketchican situa-
O tempo, úmido e chuvoso, impediu se uma vila de indígenas da etnia tlingit, a
boas fotos, mas nem o frio foi capaz de Saxman Native Totem Village. Os índios
diminuir nosso encantamento com as chegam para as apresentações de dança tra-
paisagens. Estar diante daquela imensa dicional em automóveis modernos, tagare-
massa de gelo, formada pelo derretimen- lando ao celular, em jeans e camisetas, ape-
to, no verão, de uma quantidade de neve trechos e trajes de uma outra tradição.
inferior àquela que caiu no inverno, é de
um deslumbramento incrível. Tons de
Regina Ayres é professora de
azul, estalos de gelo se partindo, reflexos Matemática no Colégio Rio Branco,
de geleiras colossais em águas límpidas... em Campinas (SP)
ABRIL 2012
 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
oriente médio

Primavera Á rabe ingress


H assan al-Banna nasceu em 1906, no
delta do Nilo, num Egito governado pelos
Vocês não são uma sociedade beneficente, nem um partido político, nem uma organização local de fins limitados.
Ao contrário, são uma nova alma no coração desta nação, para dar-lhe vida através do Corão (...). Quando lhes
perguntarem para o que convocam, respondam que é para o Islã, a mensagem de M aomé, a religião que contém
britânicos. Seu pai ensinava a jurispridên- dentro de si governo, e tem como uma de suas principais obrigações a liberdade . Se lhes disserem que vocês são
cia islâmica, segundo um rito conservador políticos, respondam que o Islã não admite tal distinção.
oriundo do século IX. Al-Banna ingressou
numa ordem sufita, de interpretação lite- (H assan al-Banna, fundador da Irmandade Muçulmana em 1928)
ral do Corão, abriu um estabelecimento
de reparos em gramofones e se envolveu
nos protestos contra o poder colonial bri- © Citizenside/AFP
tânico. Aos 22 anos, fundou a Irmandade
Muçulmana, que se transformaria na fon-
te principal da política islâmica no Egito.
Morreu jovem, em 1949, assassinado por
dois atiradores, quando deixava o local de
um encontro com representantes do go-
verno, que não apareceram. Meses antes,
o primeiro-ministro Mahmoud Pasha fora
assassinado por um jovem militante da
Irmandade. Um dos últimos gestos de al-
Banna foi uma declaração de condenação
do ato de terror que traçava uma fronteira
moral intransponível separando o Islã do
terrorismo. Hoje, passadas mais de seis dé-
cadas, a organização que ele criou emerge

© Fabio Rodrigues Pozzebom/Abr


como a força política dominante da Pri-
mavera Árabe.
O ditador egípcio Hosni Mubarak nos n o norte da África e Orien
lma te Mé
caiu em fevereiro do ano passado. As çu dio
Mu
MAR MAR
eleições para o novo Parlamento, que se O
NEGRO CÁSPIO

EAN O TURQUIA
OC ÂNTIC
estenderam por várias votações, entre de- ATL MARROCOS TUNÍSIA MAR MEDITERRÂNEO SÍRIA
AFEGANISTÃO
zembro e março, produziram uma maio- IRAQUE IRÃ
ARGÉLIA
LÍBIA PAQUISTÃO Em Homs, milhares pedem o fim
ria ligada à Irmandade. Na condição de EGITO
ARÁBIA
SAUDITA da ditadura de Bashar al-Assad; a
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sócios num poder transitório que ainda


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conjuntura na Síria coloca em jogo
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pertence ao Exército, os líderes islâmicos


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IÊMEN
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procuram um difícil equilíbrio entre a Países com mais de 90% de muçulmanos e grande maioria sunita todos os interesses mobilizados pelo
Junta Militar e as demandas revolucioná-
Países entre 50% e 90% de muçulmanos, com importante minoria xiita OCEANO
ÍNDICO
xadrez geopolítico regional
Países muçulmanos com maioria de população xiita
rias que emanam da Praça Tahir (veja a Países de maioria muçulmana, com expressivas minorias (cristãs, alauítas e outras)
matéria na pág. 9). País onde os muçulmanos são minoria (Israel)

O Egito é o núcleo irradiador do Islã FONTE: El Atlas de las religiones (2009) e Almanaque Abril (2012)

da Fraternidade no mundo árabe. Na Tu-


nísia, país pioneiro da Primavera Árabe, de Ação Islâmica, braço da Irmandade, Ditaduras de diversas extrações, algumas raciais ou de sangue, pois enxerga em to-
os candidatos inspirados pela organiza- funciona como partido de oposição legal alinhadas com os Estados Unidos, como dos os muçulmanos uma única comuni-
ção egípcia também controlam o parla- e terá a oportunidade de chegar ao gover- a de Mubarak, outras antiamericanas, dade (umma)”, declarou. A sua proposta
mento e apontaram o chefe de governo. no. Outros tentáculos operam como par- como a de Assad, erguiam as bandeiras era a restauração do califado islâmico,
No Marrocos, sob pressão das ruas, o rei tidos moderados no Iraque, no Kuwait, esfarrapadas do nacionalismo e do pan- pela criação de um conselho internacio-
Muhammad VI promoveu reformas e no Bahrein e no Iêmen. arabismo para rejeitar a participação dos nal encarregado de nomear um novo ca-
designou como primeiro-ministro o líder A revolução na Síria, que desliza rumo islâmicos no jogo político. Não há uma lifa – ou seja, um líder político e espiritu-
do Partido da Justiça e Desenvolvimen- à guerra civil, não é dirigida exclusivamen- nova ordem regional, mas um fluxo de al da umma. O califado desaparecera em
to, corrente vinculada à Irmandade. Na te por lideranças ligadas à Irmandade, mas mudanças imprevisíveis. Contudo, já se 1919, com o colapso do Império Turco-
Líbia, as milícias islâmicas que participa- os islâmicos sunitas figuram como polo sabe que a mais antiga organização islâ- Otomano. A reconstituição da unidade
ram da derrubada de Muammar Kadafi, crucial do movimento. Um sinal óbvio da mica será uma força significativa nos sis- perdida parecia-lhe o caminho evolutivo
hoje sob a influência predominante da influência do Egito sobre o conflito sírio temas políticos em construção. natural e um resultado glorioso da luta
organização egípcia, articulam-se para foi a recente ruptura do Hamas palestino Em 1938, al-Banna dirigiu-se a uma contra os poderes coloniais.
desempenhar um papel político decisivo. com o regime de Bashar al-Assad, que per- plateia de militantes e simpatizantes reu- Aparentemente, a Primavera Árabe
A “onda verde”, cor do Islã, não se deu sua capacidade de participar do jogo nida no Cairo para sugerir a substituição conferiu um novo sopro de vida ao sonho
circunscreve à África do Norte (veja o de xadrez na Palestina ocupada (veja a dos Estados desenhados pelas potências do fundador da Irmandade. Contudo,
mapa). Na Jordânia, onde a monarquia matéria na pág. 7). europeias por uma entidade política mu- 2012 não é 1938: a história recusa-se a
também procura circundar a insatisfação A velha ordem do Oriente Médio as- çulmana unificada. “O Islã não reconhe- descrever círculos, retomando pontos de
popular por meio de reformas, a Frente sentava-se sobre a exclusão da Irmandade. ce fronteiras geográficas, nem distinções partida ultrapassados. Os Estados muçul-
2012 ABRIL
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 
sa em nova etapa, à sombra do Islã
Guerra civil na Síria implode a ordem regional
A quilo que começou, há quinze meses, como um levante popular contra a dita-
dura síria de Bashar al-Assad já assume os contornos dramáticos de uma guerra ci-
Os Acordos de Camp David, de paz entre Israel e Egito, em 1979, redefiniram a
esfera de influência dos Estados Unidos no Oriente Médio. Israel e Arábia Saudita
vil. As estimativas de vítimas fatais giram ao redor de 8 mil. Aos poucos, lenta mas eram aliados tradicionais de Washington. O acordo egípcio-israelense consolidou a
inexoravelmente, as imagens de manifestações populares contra o regime cedem influência americana sobre o Egito. No período seguinte, a Guerra do Golfo (1991)
lugar a notícias de massacres e enfrentamentos armados assimétricos. O regime e a invasão americana do Iraque (2003), com a derrubada de Saddam Hussein,
do clã Assad, instalado em 1970, experimenta um outono sangrento, de duração geraram intensa sensação de insegurança para os regimes iraniano e sírio. O Irã
incerta mas desenlace cada vez mais previsível: a Síria reinventada por Hafez al- entregou-se, com renovada energia, ao antigo projeto de construção de um arsenal
Assad atravessa sua etapa terminal. Junto com ela, desaparece a ordem geopolítica nuclear. A Síria aprofundou seus laços estratégicos com a Rússia, que abrangem a
construída no Oriente Médio durante as décadas finais do século XX. cessão da base naval de Tartus, no Mediterrâneo. Ao mesmo tempo, iranianos e
Hafez al-Assad chegou ao poder no curso da ascensão regional do Partido Ba- sírios estenderam a sua cooperação nos cenários do Líbano e de Israel/Palestina.
ath, uma corrente política pan-arabista com tentáculos mais poderosos, porém No Líbano, um país dividido por linhas de conflito entre seitas religiosas,
rivais, na Síria e no Iraque. O novo líder sírio apoiava-se na minoria pertencente à a Síria e o Irã financiam e fornecem armas para o grupo xiita Hezbollah, um
seita alauíta, tradicionalmente marginalizada num país de maioria sunita, e tam- partido com ampla base popular que tem uma ala militar e figura na lista de
bém na minoria cristã. No seu esquema de poder, o laicismo do Estado funcionou organizações terroristas divulgada pelos Estados Unidos. Em 2006, o Hezbollah
como redoma para a criação de uma nova classe média e de um oficialato militar enfrentou as forças armadas israelenses num violento conflito que durou pouco
extraídos das duas minorias. mais de um mês.
O Baath iraquiano, por outro lado, foi o veículo para a configuração do regime Na Guerra dos Seis Dias, em 1967, a Síria perdeu para Israel a área elevada, de
de Saddam Hussein. A ditadura iraquiana, assentada sobre clãs sunitas, promoveu valor estratégico, das Colinas de Golã. O regime sírio procura operar na Palesti-
a exclusão da maioria xiita, concentrada no sul do Iraque. A Revolução Iraniana de na por intermédio do Hamas, o partido fundamentalista islâmico que governa a
1979, que resultou no regime teocrático xiita dos aiatolás, acirrou a antiga disputa Faixa de Gaza. Contudo, apesar de receber apoio sírio – e iraniano –, o Hamas é
entre Iraque e Irã pela hegemonia no Golfo Pérsico e precipitou a Guerra Irã-Ira- um movimento sunita que surgiu, há três décadas, de uma costela da Irmandade
que (1980-1988). Muçulmana egípcia.
Durante aquela guerra, soldou-se a aliança entre a Síria e o Irã. O arranjo, de O declínio do regime de Bashar al-Assad desordena toda a complexa arquitetu-
aparência estranha, reuniu uma república árabe laica a um Estado teocrático per- ra geopolítica regional. A Turquia, cuja política externa volta-se cada vez mais para
sa. A aliança repousa sobre uma dupla plataforma. De um lado, existe a afinidade o Oriente Médio, colocou-se na linha de frente da campanha diplomática contra
entre a liderança religiosa iraniana e o regime sírio, ancorado nos alauítas, que for- Assad. Numa iniciativa ousada, os turcos clamam pelo estabelecimento de “refú-
mam um ramo singular da árvore xiita. De outro, os interesses internacionais co- gios” no norte da Síria protegidos por forças militares internacionais. Um passo
muns: a rivalidade com o Iraque e a hostilidade em relação aos Estados Unidos. como esse configuraria uma intervenção armada externa no conflito sírio.
A consequência mais óbvia da crise na Síria é provocar o isolamento re-
gional do Irã. Do ponto de vista de Teerã, o cenário está pontilhado de ame-
manos atuais já não podem ser descritos esses sábios cujos conselhos provocaram aças, que se estendem das sanções internacionais, que atingem seu sistema
como meros artefatos manufaturados nas a invasão do Iraque, em 2003. Os riscos financeiro e suas exportações petrolíferas, até um hipotético ataque aéreo is-
oficinas do colonialismo. Depois de al- do fundamentalismo certamente exis- raelense contra suas instalações nucleares (veja a matéria na pág. 8). Tudo
Banna, cresceram e frutificaram as árvo- tem. Na Síria, em particular, a sangrenta se complicará ainda mais se a insatisfação social interna deflagrar uma nova
res do pan-arabismo, dos nacionalismos e repressão de Assad já origina uma guerra onda de protestos de massa dos oposicionistas, violentamente reprimidos em
– nunca se deve esquecer! – do jihadismo civil e não está afastada a hipótese de um 2009. Nesse caso, um conflito externo com Israel ou com os Estados Unidos
global da Al-Qaeda. Além disso, especial- conflito duradouro, trágico, entre a maio- poderia surgir como tábua de salvação para um regime em desespero.
mente, as revoluções árabes evidenciaram ria sunita e as minorias alauíta e cristã. O Hamas rompeu há pouco com o regime sírio, retirando seus líderes
o dinamismo e a diversidade política das Entretanto, a profecia agourenta ignora, baseados em Damasco e declarando solidariedade à Primavera Árabe. A rup-
sociedades nacionais. Os jovens e as mu- por razões ideológicas, a complexidade tura foi precedida por um encontro, no Cairo, entre Ismail Haniyeh, primei-
lheres da Praça Tahir – ou, ao menos, vas- do cenário. No Egito e na Tunísia, por ro-ministro do governo de Gaza, e a liderança da Irmandade Muçulmana
ta parcela deles – não enxergam no Corão exemplo, os líderes da Irmandade insis- (veja a matéria na pág. 9). A dissolução do eixo Irã-Síria-Hamas sinaliza a
o guia infalível para a organização da vida tem em proclamar seu compromisso com profundidade da crise do regime sírio e embaralha as cartas diplomáticas em
política e social. Em todos os países var- a democracia e as liberdades públicas. Israel/Palestina. Em tese, o Egito poderia se converter em intermediário para
ridos pela Primavera Árabe, despontaram É fácil, de qualquer forma, recortar negociações entre Israel e o Hamas. Contudo, o governo israelense rejeita
correntes políticas laicas – liberais, social- dois ou três parágrafos dos incontáveis contatos com o governo de Gaza e, na prática, bloqueia qualquer hipótese
democratas ou socialistas – que não desa- textos de al-Banna para emoldurar a tese séria de negociações com os palestinos.
parecerão do cenário. de que a Irmandade não pode conviver As ondas de choque da sublevação na Síria ameaçam a sempre frágil es-
A ascensão da Irmandade é acompa- com a liberdade. Mais difícil, porém tabilidade política do Líbano. Com Assad fora do jogo, o Hezbollah passa a
nhada pelos alertas dos neoconservadores muito mais proveitoso, é investigar a teia depender mais intensamente do Irã. Uma corrente de analistas enxerga no
americanos, segundo os quais a Primave- de circunstâncias que cercam a ascensão grupo libanês a ferramenta de eventuais represálias iranianas a um hipotético
ra Árabe produzirá o resultado desastroso da antiga organização, impulsionando-a ataque israelense. A tese, contudo, não leva em conta a fragilidade do próprio
de um “inverno islâmico”. O Islã e a de- na direção do futuro. Hezbollah no novo cenário geopolítico do Oriente Médio.
mocracia são incompatíveis, asseguram
ABRIL 2012
 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
oriente médio

Ataque israelense ao Irã: ameaça ou blefe ?


Cláudio Camargo Os rumores sobre um bombardeio aéreo contra as instalações nucleares iranianas
Especial para Mundo circulam a partir de fontes israelenses. Diante das dificuldades da operação, pode ser apenas

N os últimos meses, nuvens pesadas vêm turvando pe-


um blefe. Ou não...

rigosamente o horizonte do Oriente Médio. Clarins de


guerra anunciam um iminente ataque de Israel contra
instalações nucleares do Irã. Alarmes soaram por todos
os lados. O mais estridente deles partiu do jornalista
David Ignatius, que escreveu no The Washington Post
que o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Leon
Panetta, garantiu que há uma grande chance de Israel
atacar o Irã “em abril, maio ou junho”. Uma matéria de

© Apcbg/Wikipedia
capa da revista do The New York Times também cravou
que o ataque israelense não passará de 2012.
O que explicaria tanta pressa? Para o ministro de De-
fesa de Israel, Ehud Barak, quando a usina nuclear irania- Um eventual ataque ao Irã, país de
na de Fordow – construída a quase 100 metros abaixo de dimensões territoriais semelhantes
uma montanha perto da cidade sagrada de Qom – entrar às do Alasca, com a capital Teerã
em operação, os israelenses não terão mais capacidade de densamente habitada (nas fotos) e
© Ensie Matthias/Flickr

destruí-la. Segundo essa tese, a partir do momento em com um poderoso exército ameaçaria
que os iranianos estocarem urânio suficiente em Fordow
provocar a regionalização da guerra
para fabricar a bomba atômica, o regime de Teerã entrará
e interromper o fluxo do petróleo
na chamada “zona de imunidade” em relação a Israel – o
mundial
que, em outras palavras, significa que o Irã não poderá
mais ser atacado impunemente, pois terá condições de re-
taliar à altura, inibindo a ofensiva.
O diretor do Centro de Estudos Estratégicos Begin- israelenses acreditam que, se existe um momento em que Os problemas não param por aí. “O Irã é um país de
Sadat, Efraim Ibar, concorda com a tese. Para ele, há os Estados Unidos não terão opção a não ser segui-los grande território, quase do tamanho do Alasca; as ins-
uma urgência que não existia antes, pois ficou claro que rumo à guerra, é durante a campanha presidencial”, diz talações nucleares estão dispersas por todo o território e
os iranianos estão transferindo urânio para Qom. “Uma Ali Vaez, pesquisador da Federação de Cientistas Ame- muitas delas são subterrâneas”, diz o jornalista israelense
bomba nuclear iraniana é simplesmente inaceitável para ricanos. “Não há como Obama se opor a um ataque ao Uri Avnery. “Ainda que se utilizassem bombas de pene-
Israel. A questão é quando atacar. Muitos ainda acham Irã sem ameaçar sua reeleição”, conclui. tração profundas, que explodem sob o chão, fornecidas
que é preciso dar tempo para as operações secretas em Outros analistas estão convencidos de que esses ru- pelos Estados Unidos, toda essa gigantesca operação só
andamento”, disse Ibar a O Estado de S. Paulo. mores de ataque ao Irã não passam de um blefe israelen- conseguiria conter os esforços iranianos por alguns pou-
Outro aparente sinal de ataque iminente ao Irã sur- se para assustar os aiatolás e pressionar o governo ame- cos meses”, opina. Além disso, imagina que, uma vez
giu durante os recentes bombardeios de Israel à Faixa ricano, a Europa e o Conselho de Segurança da ONU iniciado o bombardeio, Israel sofreria ataques simultâ-
de Gaza, em resposta aos foguetes lançados pelo Hamas a aprovar sanções mais duras contra Teerã. Afinal, neos do Hamas e do Hezbollah, a milícia xiita libanesa
contra cidades israelenses. O conflito matou 26 palesti- qualquer país que não disponha da enorme capacidade apoiada pelo Irã e pela Síria. E não se pode esquecer que
nos e feriu três israelenses. O general Benny Gantz, che- militar dos Estados Unidos prefere atacar o inimigo de os iranianos têm mísseis relativamente sofisticados, ca-
fe do Estado-Maior das Forças Armadas de Israel, disse surpresa. Meir Dagan, ex-chefe do Mossad, o serviço de pazes de destruir bairros inteiros de Israel. “Morreriam
que o conflito foi, “em certo sentido, um miniteste para inteligência israelense, disse que um ataque contra o Irã muitos israelenses. As mortes e destruição em solo israe-
um ataque ao Irã”. Ele admitiu que há muita diferença era “a ideia mais estúpida” que ele já tinha ouvido falar. lense tornam totalmente proibitivo qualquer movimento
entre os dois cenários, mas ponderou que as alternativas Recentemente, os chefes do Mossad e do Shin Bet, a de guerra contra o Irã”, conclui.
do Irã a um ataque de Israel são similares às do Hamas. agência de segurança israelense, se manifestaram publi- Mas talvez o argumento mais convincente de que a
Israel interceptou a maioria dos foguetes que os palesti- camente contrários ao ataque. ameaça israelense não passa de um blefe seja o econô-
nos lançaram a partir de Gaza com o sistema de defesa De fato, as dificuldades de uma operação militar con- mico. Avnery nos convida a olhar o mapa do Estreito
Iron Dome. Se Israel atacar as instalações nucleares do tra o Irã seriam bem maiores do que o ataque aéreo “ci- de Ormuz, uma garganta de 35 quilômetros por onde
Irã, a retaliação de Teerã provavelmente virá por meio rúrgico” que os israelenses fizeram em 1981 contra a usi- passa praticamente todo petróleo produzido na região
dos mísseis Sajil, contra os quais os israelenses usariam o na nuclear de Osirak, no Iraque, ou o ataque à Síria, em do Golfo Pérsico. “No instante em que o primeiro avião
sistema defensivo Arrow, mais sofisticado. 2007. Israel está muito distante do Irã: alguns dos alvos israelense entrar no espaço aéreo do Irã, o Estreito será
Mas a questão é saber se Israel se arriscaria a deflagrar distam entre 1,5 mil e 1,9 mil quilômetros das bases isra- fechado. (...) É uma catástrofe difícil de imaginar: Or-
um ataque sem levar em conta a posição de Washington. elenses. Os aviões teriam que chegar ao Irã e voltar; para muz fechado, com o corte de suprimento de quase um
A administração Barack Obama tem indicado que, em- isso, precisariam ser reabastecidos no ar. Eles poderiam ir quinto de todo o petróleo que as nações industriais do
bora não descarte uma opção militar, não é favorável a pelo norte, ao longo das fronteiras da Turquia e Síria e de- planeta consomem”, diz Avnery.
um ataque ao Irã agora, em ano eleitoral. A mensagem pois Síria e Iraque; pelo centro, com rota pelo Iraque; ou
foi passada pelos americanos ao premiê israelense Ben- pelo sul, pela Arábia Saudita. A dúvida é saber se os turcos
jamin Netanyahu em suas visitas aos Estados Unidos. e os sauditas se arriscariam a enfrentar a ira islâmica dei-
Mas há quem diga que Israel está pagando para ver. “Os xando aviões israelenses passar pelo seu espaço aéreo. Cláudio Camargo é jornalista e sociólogo
2012 ABRIL
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 
oriente médio

Futebol revela as tensões políticas no Egito


A Irmandade Muçulmana, majoritária no novo Parlamento, teme o caminho da ruptura com a Junta Militar. A saída encontrada é
apontar as baterias retóricas para Israel, o que ameaça as relações do Egito com os Estados Unidos

N o dia 3 de fevereiro, o centro do Cairo foi novamen-


te tomado por manifestantes que ameaçavam ocupar o
Ministério do Interior, na rua Mohamad Mahmoud,
sede da odiada polícia política e normalmente qualifica-
da como a “Bastilha egípcia”. O motivo, aparentemen-
te, era bastante “brasileiro” e nada tinha que ver com a
Primavera Árabe: dois dias antes, 74 pessoas morreram

© Ed Giles/Getty Images
e outras 248 ficaram feridas, em Port Said, cidade me-
diterrânea na entrada do Canal de Suez, como resultado
de confrontos violentos entre torcidas organizadas de
futebol. Só que a rivalidade futebolística foi apenas a
aparência, o pretexto do massacre: dirigentes da Irman-
dade Muçulmana confirmaram as suspeitas de que tudo Protestos provocados pelo
massacre de Port Said
© Mona Sosh/Flickr

havia sido orquestrado pela própria polícia, por razões


políticas. O massacre de Port Said oferece uma exata (acima) ameaçam incendiar
perspectiva das grandes questões colocadas pela conjun- novamente a Praça Tahir, no
tura egípcia contemporânea. Cairo (ao lado)
À primeira vista, tudo aconteceu como em qualquer
jogo com final violento: torcedores do time local, o
Masry, invadiram o gramado logo após a vitória sobre A conclusão se impõe: o massacre de Port Said foi fa- do que esperar por resultados das conversações entre o
o Ahly, do Cairo, principal time do país e seu rival. Isso bricado pela própria polícia, em parte como um “acerto novo Parlamento e os generais da Junta Militar.
produziu confrontos entre as duas torcidas no campo. de contas”, uma vingança contra o papel das torcidas na A Irmandade está num fogo cruzado que ameaça a
Em meio ao caos, os jogadores correram para os vesti- queda do ditador Hosni Mubarak, em parte como uma sua própria sobrevivência. A campanha que produziu
ários para tentar se abrigar, a batalha causou pânico e tentativa de aprofundar as rivalidades e impossibilitar sua vitória nas eleições parlamentares baseou-se na pro-
tentativas de fuga das pessoas do estádio. A maioria das novas relações de colaboração entre os torcedores. É por posta de promover um vasto “diálogo nacional” com o
mortes ocorreu por esmagamento em meio à multidão e isso que os manifestantes do Cairo tentavam tomar a objetivo de construir instituições democráticas fortes e
queda nas arquibancadas. sede do Ministério do Interior – e é também por isso que representativas. Esquecer os seus compromissos demo-
Logo, porém, começaram a surgir evidências de que os porta-vozes da Irmandade Muçulmana denunciavam cráticos e voltar as costas aos manifestantes seria um ato
o massacre foi fabricado. Em primeiro lugar, havia um o papel da polícia. Para a Irmandade, é crucial cultivar o de suicídio político. Mas voltar-se contra os militares e
grande número de pessoas armadas com pistolas e facas, apoio popular, e a pior coisa que lhes poderia acontecer é liderar um movimento pela derrubada da Junta poderia
o que demonstra que o sistema de controle de entrada do serem identificados como corresponsáveis por um mas- produziria uma nova situação revolucionária que, facil-
estádio foi, no mínimo, relaxado. Além disso, “a polícia sacre de torcedores. E é nesse ponto que se revela o frágil mente, escaparia ao seu controle.
trancou os portões para impedir que saíssemos do estádio. equilíbrio das instituições egípcias contemporâneas. Uma das saídas encontradas pela Irmandade foi a re-
Em nenhum lugar do mundo se tranca as saídas antes Uma sessão emergencial sobre a tragédia realizada tomada do discurso contra Israel e o fortalecimento dos
do fim do jogo, qualquer um que já assistiu uma parti- no recém-eleito Parlamento, controlado pela Irmandade vínculos com o grupo palestino Hamas, em nome do
da de futebol sabe disto”, afirma Mahmoud Abu Shark, Muçulmana, chegou à conclusão de que a responsabili- “renascimento islâmico”. Em dezembro, Ismail Haniyeh,
militante pan-arabista e um dos fundadores do Ahly. E dade pelas mortes cabe ao Ministério do Interior. Ainda primeiro-ministro do governo do Hamas em Gaza, foi
continua: “Fomos assassinados por uma massa dirigida na tentativa de encontrar alguma saída negociada para a recebido por Mohammed Badie, dirigente da Irmandade
por agentes infiltrados do serviço secreto e com o consen- crise, os dirigentes da Irmandade culpam “remanescen- egípcia. Haniyeh disse que a presença do Hamas, “ao lado
timento dos policiais que estavam lá para supostamente tes do regime de Mubarak”. Querem entregar os anéis – da Irmandade, ameaça a entidade israelense”. Badie, por
nos proteger.” Shark ecoa o consenso nas ruas. alguns dos antigos oficiais da ditadura que permanecem seu lado, reafirmou o compromisso da Irmandade com “as
Segundo informa o analista político Aldo Sau- em seus cargos – para salvar os dedos, isto é, os chefes questões da liberdade, sobretudo da liberdade dos palesti-
da, desde o início da revolução egípcia, em 25 de da Junta Militar que governo o país. Mas a manobra da nos”. A intenção é convocar os manifestantes de Tahir a
janeiro de 2011, os torcedores do Ahly organizaram Irmandade é fraca, pois as torcidas organizadas, a juven- desviar suas atenções para o confronto com Israel.
as linhas de frente dos embates com a polícia e o tude em geral e os manifestantes responsabilizam dire- Entretanto, a alternativa também cria suas próprias ar-
exército, e fizeram isso junto com os seus rivais do tamente o chefe da Junta, o general Hussein Tantawi. madilhas. Nas três últimas décadas, o Egito tornou-se um
Zamalek, o segundo maior time do país, depois do Ao mesmo tempo, os manifestantes se deparam com dos principais parceiros de Israel, e disso extraía benefícios
próprio Ahly. A sua experiência nos conf litos de rua a falta de poder concreto do Parlamento, que não possui extraordinários, inclusive financeiros, propiciados pelos Es-
deu a eles um papel tido como fundamental na der- legitimidade jurídica para destituir o primeiro-ministro tados Unidos. A aproximação mais explícita com o Hamas
rubada de Mubarak, ano passado. Apesar de uma nem interferir no Executivo. Isso produz um óbvio sen- desequilibra o xadrez geopolítico regional, ao passo que o
certa tradição de rivalidade com os times de Port timento de frustração: as grandiosas manifestações da chamado ao “renascimento islâmico”, vindo de um país tão
Said, os embates dos torcedores do Ahly com os do Praça Tahir e a queda do odiado ditador ficaram mui- importante, é um fator explosivo no Oriente Médio. Com
Masry jamais resultaram em tragédias. Até a sema- to aquém das transformações desejadas. Diante isso, a isso, a Irmandade é forçada a afrontar os interesses da Casa
na passada, nenhuma das brigas de torcida no Egito grande maioria dos jovens que hoje ocupa Tahir parece Branca na região.
havia provocado mortes. mais disposta a organizar enfrentamentos com a polícia
ABRIL 2012
 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
rússia

Putin vence, mas o caos espreita


o K remlin
No primeiro ciclo, Putin foi empurrado pelo vento dos preços do petróleo e do gás. No segundo, que se inicia, enfrentará turbulências
sociais e desafios geopolíticos

C omo esperado, Vladimir Putin ganhou com relativa


folga as eleições presidenciais realizadas na Rússia, no
Ossétia do Norte, território que faz parte da Federação
Russa). Como resultado, 186 crianças morreram, além,
a cada cinco anos. Em outros termos, a Rússia terá que
marchar na contramão das políticas adotadas pelos pa-
início do março. Foi reconduzido ao cargo que ocupou obviamente, dos integrantes do grupo. íses da Zona do Euro. Só terá alguma chance de fazer
entre 2000 e 2008, com cerca de 64% dos votos. As Com esse perfil, Putin garante o apoio da maior par- isso se os preços internacionais do petróleo e do gás se
eleições foram marcadas por denúncias de fraudes – cuja te da população, que associa democracia à anarquia e à estabilizarem num patamar de US$ 150 o barril (o pre-
existência, de resto, o próprio Putin reconheceu. Contu- hiperinflação. O líder encarna, de certa forma, a cultura ço médio atual oscila em torno de US$ 117).
do, não foram as irregularidades que garantiram a sua política russa, que saltou da tirania dos czares para a di- No plano da política externa, as relações tendem a
vitória: mesmo com a popularidade em queda, ele ainda tadura do Partido Comunista sem passar por um perío- ficar mais tensas com os Estados Unidos, em particular
é, de longe, o político que conta com a maior aceita- do estável de vigência das liberdades democráticas. Nes- no que se refere às manobras da OTAN e à estratégia
ção da opinião pública russa. Autoritário, formado pela se ambiente político, a mão forte do presidente é vista para o Oriente Médio. Em 7 de dezembro, o secretá-
KGB (antiga polícia política soviética), Putin governa como a única possibilidade real de resolver os problemas rio geral da OTAN, Anders Fogh Rasmussen, reiterou
com “mão dura” tanto no campo da política doméstica do país. Isso não impede o surgimento de movimentos a disposição da organização de instalar novos mísseis
quanto no da política externa. No quadro atual de crise democráticos que se manifestam nas ruas, mesmo sob antibalísticos na Polônia, Espanha, Turquia e Romênia
internacional, sua nova temporada no Kremlin será, cer- ameaça da repressão. Aliás, eis um grande desafio para e outros países-membros que aceitem participar. A justi-
tamente, marcada por grandes tensões. o novo governo Putin: no quadro atual da crise, dificil- ficativa oficial é a necessidade de reforçar as defesas con-
A popularidade de Putin atingiu o auge de 78% no mente se repetirão as proezas de crescimento econômico tra eventuais ataques originados do Oriente Médio. Em
final de 2008, quando, impossibilitado pela Constitui- que marcaram seu primeiro governo. reação, o então presidente russo Dmitri Medvedev ame-
ção de disputar um terceiro mandato, elegeu seu braço A desilusão será inevitável para uma boa parte de açou retirar o país do Novo Tratado de Redução de Ar-
direito Dmitri Medvedev. As razões de seu prestígio são, seus eleitores, especialmente os de classe média que mas Estratégicas (New Start), bem como instalar novos
sobretudo, de ordem econômica. Com os preços do pe- pedem a democratização, a redução da burocracia e o mísseis balísticos na fronteira com a Europa. E Dmitri
tróleo em alta, Putin conseguiu acabar com a hiperin- combate à corrupção. Sua primeira grande dificuldade Rogozin, representante de Moscou na OTAN, acenou
flação herdada do governo de Boris Ieltsin, equilibrou será encontrar dinheiro para realizar todas as reformas com a possibilidade de cortar as rotas terrestres de su-
as finanças do Estado e estabilizou o câmbio. Garantiu que prometeu durante a eleição. Cálculos conservado- primento das tropas da aliança no Afeganistão (Rede de
fartos reajustes aos aposentados e pensionistas, e voltou res de economistas indicam que só o aumento salarial Distribuição do Norte). A Rússia não vai tolerar a ins-
a ampliar a presença do Estado na economia, privatiza- prometido ao funcionalismo público vai custar 1,5% do talação de mísseis antibalísticos em território afegão, o
da de modo selvagem por Ieltsin. Principalmente, Pu- PIB por ano até 2018, quando a proporção deve dobrar, que seria apenas uma consequência lógica do atual curso
tin nacionalizou a Gazprom (responsável pela explora- para 3%. Os gastos prometidos com salários e compras adotado pela OTAN.
ção do gás) e boa parte da indústria de petróleo. Como de equipamentos para as Forças Armadas consumiriam No Oriente Médio, o ponto mais crítico, atualmente,
resultado do ciclo de alta dos preços do petróleo e do anualmente 2,2% do PIB, até 2020. Há ainda os cus- é a questão síria e a perspectiva de um eventual ataque ao
gás natural, a renda média da população cresceu quatro tos com aposentadoria: Putin prometeu não aumentar Irã (veja as matérias nas págs. 7 e 8). Em 24 de novem-
vezes em dólar em dez anos, de acordo com dados do a idade mínima de aposentadoria, mas os gastos com a bro, a Rússia, junto com os demais países integrantes dos
Banco Mundial. previdência devem subir um ponto porcentual do PIB Brics (Brasil, Índia, China e África do Sul), rejeitou qual-
No plano político, Putin foi duro quer intervenção estrangeira na Síria
com a oposição. É acusado pelos seus e no Irã, conforme uma declaração
adversários de cercear a liberdade de Em Moscou, conjunta assinada em Moscou. Se
imprensa, recorrendo para isso a amea- manifestantes Teerã é um aliado “natural” de Mos-
ças e pressão econômica, e responsabi- do cou e de Pequim contra a expan-
lizado pela morte dos jornalistas Anna movimento são americana no Oriente Médio,
Politkovskaia e Alexander Livitnenko, feminista Damasco garante à Rússia o único
que faziam oposição ao seu governo. ucraniano acesso de sua marinha ao lado oci-
Além disso, mantém na prisão, graças protestam dental do Mediterrâneo, por meio
a uma série de procedimentos jurídicos contra a da base naval de Tartus, o segundo
irregulares, o bilionário Mikhail Kho- fraude nas maior porto do país. A substituição
dorkovsky, ex-dono da Yukos, uma das eleições que da ditadura síria por um governo
maiores empresas petrolíferas do mun- conduziram aliado da Casa Branca que fechasse a
do. Mas é na repressão aos rebeldes Vladimir base russa de Tartus, ou mesmo que
nacionalistas da Chechênia que Putin restringisse a liberdade de movimen-
© Alexander Nemenov/AFP

Putin à
mostra plenamente sua face repressora. presidência to da armada russa é uma hipótese
Em setembro de 2004, ordenou às tro- da Rússia intolerável para os militares russos.
pas russas um ataque a um grupo de Putin não pode sequer considerar
terroristas chechenos que havia invadi- essa possibilidade.
do uma escola infantil em Beslan (na
2012 ABRIL
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 10
Nelson Bacic Olic
Da Redação de Mundo

A Sibéria e o futuro do
“novo Norte”
A Sibéria, seus grandes rios e recursos

A Sibéria

LAR ÁRTICO
ssim como acontece com os brasi- OCEANO GLACIAL ÁRTICO Parte europeia fontes cruciais de geração de energia

ULO PO
da Rússia
leiros em relação à Amazônia, a Sibéria elétrica e seus cursos são pontuados por
Jazimentos

CÍRC
ocupa um lugar especial no imaginário OCEANO
PACÍFICO de petróleo usinas hidrelétricas de grande porte.

Rio K
e nas representações russas. Desmesura- Jazimentos Os três rios são navegáveis e atra-

olima
damente vasta, praticamente deserta de “gigantes” vessam áreas de expressiva exploração
de gás
homens, foi durante muito tempo – e Grandes mineral e de madeiras. Por isso, insta-
aí está uma diferença com a Amazônia Dudinka Norilsk MAR jazidas de gás laram-se alguns pequenos portos nas
Iakutsk DE
Rio Ienissei

– uma região de exílio e deportação. proximidades ou na própria foz dos


Rio Obi

OKHOTSK Rios
S I B É R I A navegáveis

na
Mas, como a Amazônia, a Sibéria é vista rios: Salekand (rio Obi), Norilsk-Du-

Le
com utilização

o
Ri

Ri
oO a hidrelétrica
como uma espécie de Eldorado: a fonte Ri
oI bi Rio Angar dinka e Dickson (rio Ienissei), Tiksi
rtc Polo minerador
h
de inesgotáveis riquezas naturais. Omsk
(rio Lena). Tais portos desempenham
Novas zonas de
Em sua concepção geográfica mais Novosibirsk
Kranoiarsk Lago prospecção de uma dupla função. Além do escoamen-
Baical hidrocarbonetos
ampla, a Sibéria se estende dos Montes CHINA to de minérios, combustíveis e madeira,
CAZAQUISTÃO Cidades
Urais até a orla do Pacífico, numa exten- MONGÓLIA 550 km
principais servem como demonstração geopolítica
são pouco superior a 10 milhões de km2, FONTE: OLIC, Nelson Bacic. Geopolítica dos Oceanos, Mares e Rios. São Paulo: Moderna, 2011, p.10. da presença da Marinha russa na região
bem mais que a totalidade do território do Ártico (veja o mapa).
brasileiro, quase 60% da superfície da gar” dissidentes do regime, que ali seriam território da Rússia, fluem no sentido geral As principais cidades siberianas es-
Rússia. O governo russo, no entanto, de- “reeducados” nos ideais socialistas. Os sul-norte e deságuam no Oceano Ártico. tão localizadas no sul da região, espe-
fine o território siberiano de forma mais campos de trabalho forçado siberianos Além disso, percorrem trajetos superiores cialmente junto ao alto vale dos rios e
restrita, excluindo o Extremo Oriente são o tema de um livro célebre, O arqui- a quatro mil quilômetros, condição que no entroncamento dos cursos fluviais
russo, conjunto de áreas localizadas jun- pélago Gulag, do ex-prisioneiro e escritor os coloca entre os dez rios mais extensos com as vias de comunicação terrestre,
to ao litoral do Pacífico. russo Alexander Soljenitsin. “Gulag” é o do mundo. A superfície coberta por cada em particular a Ferrovia Transiberiana.
Parte considerável da Sibéria está lo- acrônimo, em russo, de Administração uma dessas três bacias e o volume d’água Nessa situação encontram-se as cidades
calizada ao norte do Círculo Polar Ár- Central dos Campos e Colônias de Tra- de seus rios as classificam também entre as de Novosibirsk, Omsk, Krasnoiarsk,
tico. O efetivo processo de ocupação e balho Corretivo, a agência estatal respon- dez maiores do mundo. Tomsk e Irkutsk. O primeiro desses nú-
valorização do território siberiano, uma sável pelo sistema prisional. Por conta do sentido de seu escoa- cleos urbanos é a mais populosa cidade
epopeia deflagrada por aventureiros, ex- A principal riqueza da Sibéria é seu mento e de sua grande extensão, os três da Sibéria (1,4 milhão) e uma das mais
ploradores e comerciantes russos, teve rico subsolo, onde há abundância de rios atravessam domínios climáticos que populosas da Rússia.
início no século XVI e estendeu-se até carvão, petróleo, gás natural e minerais vão do temperado continental ao polar, O geógrafo Laurence C. Smith faz,
o final do século XIX. Antes da che- variados, como ouro, ferro e níquel. Na cortando distintos ecossistemas – este- num livro recente, algumas instigantes
gada dos russos, a região era ocupada superfície, outra riqueza inestimável é pes, florestas de coníferas, taiga e tundra sugestões sobre o impacto das mudan-
por dezenas de grupos étnicos, ali es- formada pelas imensas florestas de taiga. – antes de desaguarem no Ártico. Eles ças climáticas globais e locais sobre a
tabelecidos desde tempos imemoriais. A exploração de minérios, combustíveis são alimentados pelas águas da fusão dinâmica demográfica de cidades situ-
A incorporação, quase sempre forçada e madeira estimulou o crescimento de das neves do alto vale e por chuvas que adas nas proximidades do Círculo Po-
desses grupos ao Império Russo explica, atividades industriais a partir da segunda ocorrem na primavera e verão. O dege- lar Ártico. Segundo ele, a tendência à
em grande medida, a diversidade étnica metade do século XX. A energia para as lo dos rios começa antes no alto vale, ao amenização das temperaturas das faixas
da população da Rússia atual, onde são atividades econômicas foi garantida com sul, e um pouco mais tarde à jusante, ao árticas e subárticas funciona como fator
reconhecidas mais de 120 etnias. a construção de importantes hidrelétricas norte. O rito desigual de degelo provoca favorável à expansão populacional de
Vivem na Sibéria cerca de 15 mi- nos rios das principais bacias da região. grandes inundações no baixo vale, onde pequenos núcleos urbanos do cinturão
lhões de pessoas, uma população que Recentemente, a novidade que, uma vez o gelo remanescente represa o escoamen- que denomina “novo Norte”: o Alasca,
cresceu lentamente dadas as condições mais, revoluciona a Sibéria são os acordos to das águas. o Canadá setentrional, a Península Es-
naturais adversas. Grande parte dessa firmados com a China para a exploração De maneira geral, os rios siberianos candinava, a Groenlândia e, é claro, a
população se concentra nas porções sul e utilização dos recursos minerais. desempenharam papel crucial no proces- Sibéria. As suas provas? As cidades si-
e oeste da região, em especial em núcle- Juntamente com as ferrovias Transibe- so de ocupação e valorização econômica berianas de Noyabrsk e Novy Urengoy,
os urbanos como Novosibirsk, Omsk e riana e a Baical-Amur-Magistral (BAM), do espaço regional e na vida das popula- que não existiam até o início da década
Krasnoiarsk. os rios são verdadeiras espinhas dorsais da ções ribeirinhas. No presente, como no de 1980, mas hoje, sob o influxo da ex-
Durante a “era soviética”, especial- Sibéria. Os três grandes rios – Obi, Ienis- passado, eles representam, em muitos ca- ploração de hidrocarbonetos, têm mais
mente no período de Stalin (1922-1953), sei e Lena – possuem várias características sos, as únicas vias de circulação de pesso- de 100 mil habitantes.
áreas da região foram usadas para “abri- comuns: cruzam quase exclusivamente o as e mercadorias. Também figuram como

ABRIL 2012
11 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
brasil

Belo Monte, uma história em dois tempos


Áthila Kzam O projeto da usina no rio Xingu nasceu durante a ditadura militar, mas foi revisto sob
Especial para Mundo o regime democrático. Enquanto se iniciam as obras, desenvolve-se uma polêmica sobre

O último tiro na guerra da licença ambiental foi dispa-


economia, sociedade e meio ambiente

quando se discute um novo empreendimento de geração


rado em junho do ano passado, quando o Instituto Bra- de energia elétrica na Amazônia. Contudo, joga a favor

© Antônio Cruz/Abr
sileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renová- de Belo Monte o fato de que a área do reservatório já
veis (Ibama) concedeu a licença de instalação das obras fica temporariamente inundada durante a cheia do rio.
de infraestrutura da usina hidrelétrica de Belo Monte Conta também um cálculo econômico bastante conhe-
no rio Xingu, no Pará. O ato reacendeu o debate sobre cido: os baixos custos de operação de usinas hidrelétri-
o aproveitamento do potencial hidrelétrico dos rios da cas, quando comparados aos de centrais termelétricas ou
bacia do Amazonas. nucleares. Por fim, nenhuma comunidade indígena será
A discussão em torno do aproveitamento para gera- remanejada pelo projeto atual.
ção de energia elétrica a partir do Xingu é antigo. Re- Mas nem tudo são rosas. Há a questão do alto custo
monta ao ciclo da ditadura militar, na década de 1970, de implantação da usina, um gasto de capital que po-
quando a estatal Eletronorte realizou os primeiros estu- Em Brasília, representantes dos povos deria ser utilizado tanto para a revitalização de usinas
dos sobre a viabilidade técnica do empreendimento. Há originários protestam contra a construção da já implantadas como para o desenvolvimento de fontes
mais de duas décadas, em 1989, durante o I Encontro usina Belo Monte alternativas. Os críticos apontam também para o tema
dos Povos Indígenas do Xingu, em Altamira (PA), fo- climático e hidrológico. O rio Xingu apresenta grande
ram debatidos os possíveis impactos sociais, econômicos cular, figura como um verdadeiro desastre ambiental, diferença no seu volume d’água ao longo do ano, em
e ambientais da usina. Na época, previa-se a inundação social e técnico (veja o mapa). função do regime hidrológico do Brasil Central, onde
de uma área superior a 1,2 mil km2 , que provocaria o A usina desastrosa foi planejada para suprir as neces- se encontram suas nascentes. No período da vazante, a
remanejamento de vários grupos indígenas. sidades de energia de Manaus, que se ampliavam com o água disponível possibilitará uma energia firme de me-
A ditadura militar estava encerrada e o projeto da usina crescimento das atividades da Zona Franca, implantada nos de 50% da capacidade total, fazendo com que a
teria que passar pelo crivo da opinião pública. Nos anos em 1975. Balbina inundou uma área de mais de 2 mil usina não opere com potência máxima durante grande
seguintes, uma intensa batalha judicial foi travada entre o km2 de floresta nativa. A extensa inundação produziu parte do ano (veja o gráfico).
Ministério Público, o Ibama e os índios. Nesse percurso, um reservatório de águas ácidas, reduziu a biodiversida- A polêmico tem um componente regional. A maior
o projeto sofreu uma série de modificações até chegar ao de e determinou a remoção compulsória dos índios da parte da energia gerada em Belo Monte será integrada
contorno atual, que prevê um reservatório menor, de 516 tribo waimiri-atroari. Toda a destruição destinava-se a ao Sistema Elétrico Brasileiro, através de extensas linhas
km2 (equivalente ao território da cidade de Curitiba), para gerar menos de 300 megawatts! de transmissão. Dessa forma, o “grosso” da energia será
produzir 11.233 megawatts. Belo Monte será a maior usina O exemplo negativo de Balbina sempre é destacado consumida no Centro-Sul do país, ficando uma parcela
hidrelétrica brasileira, atrás apenas de Itaipu. menor na Amazônia, para satisfazer principalmente os
A usina do Xingu inscreve-se numa moldura mais interesses das indústrias eletrointensivas. Final-
ampla. Quase dois terços do potencial hidrelétrico Usinas Hidrelétricas na Amazônia mente, há as consequências socioambientais, como
total do país está localizado na Amazônia, especial- o crescimento urbano desordenado com os recor-
mente nos rios Araguaia, Tocantins, Xingu, Madeira rentes problemas sociais que já se verificam. Na
e Tapajós. As grandes usinas na região começaram Ar COARACY NUNES OCEANO cidade de Altamira, a favelização e a especulação
ag
a ser implantadas a partir da década de 1970, sob o ua
ri ATLÂNTICO imobiliária avançam em ritmo acelerado, aliadas à
BALBINA
impulso de dois fatores entrelaçados: as novas neces- CURUÁ-UNA
Uatum intensificação do desmatamento.
ã nas
azo
sidades geradas pela revolução tecno-científica-infor- TUCURUÍ No ciclo militar, a visão norteadora das políti-
Tocantins

Solimões Am
BELO MONTE
macional e a crise do petróleo, que obrigou o Brasil a eir
a cas territoriais para a Amazônia orientava-se pela
ad
M
diversificar sua matriz elétrica em função da escalada ilusão do “Eldorado”: a imagem de um espaço no
ia

SAMUEL
gua

do preço do barril do “ouro negro”. qual os recursos naturais eram praticamente ines-
Ara

JIRAU E
Durante o ciclo militar, foram desenvolvidos SANTO ANTÔNIO N gotáveis. Hoje, o argumento “desenvolvimentista”
Ja
ma

na Amazônia grandes projetos de exploração mi- enfatiza o crescimento econômico. Segundo o Mi-
ri

neral e beneficiamento de matérias-primas, que Usinas instaladas nistério do Planejamento, uma expansão anual do
requerem vastas quantidades de energia. Nos ar- Projetos 590 km PIB em torno de 4% exige a ampliação da oferta de
redores de Belém implantou-se o polos minero- FONTE: FERREIRA, Graça M. L. Atlas geográfico: espaço mundial. São Paulo, Moderna, 2007, p 17. energia em no mínimo 1,5 mil megawatts a cada
metalúrgico de Barcarena (Albrás e Alunorte). ano. Contudo, o “desenvolvimentismo” não pode
Em São Luís, no Maranhão, instalou-se o polo de ignorar a questão da sustentabilidade. Os projetos
Vazão média do Rio Xingu (1969-2000)
Alumar. A necessidade de melhorar a infraestrutura, devem ser economicamente viáveis mas, ao mesmo tem-
a fim de atrair investimentos produtivos, foi respon- (Mil m3 por segundo) po, precisam levar em consideração a utilização racional
dida pela construção de usinas hidrelétricas como as 30
dos recursos e seus impactos sobre a qualidade de vida
de Tucuruí, no rio Tocantins, no Pará, e de Balbina, das populações afetadas.
20
no rio Uatumã, no Amazonas. Num contexto marcado
pela centralização política, as decisões subordinavam- 10 Áthila Kzam, licenciado em Geografia pela
se, exclusivamente, aos imperativos econômicos. Os 0 Universidade Federal do Pará e professor do Ensino
J F M A M J J A S O N D Médio e cursos pré-vestibulares de Belém, é coautor
empreendimentos hidrelétricos deixaram um rastro de MESES
do livro A Amazônia decifrada – Para quem quer ser
amplos impactos socioambientais. Balbina, em parti- amazônida
2012 ABRIL
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 12

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