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■ ANO 21 ■ Nº 4 ■ AGOSTO/2013 ■

tiragem: 20 000 exemplares

Bússola americana
E mais...
● O Meio e o Homem
gira para a Ásia
– Belo Monte é uma
fonte de mitos, que cir-
culam como verdades, e
s siglas enigmáticas TTIP e TPP ainda
nem existem oficialmente, mas sinali-
zam a reorientação geral da política mundial
A
de incertezas reais super- dos Estados Unidos. TTIP são as iniciais em
ficialmente discutidas. inglês de Parceria Transatlântica de Comércio e
Pág. 3 Investimentos, um mega-acordo em negociação
● “Nós somos os filhos entre os Estados Unidos (e, portanto, todo o

© Vanessa Carvalho/Brasil Photo Press/AFP


de Ataturk”, gritaram Nafta) e a União Europeia. TPP são as iniciais
os manifestantes de Is- em inglês de Parceria Transpacífica, um mega-
tambul, em junho. Na acordo em negociação entre os Estados Unidos
Turquia, duas histórias
(com o Nafta a reboque) e diversos países da
e duas tradições se en-
frentam. Ásia, Oceania e América Latina. Na América
Pág. 4 do Sul, de costas para o Mercosul, emerge uma
● Deposição de Morsi Aliança do Pacífico.
encerra a “primavera” no É o mapa do comércio global que se modi-
Egito e cria mais incerte- fica: no lugar de um sistema de regras decididas
zas no Oriente Médio no foro multilateral da Organização Mundial
Nos últimos anos, o Porto de Santos experimentou um surto de grande
Pág. 5
atividade, constituindo um dos grandes pilares de sustentação da relativa
de Comércio (OMC), o governo de Barack
● O comércio entre Brasil estabilidade econômica do Brasil, tendo na China um dos principais Obama assenta os tijolos de dois sistemas trans-
e África e os investimen- parceiros; esse processo está agora sendo ameaçado pelas novas estratégias continentais que se interpenetram. A China está
tos brasileiros no conti- comerciais colocadas em movimento pelos Estados Unidos fora desse jogo, assim como os demais BRICs
nente africano ainda são (Rússia, Brasil e Índia). Se as iniciativas de Wa-
pequenos, mas crescem shington obtiverem sucesso, as regras do jogo
como reflexo da política
comercial e de investimentos serão formuladas nas mesas bilaterais que reúnem americanos, europeus, japoneses, australianos e
externa de Brasília.
Pág. 10 representantes dos Tigres Asiáticos.
Economia e geopolítica caminham lado a lado. O governo Obama anunciou um “giro estratégico” dos Estados Unidos rumo
● Nelson Mandela dirigiu
a transição do apartheid à Ásia. É como se Washington estivesse dizendo que a Guerra Fria ficou no passado – e que, depois da etapa mais dramática
para a democracia. Em da “guerra ao terror”, a bússola americana aponta para uma nova rivalidade de longo prazo. Os Estados Unidos incrementam a
apenas quatro anos, cooperação militar com antigos e novos parceiros da Ásia/Pacífico, estabelecendo um anel de acordos econômicos, diplomáticos
ele reinventou a nação e de segurança em torno da China.
sul-africana e ofereceu Veja as matérias às págs. 6 a 9
algumas lições para o
mundo.
Pág. 11 O nome do “traidor” “A Sagração da
“T
● Visite nossa página
● Diário de Viagem no Facebook. Ali raidor”: a palavra terrível foi usada pelo governo
– Amã e Petra, na Jor- você encontrará dos Estados Unidos para crismar com uma marca primavera”,
dânia, são testemunhas indicações de tex- aviltante o ex-analista de inteligência Edward Snowden.
de um “tempo pro- tos, livros, filmes O homem que ofereceu ao mundo as evidências sobre o 100 anos
fundo” da História da e atividades. Bas- funcionamento e a amplitude do programa de vigilância em
civilização. ta acessar ao link: massa de comunicações telefônicas e eletrônicas não agiu,
w w w. f a c e b o o k .

© San Francisco Ballet/Divulgação


Pág. 12 contudo, a serviço de nenhuma potência estrangeira. Snow-
com/JornalMundo
den agiu em nome dos valores da privacidade e da liberdade,
consagrados pela Constituição dos Estados Unidos.
Trocar um pouco da liberdade pela segurança é abo-
● Revista Pangea 2013: Questões e visões do mundo minável – e não traz segurança. O raciocínio é de Thomas
contemporâneo – A partir da segunda quinzena de Jefferson, um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos.
março e a cada quinze dias, os interessados poderão OK, Snowden traiu a nação americana. Mas o governo dos
receber por e-mail textos sobre assuntos da atualida- Estados Unidos trai os princípios sobre os quais se ergueu
de. Para receber esses textos, acesse ao nosso site e se sua nação. Qual é, de fato, o nome do traidor?
inscreva (www.clubemundo.com.br). Editorial à pág. 3 e matéria à pág. 4 de H&C
Hoje, o programa Prism escandaliza todo o mundo...
...menos os leitores de Mundo
A
s recentes notícias sobre o programa Prism de razão, um cidadão vê-se enquadrado em uma terão que informar os motivos, no melhor estilo
espionagem eletrônica, criado pelos Estados “categoria comportamental perigosa”, poderá de Franz Kafka.
Unidos e reveladas ao mundo por Edward ser detido e interrogado por policiais que sequer
Snowden, ex-funcionário contratado da NSA (agên- O anúncio do TIA não é uma iniciativa isolada.
cia de serviço secreto), provocam escândalo em É um resultado lógico de uma política de conjunto
todo o planeta. Mais do que nunca, parece que se articulada por Bush logo após a destruição das Torres
confirmam as piores previsões feitas pelo escritor e Gêmeas e batizada como “guerra ao terror”.
ativista político britânico George Orwell (cujo nome Criado no governo de George W. Bush, presidente
de batismo era Eric Blair). dos Estados Unidos entre 2000 a 2008, o TIA esteve na
Mas os leitores de Mundo foram informados sobre origem do sistema de vigilância Prism, ainda em pleno
o programa bem antes, na edição nº 1 de 2003. No funcionamento no governo Obama, apesar de o presi-
artigo, que pode ser acessado em nosso site (www.clu- dente e seus assessores alegarem que não bisbilhotam
bemundo.com.br), o tema é tratado não só no espaço a vida dos cidadãos comuns do país. Eles afirmam
dedicado ao editorial, mas também em uma matéria que muitas tentativas de atentados foram frustradas em
de autoria do jornalista Newton Carlos, colaborador função dos dados obtidos através desse sistema.
constante do jornal. No editorial, podemos ler: O último parágrafo do editorial de Mundo de
março de 2003, reproduzido a seguir, é fundamental
No final de dezembro [de 2002], o governo Bush para se entender, de forma mais abrangente, o que
anunciou o programa Total Intelligence Awareness, o está em jogo:
TIA (em inglês, “Conhecimento Total de Informações”).
O programa, se instalado, permitirá ao governo Big Brother* ainda não venceu. De fato, a batalha
acesso irrestrito a todos os dados eletronicamente está no começo. Como muitos já disseram, a guerra,
registrados da vida privada de 290 milhões de cida- nos Estados Unidos, será travada entre o Império e
dãos dos Estados Unidos. a República. Os destinos do mundo dependem, em
Da movimentação bancária ao aluguel de fitas grande parte, de quem vencerá.
de vídeo, o pretexto é “combater o terror”. Por
meio de supercomputadores, o governo poderia *O “grande irmão” criado na ficção por George Orwell
no livro 1984 designa o governante que controla o sistema de
cruzar todos os dados e classificá-los segundo informações de um país totalitário.
“padrões de comportamento”. Se, por qualquer

Videogame premiado chega às escolas brasileiras: E X P E D I E N T E


PANGEA – Edição e Comercialização de

Ludwig é uma aventura no mundo da física Material Didático LTDA.

Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr.,


Nelson Bacic Olic (Cartografia)

P remiado pela rede internacional Games for Change e traduzido para o português Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779)
por Gilson Schwartz, colaborador de Mundo e professor da ECA-USP, o videogame Revisão: Jaqueline Rezende
Pesquisa Iconográfica: Odete E. Pereira e Etoile Shaw
Ludwig chegará ao Brasil no segundo semestre. O projeto da empresa austríaca Ovos teve
Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise
o patrocínio do Ministério da Educação da Áustria e da Prefeitura de Viena. Há dois anos
atuando em escolas públicas e particulares com o game Conflitos Globais, Schwartz atuará Endereço: Rua Dr. Dalmo de Godói, 57, São Paulo – SP.
novamente em parceria com UOL Jogos. “Além dos jogos, nossa meta é ampliar a comu- CEP 05592-010. Tel/fax: (011) 3726.4069 / 2506.4332
nidade brasileira voltada ao uso E-mail: pangea@uol.com.br – www.facebook.com/JornalMundo
de games em sala de aula. Com Assinaturas: Por razões técnicas, não oferecemos
Ludwig, o tema é conservação assinaturas individuais. Exemplares avulsos podem ser
de energia, física e meio am- obtidos no seguinte endereço, em São Paulo:
biente, tudo em um ambiente • Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900, São Paulo
3D com efeitos especiais e um Fone: (011) 3283.0340
personagem cativante”, adianta
Schwartz. O jornal Mundo é www.clubemundo.com.br
parceiro da Cidade do Conheci-
Infelizmente não foi possível localizar os autores de
mento da USP na promoção do todas as imagens utilizadas nesta edição.
game entre alunos e professo- Teremos prazer em creditar os fotógrafos,
caso se manifestem.
res em todo o Brasil.

MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 2013 AGOSTO 


E D I T O R I A L
Edward Snowden contra a “obediência devida”
Edward Snowden, o ex-analista da CIA que dor. Friedman apenas não usou a palavra, o que, no inúmeros novos atentados. Não podemos saber
revelou os programas sigilosos de vigilância em caso, é uma forma de covardia. O artigo é a mais se é verdade, pois todo o tema está coberto pelo
massa de telefonemas e mensagens eletrônicas, sofisticada síntese dos argumentos do governo manto do segredo. Mas sabemos que não evitou
foi qualificado como traidor por líderes parla- americano. Se acreditarmos neles, a liberdade será o atentado contra a maratona de Boston. Será
mentares democratas e republicanos nos Estados vista como um ornamento que só pode ser utilizado preciso uma vigilância ainda mais intrusiva?
Unidos. Ele, de fato, traiu o Estado, rompendo em ocasiões excepcionais: os momentos nos quais não Friedman apoia a vigilância em massa porque
o princípio da “obediência devida” à agência de existir nenhuma ameaça à segurança. teme que um outro “11 de setembro” convença
inteligência para a qual trabalhava. Mas, ao fazê- Friedman disse que a vigilância em massa deve a opinião pública de que a privacidade deve ser
lo, traiu os traidores das liberdades públicas e ser admitida, pois o atentado de 11 de setembro de mandada completamente às favas. É uma forma
individuais inscritas na Constituição de seu país. 2001 realmente aconteceu. Foi o argumento dos as- inteligente de iludir os leitores.
Quem garante
Snowden rejeita o rótulo de “herói”. Mas seu sessores de George W. Bush para justificar as ordens que a vigilância em massa evitará outro “11 de
ato deve ser classificado como uma iniciativa executivas que permitiam a tortura. O princípio da setembro” para sempre? E o que proporá o Esta-
heroica. liberdade exige traçar uma fronteira para as prer- do, aparentemente com o apoio de Friedman, na
Thomas L. Friedman, célebre colunista do rogativas do Estado. Até onde estamos dispostos a hipótese horrenda de outro “11 de setembro”?
jornal The New York Times, uma figura associada transigir quando a fronteira é ultrapassada? Fried- A fronteira tem que ser posta em algum lugar
à defesa das liberdades políticas e civis, escreveu man ecoou os assessores de Barack Obama, que juram – eis a mensagem de Snowden.
um artigo para qualificar Snowden como trai- por todos os santos que a vigilância em massa evitou

Axé Silva
Especial para Mundo

Polêmica de Belo Monte envolve


mitos e incertezas
A Usina de Belo Monte, localizada no
rio Xingu, no Pará, é alvo de enorme
debate. Entre os temas mais polêmicos está
Amapá
cerca de 2 mil famílias de Altamira,
OCEANO
ATLÂNTICO
cidade localizada a cerca de 40 km da
barragem. As autoridades prometem que
vem ser implantados cerca de 150 projetos
de desenvolvimento regional nos cinco
municípios da área de influência direta da
Belém
nas
mazo
a possibilidade de a obra alagar as Terras Rio A o primeiro grupo usina (Altamira, Senador Porfírio, Vitória do
s
cantin
s
apajó

Indígenas (TI) da região. Do ponto de Altamira


será transferido Xingu, Brasil Novo e Anapu). A estimativa
RioTo
RioT

vista jurídico, isso somente seria possível Belo Monte e seu entorno para agrovilas e o de investimentos voltados para a educação,
gu

Belo Monte
Xin
Rio

mediante autorização parlamentar. O pa- P a r á


segundo ganhará saúde, melhorias urbanas e estruturais para
rágrafo 3º do artigo 231 da Constituição moradias em lo- a população local é de aproximadamente
diz: “O aproveitamento dos recursos hídri- Belo Monte cais com infraes- R$ 4 bilhões.
Rio Tocantins

Terras indígenas
cos, incluídos os potenciais energéticos, a trutura urbana e Incertezas legítimas cercam o tema dos
gu
in
X
o

Unidades de
pesquisa e a lavra das riquezas minerais em adequado sanea- custos da energia que será gerada por Belo
Ri

Conservação
federal
Terras Indígenas só podem ser efetivados mento básico. Monte. Em tese, a hidrelétrica produzirá
Unidade de
com autorização do Congresso Nacional, Conservação
estadual
A polêmica en- energia suficiente para abastecer apro-
ouvidas as comunidades afetadas, ficando- Outras terras volve ainda o des- ximadamente 60 milhões de pessoas (o
demarcadas
lhes assegurada participação nos resultados matamento ocasio- equivalente a 40% do consumo residencial
Ri
o

Terras não
Xi

da lavra, na forma da lei.” Mas essa pos- nado pela formação de todo o país), reduzindo os riscos de
ng

demarcadas
u

sibilidade é um mito – ou uma arma na FONTE: adaptado do da represa. O lago “apagões”. E, acrescentam os defensores do
Instituto Socioambiental
polêmica política. que se formará, com projeto, o quilowatt-hora produzido por
A usina hidrelétrica não será construída cerca de 500 km2, uma hidrelétrica é, ainda hoje, mais barato
na área de cerca de 20 Terras Indígenas abrange superfície que o de outras fontes, como a térmica, a
situadas na região (veja o mapa). Também Cerca de 20 mil indígenas habitam pequena, em termos comparativos, o que nuclear, a solar e a eólica. Contudo, no
não há risco de que elas sejam total ou a bacia do rio Xingu, que sentirão os fica evidente quando se sabe que o desmata- caso de Belo Monte, o cenário econômico é
parcialmente alagadas, por conta da técnica impactos indiretos de Belo Monte. A mento anual na mesma Floresta Amazônica mais complexo e incerto. Justamente devi-
utilizada para a construção da barragem, obra atrai trabalhadores, e, nos arredores, – provocado por queimadas para expansão do à técnica de fio d’água, a geração efetiva
denominada fio d’água: o fluxo hídrico núcleos urbanos serão formados. É respon- agropecuária e retirada indiscriminada de apresentará fortes oscilações sazonais. Na
do curso fluvial passará pelas turbinas e sabilidade legal da Fundação Nacional do madeiras nobres destinadas ilegalmente ausência de um grande reservatório, a
voltará ao leito natural, sem a formação de Índio (Funai) assegurar os direitos das co- aos mercados nacional e internacional – é produção cairá verticalmente nos meses
um enorme lago. Segundo as estimativas, munidades indígenas, adotando medidas avaliado em cerca de 5 mil km2. A licença de estiagem. Os críticos têm razão quando
o reservatório principal terá apenas 503 para minimizar os efeitos eventualmente de instalação da usina, fornecida em 2011, ironizam os cálculos ufanistas baseados na
km2, sendo que 228 km2 correspondem ao prejudiciais derivados indiretamente da obriga o consórcio responsável pela obra a capacidade teórica de geração elétrica da
leito natural do rio na época de cheia. Por implantação da hidrelétrica. atender uma série de exigências do Instituto usina da discórdia.
esse motivo, a autorização do Congresso Não é mito, mas fato, que a constru- Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Nacional não foi necessária para o desen- ção afetará algumas centenas de mora- Naturais Renováveis (Ibama). Como medida Axé Silva é geógrafo formado pela USP,
professor e coautor do material didático do
volvimento da obra. dores ligados à agricultura e, também, compensatória pelas perdas ambientais, de- Sistema Anglo de Ensino

 AGOSTO 2013 MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO


turquia

“Filhos de Ataturk” elevam a tensão no


Oriente Médio
Manifestações contra o primeiro-ministro turco Recep Erdogan revelam graves tensões políticas no “posto avançado” da Otan

Q uatro mortos e 8 mil feridos: esse foi o sinistro


saldo deixado pela polícia turca contra as centenas
de milhares de manifestantes que, ao longo do mês de
pério Otomano e a independência da Turquia. Já como
primeiro presidente da jovem república, iniciou uma série
de reformas modernizantes, destinadas a aproximar o
As reformas de Ataturk foram tão bem sucedidas que
Recep Erdogan foi o primeiro político conduzido ao cargo
de primeiro-ministro da Turquia (em 2002, e depois reeleito
junho, multiplicaram atos, passeatas e demonstrações país do mundo ocidental. Instituiu a Grande Assembleia duas vezes) com uma clara proposta de reaproximação ao
contra o governo do primeiro-ministro Recep Erdogan. Nacional, que teve como tarefa eliminar as antigas leis mundo islâmico. Sua vitória eleitoral se deveu, em grande
As manifestações começaram, em 31 de maio, como um emanadas do califado e criar a estrutura jurídica da nova parte, à intransigência dos líderes da União Europeia, que
protesto contra os planos governamentais de transformar república. A sharia (código legal inspirado no Corão) foi jamais aceitaram a integração da Turquia, justamente por
a praça Taksim, situada em Istambul, em um imenso substituída por um sistema legal baseado no suíço, com seu passado como capital do Império Otomano. Criou-se
shopping center. Erdogan ordenou que a polícia reprimisse influências do código penal italiano e do código comercial uma situação politicamente insustentável, segundo a qual
com brutalidade a manifestação, que, no início, reuniu alemão. Promoveu vastas reformas no sistema educacio- a Turquia era suficientemente “confiável” para fazer parte
apenas algumas centenas de jovens. A repressão, em vez nal, encorajou a participação das mulheres em todas as da Otan – e funcionar como uma espécie de representante
de amedrontar a população, atraiu nos dias seguintes esferas, proibiu a poligamia, instalou empresas estatais militar do mundo ocidental na fronteira com a Ásia e o
multidões cada vez maiores para a praça, e as palavras de destinadas a estimular a criação de um parque industrial Oriente Médio –, mas não para ser tratada como “igual” pe-
ordem foram rapidamente transformadas em ataques ao moderno e adotou uma série de iniciativas populistas no los demais integrantes do bloco europeu. O papa Bento XVI
governo. Uma semana depois, os jovens gritavam: “Nós mundo do trabalho. Na política externa, abriu o diálogo foi um das vozes mais fortes contra a integração turca.
somos filhos de Ataturk” – palavra de ordem repleta de com as potências ocidentais, pavimentando o caminho Erdogan distanciou o seu governo de Israel, com quem
significados políticos e históricos profundos. que conduziria à adesão da Turquia à Otan, em 1952, e Ancara mantinhas fortes laços diplomáticos (não por acaso,
Mustafa Kemal Ataturk (1881-1938) fundou a a associação à Comunidade Econômica Europeia (ante- foi da Turquia que partiram as “flotilhas da paz”, em 2010,
República Turca, em 29 de outubro de 1923, sobre cessora da União Europeia), em 1963. com a missão de levar comidas e remédios para os palestinos
os escombros do antigo Império Otomano (islâmico). da Faixa de Gaza) e “esfriou” as relações com os Estados
Durante sete séculos (entre 1299 e 1922), o Império Unidos. Aparentemente, usa a importância estratégica da
Otomano (fundado por Otman I) exerceu o domínio Turquia como moeda de troca nas negociações, para obter
sobre uma área que, no seu auge, entre os séculos XVI e concessões do “mundo ocidental”. Em face da atual onda
XVII, compreendeu uma área de cerca de 5 milhões de repressiva, a primeira-ministra alemã Angela Merkel já de-
km2 – do estreito de Gibraltar (a oeste) ao Golfo Pérsico clarou a disposição de congelar todas as negociações sobre
(a leste), da fronteira com a Áustria e Eslovênia (ao norte) uma eventual admissão da Turquia à União Europeia.
ao Iêmen (ao sul). Agregava boa parte do Oriente Médio, Os jovens que se dizem “filhos de Ataturk” evocam a
do norte da África e do sudeste da Europa. A capital ficava figura mitológica do fundador da República Turca contra
em Constantinopla, antiga capital do Império Romano o governo autoritário de Erdogan. Claro que mito é mito:
(depois Bizantino), conquistada pelos otomanos em 29 Ataturk não foi nenhum líder democrático. Governava
de maio de 1453 e oficialmente rebatizada como Istambul o país com mão de ferro, o regime por ele instalado era
em 1930, já sob o governo de Ataturk, que transferiu a unipartidário e a “modernidade” foi imposta de cima para
capital da jovem república para Ancara. baixo. Porém, ao agitar o fantasma de Ataturk, os jovens
Reprodução

O dirigente máximo do Império Otomano, o sultão, explicitam, ainda que de maneira confusa, a sua rejeição aos
atribuía a si próprio título de Califa do Islã – isto é, diri- métodos truculentos de Erdogan e exigem a democracia.
gente máximo da comunidade mundial islâmica. Não por acaso, os manifestantes da praça
O sultão exercia um controle férreo sobre o vasto Taksim introduziram mais um tema extrema-
império, que entrou em decadência a partir do mente grave: o apoio à luta do povo curdo.
século XVII, como decorrência das transforma- “Polícia assassina, saia do Curdistão”, gritavam
ções no mapa geopolítico mundial possibilitado os manifestantes, em protesto contra o assas-
pelas grandes navegações e pela expansão do sinato de um jovem curdo, pela polícia, no
poderio das novas potências europeias. Às vés- distrito de Lice, no sudeste da Turquia. “Viva a
peras da Primeira Guerra Mundial (1914-18), o irmandade dos povos”, gritavam manifestantes
sultão fez uma aliança com a Alemanha contra turcos, árabes e curdos. Há décadas, a minoria
as potências aliadas (Inglaterra, França e Rússia). étnica curda reclama a independência da Tur-
A Inglaterra fomentou a revolta das tribos árabes quia e o direito a formar o seu próprio estado,
contra o Império Otomano (episódio narrado de ao lado de curdos que também habitam regiões
© Bulent Kilic/AFP

forma admirável por Lawrence da Arábia, filme de da Síria, do Iraque e da Ásia central. É uma das
1962 dirigido por David Lean), dando início ao questões mais explosivas de toda a região.
processo que iria redesenhar o mapa geopolítico A arrogância de Erdogan permitiu, assim,
do Oriente Médio, nos anos 1930 e 1940. a eclosão de grandes tensões na Turquia. O
Com a derrota da Alemanha e, por conse- quadro não poderia ser mais grave, dada a
quência, do Império Otomano, Kemal Ataturk Em Istambul, os “filhos de Ataturk” invocam situação extremamente volátil do Oriente
– então um conhecido e prestigiado oficial do exército um passado republicano mitológico, encarnado Médio como um todo – e, particularmente, na fronteira
– liderou o Movimento Nacional Turco, em nome do pelo “pai” da moderna Turquia (foto no alto), com a Síria.
qual negociou com os aliados a liquidação final do Im- contra o autoritarismo de Recep Erdogan

MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 2013 AGOSTO 


egito

Deposição de Morsi encerra a “primavera”


Massacre de seguidores da Irmandade Muçulmana, em 8 de julho, agita o espectro da guerra civil no mais importante país árabe

E m 8 de julho, forças de segurança do Egito


assassinaram pelo menos 51 e feriram outros
435 apoiadores do presidente Mohamed Morsi, de-
de confiscar terras; imunidade de processos civis e
o direito de usar, para fins privados, mão de obra
fornecida por soldados. Apesar de tudo, os militares
posto de seu cargo quatro dias antes por um golpe recorreram ao golpe para se antecipar a uma nova
militar. Segundo seguidores do grupo Irmandade onda revolucionária – desta vez, para derrubar Morsi
Muçulmana, representado no governo pelo partido – que se anunciava nas ruas.
Justiça e Liberdade (ao qual pertence Morsi), eles O lugar ocupado pelos militares no Egito é
foram atacados enquanto realizavam suas orações complexo. Em grande parte, o exército extrai o
matinais; o exército afirma que eram parte de um seu prestígio do mito nasserista. Gamal Abdel
“grupo terrorista” que se preparava para atacar as Nasser (1918-70), presidente do Egito de 1956
instalações do clube de oficiais da Guarda Repu- até sua morte, foi o “pai” do pan-arabismo, uma
blicana, no Cairo, onde, segundo rumores, Morsi fábula que preconiza a restituição da antiga glória
estaria detido. O presidente interino Adly Mansour ao mundo árabe com a união de todos os Estados
anunciou que abriria investigações judiciais para “irmãos”. Seu prestígio vem da retomada do Canal
apurar responsabilidades, mas isso não acalmou os de Suez pelo Egito, em 1956, mediante a derrota
apoiadores de Morsi. O xeque Ahmed el-Tayeb, imposta à ofensiva militar conjunta organizada por
chefe da Mesquita de Al-Azhar, um dos mais im- Inglaterra, França e Israel. Assim, ao mesmo tempo
portantes centros de oração do mundo islâmico, em que gritavam “abaixo a ditadura militar” contra
advertiu contra o perigo da eclosão de uma guerra Mubarak, os manifestantes da praça Tahrir alimen-
civil. A névoa da incerteza envolveu a praça Tahrir, tavam ilusões na natureza “popular” do exército. Os
símbolo da Primavera Árabe. Como explicar a generais compreenderam e souberam tirar partido

© Mohammed Elshamt/Anadolu Agency/AFP


precipitação desses fatos? do mito, ao absterem-se de reprimir as manifes-
Em primeiro lugar, nada aconteceu de forma tações que marcaram o auge da “primavera”. E
inesperada. Ao contrário. A crise do governo Morsi procuram manter o mito, ao dizer que derrubaram
começou a ser gestada no instante seguinte ao de Morsi em nome da “vontade do povo”.
sua eleição, em 24 de junho de 2012, quando se Além de ter garantido privilégios ao exército,
tornou o primeiro presidente civil eleito da his- Morsi também concedeu impunidade à polícia e
tória do Egito, encerrando 29 anos de ditadura aos felol (representantes bem conhecidos e iden-
do general Hosni Mubarak. Quadro dirigente da tificados da ditadura chefiada por Mubarak). As
Irmandade Muçulmana, Morsi era depositário das estruturas do antigo regime permaneceram intactas
esperanças dos milhões de egípcios que, ao longo e as novas não foram construídas, ironicamente,
de meses, promoveram gigantescas concentrações por obstáculos interpostos pelo próprio Morsi e a
na praça Tahrir para exigir democracia. A primeira Irmandade Muçulmana. A sua queda foi o resul-
decepção aconteceria já em 12 de agosto, quando “Cai fora”: o cartaz traduz com precisão o tado de pressões combinadas e exercidas por um
Morsi suspendeu unilateralmente emendas à Constituição desejo de milhões de egípcios contra o governo estranhíssimo espectro de forças, que vai dos generais aos
que limitavam os poderes presidenciais. “islamizante” de Morsi revolucionários liberais, laicos e democráticos, passando
Mas o fosso entre Morsi e a sociedade foi cavado em pelo esgoto de Mubarak.
22 de novembro, quando ele retirou do Tribunal Cons- declarou inválida a Assembleia Constituinte que elaborou O futuro do Egito é uma incógnita. A Casa Branca,
titucional a competência para decidir sobre a legalidade a nova Carta. Começam, então, as pressões pela renún- que sustentou a ditadura de Mubarak e, depois, o governo
de um Comitê Constitucional, feito para elaborar uma cia de Morsi. Em 30 de junho, o movimento Tamarrud Morsi (com verbas estimadas em US$ 1,6 bilhão ao ano,
nova Constituição e formado por uma maioria de políticos (Rebelião) anunciou ter alcançado, por meio de uma em média), tem todo interesse na estabilização política
islâmicos. Morsi simplesmente passava por cima de toda campanha promovida via redes sociais, cerca de 22 milhões rápida, em uma situação de crise generalizada do Oriente
a mobilização nacional pela democracia, desenvolvida ao de assinaturas em apoio a uma petição pela deposição de Médio, que agora atinge também a Turquia (veja a ma-
longo dos meses anteriores. Uma semana depois, em 29 Morsi. Foi a senha para que o ministro da Defesa e chefe téria à pág. 4). Os militares apostam na formação de um
de novembro, o comitê apresentou uma proposta que do exército Abdel al-Sisi apresentasse um ultimato: Morsi governo de transição integrado por intelectuais respeitados
declarava a sharia (código legal islâmico) como fonte e a Irmandade Muçulmana teriam 48 horas para concluir pela sociedade civil, como o diplomata e ganhador do
principal da legislação. A Carta foi aprovada em 25 de um acordo com a oposição, ou o presidente seria deposto. Nobel da Paz Mohamed el-Baradei, ex-diretor da Agência
janeiro, com a participação de 64% dos eleitores, em um Com o fracasso de várias tentativas conciliatórias por parte Internacional de Energia Atômica.
processo recheado de denúncias de fraudes, pressões e de Morsi, o exército cumpriu os termos do ultimato. Mas a situação é explosiva e pode caminhar mesmo
intimidações. A Irmandade Muçulmana, grupo funda- Morsi caiu, portanto, por não ter correspondido aos para a guerra civil, como mostra o massacre dos 51 segui-
mentalista sunita criado em 1928, durante o processo de anseios democráticos dos que o conduziram ao poder. Além dores da Irmandade Muçulmana. Assim, a “primavera”
resistência dos egípcios à colonização britânica, impunha disso, promoveu vastas concessões aos mesmos militares que que parecia irradiar do mais importante Estado árabe,
agora a sua agenda ao país. sustentaram três décadas de ditadura do odiado Mubarak. do ponto de vista militar, econômico e político, para o
Nas semanas seguintes, houve uma série de manifesta- Entre as concessões: poder de veto em assuntos de segurança conjunto do Oriente Médio, ameaça mergulhar no mais
ções de protesto e incidentes em várias cidades importantes nacional e política externa; proteção às negociatas feitas por profundo “inverno”.
do Egito. Em 2 de junho, a Suprema Corte Constitucional militares em associações com empresas, incluindo o direito

 AGOSTO 2013 MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO


globalização

Gilson Schwartz
Especial para Mundo Mega-acordos articulados
“Q uem parte e reparte, mas não fica
com a melhor parte, é burro ou não
A Parceria Transpacífica move-se por meio de uma dúzia e meia de sessões de negociações. Até poucos meses atrás, contava
Japão veio em seguida. Esses novos participantes (...) injetaram uma dose de esteroides na TPP. (...) Surpreendentemente, o empu
tem arte!” A Pax Americana tornou-se in- de viram nela um motor de arranque para a economia. (...) Tomadas em conjunto, a TPP e a TTIP formam um esforço agressiv
discutível com a globalização das finanças, Desenvolvimento de Doha da OMC.
a universalização da internet e a reorienta-
ção dos investimentos militares da corrida (Bill Frenzel, “Free trade is not quite president Obama’s neglected stepchild,
espacial para a ocupação prioritária, efetiva
e segura do planeta Terra. E a distribuição
dos frutos dessa riqueza? Como fica o
comércio nos mercados globais criados
e mantidos pelo poder imperial? A hege-
monia financeira, tecnológica e militar
dos Estados Unidos tem como corolário

© The Friedman Foundation for educational Choice


um sistema de mercados livres e abertos,
onde o comércio proporciona a distribui-
ção equitativa, sustentável e eficiente da
riqueza produzida por todo o planeta?
Sim, é um sistema e, vá lá, há nesses
mercados globais uma “organização”, a Or-
ganização Mundial do Comércio (OMC),
cuja liderança nesse momento cabe a um
diplomata brasileiro (veja a matéria à
© Philippe Renault/AFP

pág. 7). Pode o comércio se organizar no


horizonte do crescimento equilibrado,
equânime e eficiente, horizonte de longo
prazo onde predomina a paz e finalmente
são superadas a exclusão social e a devas- Milton Friedman, “papa” do
tação ambiental? monetarismo, inspirou as
Os pensadores clássicos da filosofia políticas econômicas ultraliberais
Sala histórica do luxuoso hotel Mount Washington, em Bretton Woods (New
política e mesmo da economia política
Hampshire, Estados Unidos), onde, em julho de 1944, foram firmados os implantadas, a partir dos anos
demonstraram lógica e metafisicamente
acordos que permitiram a nova estruturação da economia mundial, sobre os 1980, por Ronald Reagan e
que é possível, sim, alcançar uma “paz
escombros de uma Europa devastada pela Segunda Guerra Margaret Thatcher
perpétua” ou que, pelo menos, batalhar
pela sua realização na Terra é o que a es-
pécie humana pode fazer de melhor por si pragmática do “papa” do monetarismo 0,18%. Com a paralisia das atividades de ciamento de curto e longo prazo tornou-se,
mesma e pelo planeta. O detalhe entre os pode servir como chave reveladora. Qual investimento, a demissão em massa de com a crise, ainda mais distante da idealiza-
pensadores clássicos da economia política a relevância da OMC e mesmo o sentido trabalhadores-consumidores, a queda na ção teorizada pelos modelos de sociedade e
estava na contradição inevitável decorrente último de suas ações diante da força im- arrecadação de impostos e a destruição de de relações internacionais apregoada pelos
de seus sistemas teóricos. Em muitos casos, perial americana? milhões de planos individuais e empresa- cardeais do livre-cambismo, da abertura dos
toda a lógica e a mais refinada metafísica Os pepinos, abacaxis e ouriços com riais cujo financiamento dependia do valor portos e da paz perpétua movida a trocas
indicavam que, deixados levar por seu que vai se defrontar o diplomata brasileiro de ações, de fundos de aposentadoria e até iguais entre desiguais na circulação de di-
próprio curso, os mercados promovem o Roberto Azevedo à frente da OMC são do emprego supostamente confortável em nheiro, mercadorias, pessoas e ideias. Países
melhor dos mundos para a totalidade dos de origem, natureza e tamanho variados, grandes empresas tradicionais (como no se- que, ao longo dos anos, mesmo durante
indivíduos. No entanto, até mesmo para a começar pelo fato avassalador de que, tor automobilístico), os fluxos de comércio o período de vacas gordas, apostaram em
estimular o funcionamento dos mercados, após a grande crise financeira de 2008, o nada mais foram que o reflexo no mercado projetos de “clubes de compra” acabaram por
são necessárias regras, organização, regula- mundo inteiro ingressou numa onda pro- global de uma profunda desorganização se sair muito melhor que a ampla maioria de
mentação, avaliação e tributação. tecionista comparável apenas à que ocorreu das finanças. países dispostos a implementar políticas de
Mas se a construção do sistema depen- depois da crise de 1929, afinal resolvida, As disputas comerciais aumentaram de integração aos mercados mundiais.
de dessa organização, quem paga a conta da segundo os analistas mais mecanicistas, 20 (em 2006) para 29 (em 2012), acumu- Enquanto isso, os Estados Unidos
sua constituição? Que tropas policiais ou com a destruição colossal provocada pela lando mais de cem litígios nas altas cortes avançaram na implementação de acordos
forças de ocupação serão necessárias para Segunda Guerra Mundial. da OMC. Ainda mais impressionantes que são favoráveis ao “livre-comércio”,
garantir que milhões de pessoas em favelas O comércio internacional chegou, em são as barreiras técnicas, ou seja, normas mas apenas entre os integrantes restritos de
paguem pela TV a cabo em vez de usar o 2012, ao pior nível em 30 anos, depois do técnicas e regulamentação das burocracias um acordo regional. Depois de 14 acordos
“gato” na certeza da impunidade de um recorde absoluto de deterioração da ativi- nos portos e agências de fiscalização do bilaterais de livre-comércio, os Estados
território sem lei? Milton Friedman, odia- dade comercial atingido em 2009, logo comércio internacional. A denúncia de Unidos conseguiram ampliar em 5% sua
do consultor de ditaduras como a chilena após o colapso do mercado imobiliário barreiras artificiais contra a livre circula- participação no comércio internacional. O
e “muso” de economistas obcecados pela e resultando no crash de todo o sistema ção de mercadorias pelo mundo chegou a Brasil investiu em um só acordo, o Mer-
efetiva e total liberalização dos mercados, financeiro. Durante a crise, a contração 1.550 em 2012 (eram 771 em 2005). cosul, com resultados bastante duvidosos:
“doa a quem doer”, dizia que “não há do comércio internacional foi de 22%. No O mundo das relações comerciais, das a economia brasileira perdeu participação
almoço grátis”. Aplicada à OMC, a visão ano passado, a expansão foi de mirrados regras aceitas e das oportunidades para finan- relativa no comércio internacional.

MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 2013 AGOSTO 


por Obama tendem a esvaziar a OMC
a com uma lista pouco expressiva de participantes.Então, o Canadá decidiu aderir. O
urrão da TTIP originou-se na Europa. Lá, líderes esgotados pela recessão e austerida-
vo que, se triunfar, poderiam ser o necessário substituto para a moribunda Rodada do Comércio depende de regras
, but…”, Forbes, 5 de janeiro de 2013)
A Carta de Havana, resultado da reunião de Genebra de 1947, criou a
Organização Internacional de Comércio (OIC), que nunca chegou a
existir. Na onda de construção de novas regras de convivência entre os governos
ocidentais do pós-guerra, estabeleceu-se ao mesmo tempo o Acordo Geral sobre
Pautas Aduaneiras e Comércio – ou simplesmente Acordo Geral sobre Tarifas
e Comércio (em inglês, “General Agreement on Tariffs and Trade”, GATT). O
GATT não seria uma organização permanente, mas um fórum de negociações.
Mesmo assim, acabaria formando o pé complementar do tripé de organizações
econômicas multilaterais erguido com a criação do Fundo Monetário Interna-
cional (FMI) e do Banco Mundial, em 1944.
Os Estados Unidos definiram a pauta da reunião de Genebra, oferecendo
como estímulo a redução negociada de suas próprias tarifas, que haviam subido
contra produtos importados da década de 1930, durante a Grande Depressão.
A Carta de Havana, no fim, ficou sem ratificação. Em 1950, os Estados Unidos
já anunciavam que não encaminhariam o projeto para ratificação no Congresso.
É que a OIC conferia um voto a cada país, algo inaceitável para a superpotência
militar e econômica.
Desde o nascimento, as negociações sobre comércio são turbulentas e pautadas
© Abdelhak Senna/AFP
por quem tem mais força econômica, financeira e militar. Na prática, o “sistema”
do GATT nunca passou de uma rodada após outra de negociações. A vinculação
entre comércio internacional e desenvolvimento econômico entrou na agenda
do GATT apenas na sexta rodada, a Rodada Kennedy (1964 a 1967), quando
o Grupo dos 77, o bloco dos países em desenvolvimento nas Nações Unidas,
obteve a criação da UNCTAD (agência da ONU para promover a conexão entre
O Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês) teve comércio e desenvolvimento).
um fim melancólico, que agora parece ameaçar a sua sucessora Organização Finalmente, na oitava rodada, conhecida como Rodada Uruguai (1986 a
Mundial do Comércio (OMC) 1994), ganhou força o ideal de impor padrões universais para as normas do-
mésticas dos países-membros, levando à criação da Organização Mundial do
Comércio (OMC). Há algo da OIC na OMC: cada país tem direito a um voto,
o que explica os impasses eternos na Rodada do Desenvolvimento de Doha, ainda
Estados Unidos (com Canadá e México Ásia/Pacífico, com a exclusão da China. A em curso, mas em estágio moribundo.
englobados no Nafta), União Europeia e iniciativa tem uma dimensão econômica e Os temas da agenda da OMC foram organizados em torno da liberalização
Ásia organizaram-se como blocos econô- outra geopolítica (veja a matéria à pág. do comércio internacional de mercadorias. Mais recentemente, ganhou força a
micos marcados por organizações políticas, 8). Na sua franja meridional, ela incorpora regulação internacional do comércio de serviços e, sob ataque cerrado dos países
espaços de negociação de regras, critérios e os países sul-americanos da Aliança do em desenvolvimento, vai ganhando peso a agenda de liberalização dos investi-
fundos de financiamento público ao setor Pacífico (veja a matéria à pág. 9). mentos, por meio de Acordos Multilaterais de Investimentos. A liberalização dos
privado. A Ásia tornou-se a grande máquina O brasileiro que lidera a OMC vai, investimentos e a proteção de patentes são itens cruciais nos tratados bilaterais
de produção de todo o planeta, superando a portanto, defender princípios multilaterais, de livre-comércio firmados pelos Estados Unidos com inúmeros países. A matriz
União Europeia e celebrando um redesenho a ampla liberalização do comércio internacio- conceitual desses tratados encontra-se no Nafta. A proposta da Área de Livre-
do mapa econômico global (35% do bolo das nal e a superação dos entraves burocráticos ao Comércio das Américas (ALCA) naufragou justamente devido às resistências do
exportações em todo o mundo, contra menos comércio em um contexto em que o poder Mercosul (isto é, do Brasil e da Argentina) a essa matriz.
de 12% ao final da Segunda Guerra Mundial imperial organiza o comércio do mundo à O comércio internacional não é um fenômeno puramente econômico. A
e 34% de participação dos europeus). sua imagem e semelhança. Face às realidades natureza, a direção e o sentido dos intercâmbios dependem das regras estabe-
Os Estados Unidos lideram o processo criadas pela TTIP e pela TPP, a tendência é lecidas na arena diplomática. Os maiores vencedores são, previsivelmente, os
de redesenho do mapa da globalização, que ele se transforme no funcionário inter- países capazes de ditar as regras. O GATT concluiu sete rodadas de negociações
articulando a Parceria Transatlântica de nacional encarregado de carimbar regras, comerciais. Estados Unidos e União Europeia davam as cartas na mesa restrita
Comércio e Investimentos (TTIP) e a padrões e normas negociados fora da orga- daqueles tempos. A primeira rodada da OMC (a Rodada do Milênio) fracassou
Parceria Transpacífica (TPP). A primeira nização multilateral. Enquanto um brasileiro completamente. A segunda, a Rodada de Doha, oscila à beira do abismo. Hoje,
esboça uma vasta área de livre-comércio desfila pela OMC, na prática os Estados os Estados Unidos adotam uma nova estratégia, de mega-acordos de comércio e
reunindo o Nafta e a União Europeia. Ela Unidos e seus blocos aliados ditarão os rumos investimentos (veja a matéria à pág. 6). Se ela funcionar, as regras serão nego-
seria o complemento econômico da aliança da organização do comércio mundial. ciadas entre Washington e seus parceiros principais – e a OMC perderá grande
estratégica materializada na Organização parte de seu peso político.
do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
A segunda projeta um vasto espaço de Gilson Schwartz é professor de Gilson Schwartz
Iconomia na USP e líder do grupo de
comércio e investimentos articulado en- pesquisa Cidade do Conhecimento
tre o Nafta e os parceiros americanos na (www.cidade.usp.br)

 AGOSTO 2013 MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO


estados unidos

“Giro estratégico” para a Ásia é resposta à ascensão chinesa


Política do governo Barack Obama, que combina o “engajamento” e a “prevenção”, tem a finalidade de estreitar os laços militares e
econômicos dos Estados Unidos com os países situados na orla da China

E m um belo dia do início do verão de 2010, aca-


dêmicos americanos e chineses se encontraram na
Universidade de Pequim para um seminário da Faculdade
de Estudos Internacionais. Um dos visitantes dirigiu-se
ao reitor chinês, apresentando-lhe uma questão delicada:
“Quem é o inimigo de vocês?”. Depois de segundos de
silêncio, Wang Jisi olhou para o alto, hesitou e respondeu:
“A maioria dos chineses diria que os Estados Unidos são
o inimigo.”
Quase ao mesmo tempo, Hugh White, antigo alto
funcionário da área de defesa e segurança na Austrália,

© Dieter Vander Velpen/stock.xchng


publicou um ensaio no qual narrou um diálogo signifi-
cativo com colegas americanos: “Eu apresento o seguinte
enigma a eles: ‘Você acha que os Estados Unidos devem
tratar a China como um igual se o poder chinês crescer
a ponto de se igualar ao americano?’ A resposta é sempre
negativa. A seguir, pergunto: ‘Você acha que, nesse caso,
a China aceitará algo menos que ser tratada como um
igual?’ A resposta é sempre negativa, também. Por fim,
pergunto: ‘Então, como você espera que Estados Unidos
e China se entendam?’ Geralmente recebo, como resposta, Hong Kong, centro financeiro da Ásia e um dos grandes polos da economia mundial, símbolo maior do
um encolher de ombros.”
novo capitalismo chinês, deverá sentir em cheio o impacto das novas alianças que envolvem as economias
O PIB per capita chinês passou de menos de US$ 500
do Pacífico
em 1984 para cerca de US$ 9 mil em 2012, transferindo
o país do grupo de nações pobres para o de renda média.
A China se transformou na maior exportadora mundial
e, de longe, no maior fornecedor de manufaturados para a desestabilização regional, a China tenha votado a favor O “giro estratégico” tem uma dimensão diplomática,
o Ocidente. A potência asiática converteu-se em potência das sanções da ONU contra o programa nuclear da Coreia baseada no estreitamento da cooperação americana com
mundial. Nos Estados Unidos, entre os especialistas em do Norte, um turbulento aliado. o Japão e a Índia, candidatos de Washington a cadeiras
relações internacionais, emergiu um aceso debate sobre “A diplomacia do sorriso terminou”, concluiu anos de membros-permanentes no Conselho de Segurança da
o futuro da ordem geopolítica global. Estaria o mundo atrás Richard Armitage, um dos assessores do círculo pró- ONU; e uma dimensão militar, que envolve programas
destinado a experimentar, no século XXI, uma rivalidade ximo do ex-presidente George W. Bush. Armitage, como de parceria com diversos países asiáticos. Explorando os
crescente entre a hiperpotência tradicional do Ocidente muitos outros, classifica a China como uma “potência temores regionais suscitados pelo fortalecimento da China,
e a nova superpotência do Oriente? insatisfeita”. Segundo a visão dessa corrente, a “ascensão o governo Obama estimula a modernização da Marinha
Os dirigentes chineses batizaram com a expressão pacífica” não era mais que uma etapa passageira, já encer- japonesa, oferece garantias renovadas de proteção ao Japão,
“ascensão pacífica” a trajetória do país rumo ao estatuto rada, em uma trajetória de contestação da ordem mundial. à Coreia do Sul e a Taiwan, oferece ajuda tecnológica e
de potência mundial. Robert Zoellick, ex-subsecretário de Os sinais da mudança, asseguram esses analistas, encon- logística a países como Indonésia, Malásia, Tailândia,
Estado dos Estados Unidos, está entre os que caracterizam tram-se em diversos pontos do firmamento geopolítico. Filipinas e até mesmo o Vietnã.
a China como uma “potência satisfeita”, sugerindo que Em primeiro lugar, no esforço de modernização militar Mas o “giro estratégico” tem, também, uma dimen-
ela tende a se amoldar à ordem geopolítica mundial. Há da China, representado pela construção de uma poderosa são econômica crucial, articulada em torno da Parceria
argumentos ponderáveis nessa avaliação. Ao contrário do Marinha e pelos avanços tecnológicos em sistemas de guia- Transpacífica (TPP), um mega-acordo de comércio e
Japão do final do século XIX e da Alemanha nazista, a gem de mísseis intercontinentais. Em segundo lugar, nas investimentos em negociação com inúmeros países da es-
China não almeja a expansão territorial. Ao contrário da tensões recentes em torno das ilhas Senkaku, sob controle fera Ásia/Pacífico. Além dos Estados Unidos, o projeto da
União Soviética da Guerra Fria, a China não proclama japonês, e de pequenos arquipélagos disputados no mar da TPP abrange Canadá, Austrália, Malásia, Vietnã, México,
uma ideologia revolucionária. E, sobretudo, a conti- China Meridional. Por fim, nos rumores difundidos por Chile e Peru. O Japão e a Coreia do Sul analisam convites
nuidade do crescimento econômico chinês depende da dirigentes chineses de que a China estaria propensa a criar para aderirem às negociações. Na hipótese de sucesso, o
estabilidade global. um Fundo Monetário Asiático, dissolvendo a unidade da mega-acordo definirá padrões e regras para trocas comer-
A China mantém intensas trocas comerciais com outros arquitetura financeira global. ciais e investimentos empresariais de largas implicações. A
países da Ásia, os Estados Unidos e a União Europeia, além O governo de Barack Obama optou, cautelosamente, China se veria, então, rodeada por parceiros econômicos
de importar matérias-primas, combustíveis e alimentos da por assimilar elementos das duas visões contrastantes que operam num quadro de normas formulado sem a
África e da América Latina. Os imensos saldos positivos sobre o lugar da China na ordem mundial. Como resul- influência de Pequim.
nas contas externas chinesas produziram vastas reservas em tado disso, desenvolve uma estratégia policromática, que Obama proclamou, na sua visita à China em 2009, que
moedas fortes – que são utilizadas, em grande parte, para tem dois pilares. O primeiro é o “engajamento”: a China “os Estados Unidos não procuram conter a ascensão chine-
a aquisição de títulos do Tesouro americano, ajudando a deve ser estimulada a incorporar-se plenamente às insti- sa”, mas, ao contrário, “acolhem a China como um forte e
financiar o déficit externo dos Estados Unidos. Os inves- tuições multiltaterais, estabelecendo uma “parceria” com próspero integrante da comunidade das nações”. É a parte
timentos internacionais são uma mola propulsora da mo- Washington. O segundo é a “prevenção”, que solicita um da verdade apropriada para discursos presidenciais.
dernização industrial chinesa. Não é casual que, temendo “giro estratégico” dos Estados Unidos rumo à Ásia.

MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 2013 AGOSTO 


américa latina

Aliança do Pacífico representa desafio para o Mercosul


Newton Carlos Liderado por México, Chile e Colômbia, o novo bloco globalista incorpora-se à articulação
Da Equipe de Colaboradores da Parceria Transpacífica. Enquanto isso, o Mercosul acentua suas inclinações regionalistas e
absorve países da Alba

“P reso ao Mercosul”, o Brasil encara o cresci-


mento da Aliança do Pacífico. Tal desabafo
Blocos concorrentes na América Latina
construíram um campo de futebol na Costa Rica, como
um presente destinado a atestar o interesse de Pequim
ESTADOS UNIDOS
foi ouvido e registrado por jornalistas em um dos OCEANO
pela América Latina. Mais recentemente, o novo dirigente
vários fóruns que comprovam o interesse crescente ATLÂNTICO chinês baixou no Caribe – isto é, no “quintal americano”.
HAITI REP.
da América Latina pela Ásia. É esse interesse que DOMINICANA
Há pouco, um fórum “Ásia e América Latina” reuniu de-
1
levou México, Chile, Colômbia e Peru a criarem MÉXICO CUBA ANTÍGUA legações de 34 países latino-americanos e asiáticos. Foram
E BARBUDA
a Aliança, um bloco econômico cuja decolagem BELIZE JAMAICA
SÃO VICENTE DOMINICA
mais de 300 delegados e cerca de 50 encontros bilaterais.
já está em processo de aceleração. “Para desgosto NICARÁGUA
E GRANADINAS S.LÚCIA 1 O objetivo, como sempre, foi de aumentar relações, como
do Brasil”, anotou um participante do encontro COSTA VENEZUELA
1 ficou inscrito na declaração final.
RICA GUIANA SURINAME
recente na Indonésia reunindo asiáticos e latino- PANAMÁ COLÔMBIA
A novidade, no entanto, é a Aliança do Pacífico. O
americanos. Equador bloco econômico está negociando as adesões de Panamá
Um estudo do Center for a New American EQUADOR e Costa Rica. Seus integrantes mantêm acordos bilaterais
Security (CNAS) teve presença marcante estabe- de comércio com os Estados Unidos e participam das
lecendo, por antecipação, o que o futuro reserva PERU B R A S I L articulações, conduzidas por Washington, da Parceria
OCEANO
aos asiáticos e aos que tratam de se entender com PACÍFICO Transpacífica (TPP), um mega-acordo comercial na es-
eles. O centro tem sede em Washington D.C. e BOLÍVIA fera da Ásia/Pacífico (veja a matéria à pág. 6). O Brasil,
é considerado de ideologia centrista, nem liberal em contraste, “preso ao Mercosul”, está à margem dessa
PARAGUAI
e nem conservadora, sem notas ideológicas, por- articulação global.
tanto. O objetivo é chamar a atenção de possíveis Países do Mercosul O próprio Mercosul encontra-se em transformação, mas
ARGENTINA
investidores americanos, mas o que se viu em Bali, Aliança do Pacífico
em direção oposta à da Aliança do Pacífico. Depois de incor-
CHILE URUGUAI
na Indonésia, foi o estudo com previsões do centro (liderada pelos EUA) porar a Venezuela, o bloco do Cone Sul negocia o ingresso da
nas mãos, principalmente, de empresários e funcio- Aliança Bolivariana OCEANO Bolívia e do Equador, os países sul-americanos comprome-
das Américas (ALBA) ATLÂNTICO
nários governamentais latino-americanos. tidos com a Aliança Bolivariana das Américas (Alba), criada
CAFTA-DR (liderada
A abertura é como se fosse um fecho de ouro. pelos EUA) por Hugo Chávez. Cartograficamente, uma nítida fronteira
Em 2025, quatro entre as dez maiores economias 1 Membros observadores
do mundo serão países asiáticos. Quais seriam da ALBA FONTE: adaptado da revista The Economist

esses países? O estudo os enumera, com um grau


de convicção que chama a atenção dos latino-ame- O tamanho de cada um
ricanos. São China, é claro, Japão, também é claro, Índia e recursos desviados das economias da Indicador Aliança do Pacífico Brasil
Indonésia, ambas já saindo de seus estágios de “possíveis” América Latina. A compensação, ou População (milhões de habitantes) 209,0 198,0
e se arrumando entre os grandes. Há informações de que mais do que isso, ficou a cargo da PIB (trilhões de dólares) 2,01 2,40
essas previsões foram absorvidas pelos departamentos de ampliação dos investimentos chine- Crescimento médio do PIB (2011-2012, em %) 4,6 1,8
Estado e de Defesa dos Estados Unidos. ses na América Latina. Investimentos externos diretos (bilhões de US$) 71,0 65,3
Diplomacia econômica e segurança andam de mãos A moldura militar, de traços Total das exportações (bilhões de US$) 545,0 243,0
dadas. O estudo leva em consideração os fatos de que a cada vez mais marcados, não envolve Exportações para Ásia/Pacífico (bilhões de US$) 73,4 73,6
Guerra do Iraque acabou e a do Afeganistão está a ponto de apenas os Estados Unidos. A Índia, Fonte: adaptado da revista The Economist
acabar. Os recursos militares liberados podem desempenhar por exemplo, treina tripulações de
funções de proteção de investimentos em uma Ásia já vista submarinos vietnamitas. O Japão
como berço de novos “Tigres”. Cerca de 2,5 mil soldados assinou um tratado de segurança com a Austrália. Vietnã estratégica separa a globalista Aliança do Pacífico do grupo
dos Estados Unidos já estão em “serviços rotativos”, de per- e Austrália trocam, regularmente, delegações militares de regionalista Mercosul/Alba (veja o mapa).
manência alternada, no norte da Austrália. Um porta-aviões alto nível. Em um mesmo compasso, o comércio entre a A cisão latino-americana não tem implicações milita-
americano da frota do Mediterrâneo foi deslocado para a Índia e os países do Sudeste Asiático aumentou em 37% res. Mas, em um de seus últimos impulsos, o presidente
Ásia. Está em plena operação aquilo que se batizou, no entre 2011 e 2012. Washington estimula a cooperação mi- colombiano Juan Manuel Santos propôs que seu país
governo Barack Obama, de strategic shift, o giro estratégico, litar intra-asiática e o adensamento das redes de comércio se incorpore à Otan, provocando alvoroço imediato.
na direção da Ásia (veja a matéria à pág. 8). que circulam fora da esfera chinesa. O estudo afirma que A Colômbia já tem sete bases militares com pessoal e
O montante de soldados americanos na Austrália deve a China continuará crescendo economicamente e com equipamentos dos Estados Unidos. São bases americanas
aumentar, e pelo menos mais um porta-aviões será deslo- índices altos, mas menores do que aqueles registrados engajadas em operações de contrainsurgência. Ao mesmo
cado para missões em águas asiáticas. Com esses dados, o na década passada. As previsões ficam entre 6% e 8%. tempo, o governo colombiano negocia a paz com a enfra-
CNAS monta um quadro de previsões que se interligam. Os As mudanças estratégicas, sobretudo o aumento da pre- quecida guerrilha das Farc. Diante das reações contrárias
investimentos dos Estados Unidos na Ásia cresceram ainda sença naval dos Estados Unidos, representam, segundo o a uma espécie de associação com a Otan, Santos deu
mais que o intercâmbio comercial. A política externa de estudo, um componente crucial nos cenários do futuro um passo atrás e falou em “colaboração” ou em “filiação
Washington “está dando, em dose cada vez maior, atenção próximo. associada”. O assunto aparentemente morreu, após a ob-
especial ao que acontece ou se prevê que vá acontecer na As economias da América Latina entrelaçaram-se no servação da aliança militar do Atlântico Norte de que a
Ásia”. O jogo é global, não regional. Para os latino-ameri- passado às dos Estados Unidos e da Europa. Hoje, porém, Colômbia “não cumpre critérios geográficos”. Mas Santos
canos que estiveram em Bali, o aumento dos investimentos a presença chinesa transformou-se num dado fundamental continua ativo.
americanos na Ásia representou uma espécie de sangria. São das equações de comércio e investimentos. Os chineses

 AGOSTO 2013 MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO


África-brasil

Empresas brasileiras buscam oportunidades na África


Crescimento econômico africano abriu caminho para a expansão chinesa no continente. Mas, sob o impulso da “estratégia africana” de
Brasília, ampliam-se os fluxos econômicos entre Brasil e África
Mapa 1

O s países da
África en-
traram no século
África: momentos da descolonização
OCEANO
ATLÂNTICO
MAR NEGRO
A expansão econômica dos países afri-
canos não foi uniforme. Nos últimos anos,
as economias da África do Norte cresceram
a segunda posição no quadro de parceiros comerciais dos
países africanos. Hoje, nesse quadro, a China figura à frente
das antigas potências coloniais europeias, sendo superada
XXI sem resolver MAR MEDITERRÂNEO abaixo da média, principalmente como de- apenas pelos Estados Unidos.
muitos de seus corrência das turbulências provocadas pela O Brasil quadruplicou seus fluxos de comércio com a
imensos proble- Primavera Árabe. Na África Subsaariana, em África na última década. Apesar disso, esse valor representa

M
AR
mas sociais – en- contraste, o crescimento tendeu a superar a apenas cerca de 5% do fluxo total do comércio exterior

VE
RM
1

EL
HO
tre os quais a po- média do continente. Os destaques foram os brasileiro. Dos 50 maiores parceiros comerciais do Brasil,
breza endêmica, 2 exportadores de petróleo (veja o mapa 2). apenas seis – Nigéria, Argélia, Egito, África do Sul, Angola
o rápido processo Equador
Desde o início do século XXI, os preços e Marrocos – são africanos. Eles representam cerca de 80%
de urbanização, a OCEANO internacionais das matérias-primas minerais, do total do comércio do Brasil com a África, e com todos, à
ÍNDICO
integração nacio- OCEANO energéticas e agrícolas, abundantes na Áfri- exceção do Egito, a balança comercial é negativa. O déficit
ATLÂNTICO
nal, a desigual- ca, experimentaram forte crescimento. A deriva das importações brasileiras de petróleo e gás. O
dade de gêneros, Trópico de Capricórnio
demanda chinesa provocou uma disputada saldo negativo com a Nigéria está entre os maiores entre
3 acirrada pelas commodities, beneficiando todos os intercâmbios bilaterais do Brasil. Quase a totali-
a desnutrição, os
conflitos internos todos os exportadores. A dimensão da pre- dade dos produtos importados da Nigéria correspondem
e a violência polí- Escala: 1:40.000.000 sença chinesa no continente pode ser melhor a combustíveis, algo que se repete nos casos da Argélia e
tica. Essa situação Países independentes antes de 1960 avaliada quando se sabe que, nos últimos dez de Angola. Os destaques das exportações brasileiras para
é o resultado de Países independentes entre 1960 e 1970 anos, a potência asiática saltou da nona para a África ficam para o açúcar, aves e carnes. O mercado
uma combinação Países independentes após 1970 africano consumidor de manufaturados é dominado pela
de fatores exter- Ocupado pelo Marrocos desde 1975 Mapa 2 China, pelos Estados Unidos e pela União Europeia.
nos e internos. A 1 Separou-se da Etiópia em 1993 O avanço das relações comerciais entre o Brasil e os
2 Separou-se do Sudão em 2011 Crescimento do PIB (2012/2013)
pesada herança 3 Libertou-se da África do Sul em 1990 MAR NEGRO países africanos é explicado por uma combinação de fa-
OCEANO
colonial deixou ATLÂNTICO tores, com ênfase na diminuição do número de conflitos
marcas profun- MAR MEDITERRÂNEO internos na África e numa ação diplomática mais agressiva
das nas sociedades do Brasil. A paz faz uma enorme diferença. Apesar da per-
africanas, que até hoje se manifestam. Governos ditatoriais sistência de cenários caóticos em países como a Somália e
M
AR
VE

e elites corruptas retardam o desenvolvimento econômico. a República Democrática do Congo, e de tensões internas
RM
EL
HO

As consequências abrangem a supressão das liberdades, a significativas na região do Golfo da Guiné (Nigéria e Costa
violação dos direitos humanos e a pilhagem dos recursos do Marfim, por exemplo) e na faixa do Sahel (Mali, Níger
humanos, naturais e intelectuais, do continente. Equador
e Chade), a situação geral é mais estável do que aquela
Se, atualmente, a África tem 54 Estados soberanos, OCEANO
ATLÂNTICO
OCEANO que se verificava na década de 1990.
ÍNDICO
antes de 1960 esse número não chegava a dez. A maioria Acima de 5,0%
A diplomacia também tem seu peso. Atualmente, o
dos países africanos tem pouco mais de 50 anos de vida Entre 3,5 e 5,0% Brasil tem 38 embaixadas na África, e Brasília é a capital
independente (veja o mapa 1). Todavia, a África do início Entre 1,0 e 3,5%
Trópico de Capricórnio
latino-americana com o maior número dessas representa-
da segunda década do século XXI exibe uma paisagem Abaixo de 1,0% ções diplomáticas de países africanos. Para além da diplo-
diferente daquela do início dos anos 1960, quando se Ausência
de dados
macia clássica, o Brasil investe especialmente na troca de
libertava do jugo colonial. Os desafios de hoje não são FONTE: FMI, 2012 Escala: 1:40.000.000
conhecimentos nas áreas de agricultura, saúde, e formação
os mesmos ou, em diversos casos, apresentam dimensões profissional. O governo brasileiro perdoou ou reestrutu-
Mapa 3
diferentes no contexto atual. Foram feitos grandes pro- rou as dívidas de 12 países africanos, numa iniciativa que
gressos em matéria de educação e saúde, e alguns países O Brasil na África causou polêmica. A “estratégia africana” do Brasil tem a
conseguiram construir com algum sucesso sistemas demo- OCEANO
MAR NEGRO
meta de obter o apoio dos países do continente à pretensão
ATLÂNTICO
cráticos de governança. A dissolução do apartheid na África de Brasília de uma cadeira de membro-permanente no
MAR MEDITERRÂNEO ÁSIA
do Sul, em 1994, a queda de vários regimes autoritários Conselho de Segurança das Nações Unidas.
na última década e, mais recentemente, as profundas Ao mesmo tempo, empresas brasileiras estão cada vez
mudanças geradas pela Primavera Árabe no norte do mais presentes na África. A ação política do governo está
M
AR
VE
RM

continente abriram novas perspectivas de democratização atrás do fenômeno: o Banco Nacional de Desenvolvimento
EL
HO

e de desenvolvimento. Econômico e Social (BNDES) lançou diversas medidas


Nos últimos dez anos, bem diferente do que vinha destinadas a facilitar o acesso a empréstimos e créditos es-
ocorrendo na década de 1990, os países africanos apresen- Equador peciais a empresas brasileiras e países africanos. A Petrobras,
OCEANO
taram, de modo geral, expressivo crescimento econômico. ÍNDICO estatal, a mineradora Vale e as grandes construtoras Queiroz
A expansão média anual do PIB girou em torno de 5% ao OCEANO
ATLÂNTICO
Galvão, Odebrecht, Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa
ano, com a exceção notável de 2009, por conta dos efeitos estão presentes ou têm projetos em mais de 20 países da
da crise econômica mundial. Contudo, o crescimento Trópico de Países com
Capricórnio
presença
África (veja o mapa 3). O “capitalismo de Estado” privile-
recente teve como ponto de partida uma base muito bai- de grandes gia as grandes corporações: a presença africana de médias e
empresas
xa. Ainda hoje, o PIB conjunto dos 54 países africanos é brasileiras pequenas empresas brasileiras é insignificante.
inferior ao do Brasil. Escala: 1:40.000.000

MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 2013 AGOSTO 10


África do sul

Nelson Mandela, Ubuntu e a reinvenção de uma nação


Demétrio Magnoli Prisioneiro durante 27 anos, presidente por apenas cinco, Mandela venceu a política
Editor de Mundo racial. A sua herança não é uma África do Sul perfeita, mas uma moldura de princípios
democráticos a ser preenchida pelas gerações futuras
“E nquanto caminhava através da porta, em direção
ao portão que conduzia à minha liberdade, eu sabia
que, se não deixasse minhas amarguras e ódios para trás,
ainda estaria na prisão.” Essas palavras, escritas por Nelson
Mandela, esclarecem a transformação de um mito em um
dos estadistas mais destacados de toda a História.
O líder revolucionário que passou 27 anos na prisão
ocupava um lugar mítico na consciência dos sul-africanos.
Ele era o outro nome da liberdade para a maioria negra
submetida ao apartheid – e personificava o espectro da
vingança, da revanche e da expulsão para grande parcela
da minoria branca que tinha o privilégio da cidadania. O
homem livre que deixou atrás do portão da prisão da ilha
© Jean-Pierre Muller/AFP

de Robben, ao largo da Cidade do Cabo, as suas “amar-


guras e ódios” operou o milagre político de evitar a guerra
racial. A sua mensagem perene é que a cor da pele não

Reprodução
precisa determinar o rumo das ideias das pessoas – nem
mesmo no país do apartheid.
Ubuntu, um conceito ético tradicional dos povos ban-
tos, ensina que somos humanos apenas e exclusivamente Em momento crucial da história contemporânea da África do Sul, Nelson Mandela cumprimenta, em 24
através da humanidade dos outros. O arcebispo Desmond de junho de 1995, o capitão do time de rugby François Pienaar, vencedor da Copa Mundial; o evento é
Tutu, uma das figuras de proa nas lutas contra o apartheid, narrado no filme Invictus (2009), dirigido por Clint Eastwood
explicou que “você não pode existir como ser humano em
isolamento”, que “uma pessoa com Ubuntu não se sente Em 1994, ele convidou o carcereiro branco que o vigiava e, especialmente, aos movimentos pelos direitos civis nos
ameaçada pela capacidade e grandeza dos outros, pois sabe na ilha de Robben para a cerimônia de inauguração de Estados Unidos. Com isso, os jovens negros urbanos da
que pertence a uma totalidade maior e que é diminuída sua presidência. Na Copa do Mundo de Rugby de 1995, África do Sul enviavam a mensagem de que não queriam
quando os demais são humilhados ou diminuídos”. Man- convenceu os negros a torcerem pela seleção quase toda ser xhosas, zulus, tswanas, sothos ou tsongas, mas sul-
dela falou muitas vezes sobre Ubuntu depois de atravessar branca de um esporte identificado com a sociedade do africanos. Mandela estava na prisão há 14 anos quando os
o portão da ilha de Robben, ensinando aos brancos que o apartheid – e os brancos responderam em 2010, celebran- estudantes de Soweto entraram em revolta. Mas ele tirou
apartheid os havia diminuído e aos negros que a revanche do a seleção negra de futebol na Copa do Mundo da África todas as conclusões daqueles acontecimentos na hora em
só poderia diminuí-los. do Sul. Aqueles gestos ousados e especiais asseguraram a que, finalmente, assumiu o governo do país.
A política da raça contaminou a África do Sul muito transição pacífica para o governo da maioria. Não faltam críticas a Mandela. Hoje, duas décadas
profundamente. Nas colônias bôeres do Transvaal e do Durante o apartheid, o tema da raça provocou cisões depois da abolição completa do apartheid, a África do
Orange, encravadas nos platôs interiores da África Austral, no movimento de resistência. Em 1959, Robert Sobukwe, Sul continua a exibir desigualdades sociais vergonhosas.
a escravidão perdurou até a Guerra dos Bôeres (1899- uma liderança da Liga da Juventude do CNA, rompeu À antiga elite branca, somou-se uma reduzida elite negra
1902). As primeiras leis de segregação racial – entre elas, para formar o Congresso Pan-Africanista (PAC). O PAC muito rica, composta por empresários ligados à cúpula
as leis do passe, que determinavam perímetros geográficos discordava da meta de um Estado unitário, democrático do CNA, mas a massa da população enfrenta a pobreza
exclusivamente brancos – foram promulgadas pelos britâ- e não racial. No lugar dela, erguia a bandeira da unidade e o subemprego. Os guetos negros continuam separados
nicos, mais de meio século antes da instalação oficial do geopolítica de toda a África e defendia a ideia de que o das grandes cidades, não agora por leis de segregação,
apartheid, em 1948. As grandes greves de mineiros brancos continente africano pertencia aos negros. Mandela, por mas pelas marcadas fronteiras de renda. A corrupção
que eclodiram em 1922 na região aurífera do Rand opu- outro lado, sempre disse que os brancos sul-africanos são contamina parcelas expressivas da administração pública.
nham-se à contratação de operários negros. Numa triste tão africanos quanto os negros – e que o Estado não tem o A transição política foi realizada, mas o país ainda espera
ironia, a chamada “Revolta Vermelha” do Rand foi dirigida direito de regular os direitos de cidadania com base na cor reformas sociais capazes de oferecer um sentido prático
pelo Partido Comunista Sul-Africano e tinha como lema da pele. Quando deixou a ilha de Robben, passou a falar para o princípio da igualdade perante a lei.
“trabalhadores brancos de todo o mundo, uni-vos!”. de uma “nação do arco-íris”, um conceito que tem uma Há algo de perverso em atribuir a Mandela as res-
Contudo, o polo principal de resistência ao apartheid importante implicação: na democracia, as divergências se ponsabilidades por esses fracassos. Ele governou durante
jamais sucumbiu à noção de uma guerra racial. O Con- organizam em torno de propostas políticas, não das linhas apenas cinco anos, até junho de 1999, retirando-se depois
gresso Nacional Africano (CNA) nasceu em 1912, mas criadas pela noção de raça. disso da cena política. Na condição de “pai da nação”, teria
alcançou a maturidade política quatro décadas depois, O longo declínio do regime do apartheid começou força para alterar as leis à vontade, a fim de permanecer no
quando adotou a Carta da Liberdade. O programa dizia: com a Revolta de Soweto, em 1976. Foi um levante dos poder até o dia da morte, como fizeram vários líderes das
“A África do Sul pertence a todos quantos nela vivem, estudantes secundaristas da vasta township (gueto) negra independências africanas. Preferiu não fazê-lo, oferecendo
negros e brancos...” e definia o “povo” sul-africano como de Johanesburgo que teve como estopim a decisão go- uma aula derradeira de política democrática. Quando se
“negros e brancos juntos iguais, compatriotas e irmãos”. vernamental de ampliar o uso do africâner (a língua dos retirou, estava dizendo que a nação não precisa de um “pai”
Mandela, que já era uma das principais lideranças da or- brancos de origem bôer) nas escolas negras. Os estudantes – e, muito menos, de um “ditador iluminado”. Ubuntu:
ganização, só teria mais uma década de liberdade. A longa não exigiram o ensino nas línguas étnicas de seus pais e viva Mandela.
estadia na prisão não o afastou do compromisso original. avôs, mas em inglês, a língua que os conectava ao mundo

11 AGOSTO 2013 MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO


Nelson Bacic Olic
Da Redação de Mundo

Na Jordânia, o encontro
da Geografia com a História
C heguei à Jordânia vindo de Israel,
através da ponte Rei Hussein, uma
A Jordânia e seus vizinhos
Damasco
De Amã, seguimos em direção sul por
cerca de 300 km de deserto, percorrendo

MAR MEDITERRÂNEO
LÍBANO
das várias existentes sobre o rio Jordão, SÍRIA uma estrada que conecta a capital a Aqaba.
curso fluvial que serve de fronteira entre os A Jordânia conta com uma fachada litorâ-
3
dois países. A Jordânia é uma monarquia nea de escassos 26 km, todos eles no mar
que se tornou independente em 1946 e o 2 Vermelho. Aqaba é o único porto marítimo

CISJORDÂNIA
2
Tel Aviv
rei que dá nome à ponte governou o país de do país. A parada seguinte foi em Petra,
Amã
1952 a 1999. Após sua morte, o país tem 1 uma incrível cidade, escolhida pela Unesco
sido regido por seu filho, o rei Abdullah ARÁBIA SAUDITA como uma das sete maravilhas do mundo
JORDÂNIA
II. A família real jordaniana pertence ao ISRAEL moderno e Patrimônio Mundial. Petra foi
1
ramo hachemita, grupo que se considera construída – esculpida talvez seja o termo
a 42ª geração de descendência direta do mais preciso – em rochas sedimentares de
profeta Maomé. Petra variadas cores pela ação da erosão e dos na-
Com cerca de 90 mil km 2, pouco bateus, povo que antecedeu os árabes e que
menor que Santa Catarina, a Jordânia faz EGITO ali se instalou mais de dois mil anos atrás.
Áqaba Fluxo de refugiados
fronteiras com Israel, Síria, Iraque e Arábia 1 Palestinos
Os nabateus habitaram a região de
ELHO

2 Sírios
VERMAR

Saudita (veja o mapa). Quase 90% do 3 Iraquianos Petra por séculos e deixaram como he-
M

Escala: 1:13.500.000

território jordaniano é desértico, fato que rança uma arquitetura imponente e um


se nota imediatamente ao entrar no país. Na Jordânia, cuja capital é Amã (durante séculos, Filadélfia), um estreito desfiladeiro engenhoso sistema de canais e cisternas de
Os recursos hídricos são escassos: cada leva à antiga fortaleza de Petra, cenário de um dos filmes da série Indiana Jones captação de água, numa área em que ela
habitante consome, em média, 123 m3 de é absolutamente escassa. Depois de passar
água por ano, quase nada comparados aos por vários domínios, a cidade ficou por
mais de 40 mil m3 no Brasil. Em Amã, a muito tempo desabitada e só foi “redesco-
capital, que concentra cerca de 40% da po- berta”, em 1812, por um viajante suíço.
pulação do país, o abastecimento de água é O acesso mais fácil para se chegar à
feito apenas uma vez por semana! cidade ancestral é um estreito desfiladeiro,
A população da Jordânia é, atualmente, o Siq, de mais ou menos dois km de ex-
de 6,5 milhões de habitantes. Embora tensão. Ao longo desse desfiladeiro, cujas

© Fotos: Nelson Bacic Olic


se considere que um “jordaniano puro” coloridas paredes rochosas são altas e muito
seria um beduíno, parte considerável da próximas umas das outras, com trechos de
população é formada por palestinos e largura inferior a cinco metros, a sensação é
iraquianos que vieram ao país na condição indescritível. Ao final do Siq, abre-se uma
de refugiados em decorrência dos conflitos espécie de clareira na qual, de imediato,
em seus países de origem. Os refugiados surge a construção conhecida como “O
mais recentes são da Síria. Estima-se que Tesouro”, aquela imponente fachada cor-
mais de 200 mil deles já tenham cruzado de-rosa que aparece em uma das cenas
a fronteira entre os dois países. finais do filme Indiana Jones e a última
Parcela significativa dos jordanianos entre famílias – e os acordos nupciais pre- ídas nas proximidades do rio Jordão. A cruzada (1989). Mas a deslumbrante Petra
vive fora da Jordânia, especialmente nos veem o pagamento de dotes por parte da capital jordaniana não está no vale do é muito mais que isso, com seus palácios,
países do Golfo Pérsico, onde trabalham família do noivo. O contrato, referendado rio, que forma uma depressão absoluta moradias e tumbas.
nas indústrias ligadas à extração do petró- religiosamente, prevê inclusive os gastos no a mais de 300 metros abaixo do nível A parada seguinte foi o monte Nebo,
leo. Esses expatriados são economicamente caso de divórcio. Por isso, cerca de 90% dos geral dos mares, mas em cota de altitu- local onde se supõe que Moisés estaria
valiosos, pois suas remessas de dinheiro a homens tem apenas uma esposa. de de cerca de 800 metros. A melhor enterrado. Dali, tem-se uma linda visão
familiares representam a segunda maior Há, no país, um desequilíbrio demo- paisagem de Amã é a cidadela, local da panorâmica que engloba o vale do Jor-
fonte de recursos financeiros da Jordânia. gráfico entre homens e mulheres, o que fundação da cidade, onde se encontra o dão, o mar Morto e as cidades de Jericó e
Os países muçulmanos formam um faz com que muitos procurem esposas em Museu Arqueológico da Jordânia, que Jerusalém. Segundo a tradição, depois de
conjunto político e cultural extremamente países vizinhos. Numa visão masculina narra a História urbana. Os primeiros vagar por décadas pelos desertos do Sinai e
diversificado. Na Jordânia, pratica-se um dos “atributos femininos”, os jordanianos vestígios de Amã datam do Período da Jordânia, Moisés teria, enfim, avistado
islamismo light. A poligamia faz parte da consideram que as libanesas são as mais Neolítico. Ao longo do tempo, a atual ali a Terra Prometida, mas morreria antes
tradição religiosa e cada homem pode ter, belas; as sírias, mandonas; as egípcias, “cidade branca” – uma referência ao de poder pisá-la. Foi então que nosso guia
no máximo, quatro mulheres. São poucos mais “gordinhas”. Há certa preferência por tipo de pedra local obrigatoriamente jordaniano formulou uma frase emblemá-
os que desfrutam do “privilégio”, já que mulheres de tez mais branca, um padrão utilizada nas construções – esteve do- tica: o território da Jordânia está ligado ao
os custos de manutenção desses “haréns” estético que leva muitas delas a utilizar minada por uma extensa lista de povos Velho Testamento, e o de Israel, ao Novo
são cada vez mais altos. Embora certas cosméticos destinados a clarear o rosto. que inclui hebreus, assírios, babilônios, Testamento.
práticas conheçam mudanças, ainda hoje Nossa primeira parada foi em Amã, persas, gregos, romanos, bizantinos,
a maioria dos casamentos são arranjados uma das mais antigas cidades constru- otomanos e britânicos.

MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO 2013 AGOSTO 12

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