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LIÇÃO 10

8 DE MARÇO DE 2020
SÓ O EVANGELHO MUDA A CULTURA HUMANA

INTRODUÇÃO

Os cristãos vivem grandes desafios todos os dias e, um deles, sem dúvidas, é a sua relação com
a cultura onde estão inseridos. A cultura sempre foi, e sempre lhes será, um grande desafio. Ao
enfrentá-lo, algumas opções lhes são apresentadas: Amoldar-se a ela, rejeitá-la completamente,
ou tentar viver de maneira a lhe trazer redenção. O Brasil é um país de rica e diversificada
cultura. A miscigenação do povo brasileiro é algo que não se repete em outros povos com
tamanha intensidade e evidência. O resultado disso é uma cultura eclética que traz consigo
traços dos mais diversos povos que construíram a população - europeus, africanos e os nativos
indígenas. Segundo o Dr. Augustus Nicodemus, toda cultura é “uma mistura de coisas boas
decorrentes da imagem de Deus no ser humano e da graça comum, e coisas pecaminosas
resultantes da depravação e corrupção do coração humano. Toda cultura, portanto, por mais
civilizada que seja, traz valores pecaminosos, crenças equivocadas, práticas iníquas que se
refletem na arte, música, literatura, cinema, religiões, costumes e tudo mais que a compõe”.
Por causa dessas questões, os cristãos que levam a Bíblia a sério costumam ter uma atitude, no
mínimo, cautelosa em relação à cultura, exatamente por perceberem nela traços da corrupção
humana. Contudo, é bom ressaltar que, nem tudo que envolve a cultura é pecaminoso e mal. O
homem, como expressão da imagem de Deus, foi dotado de criatividade para exercer o domínio
sobre a criação e ser uma bênção na edificação de uma sociedade segundo a vontade de Deus
(Gn 1.26-30; 2.1-15). Este “mandato cultural”, bem como suas prerrogativas, foi determinado a
todos os homens, independente de sua fé. Chama-se esta bênção de “graça comum”, uma vez
que ela age tanto em cristãos quanto em não cristãos. Os servos de Deus precisam ter
discernimento para julgar a cultura e, biblicamente, refletir sobre tudo o que a envolve a fim de
não praticar ou apoiar aquilo que, pode ser bom e bonito aos olhos humanos, porém, reprovado
diante do Senhor. As advertências bíblicas atestam que, a liberdade que o cristão tem no Senhor,
não deve ser usada para justificar quaisquer práticas pecaminosas (Gl 5.13) e, a despeito de tudo
ser lícito, nem tudo lhe convêm fazer (1Co 6.12). Vamos pensar maduramente a fé cristã?

I – O QUE É A CULTURA

1. Definição de cultura. Segundo o Dicionário online Michaelis, Cultura é o conjunto de


conhecimentos adquiridos, como experiências e instrução, que levam ao desenvolvimento
intelectual e ao aprimoramento espiritual; instrução, sabedoria. Somente no sentido agrícola o
termo toma a forma como o comentarista inicia o subtópico: “, a cultura tinha a ver apenas com
o cultivo da terra, visando a produção de alimentos (Gn 4.2)”, o que não se aplica à Cultura
como definida pela antropologia, que é a proposta da lição: “Conjunto de conhecimentos,
costumes, crenças, padrões de comportamento, adquiridos e transmitidos socialmente, que
caracterizam um grupo social.” Cultura significa todo aquele complexo que inclui o
conhecimento, a arte, as crenças, a lei, a moral, os costumes e todos os hábitos e aptidões
adquiridos pelo ser humano não somente em família, como também por fazer parte de uma
sociedade da qual é membro. Cultura também é definida em ciências sociais como um conjunto
de ideias, comportamentos, símbolos e práticas sociais, aprendidos de geração em geração
através da vida em sociedade. O termo cultura, que provém do latim cultus, faz referência à
ação de cultivar o espírito humano e as faculdades intelectuais do homem. A sua definição foi
evoluindo ao longo dos anos: desde a época do Iluminismo, a cultura passou a ser associada à
civilização e ao progresso. Em geral, a cultura é uma espécie de tecido social que abarca as
diversas formas e expressões de uma determinada sociedade. Como tal, os costumes, as práticas,
as maneiras de ser, os rituais, a indumentária (forma de se vestir) e as normas de
comportamento são aspectos incluídos na cultura. Também, não se aplica ao proposto na lição o
texto de Provérbios 1.13, onde Salomão fala da sabedoria. O uso que Salomão faz desse termo,
de uma maneira tipicamente hebraica, e mais prático do que filosófico, e suas implicações vão
muito além do simples conhecimento. O termo carrega noções de capacitação para o
comportamento adequado, sucesso, bom senso e perspicácia. A busca do homem pelo
conhecimento as vezes é difícil e de enfadonho trabalho mesmo quando dada por Deus. O texto
não se refere à busca de cultura ou fazer cultura como enfadonha, como se sugere no
comentário.

2. A cultura dos gentios. A Antropologia Cultural é um dos quatro grandes ramos da


Antropologia Geral e estuda a diversidade cultural humana, tanto de grupos contemporâneos,
como extintos. Ocupa-se do estudo da identificação das formas como os diferentes grupos
habitam, alimentam-se, vestem-se, como estes organizam suas relações sociais, suas
manifestações religiosas e como compreendem o significado dos seus símbolos. - Depois da
queda e expulsão do Éden, tudo o que o homem cria está manchado pelo pecado. Não foi após
Noé, mas com o primeiro casal, toda ação humana está manchada. Assim sendo, inclusive as
ciências sociais como esta analisa a dicotomia humana sob uma ótica deturpada pelo estado de
pecado. A afirmativa do comentarista “a antropologia cultural vê, como meros fenômenos
sociológicos e culturais, a prostituição, o homicídio, a corrupção e até mesmo o infanticídio”
carece de mais pesquisa, até onde cheguei, não encontrei nenhum artigo que dissesse o mesmo.
Imagine que você está em uma sala de concerto, apreciando uma linda orquestra interpretando a
majestosa obra de J. S. Bach, Concerto de Brandemburgo nº 1, em F maior. Duas trompas, três
oboés, um fagote, três violinos, uma viola, um violoncelo e um cravo. Todos esses instrumentos
soam a boa música barroca que transcende o ambiente. De repente, surgem, no palco, alguns
indivíduos que desafinam todas as cordas, e obstruem todos os instrumentos de sopro. Uma
grande catástrofe dissonante e desafinada atinge os ouvidos da plateia, que não suporta o som
desarmônico. No entanto, você está ouvindo, mesmo de maneira desconfortável, os
instrumentos com seus timbres - violino com som de violino, oboé com som de oboé. Assim é a
boa criação que Deus fez - como uma bela orquestra onde os instrumentos afinados
desempenham a boa melodia, harmonizando-se com o conjunto e revelando a mais bela obra
musical jamais vista. O pecado, no entanto, entrou no palco da criação e direcionou-a para um
fim que não se harmoniza e não se adequa com o bom propósito de Deus. Mas, em sua natureza
intrínseca, e de acordo com os desígnios de Deus para com a criação, os relacionamentos, a
criatividade, a natureza, o conhecimento, são como os instrumentos da orquestra que
desempenham sua função, mesmo eu desafinado, ou melhor, mesmo que afetado pelo pecado.
As cidades, na Bíblia, como Babel, Sodoma e Gomorra, Egito, Canaã, Babilônia e Roma -
foram cidades que apresentaram a máxima expressão de perversidade humana. Os descendentes
de Caim e as pessoas de Babel, por exemplo, desenvolveram o mandato cultural: domesticação
de animais, música, engenharia, tecnologia e arte. Mas, no meio desse desenvolvimento, os
efeitos parasitários do pecado como a violência, o orgulho e a autonomia de Deus, acarretou
juízo Todo o desenvolvimento cultural, para não entrar em colapso e caos, é sustentado pela
graça comum de Deus - essa graça é a “dádiva da preservação da raça durante um tempo, mas
não é a graça que age para redimir um povo e lhe restaurar a amizade com Deus.

3. A cultura do povo de Deus. A cultura do povo do Antigo Testamento, assim como o gentio,
estava manchada pelo pecado, corrompida porque era produzida por um coração que não estava
inteiramente reto diante de Deus. O mesmo é verdadeiro na Nova Aliança, não esqueçamos
disso. No entanto, o nascido de Deus procura colocar em prática 1 Coríntios 10.31, procurando
em sua liberdade crista, bem como o comportamento mais comum, e ser conduzido de maneira
a honrar a Deus (Ez 36.23). Por muito tempo foi ensinado em nosso meio uma espécie de
dicotomia de mundo, onde dividia-se o mesmo em “sagrado” e “secular” ou “mundano”, como
a política, a arte, o esporte, o entretenimento, o conhecimento secular etc. Essa dicotomia é uma
“tendência gnóstica profundamente arraigada de depreciar um domínio da criação (sociedade
e cultura) com relação a outro”. Para o cristão, só há o sagrado, tudo pertence ao Senhor:
“Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente.
Amém!” (Rm 11.36). Deus e a fonte, o sustentador e o justo fim de tudo o que existe. Assim, é
bom ressaltar que, nem tudo que envolve a cultura é pecaminoso e mal, sendo possível ao
cristão apreciar o que é produzido culturalmente, desde que estas, logicamente, não firam o
princípio bíblico. De maneira geral, a cultura se define como “o conjunto de valores, crenças e
práticas de uma sociedade em particular, que inclui artes, religião, ética, costumes, maneira de
ser, divertir-se, organizar-se, etc”. Toda esta mescla de ingredientes constitui a beleza da
cultura, mas também a torna potencialmente perigosa, especialmente no tocante ao
relacionamento do cristão com a mesma. Por quê? Porque não existe cultura neutra, pura ou
inocente. Toda expressão cultural traz consigo o reflexo da situação moral e espiritual de todos
que a compõem. Como escreve Michael Horton, em “O Cristão e a Cultura”, publicado pela
Cultura Cristã: “Para iniciar, quero definir alguns termos, Primeiro, estarei usando o termo
“cultura” no seu senso mais amplo, referindo-me tanto à cultura popular (esportes, política,
ensino público, música popular e diversões, etc. e a alta cultura ( horticultura, academicismo,
música clássica, ópera, literatura, ciências, etc.). Uma definição útil e abrangente de “cultura”
para nossa discussão pode ser “a atividade humana que intenciona o uso, prazer e
enriquecimento da sociedade”. Segundo, por “igreja” estou dizendo a igreja institucional, -
“onde a Palavra de Deus é pregada e os sacramentos são administrados corretamente”, como
diziam os reformadores. Quando, por exemplo, se diz que a igreja não deve confundir sua
missão com as esferas da política, arte, ciência, etc., não se está sugerindo que os cristãos
como indivíduos devessem abandonar esses campos (muito pelo contrário), mas que a igreja
como instituição deve observar a sua missão divinamente ordenada. Essa igreja institucional
deve ser entendida como expressão visível do corpo universal de Cristo através de todos os
séculos e em todo lugar. A igreja institucional recebeu a comissão única de pregar a Palavra e
fazer discípulos, Meu emprego da palavra “igreja”, portanto, não é apenas uma referência ao
corpo coletivo de cristãos individuais, mas ao organismo vivo fundado por Cristo, ao qual foi
confiado o seu próprio ministério pessoal.”

II - UMA CULTURA DOMINADA PELA INIQUIDADE

1. A cultura original. A aquisição empírica da sabedoria, que é o homem buscando a justiça


pelos seus próprios meios, falha. O homem só consegue ser reto mediante a ação de Deus. Todo
intento do coração reflete as maquinações de todos os seres humanos desde Adão e Eva. O
Salmo 24 enaltece a soberania divina, seu senhorio sobre as coisas criadas. A afirmação de que
Deus é absolutamente soberano na criação, na providência e na salvação é básica à crença
bíblica e ao louvor bíblico. A visão de Deus reinando de seu trono é repetida muitas vezes (1Rs
22.19; Is 6.1; Ez 1.26; Dn 7.9; Ap 4.2; conforme Sl 11.4; 45.6; 47.8,9; Hb 12.2; Ap 3.21). O
salmo inteiro expressa alegria, esperança e confiança no Todo-Poderoso. “todos deveriam saber
que, neste mundo, não passamos de servos de Deus” - à luz desta afirmativa do comentarista
resta a pergunta: “E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há
quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados?” (Rm 10.14,17).

2. A cultura do homicídio. Lameque matou uma pessoa em legítima defesa. Ele disse às suas
esposas que não precisavam ter medo de serem alvos de algum mal resultante da morte que ele
havia provocado porque, se alguém tentasse retaliar, Lameque retaliaria e mataria o agressor.
Ele achava que, se Deus havia prometido vingar-se sete vezes de alguém que matasse Caim,
Deus se vingaria setenta vezes sete de quem atacasse Lameque. A descendência de Satanás, os
decaídos rejeitadores de Deus, enganadores e destrutivos, tinham dominado o mundo,
corrompendo-o e enchendo-o de violência (Gn 6.11).

3. A cultura do erotismo. Em Gênesis 4.19 Lameque toma duas esposas. Não é dada a razão por
que Lameque tomou duas esposas, tornando-se o primeiro exemplo de bigamia. Por causa da
sua violação da lei do casamento, Lameque conduziu sua descendência em rebelião aberta
contra Deus. Lembremos que esta era a descendência de Caim, homens decaídos e corruptos.

4. A cultura do consumo irrefreado. Apostasia se refere à pessoa que renuncia ou renega uma
crença ou religião da qual fazia parte, a descendência ímpia de Caim não negaram uma fé, eles
estavam já totalmente apartados de Deus. Em Mateus 24.37 “assim como foi nos dias de Noé”, a
ênfase de Jesus não é tanto na extrema impiedade dos dias de Noé (Gn 6.5), mas na
preocupação das pessoas com os assuntos corriqueiros do dia a dia ("comiam e bebiam,
casavam e davam-se em casamento"; v.38), quando o castigo sobreveio repentinamente. A
passagem não fala de consumismo mas de uma atitude relapsa para com as advertência do
pregador Noé. Eles haviam recebido advertências, na forma da pregação de Noé (2Pe 2.5) e
mediante a arca em si, que era um testemunho do castigo que estava próximo. Mas eles não se
preocupavam com tais assuntos e, portanto, foram destruídos inesperadamente no meio de suas
próprias atividades diárias. De fato, a cultura consumista hoje está em voga. As pessoas sempre
gostaram de adquirir bens e sempre houve uma tendência de se viver para o mundo material em
vez de se viver para Deus. Se temos “bens” suficientes, nos sentimos seguros e até
autossuficientes. Todavia nem mesmo o rico insensato na parábola de Jesus em Lucas 12 teve a
infinidade de opções com a qual nos deparamos em nossa sociedade sobre onde podemos gastar
o nosso dinheiro.

III - O EVANGELHO TRANSFORMA A CULTURA

1. Jesus nasceu num contexto cultural. Transcrevo a seguir, parte do artigo “Encontros do
Evangelho com a cultura nos ministérios de Jesus, da igreja primitiva e de Paulo | Por Marcos
Orison Nunes de Almeida”, disponível em Práxis Missional: “Jesus não somente esvazia-se da
condição divina, mas assume a forma cultural de um judeu da época. Alguns poderiam até
pensar que dada a eleição de Israel por Deus e aliança histórica com esse povo, essa seria a
cultura do próprio Deus. Esse equívoco, inocente e exclusivista, significa o mesmo que
desprezar a posição de Deus como criador e senhor de todos os povos e culturas. Sabemos que
a esperança e promessa messiânica eram provenientes da aliança com o povo de Israel e sua
revelação escriturística, mas a divindade não está restrita a qualquer cultura, e ao assumir a
cultura judaica ela o faz com a intenção de continuar o seu processo comunicativo de
proclamação do Evangelho. (...) Partindo, então, do pressuposto de que Jesus assume a cultura
judaica para se comunicar primeiro com os judeus e imediatamente depois com aqueles com
quem convivia naquele contexto, analisaremos algumas passagens interessantes, que relatam
encontros de Jesus com pessoas, em que ocorre a interação entre o Evangelho e aspectos
daquela cultura. Nos relatos dos evangelhos podemos perceber que Jesus é plenamente judeu
no que concerne às situações mais comuns e gerais da cultura. Nascido em uma família da
tribo de Judá, na cidade de Belém, desenvolveu a sua infância e adolescência em Nazaré da
Galileia como filho de um carpinteiro. Foi circuncidado, consagrado como primogênito no
templo de Jerusalém e novamente levado ao templo aos doze anos, na transição para a
adolescência. Induzimos que ele falava, se vestia, se comportava e agia conforme qualquer
judeu galileu. Uma forma bastante significativa de percebermos sua integração na cultura é no
comparecimento às festas tradicionais do povo. Vale ressaltar que as festas, ao mesmo tempo
em que tinham origem e componente religiosos, extrapolavam o ambiente da religião tornando-
se uma expressão da cultura popular ao incluir a peregrinação para Jerusalém, a ocupação
dos espaços públicos, o uso de músicas, danças, comidas, etc. Os evangelhos comentam a
participação de Jesus, ao longo dos seus anos de ministério, nessas festas (Jo 2.23; 4.45; 5.1;
10.22; 11.55; 13.1). Provavelmente, ele não participava apenas das festas de fundo religioso,
mas também das festividades menores, típicas de qualquer cultura, além de refeições especiais,
como convidado. Essa característica da vida de Jesus era tão marcante que ele diz ter sido
estereotipado como “comilão e beberrão” (Lc 7.34). O bom exemplo dessa integração plena na
cultura talvez seja o relato do início de seu ministério ocorrido no casamento de Caná,
registrado no capítulo 2 do livro de João. Essa rica passagem indica que a família de Jesus foi
convidada para o casamento e que eles não apenas foram, mas, principalmente, impediram que
a família do noivo fosse envergonhada diante dos convidados pela falta de vinho na festa. Toda
a significância desse milagre, quase sem importância, parece voltar-se para uma questão
cultural. Naquela cultura, havia grande expectativa sobre o anfitrião para que servisse da
melhor forma possível, e com abundância, aos seus hóspedes. Explorando um pouco mais esse
hábito de Jesus de participar de refeições, temos o relato do encontro que ele teve com o chefe
dos cobradores de impostos chamado Zaqueu (Lc 19.1-10). O protocolo da cultura judaica
pressupunha que um mestre, como Jesus, sendo uma pessoa temente a Deus e modelo para seus
discípulos, não se sentasse à mesa com um cobrador de impostos. Sentar-se à mesa com
alguém, naquela cultura, significava compartilhar a comida e a casa, um sinal de
aproximação, aceitação e comunhão entre o anfitrião e o convidado. O cobrador de impostos,
ou publicano, era considerado um pecador e traidor por representar a opressão romana sobre
o povo judeu e por ser corrupto. Já um mestre judeu era uma pessoa destacada socialmente por
seu conhecimento e capacidade de atrair e ensinar pessoas. Esperava-se dos mestres um
comportamento exemplar e conforme a moral da cultura judaica. O comportamento de Jesus,
no entanto, é contrário ao estipulado pela convenção cultural. Antes de tentarmos concluir
qual o critério adotado por Jesus para que em determinadas situações ele se adaptasse
plenamente à cultura e em outras ele a confrontasse, vejamos outros encontros interessantes
ocorridos em sua caminhada ministerial. João 4.1-30 narra o encontro de Jesus com uma
mulher samaritana com muitas nuances e temas transversais. Particularmente, gostaria de
atentar para pelo menos dois padrões culturais confrontados por Jesus nesse episódio. O
primeiro padrão consistia no costume de não ser considerado de bom grado homens
conversarem com mulheres desconhecidas em ambientes públicos (Jo 4.27). Uma abordagem
furtiva poderia ser interpretada como assédio ou coisa pior. O segundo padrão cultural, para
os judeus, era o de não se relacionar com os samaritanos, considerados como impuros. A
condição cultural era tão séria que em uma viagem, como a que Jesus estava fazendo,
conforme narrado no texto, entre a região da Judéia e da Galileia, embora o caminho mais
curto fosse cruzando o território de Samaria, os judeus preferiam contorná-lo (Jo 4.9). Jesus,
no entanto, quebra esses dois protocolos culturais tanto passando por Samaria quanto
conversando com uma mulher daquela região junto ao poço público ao meio-dia. Ainda outra
situação de confronto cultural se deu no encontro de Jesus com as crianças. Naquele contexto,
as crianças eram desprezadas e alijadas da maioria das situações e ambientes da sociedade,
principalmente dos espaços públicos ou dos que envolviam autoridades, pessoas de destaque e
atividades de adultos. Na passagem de Lucas 18.15-17, vemos pessoas, talvez mães, tentando
levar suas crianças para serem tocadas ou abençoadas por Jesus. Não sabemos se a intenção
era a expectativa de cura de alguma enfermidade ou a simples bendição vinda do mestre, mas o
fato é que como a situação feria o padrão cultural, os discípulos tentavam rechaçar as
crianças. Jesus, então, não apenas repreende essa atitude dos discípulos como acolhe as
crianças e as usa como referência metafórica no seu ensino. Procurando encontrar algum
princípio conclusivo que governa a atitude de Jesus ora integrando-se à cultura, ora
contrapondo-se a ela, podemos afirmar que toda vez que uma prática cultural se interpõe ao
acesso de Jesus às pessoas, ele se permite romper com o padrão visando o bem maior que é a
comunicação do seu Evangelho. Nos casos em que as práticas culturais não passam de
atividades cotidianas, que não ferem qualquer valor do Evangelho, Jesus se adapta plenamente
a elas. O que percebemos é que, para Jesus, tudo aquilo que culturalmente estabelece uma
barreira para o seu relacionamento com as pessoas passa a ser reorientado, para não dizer
confrontado, mesmo que como consequência ele esteja passivo de receber algum tipo de
censura.”

2. O Evangelho transforma a cultura. Lemos em Romanos 12.2 a evocação de Paulo: “E não


vos conformeis a este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente”.
"Conformeis" diz respeito a assumir uma expressão exterior que não reflete o que realmente há
no interior, um tipo de embuste ou representação. A forma da palavra sugere que os leitores de
Paulo já estavam permitindo que isso acontecesse e deveriam parar. Nesta passagem ‘este
século’ é melhor traduzido por "geração", referindo-se ao sistema de crenças, valores, ou ao
espírito da época - cultura. Esse resumo do pensamento contemporâneo e de seus valores forma
a atmosfera moral do nosso mundo, e é sempre dominado por Satanás (2Co 4.4). A ordem é
‘transformai-vos’. A palavra grega da qual deriva a palavra "metamorfose", indica uma
mudança na aparência externa. Mateus usa a mesma palavra para descrever a transfiguração (Mt
17.2). Assim como Cristo exibiu, de maneira breve e limitada, a sua natureza interior divina e a
sua glória na transfiguração, os cristãos devem manifestar, exteriormente, a sua natureza interior
redimida, não uma vez, mas diariamente (2Co 3.18; Ef 5.18). A renovação da mente exigida
nessa metamorfose ocorre somente à medida que o Espírito Santo transforma os nossos
pensamentos por meio do estudo perseverante da Escritura e da meditação nela (Sl 119.11; cf.
Cl 1.28; 3.10,16; Fp 4.8). Influenciar uma cultura de modo a transformá-la exige santidade em
tudo, mesmo que isso nos traga prejuízo e perseguição ferrenha! O cristão como agente
transformador da cultura - A cultura deve ser levada cativa ao senhorio de Cristo. Sem
desconsiderar a queda e o pecado, mas enfatizando que, no princípio, a criação era boa, os que
estão nesse grupo enfatizam que um dos objetivos da redenção é transformar a cultura. Sendo
assim, por mais iníquas que sejam certas instituições, elas não estão fora do alcance da
soberania de Deus. Ou seja, mesmo sabendo da queda, o cristão não abandona a cultura (o
cristão contra a cultura), mas busca redimi-la, levá-la aos pés de Cristo. Agostinho (354-430),
João Calvino (1509-1564), John Wesley (1703-1791) e Abraham Kuyper (1837-1920) são
alguns dos que entenderam que os cristãos são agentes de transformação da cultura, posição que
é exposta nesta obra de Niebuhr. Em Apocalipse, vemos que Deus redime tanto a pessoa, como
a diversidade cultural. Nesta posição, não há divisão entre o sagrado e o profano – essa é uma
dicotomia católica (a divisão sagrado/profano afirma que na igreja fazemos atividades sagradas
e, no mundo, atividades profanas; ou seja, rezar, ser padre é algo sagrado, mas construir um
prédio e ser um engenheiro são coisas profanas). A divisão bíblica é entre o que é santo e está
em pecado; e que está em pecado deve ser santificado.

3. Os crentes de Corinto, um exemplo da influência do Evangelho. Até mesmo pelos padrões


pagãos de sua própria cultura, a cidade de Corinto tornou-se tão corrupta moralmente que o seu
próprio nome virou sinônimo de depravação; "corintianizar" representava imoralidade flagrante
e libertinagem acompanhada de embriaguez. Em 1 Coríntios 6.9,10, Paulo lista alguns dos
pecados específicos pelos quais a cidade era conhecida e que, anteriormente, tinham
caracterizado muitos cristãos dessa igreja. Tragicamente, alguns dos piores pecados ainda eram
encontrados entre alguns membros da igreja. Um desses pecados, o incesto, era condenado até
mesmo pela maioria dos gentios pagãos (1Co 5.1). Incapaz de romper totalmente com a cultura
da qual vinha, a Igreja de Corinto não cumpriu seu papel de agente transformador. Com seu
espírito faccioso e divisionista, a despeito de sua pretensa espiritualidade, ficou na história como
um alerta às igrejas cristãs de todo o mundo, registrado na carta que Paulo lhes escreveu. Antes,
o apóstolo mostrou que a causa de existirem divisões na igreja de Corinto era o mundanismo -
eles continuavam a prezar a sabedoria humana. Agora, ele aponta a carnalidade como a razão de
criarem partidos. O problema mais sério da igreja de Corinto era o mundanismo, uma relutância
em se separar da cultura que os rodeava. A maioria dos cristãos não conseguia deixar, de
maneira consistente, sua conduta antiga, egoísta, imoral e pagã. A carta que Paulo escreveu
visava corrigir esses desvios. Foi necessário que Paulo escrevesse a eles para corrigir isso, bem
como ordenar aos cristãos fiéis que não somente rompessem a comunhão com os membros
desobedientes e não arrependidos, como também os expulsassem da igreja (5.9-13).
Sinceramente, não creio que esta igreja sirva como exemplo da influência do Evangelho.

CONCLUSÃO

O evangelho é uma mensagem sobre reconciliação e identificação. Deus se identificou com os


seres humanos, se tornando ser humano em Jesus Cristo, e em Jesus Cristo reconciliou-nos
consigo mesmo. Obviamente, portanto, o evangelho só pode ser comunicado de maneiras que
comuniquem reconciliação e identificação. Quando lemos sobre os primórdios da história do
cristianismo, vemos que a grande força dos convertidos daqueles dias estava em viver de uma
forma diferente – tratando o “inferior” com respeito, amando o próximo, ajudando o
necessitado, vivendo em unidade apesar das diferenças – e que este “novo” estilo, bem
diferente dos valores comumente aceitos pela população do Império Romano, era um grande
aliado na pregação do evangelho da salvação em Jesus Cristo. A chamada Igreja Primitiva era
pacífica, mas de modo algum passiva diante dos desafios da cultura romana, o que também
aconteceu ao longo da história, de forma mais intensa ou mais frouxa, dependendo da época,
mas sempre tendo na comunidade genuinamente cristã, uma contracultura transformadora (por
genuína, digo aqueles que realmente seguiam o ensino de Cristo, e não os que carregavam
apenas o título). Hoje, cabe a nós formular (e responder) algumas perguntas para nossa geração
de cristãos: Quais são os aspectos da nossa cultura que precisam ser confrontados? Quais são os
aspectos da nossa vida que já cederam a esta cultura anticristã e que precisamos mudar
urgentemente? Viver a contracultura do evangelho de Jesus mergulhados numa cultura que se
afasta cada vez mais do padrão cristão é um grande desafio, mas nunca foi diferente. O autor de
Hebreus fala de “homens dos quais o mundo não era digno” (Hb 11.38), porque optaram por
viver o evangelho até as últimas consequências, com a certeza de que algo muito superior
tinham ao seu alcance. “Irmãos, sede meus imitadores, e atentai para aqueles que andam
conforme o exemplo que tendes em nós; porque muitos há, dos quais repetidas vezes vos disse,
e agora vos digo até chorando, que são inimigos da cruz de Cristo; cujo fim é a perdição; cujo
deus é o ventre; e cuja glória assenta no que é vergonhoso; os quais só cuidam das coisas
terrenas. Mas a nossa pátria está nos céus, donde também aguardamos um Salvador, o Senhor
Jesus Cristo, que transformará o corpo da nossa humilhação, para ser conforme ao corpo da
sua glória, segundo o seu eficaz poder de até sujeitar a si todas as coisas.” (Fp 3.17-21).

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