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16/10/2020 Por que o evangélico radical aceita a brutalidade militar

Por que os evangélicos


fundamentalistas usam Jesus
para justificar a brutalidade
militar
Para o evangélico radical, Jesus não é da paz. É um líder militar apocalíptico, e
ele é parte de seu Exército – junto com o Exército regular.
Fábio Marton
16 de Outubro de 2020, 2h02

Ilustração: The Intercept Brasil

Vez por outra, meu velho chamava o moleque aqui


para ir ao trabalho dele. Era representante de autopeças, negócio
chato, mas que permitia andar de carro pela Grande São Paulo

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inteira. Em um dia como qualquer outro, na oficina de um cliente


seu, fomos apresentados a uma figura excêntrica e exuberante. Era
um homem baixinho, robusto, careca – na época, idos de 1988, me
fazia pensar no Mestre dos Magos, da Caverna do Dragão. Mestre e
mago, de certa forma, ele era.

Usando dos equipamentos da oficina, ele recarregava munição,


preenchia cartuchos com pólvora, fixando as balas em
cima. Erguendo uma de suas criações, me disse: “Isto é uma bala
dum-dum. Ela é oca. Quando acerta, se divide em pedacinhos”,
fazendo um gesto de guarda-chuva com mão. “Ninguém sobrevive. Já
uma bala de fuzil bate e faz uma curva”, mostrou, inclinando o dedo
para cima. “Se acertar na perna, tem que amputar”.

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O homem fabricava munição, dessa forma precária, para seu negócio:


um estande de tiro, que ficava atrás de sua casa. Mas o estande não
era seu único negócio, nem o principal. Ele era um pastor
pentecostal. Dizia ter sido capelão do Exército, vindo da Assembleia
de Deus, mas agora estava lançando sua carreira solo, criando sua
própria denominação, que ficava literalmente na garagem de casa.

Ele convidou meu pai a dar uns tiros e dar uma passada num culto.
Fez os dois.

Sua igreja se chamava Exército Celestial. Usava uma batina, diferente


de qualquer pastor que vi antes ou depois, mas adiantando a
tendência da Igreja Universal em copiar símbolos católicos.
Certamente ajudou a cravar a figura dele em minha memória como o

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Mestre dos Magos. E seria nessa igreja que me tornaria menino-


pastor.

Costumava achar essa história apenas engraçada. O pastor Mestre dos


Magos era um personagem de comédia policial, um maluco “durão”
com fantasias violentas que não chegava a realizá-las – ou não na tela
–, como o Tuckleberry de Loucademia de Polícia ou, hoje, Rosa e
Pimento, de Brooklyn 99. Cheguei a ver ele atirando, quando um
culto foi interrompido por assaltantes (vi, não; ouvi, porque me
esconderam atrás dos bancos). Não acertou uma, os assaltantes
correram, ninguém saiu ferido.

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Pessoas distantes do pensamento fundamentalista costumam


estranhar essa forma tão aparentemente violenta de cristianismo.
Como pode o mesmo Jesus, que inaugurou a era do Deus do amor e
do perdão, superando o Deus implacável do Velho Testamento, servir
para justificar militarismo, armamentismo, brutalidade militar e
policial, milícia?

Mas o “general Jesus” não é nem de longe uma excrescência ou


invenção recente. É uma interpretação da Bíblia com raízes históricas
profundas, que não está limitada a fundamentalistas evangélicos. Seu
nome é milenarismo.

Comecemos pelo começo. Ou, melhor, o fim. O último livro da Bíblia.


O Apocalipse. Uma igreja é milenarista quando acredita que a
profecia do reino de mil anos do messias no Apocalipse é literal. Isto
é, que vai haver, fisicamente, a batalha do Armagedom, na qual Jesus
e seus exércitos vencerão as forças militares do Anticristo. Não em
uma batalha etérea e incorpórea, mas física, entre pessoas, com
tanques, drones, caças. Após o Armagedom, Jesus reinará por mil

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anos como líder planetário. Após esse período, o Milênio, chega o


Juízo Final. Essa não é a visão do catolicismo nem das denominações
protestantes históricas europeias, que ensinam que o milênio é
alegórico – são amilenaristas.

“A dimensão de um apocalipse está em movimentos messiânicos e


milenaristas [como os fundamentalistas evangélicos]”, afirma
Jacqueline Moraes Teixeira, doutora em antropologia social e
professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, a
USP, ela própria ex-evangélica. “O Messias que aparece nessas
histórias não é o Messias conciliador dos Evangelhos, mas é o Messias
que volta para constituir seu Exército para vencer a batalha que
marca o fim dos tempos e a instauração de um novo mundo”, explica.

Veja então que o milenarista tem dois “Jesuses”: o do passado, o


“hippie” da Judeia que todo mundo reconhece, e o do futuro, que está
mais para Rambo. A belicosidade é resultado do foco que dão ao Jesus
do futuro.

Para quem acredita que Jesus voltará para matar pessoas, passagens
bíblicas brutais, que outros cristãos consideram ultrapassadas,
ganham nova relevância e se tornam parte central da mensagem. Um
hino bastante tradicional diz o seguinte:

Vem com Josué lutar em Jericó


Jericó, Jericó
Vem com Josué lutar em Jericó
E as muralhas ruirão

Suba os montes devagar


Que o senhor vai guerrear
Cerquem os muros para mim
Pois, Jericó chegou ao fim

O tema no caso é a ( não comprovada historicamente ) conquista de


Canaã pelos hebreus. No Velho Testamento, Josué é o sucessor de

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Moisés como líder do povo escolhido. Mas diferentemente de Moisés,


é um líder militar. Um general. O Livro de Josué narra a conquista de
Canaã, território atual de Israel e Cisjordânia, mais partes da
Jordânia, Síria e Líbano.

O Livro de Josué é basicamente a narrativa de um genocídio. Um por


um, os povos cananeus são escravizados ou exterminados até a última
criança. Às vezes, o próprio Deus dá uma mão, fazendo cair os muros
da citada Jericó, fazendo chover pedras do Céu, fazendo o Sol e a Lua
pararem no céu . Mas a maior parte do trabalho é mesmo pelas
espadas e tochas dos hebreus.

“Velho Testamento”, dirão cristãos moderados. A era de um Deus


furioso, antes de mandar a si próprio para ser sacrificado para
perdoar nossos pecados. Os fundamentalistas acreditam na mesma
coisa, que a vinda de Jesus tornou obsoleto o Velho Testamento. A
diferença é que, para eles, o futuro será como o passado.

O antropólogo (e ex-pastor, hoje ateu) Vinícius Esperança, professor


da Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, lembra que o
militarismo não está só na letra, mas no estilo. “É importante nessas
igrejas a ideia de marchar com Cristo.”

É uma das muitas heranças de um movimento nascido nos Estados


Unidos . Sua tradição musical é importada. Seu ritmo é o de marcha
militar, um estilo pensado para unir a tropa. Marcha, não marchinha:
assim como os fundamentalistas rejeitam Carnaval como um festim
diabólico, e música brasileira tradicional por ser africanizada, ligada
às religiões afro-brasileiras, vistas como coisa do Diabo.

O evangelismo fundamentalista é um movimento que nasce


militarizado por conta do contexto em que nasceu: os EUA pós-Guerra
Civil (1861-1865) e da expansão para o Oeste (1832-1912). Como afirma
Jacqueline Teixeira: “Essa retórica teológica [fundamentalista] está
relacionada à Guerra de Secessão. O imaginário que essa guerra vai
produzir é recuperado pelo movimento missionário pentecostal”.
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Há uma imensidão de
fatores em como uma
guerra civil massiva mexe
com o imaginário de uma ‘Isso estabelece o
nação. Entre tantas coisas, imaginário de um
a guerra enaltece a figura
do militar, criando seus
cristianismo que se
heróis e uma multidão de pensa por violência
veteranos. E gera memórias e disputa territorial
violentas. É um caldo
e política’.
cultural onde o
pensamento apocalíptico
milenarista floresce.

E a outra parte desse caldo é o Velho Oeste. Uma situação na qual


colonos civis cristãos enfrentavam, com violência, os indígenas
pagãos e contavam com apoio dos militares. Os cristãos americanos
tomando território indígena – numa missão sagrada de cumprir o
Destino Manifesto do país – facilmente se reconheciam na figura de
Josué conquistando Canaã, eliminando inimigos por ordem divina.
“Isso estabelece o imaginário de um cristianismo que se pensa por
violência e disputa territorial e política”, afirma a antropóloga.

E ela nota uma ponte importante: o catolicismo brasileiro tem uma


história parecida. É também um cristianismo colonizador. Antes
mesmo da colonização, os portugueses haviam se firmado tomando
territórios islâmicos, na Reconquista Ibérica (711-1492). As Forças
Armadas brasileiras se fundam nesse catolicismo colonial,
reimaginando os símbolos de um Império oficialmente católico numa
República supostamente secular, criada num golpe militar em 1889.
“Dom Pedro I, em quadros republicanos, aparece não paramentado
como um rei, mas como um militar”, lembra a Jacqueline Teixeira.

Assim já há um campo preparado para a aceitação de um


protestantismo militarizado num país com um pensamento militar

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católico. E pouca coisa pode ser mais impactante em explicar essa


aliança entre crentes fundamentalistas e militares – em sua maioria
católicos, principalmente no comando – do que as histórias coletadas
pelo antropólogo Vinícius Esperança em seu trabalho no Rio de
Janeiro, que ele considera o tubo de ensaio do fundamentalismo
evangélico que passou ao resto do país.

Esperança estudou as comunidades evangélicas nas favelas e em


outras partes da cidade. “O Rio foi um experimento para o Brasil”,
afirma. “Por dez anos, foi capital internacional em megaeventos
[como megacultos]. O aumento das operações de GLO [Garantia da Lei
e da Ordem], infelizmente nos governos de Lula e Dilma, as UPPs
[Unidade de Polícia Pacificadora], a Ocupação da Favela da Maré, isso
tudo aconteceu com um apoio muito próximo das redes evangélicas,
especialmente pentecostais locais.”

Segundo o pesquisador, essas operações simplesmente excluíram


todas as ONGs e todas as lideranças de igrejas afro-brasileiras:
“Diziam: isso não pode, tem que ser cristão. Precisava de uma
identificação ideológica, e eles detestavam as ONGs, que eram todas
esquerdistas. Porque pastores e generais têm um projeto de cidadania
em comum”.

No meio policial e militar, as metáforas bélicas dos fundamentalistas


assumem uma forma bem literal. “Não passa pela cabeça do policial
crente essa questão de laicidade; isso é coisa de intelectual”, diz
Esperança. “Eles entendem ‘a gente está aqui porque Deus abriu essa
porta para a gente’. Teve uma reunião entre pastores e militares que
terminou com brados de ‘O Complexo [da Maré] para Jesus!’”. Um
exemplo transparente do domínio territorial do cristianismo
colonialista aludido por Jacqueline Teixeira.

E não, não são policiais que chegam perguntando se você já ouviu


falar de Nosso Senhor Jesus Cristo, como testemunhas de Jeová no
domingo de manhã. “Tem um grupo aqui no Rio chamado Tropa de
Louvor”, lembra. “São policiais do Bope que fazem shows em igrejas,
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em espaços públicos. Eles


vão de preto, todos de
preto, e cantam músicas de
‘Deus colocou essa batalha. Eles se veem como
missão de limpeza agentes divinos mesmo.
da sociedade. Então, quando chega na
favela atirando, matando,
Quando ele mata o isso é plenamente
bandido, está justificado. É uma guerra
matando satanás’. santa mesmo. Deus colocou
essa missão de limpeza da
sociedade para ele. Quando
ele mata o bandido, está
matando satanás.”

“O cara mata e dorme com a consciência tranquila, vai pra igreja, não
tem nenhuma análise”, afirma o antropólogo. E, para não dizer que
não falamos em flores, nota: “Tem igreja no Rio, na Barra da Tijuca,
um bairro novo, rico, que é igreja dos milicianos, notória por ter
milicianos. Inclusive frequentada por sobrenomes Bolsonaro”.

Não é preciso muito esforço para ver como a simpatia pelo


militarismo se estende à ditadura militar e justifica suas atrocidades.
“O ideário militar defende que é preciso passar por um processo de
crise para se obter a vitória”, afirma a antropóloga Jacqueline
Teixeira. Guerra leva à paz. Guerra leva à liberdade. Guerra é um mal
necessário para combater um mal maior. Foi assim na ditadura
militar, o período “de crise” para “salvar a democracia”, como se
prega nos quartéis. “É um imaginário que se estabelece sem fazer
oposição entre militarismo e regime democrático. Então, as pessoas
não sentem que estão com seus direitos civis em risco quando veem,
por exemplo, uma gestão com 12 ministros militares entre 22.”

Como os militares, os fundamentalistas enxergam no projeto


bolsonarista a mais pura democracia, bem melhor que a democracia

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corrupta da “esquerda” católica ou ateia. E essa é uma missão


sagrada. A brutalidade policial ou militar se torna uma cruzada. E que
Deus separe os mortos maus dos bons.

Essa quase literal bomba deixo no seu colo, cristão progressista: não
será o ateu iconoclasta aqui a convencer fundamentalistas que não
existe essa guerra. É preciso outro cristão para isso.

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