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Polis e Psique, Vol.

2, Número Temático, 2012 Página |5

Entre o cárcere e a liberdade: apostas na produção cotidiana de modos


diferentes de cuidar
Between prison and freedom: bets in the daily production of different modes of care
Entre la cárcel y la libertad: apuestas en la producción cotidiana de diferentes modos de
cuidar.

Silvio Yasui
Universidade Estadual Paulista, Assis, SP, Brasil.
Resumo
O texto apresenta algumas reflexões sobre o desafio da Reforma Psiquiátrica (RP) e da
Política Nacional de Humanização (PNH) em mudar os modos de cuidar e produzir
saúde no cotidiano dos serviços. Partindo de observações e inquietações sobre o atual
cenário de ambas políticas, marcado por uma tendência conservadora como, por
exemplo, pelas ações para o recolhimento e internação compulsória que autoridades
municipais e estaduais estão implementando, o autor busca explicitar que o cuidado tem
a liberdade como principio e exigência ética e que tais medidas afrontam este principio
representando um preocupante retrocesso na política pública de saúde mental. Destaca
ao final que ambas as politicas (PNH e Saúde Mental) são apostas que se constroem nas
bordas e fissuras deste mesmo cotidiano conservador, o que representa um imenso
desafio.
Palavras-Chave: Saúde Mental, Direitos Humanos, Humanização

Abstract
This paper presents some reflections about the challenge of the Psychiatric Reform (RP)
and the National Policy of Humanization (NHP) to change modes of production and
health care. Starting at observations about the current scenario , marked by a
conservative tendency, the author seeks to explain the care that has freedom as a
principle and ethical requirement and that compulsory admissions represents a worrying
setback in the public mental health policy. At the end the author points out that both
policies (PNH and Mental Health) are bets which are produced in nooks and crevices of
the conservative model, which represents an immense challenge.
Key words: Mental Health, Human Rights, Humanization.
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Resumen
El artículo presenta algunas reflexiones sobre el desafío de la Reforma Psiquiátrica (RP)
y la Política Nacional de Humanización (PNH) en cambiar los modos de producción y
cuidado de la salud. A partir de observaciones sobre la situación actual de ambas
políticas, marcadas por una tendencia conservadora, por ejemplo, las acciones de
recogida y admisión obligatorio que las autoridades estatales y locales están llevando a
cabo, el autor trata de explicar el cuidado que tiene la libertad como principio y la
exigencia ética. Y esas medidas frente a este principio constituye un retroceso
preocupante en la política de salud mental pública. En las notas finales que ambas
políticas (PNH y Salud Mental) están apostando que se acumulan en los bordes y grietas
del mismo diario conservador, lo que representa un inmenso desafío.
Palabras clave: Salud Mental, Derechos Humanos, Humanización

Desconfiai do mais trivial, mudar os modos de cuidar e produzir


na aparência singelo.
saúde no cotidiano dos serviços.
E examinai, sobretudo, o que parece
Tomo como material,
habitual.
Suplicamos expressamente:
observações e inquietações sobre o atual
não aceiteis o que é de hábito como cenário de ambas políticas e de alguns
coisa natural, eventos que frequentam as páginas de
pois em tempo de desordem sangrenta,
jornal e a mídia de maneira geral, como
de confusão organizada,
por exemplo, a denúncia sobre a
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
precária condição de cuidado em um
nada deve parecer natural, hospital psiquiátrico na região de
nada deve parecer impossível de Sorocaba e as ações para o recolhimento
mudar.
e internação compulsória que
Bertolt Brecht
autoridades municipais estão
implementando.
A epígrafe acima do dramaturgo
Inicialmente, apresento quatro
Bertolt Brecht serve de mote e de
cenas em diferentes momentos
inspiração para o presente texto que
históricos, extraídas da minha
busca refletir sobre o desafio da
experiência pessoal:
Reforma Psiquiátrica (RP) e da Política
Cena 01 – O ano é 1976. Desço
Nacional de Humanização (PNH) em
do ônibus na rodovia Presidente Dutra e
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o motorista me aponta para uma estrada 4000 internos. Vou conhecer algumas
de chão batido. Sigo por ela por uns 3 enfermarias. Chego ao pátio e vejo a
quilômetros até chegar em uma imensa mesma cena. Dezenas de pessoas
construção. Na porta a placa: Hospital deitadas no chão. Ao me verem, várias
Psiquiátrico. Sou recebido pela vêm em minha direção, pedindo cigarro,
psicóloga que pergunta qual ano que dinheiro. Pedem, pedem. Em muitos o
estudo. “-Segundo”, respondo com mesmo pedido/súplica: “-Me tira
certo constrangimento. Com um olhar daqui!”.
desanimado, ela pede a um auxiliar de Desta vez não era um estagiário
enfermagem que me mostre o hospital. voluntário. Engajo-me em um ousado
Caminho pelos corredores sentindo projeto que visava mudar aquela
náuseas causadas pelo forte cheiro de instituição e transformar a vida daqueles
urina, fezes e desinfetante barato. pacientes. Realizaram-se contratações,
Chego ao pátio. Dezenas de pacientes novas internações foram proibidas,
deitados no chão, muitos seminus. Suas reformas foram realizadas. Participei
roupas estão quase todas rasgadas, mais diretamente no Projeto dos Lares
sujas. Tenho a impressão de que são Abrigados, uma proposta para mudar as
vários mendigos. Ao me verem, unidades e dar conta da população de
aproximam-se, pedem cigarro, dinheiro. pacientes moradores ofertando um lugar
Pedem, pedem. Uma solicitação, e um cotidiano diferente do hospício.
repetida por muitos chama a minha No cenário mais amplo, vários outros
atenção: “-Me tira daqui!”1. hospitais psiquiátricos iniciaram
Cena 02 – Sigo por uma longa também importantes processos de
estrada até chegar ao município de mudança e ampliou-se o número de
Franco da Rocha e logo chego à entrada serviços ambulatoriais. Eram os
do hospital. Entro e vislumbro os belos primeiros movimentos da Reforma
jardins do Juquery. Estamos no ano de Psiquiátrica em São Paulo.
1983 e é minha primeira semana de Cena 03 – O ano é 1997. Estou a
trabalho. Sou recebido pelo diretor caminho de um hospital psiquiátrico
clínico que me informa: serei o único privado para realizar uma avaliação.
psicólogo disponível para a assistência Faço parte de uma equipe de Secretaria
(outro estava em um cargo de Estado da Saúde que realizou várias
administrativo). Sou eu para mais de vistorias nos hospitais com o objetivo
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de classificá-los e enquadrá-los nas, na forte cheiro de fezes e urina. Foco em


época, novas normas oriundas a partir um paciente que pede: “- Me tira
da portaria 224/92. São os primeiros daqui!”.
movimentos que se fortalecerão poucos Uma ampla mobilização de
anos depois com o Programa Nacional segmentos sociais para intervir no
de Avaliação dos Serviços Hospitalares hospital é um avanço institucional
(PNASH). Nova longa estrada até relevante e não pode deixar de ser
chegar ao hospital. Somos recebidos citado. Representantes de diversas
pela direção que se queixa dos baixos instituições2 realizaram uma importante
valores pagos pelo SUS. Ao entrarmos, ação conjunta para a realização de um
percebo que a limpeza recente não censo com os seguintes objetivos:
oculta o que está impregnado nas efetuar a identificação civil das pessoas
paredes: o cheiro de fezes e urina. internadas de forma a propiciar-lhes
Novamente, no pátio, os pacientes estão benefícios assistenciais e
com roupas novas demais para o previdenciários; o levantamento dos
momento. Ao nos verem, aproximam-se principais dados psicossociais; e
olhando temerosos o diretor que nos subsidiar a formulação de políticas
acompanha. Mesmo como sua presença públicas de saúde mental para a região
intimidatória, muitos não se acanham e com vistas à desinstitucionalização das
pedem cigarro, dinheiro. Pedem, pedem. pessoas ali internadas.
Alguns pedem/suplicam: “-Me tira Contudo, a existência de um
daqui!”. hospital psiquiátrico com as
Cena 04 – O ano é 2012. Meus características asilares como o
alunos comentam – “Assistiu na TV denunciado, após anos de Reforma
aquela reportagem denúncia sobre um Psiquiátrica, deixa-nos com certo gosto
hospital psiquiátrico?” Meses antes, na amargo na boca. Entre a primeira e a
mesma região, foi criado o Fórum da última cena passaram-se 36 anos. A
Luta Antimanicomial de Sorocaba Reforma Psiquiátrica transformou-se
(FLAMAS) que denunciava o alto em uma ampla política pública,
índice de mortes nos hospitais ampliando a rede de serviços e ações da
psiquiátricos. A reportagem exibia as saúde mental, reduzindo leitos
mesmas cenas. Pacientes com roupas psiquiátricos, aumentando o
rasgadas ou seminus, deitados no pátio, investimento na rede extra-hospitalar.
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Ao assistir a reportagem, é inevitável efeitos danosos de uma crescente


não sentir um certo desassossego, quase mercantilização das relações entre os
um desânimo, em constatar que, apesar sujeitos e da vida. Efeitos que se
de avançarmos em muitos aspectos, o corporificam no cotidiano dos serviços
manicômio ainda exibe a sua face mais de saúde e, de uma forma mais
cruel e violenta, nos encarando de modo inquietante ainda, nos serviços de saúde
desafiador. mental. Anestesia, esquecimento ou
Tal face tenebrosa ressurge, indiferença a uma diretriz vital para
também, nas palavras e ações de mudar nosso modo de cuidar do
prefeitos que investem pesado contra os sofrimento psíquico: liberdade.
dependentes químicos, propondo Em um artigo, Nicácio e
internação compulsória como recurso de Campos (2007) abordam a relevância e
tratamento, sendo aplaudido por amplos a necessária afirmação da liberdade para
setores conservadores da sociedade e, a superação do modelo asilar. No início
especialmente, pelos donos de do texto apresentam títulos de
comunidades terapêuticas que documentos do Ministério da Saúde,
certamente obterão lucros financeiros que tratam da liberdade como tema:
com estas medidas policialescas e “Saúde mental: cuidar em liberdade e
higienistas. Ofertam o mesmo modo de promover a cidadania” (Brasil, 2004).
tratar, mas seguem indiferentes à dor, ao “Liberdade é o melhor cuidado” (Brasil,
sofrimento, à singularidade e à 2001). Acrescentaria a esta lista mais
complexidade das vidas que são dois itens: um caderno de textos
retiradas das ruas e enclausuradas. organizado pelo Conselho Regional de
Quantos pedidos de “- Me tira daqui!” Psicologia-06 intitulado “Trancar não é
ainda são necessários? “Os processos de tratar”: e a frase transformada em um
“anestesiamento” de nossa escuta, de cartaz e repetida muitas vezes pelos
produção de indiferença diante do outro, militantes da luta antimanicomial:
têm nos produzido a enganosa sensação “Saúde não se vende, loucura não se
de salvaguarda, de proteção do prende”.
sofrimento” (Brasil, 2009, p.12). No texto os autores retomam a
O trecho acima citado é da produção do psiquiatra italiano Franco
Cartilha da PNH sobre Acolhimento e Basaglia, especialmente suas reflexões
Classificação de Risco e alerta para os sobre a experiência como diretor do
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Hospital Psiquiátrico de Gorizia, onde, afirmação da liberdade” (Nicácio,


ao se deparar com a violência do Campos, 2007:146).
manicômio e a destruição das pessoas Na perspectiva basagliana,
internadas, inicia um radical processo liberdade não é resultado e sim base da
de crítica e de transformação da prática terapêutica.
instituição. Seus escritos Ou seja, não é possível pensar o
problematizaram a condição da pessoa cuidado ao sofrimento psíquico
internada e os significados do considerando-o apenas como um
manicômio, questionando a psiquiatria, diagnóstico resultante das disfunções de
seus instrumentos e sua finalidade como interações neurobioquímicas, nem
ciência. Basaglia destacava que a tampouco com práticas que restrinjam
transformação da condição do paciente ou limitem o exercício do ir e vir, que
internado exigia a criação de propostas incidam sobre o já precário poder de
que tivessem por princípio a sua contratualidade que o sujeito tem sobre
liberdade. si e sobre as coisas do mundo. Muito
Uma de suas mais famosas menos com práticas que o submetam a
expressões, inspirada na fenomenologia um regime de controle e vigilância
de Husserl e como profunda crítica à sobre todas as suas ações cotidianas. O
objetivação do homem pela psiquiatria resultado histórico deste modo de
positiva, é a de “colocar a doença entre pensar a dor psíquica é bem conhecido:
parênteses”, o que se traduzia no segregação, violência institucional,
cotidiano em um intenso trabalho de isolamento, degradação humana.
produzir ações plurais, responsabilizar- Nicácio e Campos (2007)
se pelo cuidado do paciente, identificar destacam que pensar o cuidado em
sua necessidade, escutar seu sofrimento, liberdade, provoca inovações na prática
iniciando a: terapêutica, inscreve novas
“Produção de uma diversa e profissionalidades, e representa uma
complexa prática terapêutica pautada na nova projetualidade nos processos de
compreensão da pessoa, na coproduzir com as pessoas com a
transformação de suas possibilidades experiência do sofrimento psíquico
concretas de vida, a partir da construção projetos de vida nos territórios.
cotidiana do encontro e da intransigente Trata-se aqui de deslocar-se do
Manicômio como o lugar zero de trocas
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sociais (Rotelli, 2001) e da doença A citação acima refere-se à


como objeto simples, para o território, diretriz do Acolhimento da Política
plano do cotidiano no qual o sofrimento Nacional de Humanização, mas se
psíquico tomado como objeto aplica perfeitamente ao que
complexo, implica a vida em suas argumentávamos sobre o projeto da
múltiplas dimensões e cuja perspectiva Reforma Psiquiátrica. Isto evidencia
de cuidado, portanto, significa atuar na como ambas políticas compartilham dos
transformação da subjetividade e dos mesmos princípios e posicionamentos
modos de viver. ético-estético e político. Falamos aqui
É um ousado projeto de um da produção do cuidado ao sofrimento
cuidado que se constrói a partir de psíquico, indissociável da produção de
criações produzidas em encontros que saúde. Falamos aqui da construção e da
coproduzem sujeitos e projetos de vida. consolidação do SUS. Para a PNH, o
Coprodução dos sujeitos só pode ser SUS humanizado é aquele que
feita em liberdade regida pela ética da reconhece o outro como legítimo
autonomia. É um projeto ético-estético- cidadão de direitos, valorizando os
político: diferentes sujeitos implicados no
processo de produção da saúde.
 ético no que se refere ao compromisso Humanização do SUS é entendida
com o reconhecimento do outro, na como:
atitude de acolhê-lo em suas diferenças,
suas dores, suas alegrias, seus modos de
[...]
viver, sentir e estar na vida;
- Fomento da autonomia e do
 estético porque traz para as relações e
protagonismo desses sujeitos e dos
os encontros do dia-a-dia a invenção de
coletivos;
estratégias que contribuem para a
- Aumento do grau de co-
dignificação da vida e do viver e, assim,
responsabilidade na produção de saúde
para a construção de nossa própria
e de sujeitos;
humanidade;
- Estabelecimento de vínculos
 político porque implica o compromisso
solidários e de participação coletiva no
coletivo de envolver-se neste “estar
processo de gestão;
com”, potencializando protagonismos e
- Mapeamento e interação com as
vida nos diferentes encontros. (Brasil,
demandas sociais, coletivas e
2010, p. 6)
subjetivas de saúde;
- Defesa de um SUS que reconhece a
diversidade do povo brasileiro e a todos
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oferece a mesma atenção à saúde, sem realidade cotidiana é imutável e


distinção de idade, raça/ cor, origem,
impermeável a qualquer tentativa de
gênero e orientação sexual [...] (Brasil,
mudança. Frases como “Usuário é assim
2008, p. 18-19)
mesmo!”, “A gente nunca consegue

Podemos afirmar que tanto a nada, não somos gestores”, “O

PNH quanto a RP, buscam se impor problema da saúde é que todo mundo é

como força de resistência ao atual funcionário público” “Paciente em crise

projeto hegemônico de sociedade que precisa de hospital psiquiátrico” e

menospreza a capacidade inventiva e outras tantas, expressam as forças

autônoma dos sujeitos. É uma aposta na conservadoras presentes nos modos de

potência que emerge no pensar/agir que continuam a nos

reposicionamento dos sujeitos, ou seja, atravessar seduzindo-nos a sermos

no seu protagonismo, na potência do acomodados.

coletivo, na importância da construção A rigidez dos processos de

de redes de cuidados compartilhados: trabalho e a organização dos serviços de

uma aposta política (Pasche & Passos, saúde, modos de cuidar centrados na

2008) doença; trabalhadores destituídos da

Aposta que encontra enormes capacidade de decidir e usuários que só

resistências e obstáculos. Ao olharmos são escutados, impacientemente, em

para a corrente conservadora que ainda suas queixas: tudo isso contribuiu para

domina amplos setores da sociedade e uma naturalização do cotidiano produtor

que se refletem nos modos de se fazer a de indiferença ao sofrimento do outro,

gestão na saúde, como as recentes ações uma máquina de reprodução de relações

para internação compulsória dos de assujeitamento, heteronomias,

dependentes químicos, temos a subjetividades servis e tristes.

sensação de que estamos muito Neste cenário, instituir como

distantes de ver implantada os política de saúde a internação

princípios que acima nomeamos. É o compulsória/cárcere dos usuários de

que frequentemente escuto quando crack é retroceder a medidas arcaicas e

discuto estas questões com os ineficazes. É insistir no erro histórico

trabalhadores da saúde. Via de regra que a Reforma Psiquiátrica tanto

afirmam tratar-se de um bonito discurso investiu para mudar. É voltar a ouvir a

e apenas isso. Parece que a dura frase “-Me tira daqui!”.


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Mas afinal, qual a potência das Olho também para as inúmeras e


apostas da Reforma Psiquiátrica e da exitosas experimentações que a cada dia
PNH? surgem no blog humanizasus.net,
Olho novamente para a evidenciando a força e a potência dos
experiência italiana e seus efeitos na dispositivos da PNH, produzindo efeitos
Reforma psiquiátrica brasileira. Vejo o na vida das pessoas que frequentam os
quanto a vida dos usuários dos serviços serviços de saúde e que são acolhidas,
de saúde mental, lá e cá, transformou-se ouvidas em suas necessidades, cuidadas
a partir do que foi sendo inventado e e se corresponsabilizando por seu
criado como política de saúde mental. cuidado.
Da oferta exclusiva e compulsória de Estas são evidencias que
internação em um hospital psiquiátrico, demonstram que o cuidado é produção
temos, no Brasil, uma ampla e de vida, criação de mundos. Temos um
diversificada oferta de serviços e ações imenso desafio: reativar nos encontros
que contemplam diferentes dimensões e nossa capacidade de cuidar e tomo
necessidades: temos os Centros de novamente emprestado do texto sobre
Atenção Psicossocial (em suas várias Acolhimento alguns princípios que
modalidades) como serviços territoriais devem nos nortear:
para acolher e cuidar do sofrimento
psíquico intenso; aos que habitaram por • o coletivo como plano de produção da
vida;
anos o manicômio temos os Serviços
• o cotidiano como plano ao mesmo
Residenciais Terapêuticos; para o
tempo de reprodução, de
trabalho os Projetos de Geração de experimentação e invenção de modos
Trabalho e Renda; temos ainda projetos de vida; e
de arte e cultura e outras tantas criações • a indissociabilidade entre o modo de
nos produzirmos como sujeitos e os
que por vários lugares vão sendo
modos de se estar nos verbos da vida
experimentadas. Pessoas que
(trabalhar, viver, amar, sentir, produzir
provavelmente teriam como destino saúde...). (Brasil, 2010, p. 8-9)
viverem encarceradas em Hospitais
Psiquiátricos, submetidas a um Nossa aposta aponta para um
cotidiano mortífero, encontram outras outro mundo possível, que se constrói
possibilidades de cuidado que apostam nas bordas, nas fissuras, na contra-maré,
em modos distintos de levar a vida. nadando contra a corrente. Se o
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cotidiano reproduz assujeitamentos, Saúde do Estado de São Paulo –


heteronomias, subjetividades servis e COSEMS, Conselho Estadual de Saúde,
tristes, é preciso abrir brechas e fissuras Departamento de Saúde Coletiva –
neste cenário densamente conservador, Universidade Estadual de Campinas,
alheio e surdo aos pedidos de “- Me tira Complexo Hospitalar Ouro Verde –
daqui!”, que ainda ecoam. No cotidiano Secretaria Municipal de Saúde de
e no coletivo precisamos apostar na Campinas/SP, Centro de Educação dos
potência da criação e da invenção que se Trabalhadores da Saúde – CETES –
dá em liberdade e no bom encontro. SMS- Campinas, Universidade Federal
de São Paulo – Campus Baixada
Pois a vida não é o que se passa apenas Santista, Universidade Federal de São
em cada um dos sujeitos, mas
Carlos – Campus Sorocaba, Laboratório
principalmente o que se passa entre os
de Saúde Mental Coletiva - Faculdade
sujeitos, nos vínculos que constroem e
que os constroem como potência de de Saúde Pública – Universidade de São
afetar e ser afetado. (Brasil, 2010, p.8) Paulo, Faculdade de Americana –
Departamento de Psicologia, Escola de
Nada é natural, nada é Enfermagem – Universidade de São
impossível de ser mudado. Paulo.

Referências
Notas Brasil. Ministério da saúde. Secretaria
de atenção à saúde. Núcleo
1
Embora a frase apresente um erro, está técnico da política nacional de
escrita como ouvi tantas vezes. humanização. (2010).
2
Conselho Nacional de Acolhimento nas práticas de
Justiça,Ministério Público Estadual de produção de saúde. (2. ed., 5.
São Paulo, Secretaria de Direitos reimp.). Brasília: Ministério da
Humanos da Presidência da República, Saúde.
Coordenação Nacional de Saúde Mental Brasil. Ministério da Saúde. (2004).
– Ministério da Saúde, Política Nacional Caderno informativo do
de Humanização – Ministério da Saúde, congresso brasileiro de caps.
Secretaria Estadual de Saúde de São Saúde mental: cuidar em
Paulo, Secretaria Municipal de Saúde de liberdade e promover a
Sorocaba, Conselho de Secretarias de
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cidadania. Brasília: Ministério da Pasche, D. F. & Passos, E. (2008). A


Saúde. importância da humanização a
Brasil. Ministério da saúde. Conselho partir do sistema único de saúde.
Nacional de Saúde. (2001). Rev. Saúde públ. Florianópolis,
Conferência Nacional de Saúde SC, 1 (1), 92-100.
Mental. Brasília: Ministério da Silvio Yasui: Doutor em psicologia e
Saúde. docente de graduação e pós-graduação
Brasil. Ministério da saúde. Secretaria em psicologia da Unesp-Assis.
de Atenção à Saúde. Núcleo E-mail: silvioyasui@gmail.com
Técnico da Política Nacional de
Humanização. (2008).
Humanizasus: documento base
para gestores e trabalhadores do
sus. (4. ed.) Brasília: Ministério
da Saúde.
Conselho Regional de Psicologia 6ª
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remédio. (2a ed.). São Paulo:
Autor.
Nicácio, F. & Campos, G. W. de S.
(2007). Afirmação e produção de
liberdade: desafio para os centros
de atenção psicossocial. Rev. Ter.
Ocup. São Paulo, 18(3), 143-151.
Rotelli, F.; Leonardis, O.; & Mauri, D.
(2001). Desinstitucionalização,
uma outra via: a reforma
psiquiátrica italiana no contexto
da europa ocidental e dos "países
avançados". In F. Nicácio. (Org.).
Desinstitucionalização. (2 ed.).
São Paulo: Hucitec.

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