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GEO USP - Espaço e Tempo, São Paulo, N° 15, pp. 171 177.

2004

A EXPLORAÇÃO DO ECOSSISTEMA DOS MANGAIS ENQUANTO


APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO NA CIDADE DE ANGOCHE

Alexandre H. M. Baia*

RESUMO:
O artigo apresenta uma reflexão sobre a relação entre a população e os recursos naturais, com
enfoque específico no ecossistema dos mangais. Descreve algumas práticas da vida quotidiana e
que caracterizam a exploração dos mangais na cidade de Angoche; daí parte para uma reflexão em
torno dos processos de produção do espaço: a apropriação do espaço. O artigo revela a importância
desta categoria de análise para a compreensão das dinâmicas correntes na relação população e
recursos naturais.
PALAVRAS-CHAVE:
Ecossistema dos mangais, uso, comunidade local, apropriação do espaço; cidade de Angoche

ABSTRACT
The article presents a reflection on the population and natural resources relationship, specifically
with emphasis on the mangrove ecosystem. It describes some practices of the daily life that
characterises the mangrove exploitation in Angoche city; thereby it makes reflections concerning
the processes of production of space: the appropriation of space. The article revels the importance
of this analytical category to the understanding of population and natural resources relationship
concerns.
KEY WORDS:
Mangrove ecosystem, use, local community, appropriation of space, Angoche city

I - Introdução
A t u a lm e n t e , no s e io de d iv e r s a s e d e fe n s o re s da c o n s e r v a ç ã o da n atureza,
instituições nacionais, colocam-se preocupações c id a d e de A n g o c h e p a s so u a s ig n if ic a r
relacionadas com o ecossistema dos mangais " d e g ra d a ç ã o do e c o s siste m a dos m ang a is"
em Moçambique. Vários estudos dão relevância Assim, corrobora-se a afirmação segundo a qual,
a a s p e c t o s c o m o o uso, c o n s e r v a ç ã o e "A pesquisa contemporânea sobre o
p r o te c ç ã o dos m a n g a is . N e le s , e x p õ e - s e uso e conservação dos recursos florestais,
geralm ente a in v e n ta ria ç ã o da floresta dos e s p e c ia lm e n t e a q u e la que a n a lis a a
m angais e os tip o s e p a d rõ e s de uso dos in teracção entre a p o p u la çã o e o seu
mangais pelas c o m u n id a d e s locais. E nesse ambiente natural, é aplicada mais do que
contexto que, para os ambientalistas nacionais b á s ic a , é e s t r u t u r a d a em to rn o de

* D o c en te da U n iv e r s i d a d e E d u a r d o M o n d la n e - M o ç a m b i q u e e M e s t r a n d o no P r o g r a m a de G e o g r a fi a Humana FF L C H /
USP. Está p e s q u is a foi fin a n c ia d a pelo Fu n do A b e r to para I n v e s t ig a ç ã o da UEM.
E - m a il: a l e x a n d r e b a i a @ y a h o o . c o m . b r
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programas e projectos que correspondem Historicamente, o pequeno centro urbano surgiu


à crises selecionadas e a sua concepção de uma povoação mercantil cuja criação, por
tende a ser avaliativa. Nos últimos anos, o portaria, data de 1876. Segundo Negrão et al,
f in a n c ia m e n t o de p e s q u is a s fo i to r n a - s e c la ro que o d e s e n v o lv im e n t o da
substancialmente limitado à análise do uso povoação de Angoche esteve vinculado com a
e a b u s o h u m a n o ( e n t e n d a - s e dos exploração de recursos naturais e ao comércio
produtores rurais ou cam poneses) dos marítimo que contribuiu para a construção do
recursos flo re s ta is , à id e n tific a ç ã o de porto de Angoche. Durante o período mercantil,
produtos florestais exóticos, à avaliação das a costa oriental de Moçambique foi integrada
demandas dos agregados familiares sobre no sistema comercial internacional.
os recursos florestais, do consumo das
"A n g o c h e to rn o u - s e desde essa
mulheres e de combustível vegetal, e das
época um centro reg ional com grande
r e la ç õ e s entre p rogram as de
vita lid a d e. A s s im , n e s s e p e r ío d o , as
desenvolvimento florestal e esquemas de
actividades econômicas (...) eram a caça, a
desenvolvimento rural integrado" (Shelley
coleta, (...), o artesanato de transformação
Feldman)
e o comércio. A caça e a colecta permitiam
A e x p lo r a ç ã o do e c o s s is t e m a dos s a t i s f a z e r p a r t e d a s n e c e s s id a d e s
mangais, em A n g oche, expressa form as de alimentares das comunidades, mas, ao
apropriação do espaço que se materializam a mesmo tempo, forneciam os produtos
p a r t ir de p r á t ic a s de r e p r o d u ç ã o da vida destinados ao mercado internacional (...)"
quotidiana. Ao comportar múltiplas atividades (Negrão et al, 1996: 92).
que caracterizam o tempo vivido, a exploração
do ecossistema dos mangais articula os espaços Com a sucessão dos períodos históricos
colon izad o s pelo e co ssiste m a dos mangais, tornou-se evidente o declínio da importância
onde ocorrem os processos de apropriação da econômica da cidade de Angoche. Atualmente
n a tu r e z a , os e s p a ç o s de m o ra d ia - onde a c id a d e passou a desem penhar,
o c o r re m os p r o c e s s o s de r e a liz a ç ã o dos p r e d o m in a n t e m e n t e , um p ap el p o lít ic o -
produtos dos mangais enquanto valores de uso administrativo. No entanto, a cidade " tornou-se
e os espaços de troca. É deste modo que a pólo de atração de força de trabalho (...) porque os
exploração do ecossistem a dos mangais, na serviços, a pesca e demais indústria artesanal,
cidade de Angoche, enquanto apropriação do criaram um mercado de trabalho informal que atrai
e s p a ç o , e n c o n t r a - s e v in c u la d a a o u tr o s pessoas de terras tão longícuas (...)" (op. cit,
processos de produção do espaço urbano. 1996: 114)
A s s im , de a c o r d o com L e fe b v r e , os A s s im , a u r b a n iz a ç ã o na c id a d e de
conceitos, recentemente surgidos, como "o meio Angoche é r e s u lt a d o do c r e s c im e n t o
am biente", o e s g o ta m e n to dos recurso s, a d e m o g r á fic o c o m b in a d o com a e x p a n s ã o
d e s tr u iç ã o da n a tu re z a , fo rn e c e m v e rs õ e s e s p a c ia l a t r a v é s da c o n s t r u ç ã o em á re a s
atenuad as e " m ostram e x c lu s iv a m e n t e anteriormente ocupadas por florestas (incluindo
manifestações fragmentares" que mascaram "o os mangais) no entorno da cidade1-
problema global: do espaço, da produção e da Devido a sua localização geográfica, a
gestão" (Lefebvre, 1973:21-22). cidade de Angoche é contornada por diversos
e c o s s is te m a s m a rin h o s , d e n tre eles o dos
mangais.
II - A cidade de Angoche
Os mangais são com unidades vegetais
A cidade de Angoche localiza-se na região que colonizam as lagoas costeiras, os estuários
litoral ao sul da p ro v ín cia de N am pula em e as depressões dos deltas. São comunidades
Moçambique. Atualm ente, a cidade é a sede adaptadas às condições de elevada salinidade
a d m in is t r a t iv a do d is t r it o de A n g o c h e .
A exploração dos ecossiste m a s dos m angais
enquanto apropriação do espaço na cidade de Angoche, pp. 171 177 173

e por isso podem subsistir submersas em águas A e x p lo r a ç ã o do e c o s s is t e m a dos


marinhas. As árvores dos mangais são apenas m a n g a is , na c id a d e de A n g o c h e , e n v o lv e
um dos componentes do complexo ecossistema d ife re n te s g ru p o s da p o p u la çã o da cidade.
dos mangais que inclui: corpos associados de Enquanto apropriação da natureza, a atividade
água e solos, bem como uma variedade de articula as necessidades das comunidades de
outras plantas, a n im a is e m icro o rg a n ism o s p e s c a d o r e s , c a m p o n e s e s , " l e n h a d o r e s " 2,
(Semesi e Howell, 1992:7; Nonn, 1974:103; comerciantes "formais" e "informais", artesãos
Couto, 1993:3). e funcionários de serviços públicos.
O ecossistema dos mangais contribui para Como forma de apropriação da natureza,
a proteção das áreas costeiras contra a erosão a exploração do ecossistem a dos mangais é
e intrusão salina. Os mangais são elementos realizad a por c o m u n id a d e s de pescad ores,
estabilizadores e protectores da linha da costa "lenhadores" e camponeses. São comunidades
e contribuem para a formação dos solos: com a que se identificam por realizarem actividades
deposição e captura de sedimentos aluviais na similares (colecta) em espaços muitas vezes
fr a n ja dos m a n g a is , c r ia m - s e c o n d iç õ e s contíguos - porque as localizações das áreas
ecológicas que permitem o avanço de solos do agrícolas, locais de pesca e colecta de lenha,
continente em direcção ao mar. ou coincidem, ou estão próximas - e que usam
A t r a v é s das fo lh a s , as á rv o r e s dos um espaço comum - os espaços colonizados pelo
mangais contribuem para o ciclo de nutrientes ecossistema dos mangais. Assim, estes espaços
no habitat de mariscos (ex: do camarão); assim, torn am -se p a lco de d iv e r s o s usos ao
os mangais constituem um viveiro para peixes, comportarem várias atividades, dentre elas a
crustáceos e outros animais. agricultura de cereais (rizicultura), a pesca e
Os m a n g a is c o n s t it u e m um re c u rs o colecta de crustáceos e produtos lenhosos.
explorad o pelas p o p u la ç õ e s que vivem em Ora, com o p r o c e s s o de tra"balho, as
áreas costeiras, o que sucede com a cidade de diversas atividades que constituem a exploração
Angoche. Dos mangais obtém-se a madeira para dos mangais são realizadas através do uso de
a construção de habitações e barcos de pesca, in stru m e n to s de tra b a lh o artesa n a is e que
para carvão vegetal (com bustível lenhoso); caracterizam uma produção de subsistência. No
capturam-se diversos crustáceos que servem c o rte de á r v o r e s de m a n g a is u t iliz a m - s e
para complementar a dieta alimentar. As árvores usualmente catanas. A recolha de crustáceos é
ainda podem ser u sad as para extração da efectuada manualmente e os produtos podem
tanina (corante), com o plantas m edicinais, ser transportados em pequenas tigelas e bacias
assim como para a produção de mel (Simesi e m a n u fa ctu ra d a s ou peneiras artesanais, ou
Howell, 1 9 9 2 :2 3 -2 9 ; C outo , 1993:3 e 12; ainda em sacos plásticos ou de sisal'quando as
MICOA: 1995:7). quantidades são maiores.

III - Exploração dos mangais enquanto IV - Os lugares de moradia enquanto


apropriação da natureza realização do uso dos produtos dos mangais
Segundo Lefebvre, a "apropriação implica A pesquisa de campo permitiu constatar
tempo (ou tempos), ritmo (ou ritmos) , símbolos a re p r o d u ç ã o ( r e p e t iç ã o ) de uma re la ç ã o
e uma p r á t ic a . Q u a n t o m a is o e s p a ç o é baseada nas n e c e s s id a d e s - uso - entre a
funcionalizado (...) menos susceptível torna-se população da cidade, na sua maioria relacionada
para a apropriação. Por quê? Porque assim o espaço com actividades artesanais e com a vida rural
é retirado da esfera do tempo vivido, do tempo ou agrícola, com o ecossistema dos mangais.
dos "usadores", que é um tempo diverso e Pois, os produtos retirados do ecossistema dos
complexo" ( Lefebvre, 1991:356). mangais são destinados para a satisfação das
necessidades dos agregados familiares ou para
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a venda quando as necessidades quotidianas ecossistema dos mangais se realiza enquanto


exigem. valor de troca - num processo equiparado à
Os lugares de moradia constituem uma circulação simples de mercadorias em que os
das r e a liz a ç õ e s da a r t ic u la ç ã o e n tr e a p r o d u to s dos m a n g a is são v e n d id o s para
e x p lo ra ç ã o do e c o s s is te m a dos m anga is e obtenção de dinheiro e o dinheiro da venda é
outros processos de produção do espaço. Pois, u sa d o para c o m p r a r m e r c a d o r ia s para o
os lugares de moradia constituem áreas de consumo ou satisfação das necessidades dos
consumo de produtos dos mangais, dos que agregados familiares - valores de uso.
contribuem para m elhorar a dieta alim entar Os r e s u lt a d o s das o b s e r v a ç õ e s de
(crustáceos) e dos produtos lenhosos (troncos terreno indicam que não existem mercados
e ramos das árvores dos mangais) que são e s p e c ia liz a d o s para c o m e r c ia liz a ç ã o dos
utilizados como com bustível lenhoso e para produtos do ecossistema dos mangais. A venda
construção da habitação. de troncos ou ramos de árvores dos mangais e
Desse modo, a morfologia da cidade de de crustáceos é feita ou em lugares próximos
Angoche revela diferenças no uso do espaço aos de colecta, na praia, em "bancas" localizadas
que são agravadas, dentre outros fatores, pela nos mercados dispersos pelos bairros ou ainda
expansão de áreas residenciais, agrícolas e de pelas ruas da cidade ou de "porta - em - porta"
lazer nas áreas anteriormente ocupadas pelo ("comércio de rua"). A venda também pode ser
e c o s s is t e m a dos m a n g a is e p o rq u e a feita ainda "por encom enda" para entrega ao
construção da habitação produz diferenças nos domicílio. Esta m odalidade ocorre quando os
lugares de moradia a partir dos diversos tipos compradores encomendam previamente - com
de material de construção. Surgem dentro do base nas relações de confiança mútua - não só
espaço urbano áreas residenciais onde a maior determ inad as q u a n tid a d e s, mas tam bém as
parte das h a b it a ç õ e s é c o n s t r u íd a com espécies dos produtos desejados. Os produtos
materiais de origem vegetal3, incluindo ramos e n v o lv id o s f r e q ü e n t e m e n t e na tro c a por
ou troncos de árvores dos mangais, ao lado de e n c o m e n d a in clu e m d iv e r s o s c r u s tá c e o s e
h a b it a ç õ e s c o n s t r u íd a s com m a te ria l carvão p ro d u zid o a p a rtir das árvo res dos
convencional (ex: cimento, zinco, etc.). mangais.
P o r t a n t o , o u tr o s t ip o s de uso ou Os p r e ç o s p r a t ic a d o s na ven'da dos
ocupação do solo são introduzidos nas áreas produtos dos mangais variam não apenas em
anteriormente ocupadas pelo ecossistema dos função do tipo de produto e da quantidade,
mangais: os solos "livres" são usados para o mas, também, se a sua coleta é recente ou não.
lazer (prática desportiva) ou são preparados - Isto é, os p ro d u to s " fr e s c o s " ou coletado s
a t r a v é s do s is te m a de a t e r r o s - para a re cen tem en te são v e n d id o s a p re ço s
rizicultura e para construção da habitação. r e la t iv a m e n t e m a io r e s que os p ro d u to s
colectados há mais tempo. Na estipulação dos
preços ainda influi a "capacidade de negociação"
V - Os lugares da troca dos produtos dos dos intervenientes - quando o comprador e o
mangais vendedor envolvem-se num diálogo com vista a
Uma fracção dos produtos do ecossistema a lc a n ç a r um " p r e ç o c o n s e n s u a l" , ou seja,
dos mangais é comercializada. A comercialização m u tu a m e n te c o n v e n ie n t e . No p ro c e s so de
não visa a acumulação de valores monetários persuasão, são utilizados como argumentos as
em forma de capital. Trata-se apenas de uma p r e c á r ia s c o n d iç õ e s f in a n c e ir a s p elo s
atividade que permite a captação de pequenas compradores e o "trabalho difícil" aplicado para
quantidades de dinheiro que são utilizadas, a obtenção do produto por parte do vendedor.
posteriormente, para a aquisição de diversos O discurso gira a volta da falta de alternativas
artigos manufaturados no mercado "formal". É econômicas e necessidades de sobrevivência
n e ste contexto que a e x p lo r a ç ã o do por parte de cada um dos intervenientes. Quer
A exploração dos ecossiste m a s dos m angais
enquanto apropriação do espaço na cidade de Angoche, pp. 171 177 175

dizer, cada interveniente evoca uma extrema in te re s s e s dos " u s a d o r e s " ou c o m u n id a d e s


necessidade de consumar a troca como o único locais versus normatização e unifuncionalização
m eio de o b t e r r e c u r s o s para s a t is f a z e r dos recursos e do espaço.
n e c e s sid a d e s im e d ia ta s. Isto é, com p ra-se
1) Propriedade pública versus Propriedade
p o rq u e não se po de r e c o r r e r a um o u tro
comunitária dos recursos. A importância deste
mercado mais exigente (quantidades fixadas e
tó p ic o r e s u lta do fa to de se t r a ta re m de
preços mais elevados) e vende-se para obter
diferentes regimes de gestão de recursos. Os
dinheiro para aquisição de uma outra mercadoria
básica no comércio "formal" efeitos da sua implementação são diferentes e
variam consoante o tipo de recursos.
Segundo Bromley (1986), a propriedade
VI. Considerações finais comum de uso dos recursos é um esquema de
O quadro descrito, sobre a exploração do gestão local em que os interesses de grupo
ecossistema dos mangais na cidade de Angoche, transcendem os interesses individuais. Nesse
revela alterações espaço-temporais na relação contexto, o acesso aos recursos comuns e a sua
entre as comunidades locais com os recursos u t iliz a ç ã o são fix a d o s d e n tro de re g ra s e
naturais. Trata-se, pois, de uma relação que tem normas desenvolvidas segundo as formas de
de ser compreendida a partir de categorias que tomada de decisão imanentes às comunidades
explicam os processos de produção do espaço, interessadas como um todo. As deliberações
dentre elas, a apropriação do espaço. decorrentes incluem a definição de "quem deve
Importa com preender, segundo Santos fazer parte da comunidade de "usadores"", das
1979, que a personalidade espacial, nos países sanções, dos direitos e das responsabilidades
s u b d e s e n v o lv id o s , tem s id o m o ld a d a e individuais. A utilização dos recursos tem como
remodelada, num processo em que a herança premissa o seu acesso a longo termo e, por isso,
do passado é um fa c to r actu ante. Ai onde inclui a sua preservação e conservação, assim
o co rre um p r o c e s s o s e le c t iv o não só das como, o seu uso em parâmetros definidos de
actividades modernas a serem implantadas na acordo com a actividade. A gama de decisões a
sociedade, mas tam bém , uma selectividade, serem tomadas sobre a utilização dos recursos
relacio n ad a com o c o n s u m o por parte dos incluem , tam b ém , a opção duma exau stão
indivíduos, limitada às diferenças nas condições planeada ou transformação dos recursos tendo
s o c ia is e e c o n ô m ic a s . A s e le c t iv id a d e em vista a multifuncionalidade do espaço.
relacionada com a produção e o consumo de O regime de "prop riedade p ú b lic a ”, no
bens e serviços depende tanto das acções do contexto de produção capitalista, assume que
Estado como de outras condições que afectam as normas dos " usadores" não são de interesse
o d e s e n v o lv im e n t o da e c o n o m ia (S a n to s, c o le c t iv o . São as a t iv id a d e s dos
1979:145). empreendedores individuais que constituem o
Assim, as dinâm icas com preendidas na "bem público" (Bromley, 1986). Assim, promove-
e x p lo r a ç ã o do e c o s s is t e m a dos m a n g a is se não só a n orm atização, mas, também a
enquadram-se num processo mais amplo: o da unifuncionalização do espaço e dos recursos.
produção do espaço global e do urbano na As norm as e re g u la m e n to s que limitam as
cidade de Angoche em particular. Tal processo atividades encontram-se a cargo de instituições
inclui c o n tra d içõ e s e co n flito s dos quais os administrativas e legais geralmente incapazes
padrões da e x p lo ra ç ã o do e co ssiste m a dos e, por isso, a utilização dos recursos torna-se
m angais são s in t o m á t ic o s . C o n t r a d iç õ e s e descontrolada.
conflitos que podem ser d e d u zid o s, dentre 2) In te re s s e s dos " u s a d o r e s " ou das
outras, a partir das seguintes oposições duais: c o m u n id a d e s locais ve rs u s n o rm a tiza çã o e
1) p rop riedad e pública em o p osição com a u n ifu n cio n a liza çã o dos recursos naturais. O
propriedade comum dos recursos naturais e; 2) c r e s c im e n t o d e m o g r á fic o e o d e s e m p r e g o
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poderão estar por trás da crescente tendência e x p lo r a ç ã o dos r e c u r s o s n a t u r a is - do


para satisfazer as necessidades básicas a partir ecossistema dos mangais em particular devido
do uso dos recursos naturais. Vários estudos a sua proximidade em relação à cidade. Desde
indicam que a população moçambicana estaria ponto de vista, os interesses da população da
concentrada nas áreas costeiras, como é o caso c id a d e e s ta r ia m em o p o s iç ã o às p o lític a s
de Angoche. A dinâmica demográfica pode ter v ig e n te s que p re te n d e m u n ifu n c io n a liz a r o
sido, provavelmente, um dos maiores fatores ecossistema dos mangais; pois apelam para sua
que estim ularam o uso do ecossistem a dos conservação como habitat do camarão - um
mangais para obtenção de troncos e ramos de produto para exportação.
á r v o r e s para c o n s t r u ç ã o de h a b it a ç ã o e D e sd e m o d o , s e g u n d o F e ld m a n , a
p o s t e r io r o c u p a ç ã o do so lo " li v r e " para pesquisa sobre os recursos naturais requer um
habitação. enfoque sobre "uso d ife re n cia l dos recursos
Por o u tro la d o, a p r iv a t iz a ç ã o e naturais segundo os m odos de produção, as
subseqüente encerramento das empresas agro- e s tr a té g ia s de s u b s is tê n c ia dos a g re g a d o s
industriais4, nos últimos anos, teria contribuído familiares e os padrões de emprego" vigentes,
para o aumento da população desempregada5 quer perante um controlo privado dos recursos
e, por conseqüência, sem fontes "formais" de naturais ou sob ju risd ição estatal, ou ainda
r e n d im e n t o 6 Assim , as necessidades de perante uma propriedade comum. Tal enfoque
habitação e alimentação diária, sendo cobertas permitirá compreender "o contexto social, político
pelo uso dos recursos naturais, constituem um e econômico da exploração dos recursos naturais"
dos factores que influenciariam os padrões de

Notas
4 Refira-se que na cidade de Angoche estavam
1 Por exemplo, há indicações que referem a área
localizadas três fábricas de cajú que utilizavam mão
onde se localiza o atual bairro mais populoso da
de obra intensiva. Estas foram privatizadas e
cidade, Inguri, que "era inicialmente uma floresta
posteriorm ente encerradas num quadro de
Hoje, o crescimento espacial do bairro é realizado
medidas (polêmicas) inseridas no Programa de
à custa da degradação do ecossistema dos
Reabilitação Econômica em vigor sob os auspícios
mangais.
do Banco Mundial.
2 Autodenominação de indivíduos que coletam e
5 Embora não sejam suficientes para tirar conclusões
vendem lenha. definitivas, mais de metade dos entrevistados não
tinham emprego "formal" e incluíam pescadores,
3 As estatísticas sobre habitação mostram que cerca
camponeses, lenhadores e vendedores.
de metade (49,6%) das casas, na cidade de
Angoche, possui paredes construídas com "paus 6 No distrito de Angoche, cerca de 84% do
maticados" e mais de 80% das casas têm uma rendimento das famílias depende do acesso aos
cobertura de "capim e outros" recursos naturais (Negrão et al. 1996: 103)

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Trabalho enviado em dezembro de 2003.

Trabalho aceito em abril de 2004.

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