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um diferencial, é ou não é?
No ano seguinte à publicação de Retratos,
meu primeiro livro (Os Colegas) foi liberado de
sua antiga editora e veio morar na Casa. Foi quando
tomei a resolução de dar o mesmo aspecto a todos
os meus livros, fazer deles uma coleção, digamos
assim. E assim foi feito. E assim permaneceu até
hoje. Só que a roupagem que escolhi pra futura
coleção, embora calcada na vestimenta que dei a
Retratos de Carolina, ficou diferente, sobretudo nos
toques artesanais que dei em Retratos e que resolvi
não repetir nos outros livros.
Dois anos depois da chegada d’Os Colegas na
Casa, comemoramos a reunião de todos os meus
personagens na nova morada.
Nos dezesseis anos decorridos desta minha
caminhada, quando, às vezes, vejo meus livros
enfileirados numa estante qualquer, meu olho
sempre tropeça na lombada de Retratos e eu me
pergunto: vai ficar assim? diferente?
Hoje, finalmente, resolvi: sim, vai ficar assim:
os mesmos textos que escrevi para as orelhas e
a quarta capa da publicação original do livro, a
mesma tipologia bojunguiana aqui e ali, a mesma foto
já meio desbotada que o Peter tirou de mim, justo
no local onde me despedi da Carolina, vai ficar tudo
igualzinho, do jeito que foi pensado e feito.
– O quê?
– Brincar de teu pai com o Serginho.
Priscilla olhou pra Carolina com aquela cara que
ela olhava muitas vezes: total incompreensão.
Carolina reforçou o tom de segredo:
– A gente combinou que hoje de manhã ia brincar
de médico, o Serginho e eu. A minha mãe tinha
saído. Quer dizer, eu pensei que ela tinha saído. Da
última vez que o Serginho foi lá em casa brincar, sabe
Priscilla, a minha mãe disse pra ele ir embora porque
eu tinha que estudar e...
– Conta logo tudo de uma vez, Carolina, eu tenho
que voltar pra festa.
– Por favor, Priscilla, você tem que me escutar.
– Então conta logo!
– Hoje de manhã o Serginho foi lá em casa...
– Você já disse!
– ...pra gente brincar de teu pai.
– Mas que que é isso, brincar de meu pai?
– De médico
– Médico, não: o meu pai é ci-rur-gi-ão plás-ti-co.
– Pois é, eu sei, e o Serginho ia fazer uma plástica
em mim. Desde o dia que eu vi o pintinho dele, eu
fiquei querendo também um pra mim...
– Pintinho??
Retratos de Carolina 29
– Bom, e aí?
– E aí, quando eu disse pro Serginho que a minha
mãe tinha ido ao médico, ele perguntou se eu também
não queria ir, e quando ele disse que o médico era ele,
eu topei, e a gente foi lá pro fundo do quintal, e foi
aí que a gente teve a ideia de fazer a... como é mesmo
quese chama essa coisa que o teu pai faz?
– Ci-rur-gia...
– Plástica! E ele me perguntou que tamanho que
eu queria o meu...pau, e eu disse que queria um bem
grande, pra fazer xixi lá pra nuvem, e então a gente
começou a procurar um pedaço de pau lá no quintal
pra... ah, Priscilla! quem sabe é por isso que chama
assim? Porque o Serginho também chama pintinho de
pintinho, mas na hora de procurar um pra botar em
mim ele foi procurar um pedaço de pau.
O olho da Priscilla corria a toda hora pra
porta.
– Anda com essa história, Carolina.
– Aí a gente encontrou um pedaço assim desse
tamanho, e foi lá pra dentro da casinha de ferramentas
pra ele fazer a operação. – A voz foi se ajeitando melhor
no tom de segredo-absoluto. – Aí eu tirei a minha calça
pra botar o pedaço de pau em mim e ele também tirou
a calça dele pra poder ver bem onde é que o pau dele
Retratos de Carolina 31
amor de deus pra ela não contar nada pro meu pai,
eu jurei que nunca mais na vida eu brincava com o
Serginho, eu jurei que nunca mais tirava a calça, eu
falei que jurava tudo que ela queria, mas por favor!
por favor não conta nada pro meu pai, e foi só o
meu pai chegar em casa que ela contou tudo pra ele.
– Puta!
O breve diagnóstico da Priscilla saiu tão forte
quanto inesperado.
A própria Priscilla se espantou. E feito coisa que
a mão de uma tinha dado um choque na mão da
outra, as duas mãos se largaram e o pé da Priscilla
galopou pra porta.
Te espero lá embaixo, Carolina. – E pronto, a
Priscilla voou pra festa. *
A menina-que-não-se-amarrava-em-boneca gritou,
ganheeeeeeeeeei!
A Priscilla correu pra junto dela, e foi só olhar pra
mão estendida da menina que soltou uma gargalhada:
– Foi ela mesma! Foi ela mesma que ganhou a
espingarda! Número dois!
De novo a fatiação do bolo foi interrompida. A
Mãe-da-Priscilla ria que só vendo.
– O meu marido vai a-do-rar essa história.
Enquanto tudo isso ia rolando, o olho da
Carolina não largava mais a Priscilla, fiscalizando
tudo que é movimento que a mão da Priscilla fazia.
Passada a surpresa do caroço ter mudado de
número, um farrapo de lembrança foi voltando
devagar pra memória da Carolina: um gesto que a
Priscilla tinha feito, quando pegou o caroço da
mão da Carolina e correu pra buscar a gaiola; um
gesto muito rápido: a mão entrando e saindo do
bolso da saia. E agora Carolina se pergunta, será
que eu vi mesmo? será que eu vi bem? e o olho não
se solta mais da mão da Priscilla.
Não demora muito e a Priscilla grita de boca cheia:
– Dentei um caroço!
O olho da Carolina vê direitinho a Priscilla parar
de mastigar o bolo; vê a mão da Priscilla fazer feitio
Retratos de Carolina 45
por que que ela ainda quis a minha, que era minha, que
eu ganhei, me diz! diz, diz!
O Pet não sossega na gaiola.
– Fica quieto aí! E fica também sabendo que eu
não tô a fim de você. A boneca que eu ganhei, sim,
eu podia brincar com ela, mas com você eu brinco
de quê, se você taí preso? Eu não quero bicho que é
preso, eu não quero saber de você! E não é só você
que eu não quero: ela também: eu não quero mais,
nunca mais. – O dedo esbarra com força na argola
que prende a porta: – Droga! – A dor no dedo
aumenta a raiva. Carolina luta com o bambuzinho
pra desprender ele da argola, mas só pensando e
repetindo, por que que ela fez isso comigo, por quê?
A mão libera o bambu e empurra a porta com força.
Talvez a surpresa da porta tão grande.
Talvez a estranheza de uma gaiola tão aberta. O
fato é que, num de repente, o Pet se imobiliza,
intuindo que a liberdade está à espreita.
Carolina nem vê na frente dela a porta aberta; e
também não se dá conta da expectativa do Pet.
Encosta a testa na gaiola e faz força pra não chorar.
Pouco a pouco uma pergunta vai se formando no
pensamento de Carolina: mas pode? pode assim uma
coisa virar na outra? E quanto mais ela pensa em tudo
Retratos de Carolina 49
Que bom que a festa vai ficando pra trás; e que tão
bom ver o Pai assim, se esquecido das calças, do
Serginho, de tudo... Logo-logo ela também: vai se
esquecer da Priscilla. Mas, melhor que tudo, ah,
nem se fala, melhor que tudo é sentir a mão do Pai
apertando firme a mão dela.
E assim, aliviada, vendo que o dia sofrido (e que
comprido que ele foi!) vai chegando ao fim, Carolina
nem se dá conta de que está indo embora sem se
lembrarmais da gaiola e do Pet.
– O jeito?
– O jeito, ele, tudo, lindo, lindo, certo, certíssimo!
– E no outro dia já escancarava a confissão. – Carolina,
eu tô numa paixão que eu não te conto. Sabe que ele
mora numa casona? Pelo jeito deve ganhar uma grana
firme: homem certo pra caramba, minha amiga.
– Trabalha em quê?
– Não sei direito, parece que é negócio de
investimento, bolsa, sei lá! essas coisas.
– Mas, Bianca... se ele não é arquiteto, como é que
ele é o teu homem certo? Você não disse sempre que...
– Ah, isso não faz mal, Carolina, não faz mal
mesmo. Pra que que ele precisa ser arquiteto? a casa
dele já é tão linda.
Carolina se interessou:
– A casa é bonita, é?
– Se é! E ele mora lá sozinho, já pensou? Quer
dizer, sozinho-sozinho, não: ele tem uma empregada,
dessas que tem toda a cara e todo o jeito de dona
da casa, sabe como é que é? Ele chama ela de Dona
Judite. Não é lindo? Ah! e ele tem também um
cachorro. Pastor-alemão. Se chama Piedoso.
– Se chama o quê?
– Piedoso.
– Que nome esquisito pr’um pastor.
76 Lygia Bojunga
– É.
– Bom, eu acho que a paixão é uma emoção que
nos cega. Nos confunde. Nos arrasta...
– Ah, pai.
– Que foi?
– Mas é isso mesmo que está me acontecendo,
eu estou cega pro resto: só vejo ele; eu estou confusa
demais: nunca pensei que meu primeiro amor por um
homem fosse pegar esse feitio; eu me sinto arrastada
pelo olhar dele, pelo jeito dele, pelo cerco dele. Ele
está me cercando, pai! Mas é um cerco tão lindo,
todo feito de chocolate e de flor, e de voz no telefone
que eu adoro ouvir, e de cartão e de carta, que eu leio
não sei quantas vezes, e tudo me chama tanto pra ele!
e mesmo não sabendo direito pra onde é que eu tô
indo, eu quero ir, e mesmo intuindo que eu tô indo
pra onde eu não devo, eu me sinto arrastada por ele,
confundida por ele, cegada por ele, ah, pai: paixão.
A Eduarda.
Pois é.
Não que a semelhança física da Carolina e da
Eduarda fosse extraordinária. Mas, assim sem sapato
(feito a Eduarda gostava de andar), com o cabelo
preso, e mal preso, no alto da cabeça (feito a Eduarda
costumava usar), mais pra magra e mais pra alta,
feito a Eduarda era também, e, ainda por cima, vestida
no vestido da Eduarda, o Homem Certo, e por que
não? achou que a Carolina era a Eduarda-que-tinha-
voltado.
E (aí é que foi curioso) quando viu que a Carolina
não era a Eduarda, não se decepcionou muito, não. É.
Ficou cativado pelo jeito da Carolina olhar, pelo jeito
da Carolina falar (achou que era jeito-de-Eduarda), e
já que ela não era a Eduarda, ele agora transformava
ela numa cópia do original, pronto.
Durante o jantar, quanto mais ele estudava a
Carolina (e quanto mais vinho provava), mais ele
se convencia de que podia reeditar a Eduarda na
Carolina.
Quando chegou a sobremesa, a Bianca já era
objeto de museu pro Homem Certo; quando o café
foi servido o Homem Certo já tinha resolvido
que no dia seguinte começava o cerco.
Retratos de Carolina 107
Depois de um tempo:
– É.
– ...sem querer falar com ela...
– É.
– ...sem querer ver ninguém.
– É.
– Você prefere continuar aqui sozinha, minha filha?
– Não, não. – E, ainda sem olhar pra ele, ela se
levanta, senta na cadeirinha e vira a cabeça pra janela.
– Senta, pai.
O Pai se senta com certo esforço. Um esforço que
Carolina não chega a notar.
– Eu hoje tive que fazer uns exames, por isso é que
eu cheguei mais tarde. Mas se eu soubesse que você
estava aqui me... Você estava me esperando, Carolina?
– Não. Quer dizer, vai ver estava. Não sei. É que eu
precisava ficar quieta. Num lugar bom... que eu amo...
Aqui. – Parece que vai se virar pro Pai; hesita; acaba
ficando na mesma posição. – Pra ver se passa, pra ver
se eu... – Meio que encolhe o ombro; se cala de novo.
– É melhor dizer pra tua mãe que você vai jantar
aqui conosco?
– Não, não, eu não tenho fome, vai você, pai,
vai jantar.
– Tua mãe ainda não chamou.
Retratos de Carolina 115
O silêncio se encomprida.
Lá pelas tantas, sem querer, o olho do Pai se
encontra com o olho de Carolina. Um encontro curto.
Mas suficiente pra apagar o brilho de esperança que
tinha se acendido no olho dela. E pronto, se separam.
Os livros na última prateleira da estante encostam
no teto. É pra eles que Carolina fica olhando.
Quando o silêncio fica longo demais, o Pai fala:
– Eu não vou querer prolongar a doença, Carolina.
Já avançou muito. Com uma rapidez que nos tomou
de surpresa, os médicos, a tua mãe, eu. Daqui pra
frente, vai ser só sofrimento. – Pausa. – Dor. – Pausa.
– Despesas. – Pausa. – Por que consumir o pouco
que eu consegui economizar numa vida que já está
condenada? – Pausa. – Não, não quero.
E o silêncio outra vez.
– Mas quando é que essa doença começou, meu
pai?
– Eu não vinha me sentindo bem já desde o ano
passado. Mas você sabe, não é? Eu sou meio alérgico
a médico, remédio, hospital, essa coisa toda; não
tomei nenhuma providência. Há coisa de dois meses
eu comecei com umas dores fortes no estômago. Os
primeiros exames que eu fiz acusaram o câncer em
estado avançado.
122 Lygia Bojunga
– É.
Silêncio.
Será que ela tinha o direito de continuar
avançando pela emoção dele adentro? Esperou. Ele
acabou vindo ao encontro da expectativa dela:
– Quando eu era moço, a separação era um bicho
de mais cabeças do que é hoje em dia. Fora disso,
quando a minha paixão foi diminuindo, eu comecei a
sentir pena da tua mãe. Uma pena que, essa sim, não
diminuiu nunca de tamanho.
– Pena? – e abaixou a voz, repetindo, pena?
– Pra mim, ela é uma coitada. E é por isso,
porque eu acho ela uma coitada, que hoje eu quis
ter essa conversa contigo. – Apoiou o cotovelo na
superfície da escrivaninha, descansou a cabeça na
mão, e o olhar se perdeu lá por onde o pensamento
andava. – Quando você nasceu, eu fui surpreendido
pelo interesse que eu senti em ser pai. Interesse e
alegria. Que foram crescendo te vendo crescer. E o
fato de você procurar sempre a minha companhia,
e termos nos tornado tão bons companheiros, foi
muito significativo na minha vida; foi tão importante
pra mim que por si só bastaria pra não ter desfeito a
relação pobre que eu sempre mantive com a tua mãe.
– Ficou um tempo pensativo. Meio que encolheu o
Retratos de Carolina 125
ombro. – Talvez ela não ache pobre, não sei; ela foi
programada pra achar que, se as contas são pagas, o
conforto assegurado, a família agregada, a casa limpa
e arrumada, então está tudo bem, o resto não chega a
interessar. Então, é possível que ela seja feliz. De uma
coisa eu tenho certeza: ela não se acha uma coitada.
– Por quê?
– Coitada?
– É.
– Passou a vida dependendo de mim pra tudo. Só
porque se casou comigo. Até hoje diz que não sabe
conferir conta nenhuma, preencher um cheque
qualquer; nunca falou em dinheiro: só fala essa
coisa de dinheiro, e pra ela, essa coisa é coisa feita
pra marido resolver. Arte é coisa feita pra essa gente
boêmia; política é coisa pra homem; pobreza é coisa
pra pobre, e diz que se Deus criou pobres e ricos, Ele
deve ter lá suas razões. Criatividade, pra ela, é uma
palavra oca, feita só pra impressionar. Nunca teve
a curiosidade de abrir um só desses livros pra ver o
que é que tem dentro; nunca pensou que, provando
o estudo, podia gostar do gosto; sequer cogitou se
valia ou não a pena ir ao encontro de uma profissão,
de um projeto de trabalho. E quando um dia eu disse
pra ela (isso no tempo em que eu ainda imaginava que
126 Lygia Bojunga
– Disse.
– Então?
– E isso também... não te magoa?
– O quê?
– Eu ir m’embora dele...
– Do teu marido?
– É.
– Mas se é esse justamente o grande alívio que eu
estou sentindo, Carolina! Você não pode imaginar
como me perturbava a ideia de ir m’embora da vida te
sabendo presa a uma relação que está te fazendo tão
mal. – Vai levando o corpo pra trás. Mal consegue
disfarçar um gemido. Carolina olha assustada pra ele.
Mas assim, reclinado na cadeira, o Pai parece
sereno. Ficam quietos durante um tempo.
Depois:
– Meu pai...
– Hein?
– Às vezes eu acho que essa... culpa que eu ando
sentindo de deixar ele... é mais medo que culpa.
– Medo? De quê?
– Pois é isso que eu me pergunto: será que é medo
das ameaças que ele me faz?
– Vai ver é medo de que a tua mãe queira que
você venha morar com ela depois da separação.
Retratos de Carolina 139
8 de setembro
15 de setembro
ali deita e rola. Mas, sei lá, parece que ela não se
incomoda.
2 de outubro
10 de outubro
20 de outubro
29 de outubro
– Hmm...
– Que nem o Homem Certo?
– Não, não!
– Uns... trinta anos?
– É... por aí. Um pouco menos.
– Alto ou baixo?
– Assim... assim mais ou menos da tua altura.
– Mais pra claro ou pra moreno?
– É... assim... É: mais pra moreno. Os olhos são
escuros. E o cabelo também, se é que você quer saber.
– Comprido?
– O quê?
– O cabelo!
– Ih... sabe que eu não me detive nisso?
– Puxa, mas cabelo é coisa que a gente repara
logo.
– Bom... vai ver... Ah, já sei! ele amarra o cabelo
atrás do pescoço.
– Ah, que lindo, então é comprido.
– Amarrado assim, ó. É: agora eu sei que é assim.
– E o que que ele faz?
– Como, o que que ele faz?
– Não precisa ficar impaciente, não é? Puxa, afinal
de contas não custa tanto assim falar um pouquinho
dele pra mim.
190 Lygia Bojunga
– Tânia.
Achei curiosa a entonação que Carolina emprestou
à voz quando repetiu o nome da paixão do Discípulo.
– Bom, o Discípulo sempre foi meio mulherengo,
sabe, Carolina. Mas até aí tudo bem, nenhuma
incoerência. Só que ele nunca foi muito apegado
a nenhuma namorada. O que também me parece
coerente: afinal de contas, o apego maior dele era a
defesa das causas sociais. Até o dia que ele encontrou a...
– O que que ela faz?
– Primeiro ela disse pro Discípulo que fazia isso,
depois aquilo, depois começou a se referir a si própria
como ativista política. Mas o Discípulo nem se ligou
no que ela fazia ou deixava de fazer...
– Ué.
– ...só prestava atenção no olho de gata que ela
tinha e na cabeleira ondulada que se arrepiava também
toda quando a Tânia dizia que se arrepiava de horror
diante do poder dos poderosos. Por mais que ele
tentasse entender como é que aquele maciço de cabelo
se arrepiava daquele jeito, ele não conseguia. Mas não
conseguia mesmo. No princípio a Tânia não explicou
direito de que poder e de que poderosos ela falava. E
também não ocorreu ao Discípulo perguntar, porque,
de repente, ele também: só de olhar pra Tânia ele se
196 Lygia Bojunga
7 de novembro
15 de novembro
16 de novembro
17 de novembro
20 de novembro
Dia 26
Dia 29
Dia 30
Sonhei!
(Ou será que imaginei?)
Ele estava lá mesmo. Na restinga. Deitado. O
braço atrás da cabeça, fazendo de travesseiro.
O olho bem aberto pro céu.
Pensando.
– Em quê, meu amor? – eu quis saber. E me sentei
do lado dele.
A barba dele tinha crescido.
Ele pegou a minha mão e ficou roçando a barba na
palma dela.
Bom.
Tinha uma orquídea em flor bem perto dele.
Amarela e roxa.
Bonito que era olhar pros dois. Mas eu queria
saber:
– Pensando em quê, meu querido?
– Você.
Fui me sentindo meio bamba. Que nem da outra
vez. (Foi ontem a outra vez, não foi?) (Esse negócio
de tempo... aqui... é meio irreal...)
E aí eu desabafei pra ele: eu tenho estado tão
sozinha que você nem imagina; faz tempo que eu não
206 Lygia Bojunga
– Hein?
– Como é que ele fica? como é que ele fica?
– O Discípulo?
– Quem mais, quem mais?!
– Calma, Carolina, não precisa ficar nervosa.
– Mas como é que ele fica?
– Ué: fica como ficou no teu autorretrato. Nem
mais, nem menos.
– Mas não pode.
– Por que que não pode?
– É claro que não pode! Lá ele não tem... não tem
história. Não tem começo-meio-e-fim. Lá ele... ele
só vive na minha imaginação; não é feito o meu pai,
feito... a minha mãe, feito a Bianca...
– Mas você mesma não disse, lá no teu diário, que
eu sou fruto desses espaços que eu venho criando?
Então? O Discípulo fica sendo fruto do espaço da tua
imaginação, dos teus sonhos. É só lá que ele vai viver.
– Mas por quê? por que que agora que não tem
mais peça... – Franziu a testa, ficou em dúvida: –
Você disse, não disse? que não tinha mais peça?
– É, Carolina, não tem mais peça. O que
antes era peça vai virar papel rasgado. Que vai pro
lixo. O caminhão vai levar. E vai deixar no depósito
de reciclagem. E o que era peça vira papel reciclado.
Retratos de Carolina 213
– É verdade.
– É verdade o quê?
– Foi mesmo muito desconcertante aquela atitude
da Priscilla. A gente fica sem saber, não é? se ela estava
fingindo, se ela ficou surpresa, se ela nunca imaginou
que você tivesse percebido a trapaça, se ela estava
arrependida, se ela estava o quê.
– E afinal?
– Afinal o quê?
– Ela estava fingindo?
– Ah, Carolina, isso eu não sei.
Carolina ficou me olhando, feito coisa que eu
estava brincando.
– Não sabe?
Fiz que não.
– Como, não sabe?
– Não sei, ué.
– Mas você tem que saber!
– Mas eu não sei, o que que eu posso fazer?
Carolina não gostou:
– Ah, essa não! Se você não sabe, quem é que vai
saber?
Espichei o queixo, levantei o ombro.
Carolina ainda gostou menos. Levantou a voz:
– Mas isso não pode ser! Você tem que saber.
236 Lygia Bojunga
Me impacientei:
– Mas que mania vocês todos têm de que a gente
tem que saber tintim por tintim de vocês. Desde
quando alguém sabe tintim por tintim de um outro
alguém?!
O olho de Carolina me abandonou, foi pra alto-
mar. Notei que eu tinha deixado ela meio emburrada.
Já-já vai passar, eu pensei. Esperei; e depois perguntei:
– Mas, fora essa incerteza, você ficou satisfeita
com esse teu novo retrato?
– Ainda não acabou, não é?
– Falta pouco.
– Pouco? A Priscilla ainda nem me telefonou pra
marcar o tal encontro...
– Ah, mas é um telefonema muito rápido: só pra
dizer que ela e o Nando tão te esperando no sábado:
reservaram a tarde toda pra você.
– E o que que vai acontecer no sábado?
– Você vai levar as tuas melhores plantas, os teus
melhores projetos (desde mocinha que você vive às
voltas com isso, não é), vai expor pra eles as tuas
melhores ideias, eles vão ficar entusiasmadíssimos
(porque talento a gente já sabe que você tem...), e a
Priscilla vai te contratar pro projeto da fundação. Não
é maravilha?
Retratos de Carolina 237
Os Colegas - 1972
Angélica - 1975
A Bolsa Amarela - 1976
A Casa da Madrinha - 1978
Corda Bamba - 1979
O Sofá Estampado - 1980
Tchau - 1984
O meu Amigo Pintor - 1987
Nós Três - 1987
Livro – um Encontro - 1988
Fazendo Ana Paz - 1991
Paisagem - 1992
Seis Vezes Lucas - 1995
O Abraço - 1995
Feito à Mão - 1996
A Cama - 1999
O Rio e Eu - 1999
Retratos de Carolina - 2002
Aula de Inglês - 2006
Sapato de Salto - 2006
Dos Vinte 1 - 2007
Querida - 2009
Intramuros - 2016
Este livro foi composto na tipologia Centaur, no corpo 13,5.
A capa em Cartão Supremo 250g e
miolo em papel Pólen Bold 90g.
Impresso na Imos Gráfica e Editora Ltda.