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andado até hoje: o começo – o que não deixa de ser

um diferencial, é ou não é?
No ano seguinte à publicação de Retratos,
meu primeiro livro (Os Colegas) foi liberado de
sua antiga editora e veio morar na Casa. Foi quando
tomei a resolução de dar o mesmo aspecto a todos
os meus livros, fazer deles uma coleção, digamos
assim. E assim foi feito. E assim permaneceu até
hoje. Só que a roupagem que escolhi pra futura
coleção, embora calcada na vestimenta que dei a
Retratos de Carolina, ficou diferente, sobretudo nos
toques artesanais que dei em Retratos e que resolvi
não repetir nos outros livros.
Dois anos depois da chegada d’Os Colegas na
Casa, comemoramos a reunião de todos os meus
personagens na nova morada.
Nos dezesseis anos decorridos desta minha
caminhada, quando, às vezes, vejo meus livros
enfileirados numa estante qualquer, meu olho
sempre tropeça na lombada de Retratos e eu me
pergunto: vai ficar assim? diferente?
Hoje, finalmente, resolvi: sim, vai ficar assim:
os mesmos textos que escrevi para as orelhas e
a quarta capa da publicação original do livro, a
mesma tipologia bojunguiana aqui e ali, a mesma foto
já meio desbotada que o Peter tirou de mim, justo
no local onde me despedi da Carolina, vai ficar tudo
igualzinho, do jeito que foi pensado e feito.

Muito mais poderia ser contado desta minha


caminhada, mas prefiro me despedir aqui, deixando
Retratos de Carolina com a mesma cara – em
respeito à Memória deste primogênito da Casa.
Retratos de Carolina 15

arolina ia atravessando os seis anos quando


conheceu a Priscilla. Já fazia quase um mês que as
aulas tinham começado quando uma manhã a Priscilla
entrou na sala de aula e anunciou da porta:
– Não vim antes porque andava viajando com a
minha família. Sento onde?
A Professora apontou:
– Se você achar a cadeira baixa, depois a gente
regula a altura.
– Dá pra regular agora? Eu não gosto de cadeira
baixa.
– Depois, Priscilla, depois. Agora preste atenção
ao que eu estou ensinando.
Priscilla?!
Carolina se encantou: era a primeira vez que ela
via uma Priscilla. Achou o nome lindo. Disse pensado:
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Priscilla. Pensou mais alto: Priscilla. E pra ouvir o som


disse baixinho, Priscilla.
Priscilla virou a cabeça (ela tinha se sentado em
frente da Carolina).
Carolina encabulou; meio que riu pra disfarçar e
disse um oi cochichado.
Priscilla respondeu um oi bem alto, abriu a cara
num riso e começou a procurar o jeito de regular a
cadeira.
Se fosse só o nome! Mas que cara tão de Priscilla
a Priscilla tinha! Assim, de olho verde-escuro e de
riso fazendo covinha no queixo e na bochecha.
Carolina se perturbou. Ficou olhando pro cabelo em
frente: comprido, encaracolado e ainda por cima
avermelhado. Era a primeira vez que ela via cabelo
dessa cor. Na hora do recreio quis saber:
– Você já nasceu assim, Priscilla?
– Assim como?
– Com o cabelo dessa cor?
Priscilla soltou uma risada. (De novo uma e a
outra covinha.)
– A minha mãe disse que quando eu era criança
ele ainda era mais vermelho.
Carolina se espantou:
– Mas você não é mais criança?
Retratos de Carolina 17

– Mês que vem eu faço sete anos.


– Ah, então você é mais velha do que eu.
– Mais velha quanto?
– Dois meses.
Priscilla, benevolente, meio que encolheu o ombro:
– Coisa à toa.
– Você já sabe ler?
– E escrever.
– Eu também
– Corrido?
– Depende.
– De quê?
– De não ter palavra que a gente tropeça.
E, por falar em tropeço, quando o recreio acabou
a Professora perguntou:
– A cadeira ficou boa, Priscilla?
– Boazinha.
A Professora olhou pra classe:
– Antes de começar o ditado, eu quero saber uma
coisa: como é que se escreve o sci de Priscilla?
O braço da Carolina se levantou num pulo:
– Com cê.
A professora fez que não. Apontou uma outra
menina, que baixou o braço e levantou o corpo pra
responder:
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– Com dois esses.


– Não. – E a Professora apontou um garoto.
O garoto se levantou e deu um soco no ar. (Era
assim que ele fazia quando matava uma charada.)
Gritou entusiasmado:
– Bota cê-cedilha nessa Priscilla!
E a cabeça da Professora disse devagar que não.
Perplexidade geral.
Priscilla levantou um braço lânguido e a
Professora mandou:
– Escreva Priscilla aí no quadro, Priscilla.
A Priscilla foi e escreveu.
Quando a Carolina viu Priscilla escrito, achou
ainda mais bonito que Priscilla falado: primeiro
porque era uma Priscilla de dois eles pra gente ficar
mais tempo com a ponta da língua no céu da boca
(quem sabe ela também virava uma Carolina de
dois eles?); segundo porque os dois deviam ser tão
unha e carne, o esse e o cê, que mesmo Priscilla
não precisando do esse, o esse não quis se separar
do cê. Teve tanta certeza desse afeto dos dois, que
cochichou ele pra Priscilla, assim que ela voltou do
quadro.
A Priscilla gostou da ideia. Jogou ela logo em voz
alta pra Professora.
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A Professora já não se entusiasmou tanto assim.


Se limitou a comentar:
– Vocês ainda são muito pequenas para entender
a grandeza da Língua Portuguesa.
Mas o parecer da Professora não abalou a
convicção da Carolina de que o esse e o cê eram assim:
unha e carne. Vai ver até a razão de tanta certeza era a
vontade que Carolina tinha de ter uma amiga-unha-e-
carne, corda-e-caçamba, onde-vai-uma-vai-outra; uma
amiga confidente, uma amiga pra amar. Assim, feito ela
amava o Pai. Não. Assim, não. Tinha que ser diferente.
O Pai era muito mais velho. E era pai. Não dava pra
ser amado do mesmo jeito que ela ia amar a amiga. Mas
será que algum dia ela ia encontrar essa amiga pra amar?
E, de repente, aconteceu. Aconteceu uma
Priscilla na vida da Carolina. Uma Priscilla que foi
se apriscillando mais e mais, à medida que Carolina
descobria novos aspectos do talento e da vida da
amiga. Por exemplo: a Priscilla dançando era uma
graça! Outro exemplo: teve aula de canto na escola e a
voz da Priscilla logo se destacou. Mas também,
pudera! A mãe da Priscilla era cantora de ópera,
imagina. (Durante dias a Carolina e a mãe da Carolina
ruminaram, impressionadas, o fato da mãe da Priscilla
ser cantora de ópera e, ao mesmo tempo, ser mãe de
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sete filhos. Sete filhos! A Priscilla era a caçula. E a


única mulher. Seis irmãos, já pensou? E Carolina, filha
única, era só pensar que alguém podia ter seis irmãos,
que pronto: já se arrepiava.)
Feito coisa que tudo isso era pouco, o pai da
Priscilla era cirurgião plástico, e a Priscilla estava
sempre contando pra Carolina tudo que é operação
que o pai fazia. Nossa! era coisa da gente nem
acreditar: botava nariz novo, tirava ruga velha, sumia
com barriga grande, tapava cicatriz de ferida, mudava
feitio de orelha; se mulher tinha peito grande e não
gostava, ele cortava; se outra queria grande, ele botava
nem mágico fazia o que o pai da Priscilla fazia.
E quando a Priscilla convidou a Carolina pra ir
na casa dela a Carolina ficou sem saber o que pensar,
de tanto que ela nunca tinha pensado que uma
Priscilla só pudesse ter tanto de tudo. Mas adorou o
quarto da Priscilla; achou ele lindo, todo assim, só
amarelo e branco.

E agora elas são amigas.


Pra Priscilla: mais uma amiga.
Pra Carolina: a amiga sonhada, admirada, unha e
carne, amiga amada.
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Carolina (já se viu no caso do esse e do cê) era dada


a convicções. E outra das muitas convicções que ela
tinha é que amiga-amiga tem que partilhar tudo que é
segredo da gente. Então, bastava Carolina achar
que uma coisa tinha cara de segredo pra já ir correndo
contar pra Priscilla. Mas a Priscilla não retribuía na
mesma moeda. E isso deixava Carolina pensativa.
– Não aconteceu nenhum segredo com você,
Priscilla?
– Quando?
– Hoje.
– Por enquanto, não.
– E ontem?
– Se aconteceu, já esqueci.
– Se acontece amanhã, você me conta antes de
esquecer?
– Conto.
– Promete?
– Prometo.
Mas não contava. Carolina às vezes pensava,
coitada da Priscilla, ela não tem segredo nenhum!
(feito coisa que a Priscilla não tinha uma orelha
ou um dedo), outras vezes ela duvidava: será que
ela tem e não me conta? Sentia uma coisa doendo
dentro dela. Mas não sabia que era a dor da
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suspeita. E, na esperança de que segredo-com-


segredo-se-paga, ela tratava de ir contar pra
Priscilla mais um pedacinho do Grande Segredo,
que ela tinha acabado de descobrir.

(Uma vez, falando de segredos, o pai da


Carolina disse pra ela que a vida é um
grande segredo, que vai se desvendando
devagar, à medida que a gente vive. Disse
que quanto mais a gente presta atenção
nele, mais ele se mostra. Mas disse também
que, por mais que a gente preste atenção
nele, ele jamais se mostra todo. Carolina
logo se interessou pelo Grande Segredo.
Quis saber mais. O Pai falou:
– Muita gente passa a vida espiando o
Grande Segredo por uma frestinha estreita
assim.
–?
– Já outros conseguem espiar pra ele por
frestas mais largas.
–?
– Tem ainda outros que não se contentam
com frestas: querem ver tudo do Grande
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Segredo. Mas eu já te disse que ele é mestre


nesse jogo de esconde-esconde: ganha
sempre.
–?
– Pra qualquer um que entra no jogo, ele vai
logo abrindo frestas. Mas estreitas. Sempre
muito mais estreitas do que a gente quer.
–?
– Não nos resta alternativa melhor senão
tentar alargar cada uma.
–?
Mas com tanta interrogação no olho de
Carolina, o Pai achou melhor continuar a
conversa outro dia. Ou melhor, outro ano.
Depois dessa conversa, sempre que o Pai
falava pra Carolina do Grande Segredo,
pegava um tom meio segredado. Um pouco
por brincadeira, um pouco por achar que
assim, apresentada como um grande segredo,
a descoberta da vida ainda se tornava mais
estimulante pra filha.
A imagem das frestas se instalou na
imaginação de Carolina. Numa porta que ia
se abrindo, mas não se abria; numa fenda que
riscava um muro; na folha de uma janela
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que quase se encontrava com a outra,


Carolina adivinhava uma fresta
importante; tentava espiar por ela; e
bastava ver alguma coisa que, pronto: já
achava que tinha desvendado mais um
pedacinho do Grande Segredo. Ia
correndo contar pra Priscilla, usando a
tal voz segredada que tinha aprendido
com o Pai.
A Priscilla não entendia por que que a
Carolina fazia mistério de tanta coisa que
não tinha cara nenhuma de segredo. E, da
mesma maneira, a Carolina não entendia
por que que a Priscilla não compartilhava
nenhum segredo com ela.)

Até que numa sexta-feira de manhã se abriu pra


Carolina uma fresta inesperada. E Carolina viu um
pedaço de Grande Segredo pra Priscilla nenhuma
botar defeito. Sentiu até medo. Mas não foi só
medo que a Carolina sentiu: confusão, tristeza, até
desespero ela teve que aguentar. E ela quis tanto,
mas tanto! ir logo dividir com a amiga a dor que
estava sentindo.
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Mas a tal sexta-feira foi justo o dia dos sete anos


da Priscilla: a casa da amiga se abria para uma grande
festa. E a Priscilla tinha que tratar do cabelo, e a
Priscilla tinha que tratar do vestido, e a Priscilla tinha
que tratar de mil coisas, porque a minha festa tem que ser
uma grande festa.
Carolina teve que suportar sozinha a dor.
Durante horas a fio. Descobrindo no sofrimento
solitário uma medida nova de vida. Se agarrou na
expectativa de chegar na festa e desabafar com a
Priscilla tudo que tinha acontecido; e ficou
esperando o tempo passar.

Carolina chegou na festa de cara mostrando


que muita lágrima tinha rolado por lá. Abraçou a
Priscilla...
– Muitas felicidades, Priscilla.
...e entregou o presente que tinha trazido:
– Toma pra você.
– Nossa! que cara horrível, Carolina.
– É que aconteceu uma coisa horrível. – Já fez
o anúncio com voz de segredo. E vendo o monte de
gente, de salgadinho e de doce, pediu supersegredado,
deixa um pouquinho a tua festa pra lá e me escuta?
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A Priscilla arregalou cada olho assim:


– Deixar a minha festa pra lá?!
– Só um pouco Priscilla. Aconteceu uma
coisa que não podia ter acontecido, eu preciso te
contar!
Priscilla suspirou resignada:
– Tá. Vamo lá pro meu quarto. – E foi puxando
a Carolina pela mão. Mas no caminho avisou: – Não
pode ser um desabafo muito grande, viu? Festa é festa.
Entraram no quarto.
– Fecha a porta.
A Priscilla fechou.
– Priscilla, você sabe que...
– Pera aí, primeiro deixa eu ver o meu presente. –
Desembrulhou a caixa. Era uma boneca.
– Ainda bem que a minha mãe comprou ela
ontem, Priscilla. Se fosse hoje ela não comprava mais.
Gostou?
– Gostei sim. Obrigada. Mas por que que ela não
comprava se ontem fosse hoje?
Carolina procurou um lugar na cama pra sentar,
mas tinha presente em cima da cama toda. E em cima
da penteadeira. Em cima da cômoda. Em cima da
mesa de estudo. Em cima do armário também. Nas
cadeiras. No chão. Então, Carolina desabafou de pé:
Retratos de Carolina 27

– A minha mãe me bateu!


Priscilla ficou esperando.
– Ela nunca tinha me batido antes, Priscilla, essa
foi a primeira vez. E foi uma surra que você precisava
ver. De chinelo! O chinelo do meu pai, ainda por
cima. Ela já tinha me dado beliscão, puxão de orelha,
essas coisas, mas uma surra eu nunca tinha apanhado
na vida, foi horrível, Priscilla, foi horrível! e o pior é
que tem um horrível ainda pior que esse horrível pr’eu
te contar.
A Priscilla esperando.
Carolina fez um esforço pra continuar falando; a
vontade era só de chorar:
– O pior é que eu pedi a ela... por favor... POR
FAVOR... pra ela não contar pro meu pai. Se ela não
contasse, Priscilla, eu perdoava ela de ter me batido do
jeito que ela me bateu, ainda por cima com o chinelo
do meu pai. Eu desculpava ela e ia gostar dela feito
eu gostava antes. Mas ela esperou o meu pai chegar
e a primeira coisa que ela fez quando ele chegou foi
contar tudo pra ele. – O esforço se desmanchou, o
choro voltou.
– Mas, Carolina, o que que você fez?
– Eu não sabia que era uma vergonha assim tão
grande, Priscilla.
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– O quê?
– Brincar de teu pai com o Serginho.
Priscilla olhou pra Carolina com aquela cara que
ela olhava muitas vezes: total incompreensão.
Carolina reforçou o tom de segredo:
– A gente combinou que hoje de manhã ia brincar
de médico, o Serginho e eu. A minha mãe tinha
saído. Quer dizer, eu pensei que ela tinha saído. Da
última vez que o Serginho foi lá em casa brincar, sabe
Priscilla, a minha mãe disse pra ele ir embora porque
eu tinha que estudar e...
– Conta logo tudo de uma vez, Carolina, eu tenho
que voltar pra festa.
– Por favor, Priscilla, você tem que me escutar.
– Então conta logo!
– Hoje de manhã o Serginho foi lá em casa...
– Você já disse!
– ...pra gente brincar de teu pai.
– Mas que que é isso, brincar de meu pai?
– De médico
– Médico, não: o meu pai é ci-rur-gi-ão plás-ti-co.
– Pois é, eu sei, e o Serginho ia fazer uma plástica
em mim. Desde o dia que eu vi o pintinho dele, eu
fiquei querendo também um pra mim...
– Pintinho??
Retratos de Carolina 29

– ...e quando ele me mostrou que legal que era


fazer xixi pro alto, eu ainda fiquei querendo mais. Ele
falou que quanto mais grande o pintinho, mais alto o
xixi sobe.
– Puxa, Carolina, até hoje você não sabe que só
criança muito criancinha demais é que chama pau de
pintinho?
– Pau?!
– Fala baixo!
Por um momento Carolina se esqueceu da aflição
que estava devorando ela.
– Mas por quê?
– O quê?
– Que é pau?
– Ah, isso eu não sei, mas que é pau, é pau, e
vamo logo com essa história que eu tenho que voltar
pra festa.
Ainda meio confusa, Carolina tocou a história pra
frente:
– E quando eu disse pro Serginho...
– Esse Serginho é aquele que mora em frente da
tua casa?
– É.
– O olho dele parece de vidro.
– Você acha, é?
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– Bom, e aí?
– E aí, quando eu disse pro Serginho que a minha
mãe tinha ido ao médico, ele perguntou se eu também
não queria ir, e quando ele disse que o médico era ele,
eu topei, e a gente foi lá pro fundo do quintal, e foi
aí que a gente teve a ideia de fazer a... como é mesmo
quese chama essa coisa que o teu pai faz?
– Ci-rur-gia...
– Plástica! E ele me perguntou que tamanho que
eu queria o meu...pau, e eu disse que queria um bem
grande, pra fazer xixi lá pra nuvem, e então a gente
começou a procurar um pedaço de pau lá no quintal
pra... ah, Priscilla! quem sabe é por isso que chama
assim? Porque o Serginho também chama pintinho de
pintinho, mas na hora de procurar um pra botar em
mim ele foi procurar um pedaço de pau.
O olho da Priscilla corria a toda hora pra
porta.
– Anda com essa história, Carolina.
– Aí a gente encontrou um pedaço assim desse
tamanho, e foi lá pra dentro da casinha de ferramentas
pra ele fazer a operação. – A voz foi se ajeitando melhor
no tom de segredo-absoluto. – Aí eu tirei a minha calça
pra botar o pedaço de pau em mim e ele também tirou
a calça dele pra poder ver bem onde é que o pau dele
Retratos de Carolina 31

começava e aí fazer tudo certinho em mim. E quando a


gente tava vendo a porta abriu e a minha mãe entrou.
– Xi!
– Foi logo falando gritado, disse que a gente tava
fazendo indecência.
– Mas ela não tinha ido ao médico?
– Desmarcou e não falou.
– E aí?
– Disse pro Serginho que ia contar tudo pro pai
dele (o pai dele é uma fera, Priscilla!). O Serginho
pegou a calça e saiu correndo, e naquela afobação nem
viu que a minha calça tava junto e levou ela também; e
quando a minha mãe mandou eu botar a calça: cadê?
Aí ela me pegou assim pelo braço, foi me arrastando
pra dentro de casa, me jogou em cima da cama dela e,
quando viu o chinelo do meu pai no chão, disse assim:
deu as calças pra ele, não é? melhor pro chinelo! E me
bateu, e me bateu, e me bateu.
O pé da Priscilla já não sossegava, ia e vinha no
chão.
– Eu nunca tinha apanhado antes, Priscilla!
– Bom, pelo menos já viu que ruim que é.
– E o pior é que ela me bateu com o chinelo do
meu pai.
– Pior por quê? O pé dele é muito grande?
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– Não é isso! É que o chinelo é dele...


– E daí?
– ...e eu sei, eu sei! que nada dele é pra bater em
mim.
– Esquece. Vamo pra festa, vem.
– Espera! eu ainda não te contei o pior.
A Priscilla arregalou um olho alarmado, já
prevendo a demora que ia levar esse pior:
– Depois você me conta.
– Não! eu preciso te contar. Esse tempo todo
que a minha mãe me puxou e me bateu e me
gritou, ela falou uma porção de coisas que eu
não entendi direito, negócio do Serginho se
aproveitando de mim, negócio de imoral, não!
moral, não! amoral, sei lá, depois eu lembro
direito...
– Isso! depois. Vem.
– ...mas aí ela disse sabe o quê? Que era só o
meu pai chegar em casa que ela ia contar pra ele
a minha sem-vergonhice, e ela falou tanto que eu
era sem-vergonha, que só de pensar que o meu pai
ia ficar sabendo que eu era sem-vergonha eu fiquei
pra morrer, e aí, sabe, Priscilla... – A Priscilla agora
puxava a Carolina pela mão, mas a Carolina se
segurava na beirada da cômoda. – ...aí eu pedi pelo
Retratos de Carolina 33

amor de deus pra ela não contar nada pro meu pai,
eu jurei que nunca mais na vida eu brincava com o
Serginho, eu jurei que nunca mais tirava a calça, eu
falei que jurava tudo que ela queria, mas por favor!
por favor não conta nada pro meu pai, e foi só o
meu pai chegar em casa que ela contou tudo pra ele.
– Puta!
O breve diagnóstico da Priscilla saiu tão forte
quanto inesperado.
A própria Priscilla se espantou. E feito coisa que
a mão de uma tinha dado um choque na mão da
outra, as duas mãos se largaram e o pé da Priscilla
galopou pra porta.
Te espero lá embaixo, Carolina. – E pronto, a
Priscilla voou pra festa. *

* Quando um dia perguntaram pra Priscilla por que que ela


e a Carolina já não eram amigas, a Priscilla respondeu:
– A Carolina esfriou comigo.
– Ué, por quê?
– Porque eu chamei a mãe dela de puta. Mas foi sem querer, viu?
Será que a Priscilla achava mesmo que era por isso? Será
que nunca passou pela cabeça dela que o esfriamento da
Carolina foi pelo que veio depois, quando cortaram o bolo de
aniversário com as sete velas recém-sopradas?
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Agora Carolina está sozinha no quarto da


Priscilla. Continua agarrada na cômoda. Uma onda
nova de choro faz ela se virar pro móvel, rodeia
ele com o braço e fica assim, a bochecha colada no
gavetão de cima.
Feito coisa que era pouco tanta zanga da mãe e
tanta vergonha do pai, agora ainda mais essa: a Priscilla
nem espera ela acabar o desabafo, corre pra festa, não
dá a menor bola pra tudo que ela está sofrendo.
Carolina se abraça com mais força na cômoda; vai
lembrando, ainda outra vez, do Pai chegando em casa
e da Mãe contando pra ele tintim por tintim de tudo,
calça, Serginho, etc. E o tempo todo ela ali escutando.
Doida pra espiar a cara do Pai. Mas sem coragem de
levantar o olho. E mesmo quando a Mãe contou da
surra, e mesmo quando ouviu a voz aborrecida do Pai
repetindo, não precisava ter batido nela, não precisava,
mesmo aí ela não teve coragem de levantar o olho pra
ele. Só ficou esperando a Mãe contar que tinha batido
com o chinelo dele. Mas a Mãe não contou. Será que
a Priscilla não entendia que não tinha coisa pior na
vida do que o Pai não gostar mais dela? E quando,
depois, o Pai disse que levava ela na festa (a mãe já
tinha dito eu não te levo, e sozinha é claro que você
não vai), mesmo aí ela não teve coragem de olhar pra
Retratos de Carolina 35

ele. Não olhou nem quando eles chegaram na casa da


Priscilla e o Pai perguntou: a que horas você quer que
eu venha te buscar? Respondeu seis horas e correu pra
dentro, sem nem virar a cabeça nem nada.
E só agora, a cara se afastando da cômoda, a
testa formando uma ruga, Carolina se lembra que,
no caminho pra festa o Pai tinha contado uma
história pra ela. Como é mesmo que era a história?
Ah! um cachorro era unha e carne com um gato, e aí...
Mas se o Pai tinha contado uma história pra ela, feito
ele sempre contava, então ele continuava igual ao que
ele sempre era... É ou não é? E se ele continuava igual
ao que ele sempre era, então ele não estava contra ela...
estava?
Se apercebe de repente de um cheiro gostoso. É
a madeira da cômoda. Cheira ela mais fundo. Vai
relaxando o abraço. Presta atenção nos puxadores;
acha eles bonitos. Se desabraça de vez; olha pro móvel
com mais atenção; se lembra de um detalhe, ah! teve
outra coisa também: quando ela estava entrando lá
embaixo no jardim o Pai tinha feito uma festa na
cabeça dela. Uma festa feito ele sempre fazia. Bom,
mas então... então o pai não estava contra ela, estava?
Carolina começa a se dar conta do barulho da
festa, palma, risada, gritaria. E ela ali não fazendo
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outra coisa senão chorar! não era à toa que a Priscilla


tinha perdido a paciência. Tira um lenço da bolsa;
enxuga as lágrimas; se assoa com força, se sente mais
animada. Desce pra festa.

A entrada do bolo na sala causou sensação: o bolo


era um exagero de tamanho e decoração. A Priscilla
não conversou: exagerou também no soprão; e, de sete
velas apagadas, olhou vitoriosa pra Carolina. Uma riu
pra outra.
Cantoria. Palma. Grito. Assobio.
A Mãe-da-Priscilla pegou um talher e bateu
num copo:
– Atenção! Atenção! Vou explicar o bolo.
A criançada fez um silêncio espantado. Bolo
tinha explicação?
– O bolo não é assim tão grande só porque vocês
são uma porção. É que tem três prêmios dentro
dele. E os três são deste tamanho. – Mostrou no ar o
tamanho dos prêmios. Riu.
Os convidados se apertaram em redor da mesa:
cadê? cadê os prêmios?
– O primeiro prêmio é o que eu gosto mais –
a Priscilla segredou pra Carolina. Mas segredou
Retratos de Carolina 37

mesmo, com cara e voz de mistério, a mão meio que


tapando a boca.
Carolina saudou o momento com um suspiro
de felicidade: que bom que era sentir no ouvido a
voz segredada da Priscilla, ah que bom! Até que
enfim a Priscilla segredava; até que enfim o dia se
endireitava.
Em volta, outra vez a pergunta, cadê os prêmios? cadê?
As luzes se apagaram e, num andor improvisado,
carregado por dois empregados da casa, entrou
o primeiro prêmio, iluminado pelas velas de um
castiçal. Era uma boneca do tamanho da Carolina,
cabelo, roupa e sapato um luxo só; e entrava de pé,
embalada em celofane e papelão. Foi saudada com
um entusiasmo tremendo.
A Mãe-da-Priscilla bateu o talher no copo:
– Atenção! Quando eu mostrei o prêmio pro meu
marido, ele disse, mas boneca é coisa de menina, você
agora tem que comprar um prêmio bem de menino. –
A cara se resignou. – Aí eu fui e comprei.
Entrou outro andor na sala, iluminado também
de velas.
– Pra que tanta vela? – um garoto de boné azul
perguntou cochichado pra Carolina. – Será que
acabou a luz?
38 Lygia Bojunga

Carolina fez cara de dúvida, espichou o queixo


pra sala ao lado, que continuava de luz acesa, e o
garoto do boné concluiu:
– Então é pra depois a gente soprar.
Em pé no andor, também metida em celofane e
papelão, vinha uma espingarda de ar comprimido.
Outra vez o talher no copo, e a Mãe-da-Priscilla
falando em tom de ópera:
– E aí eu contei pro meu marido (ele ainda
não chegou porque está fazendo uma cirurgia
plástica di-fi-cí-li-ma), eu contei pra ele que tinha
comprado este outro prêmio e ele perguntou, e se
uma menina ganha o prêmio arma e um menino
ganha o prêmio boneca, você acha que eles vão
trocar? E então ficou combinado que quem ganhar
vai ter que trocar.
Algazarra.
Talher batendo no copo. Voz (contralto) pedindo
silêncio:
– Então está combinado, não é? Se uma menina
ganha a espingarda e um menino ganha a boneca, eles
trocam, tá?
– E se a menina quer ficar com a espingarda? –
uma menina perguntou.
– Ah, mas ela não vai querer.
Retratos de Carolina 39

– Se for eu, eu quero: eu não me amarro em


boneca. E aí? como é que fica?
– Ela fica, pronto – a Priscilla foi logo dizendo –
ela fica com a espingarda.
– E o garoto fica com a boneca?
– Problema dele, ué! (Paciência não era o forte da
Priscilla.)
Mas a Mãe-da-Priscilla já tinha solução pro
possível impasse:
– Quem quiser trocar pode trocar pelo terceiro
prêmio. O meu marido achou melhor ter também um
prêmio neutro. Aí vem ele.
Todo mundo se virou. A recepção dessa vez
foi silenciosa. O terceiro prêmio era uma gaiola
grande, toda feita de bambuzinho, um trabalho
artesanal belíssimo. Dentro, um pássaro também
grande e belo. No alto da gaiola, uma argola em
madeira esculpida. E parecendo até que tinham
ensaiado a cena, ficaram todos assim: parados,
mudos, só esperando o pássaro fazer qualquer
coisa. Mas no pássaro todo só o olho se mexia.
Então a Carolina perguntou:
– Ele canta?
A Mãe-da-Priscilla sacudiu a cabeça e a fisionomia
pegou um ar risonho de mistério.
40 Lygia Bojunga

A Menina-que-não-se-amarrava-em-boneca quis saber:


– Mas se ele não canta, então pra que que ele serve?
– Ele é só pra olhar, não é, mãe?
A Mãe-da-Priscilla passeou um olhar vagaroso
pela sala:
– Vocês não repararam nada de diferente neste
pássaro?
A garotada olhou pro pássaro com mais atenção.
Carolina foi a primeira a se manifestar:
– Ele tem uma coleira no pescoço.
– E pra que que ele tem uma coleira no pescoço,
Carolina?
Carolina deu uma espremida violenta na
imaginação e o resultado foi uma pergunta indecisa:
– Pra servir de cachorro?
Um sorriso deste tamanho desmanchou o ar de
mistério na cara da Mãe-da-Priscilla.
– Isso! pra servir de companhia. Este pássaro é
um pet.
A Priscilla fez uma careta:
– É um quê?
– Pet, filhinha; pet é a palavra inglesa para esses
bichos que a gente tem em casa pra servir de
companhia. Se a gente quiser tirar este pássaro da
gaiola pra dar uma voltinha com ele é só ir puxando
Retratos de Carolina 41

ele pela coleira e pronto: não tem perigo dele bater


asas. Porque vocês sabem, não é? o pet foi feito pra ficar
com a gente; sem a gente, o que que ele vai fazer?
Tlin-tlin! (talher no copo).
– Olhem aqui, prestem atenção: pra abrir a porta
da gaiola a gente levanta esse bambuzinho aqui, olha
só que gracinha que ele é; puxa ele assim pra cima
da argola, ó.
Enquanto tudo que é criança rodeava a gaiola pra
examinar o Pet e a coleira, Carolina se perguntava,
mas, se ele é pra servir de cachorro, por que que não
veio logo um cachorro?
O garoto de boné azul quis saber:
– Por que que a senhora disse que os prêmios tão
dentro do bolo?
O tal ar de mistério voltou pra cara da Mãe-da-
Priscilla:
– Ah!... mas tão.
Todos largaram o Pet pra lá e voltaram a atenção
pro bolo.
Tlin-tlin!
– Atenção! O recheio deste bolo tem muitas
ameixas. Sem caroço, é claro. Mas... atenção: três
delas têm caroço. E é no caroço que está marcado o
número dos prêmios. Número um: a boneca... – Um
42 Lygia Bojunga

coro unânime saudou o primeiro prêmio. – Número


dois: a espingarda... – um coro animado saudou a
espingarda. – Número três, o Pet. – Uma ou outra
voz fraquinha foi tudo o que se ouviu. – Portanto,
mastiguem com muito cuidado: a ameixa pode estar
premiada com um caroço.
A recomendação não adiantou nada: todos já
estavam de prato estendido, e era só a fatia de bolo ser
servida pra ser logo devorada.
Talher no copo:
– Mastiguem devagar! pode ter uma ameixa com
caroço aí dentro.
– E a gente arrisca de quebrar um dente, não é? –
disse a menina-que-não-se-amarrava etc.
Priscilla reforçou o perigo:
– O pior é se a gente engole o prêmio.
A recomendação incessante da Mãe-da-Priscilla
(que já estava ficando alarmada de ver a rapidez com
que a criançada engolia o bolo e estendia de novo o
prato) não fez nenhuma diferença pra Carolina: ela
não sabia fazer nada correndo: mastigou devagar.
Mas sorte é sorte: foi só provar o bolo que o dente
já travou numa dureza. Surpreendida, ela cuspiu o
caroço na mão em concha e anunciou gritado:
– Ganhei um caroço!
Retratos de Carolina 43

Assim que Carolina gritou, pronto! a Priscilla já


estava junto dela, olhando pro número (muito bem
marcado, por sinal) que o caroço mostrava. E antes
mesmo da Carolina se recuperar da emoção de ter
ganho o maior prêmio da festa, a Priscilla já tinha
pegado o caroço da mão da Carolina, anunciando
num estardalhaço:
– A Carolina ganhou! a Carolina ganhou! Sou eu
que dou os prêmios: eu sou a dona da festa.
A Mãe-da-Priscilla suspendeu a fatiação do bolo e
foi ajudar a Priscilla a entregar a gaiola pra Carolina.
– Não, não, Priscilla! – a Carolina protestou –, o
meu prêmio é a boneca, é o número um, vê aí.
A Priscilla fez cara de espanto e estendeu o caroço
na palma da mão. O caroço estava marcado com o
número três. Carolina segredou pra Priscilla:
– Mas ele saiu da minha boca com o número um,
eu vi!
Mas a Priscilla já estava batendo palmas e
comandando um coro de Viva! Viva! a Carolina agora tem
um pet!
Um garoto gritou, ganhei!! A Priscilla correu pra
junto dele:
– Ah, isso não é caroço, seu bobo, isso é uma noz!
O bolo emagrecia a olhos vistos.
44 Lygia Bojunga

A menina-que-não-se-amarrava-em-boneca gritou,
ganheeeeeeeeeei!
A Priscilla correu pra junto dela, e foi só olhar pra
mão estendida da menina que soltou uma gargalhada:
– Foi ela mesma! Foi ela mesma que ganhou a
espingarda! Número dois!
De novo a fatiação do bolo foi interrompida. A
Mãe-da-Priscilla ria que só vendo.
– O meu marido vai a-do-rar essa história.
Enquanto tudo isso ia rolando, o olho da
Carolina não largava mais a Priscilla, fiscalizando
tudo que é movimento que a mão da Priscilla fazia.
Passada a surpresa do caroço ter mudado de
número, um farrapo de lembrança foi voltando
devagar pra memória da Carolina: um gesto que a
Priscilla tinha feito, quando pegou o caroço da
mão da Carolina e correu pra buscar a gaiola; um
gesto muito rápido: a mão entrando e saindo do
bolso da saia. E agora Carolina se pergunta, será
que eu vi mesmo? será que eu vi bem? e o olho não
se solta mais da mão da Priscilla.
Não demora muito e a Priscilla grita de boca cheia:
– Dentei um caroço!
O olho da Carolina vê direitinho a Priscilla parar
de mastigar o bolo; vê a mão da Priscilla fazer feitio
Retratos de Carolina 45

de concha, ir pra junto da boca e recolher um


caroço, e vê a outra mão, que entra e sai rapidinho
do bolso da saia e vai dar um “apoio” à mão que
está junto da boca.
– Número um!! – a Priscilla grita, estendendo a
mão pra exibir o caroço.
A Mãe-da-Priscilla fica vexada:
– Ô, filhinha! não fica bem a dona da festa ganhar
o primeiro prêmio.
– Não tenho culpa de ter sorte, não é, mãe? –
Rasga o celofane que envolve a caixa; alisa com prazer
o cabelo, o vestido, o sapato da boneca...
Carolina olhando.
...examina o fecho da bolsa que a boneca segura: abre
e fecha, abre e fecha. Volta pra junto da mesa e ordena:
– Tira esse bolo daqui, mãe! Todo mundo já comeu
tanto bolo que, se come mais, vai passar mal.
– É verdade.
O bolo é retirado da mesa e a Priscilla anuncia:
– A festa agora vai esquentar! A gente vai
brincar de dança-e-senta. – Liga o som. Volume pra
megaevento nenhum botar defeito. Cadeiras são
arrastadas. Priscilla começa a dançar. A garotada se
reveza entre a mesa de doces e a brincadeira. Priscilla
chega perto da Carolina e puxa ela pela mão:
46 Lygia Bojunga

– Vem, Carolina, vem dançar, vem!


A mão da Carolina volta depressa pra dona.
– Não posso, Priscilla, o meu pai vem me buscar.
Vou esperar ele lá fora, tchau. – Vai saindo.
– Não esquece de levar o teu prêmio.
Carolina se vira; quer gritar que aquele não é o
prêmio que ela ganhou. Mas o grito não sai. Nem
uma palavra sai. Corre pra porta; para; hesita; volta
pra sala e, num puxa-pra-cá-empurra-pra-lá,
consegue sair pro jardim com a gaiola. O olho bate
num viçoso pé de azaleia branca, que está todo em
flor. Mas Carolina não vê que bonita é a planta, só
vê que atrás dela os dois podem sumir, ela e o Pet.
Na aflição de se esconder depressa, mal chega atrás
da planta, empurra a gaiola contra os galhos do
arbusto; desaba no chão, o coração batendo forte,
pronto, pronto, agora nem a Priscilla nem ninguém
vai ver ela, agora ela vai ficar pra sempre ali
escondida, todo mundo perguntando, cadê a
Carolina? a Carolina não está no jardim? Todo mundo
procurando, você viu a Carolina? meu deus, cadê a
Carolina? E ela ali escondida. Aí, passava um dia
atrás do outro, atrás do outro, atrás do outro,
até que um dia chegava o dia que ela perdoava a
Priscilla. Aí sim, ela podia sair de trás da planta e
Retratos de Carolina 47

olhar de novo a Priscilla na cara, porque aí sim,


olhar pra cara da Priscilla era feito olhar pr’uma
cara qualquer. Mas agora, não! agora ela não queria
ver a Priscilla na frente dela porque não foi você
que eu ganhei, tá ouvindo? tá ouvindo? Eu ganhei
foi o primeiro prêmio e não você; e de testa
encostada na gaiola, o olho fuzilando o Pet,
Carolina repete, ela disse que eu ganhei você, mas
não foi você que eu ganhei, não foi você, e bate e
bate na gaiola de punho fechado.
O tom de voz é baixo, um tom que quer ser
segredado mas que sai convulsionado, traindo uma
emoção que a Carolina nunca tinha experimentado antes.
O Pet, que já vinha assustado desde que
prenderam ele na gaiola, se assusta ainda mais: pula
pr’aqui, pula pra lá, bate asa, pula de novo.
– Você pensa que eu não vi, mas eu vi: tava
marcado e bem marcado: número um. Mas ela tirou
ele da minha mão e tirou do bolso um outro marcado
três, eu vi a mão dela trocando, eu vi, eu vi, eu vi!
(Pra cada fala repetida a mão repete a batida.) Ela fez
aquela mentirada toda pra ficar com o que era meu.
Mas por quê? por quê? por quê? Ela tem tudo mais de
um, até ele no nome ela tem mais que um, ela tem tanta
boneca no quarto que não dá nem pra contar, então
48 Lygia Bojunga

por que que ela ainda quis a minha, que era minha, que
eu ganhei, me diz! diz, diz!
O Pet não sossega na gaiola.
– Fica quieto aí! E fica também sabendo que eu
não tô a fim de você. A boneca que eu ganhei, sim,
eu podia brincar com ela, mas com você eu brinco
de quê, se você taí preso? Eu não quero bicho que é
preso, eu não quero saber de você! E não é só você
que eu não quero: ela também: eu não quero mais,
nunca mais. – O dedo esbarra com força na argola
que prende a porta: – Droga! – A dor no dedo
aumenta a raiva. Carolina luta com o bambuzinho
pra desprender ele da argola, mas só pensando e
repetindo, por que que ela fez isso comigo, por quê?
A mão libera o bambu e empurra a porta com força.
Talvez a surpresa da porta tão grande.
Talvez a estranheza de uma gaiola tão aberta. O
fato é que, num de repente, o Pet se imobiliza,
intuindo que a liberdade está à espreita.
Carolina nem vê na frente dela a porta aberta; e
também não se dá conta da expectativa do Pet.
Encosta a testa na gaiola e faz força pra não chorar.
Pouco a pouco uma pergunta vai se formando no
pensamento de Carolina: mas pode? pode assim uma
coisa virar na outra? E quanto mais ela pensa em tudo
Retratos de Carolina 49

que sentia pela Priscilla, mais ela se surpreende com


tudo o que sente agora. É raiva! é raiva que ela sente
onde antes sentia amor, e fica confusa, cada vez mais
confusa, sem saber formular direito a pergunta que
quer fazer: mas pode? pode assim um ser amado virar
tão depressa odiado?
Em redor, o anoitecer vai se espalhando.
Pode?... Mas, se pode... como é que pode?...
Até que, lá pelas tantas, reprime um grito de
susto: sentiu na cabeça uma coisa pousando. Se vira
tão rápido que o olho nem tem tempo de dissimular:
entra direto pelo olho do Pai adentro. O Pai tinha se
inclinado pra mão alcançar a cabeça da Carolina.
– O que que você está fazendo aí, minha filha?
Durante um tempo Carolina só fica assim:
olhando pro Pai. Enquanto a lembrança de tudo que
tinha acontecido antes da festa vai voltando.
– Que que foi, Carolina? você está com uma cara
tão... tão... Você está bem?... Você não está gostando da
festa?... Quando eu entrei aí no portão eu vi a ponta
desse teu laço vermelho. Estranhei: será que é a fita da
Carolina? E era. – Endireita o corpo.
Carolina vai levantando a cabeça pra não tirar
o olho de dentro do olho do Pai. Deixa o corpo
descansar contra a gaiola. Sente um começo de
50 Lygia Bojunga

sossego: o Pai está olhando pra ela igualzinho feito


toda vida ele olhou.
– Vamos embora? – ele convida.
Ela continua só olhando.
– Você ainda quer ficar mais, Carolina?
Devagar ela faz que não.
– Então vamos. – O Pai estende a mão. Mas
Carolina ainda hesita. Só depois:
– Pai...
– Hmm?
– Você não tá contra mim?
– Contra você?
– A mãe... ela disse pra você que eu sou... que eu
sou uma...
– Isso tudo passou, minha filha, eu já esqueci;
esquece também.
– Pai... você tá... você... você ainda gosta de mim, pai?
– Ô, minha filha... – O Pai pega as duas mãos de
Carolina e puxa ela pra ele. Num ímpeto, Carolina
mergulha naquele abraço, se abandonando a uma
sensação de alívio e prazer. E só sai do abraço porque,
de repente, começa a rir. Puxa a mão do Pai:
– Vem, vem!
– Você quer ir lá pra festa?
– Não! eu quero ir embora com você, vem, vem!
Retratos de Carolina 51

Que bom que a festa vai ficando pra trás; e que tão
bom ver o Pai assim, se esquecido das calças, do
Serginho, de tudo... Logo-logo ela também: vai se
esquecer da Priscilla. Mas, melhor que tudo, ah,
nem se fala, melhor que tudo é sentir a mão do Pai
apertando firme a mão dela.
E assim, aliviada, vendo que o dia sofrido (e que
comprido que ele foi!) vai chegando ao fim, Carolina
nem se dá conta de que está indo embora sem se
lembrarmais da gaiola e do Pet.

Lá na cozinha da casa da Priscilla, a cozinheira


se senta pra descansar e comer sossegada uma fatia
do bolo de aniversário; e quando o dente trinca uma
ameixa com caroço, ela faz concha da mão, cospe o
caroço dentro e joga ele fora. Já faz tempo que acabou
a função de ameixa e de prêmio, ela nem se lembra de
olhar pro caroço. Se olhasse, ia ver ele marcado com o
número três.
52 Lygia Bojunga
Retratos de Carolina 53

arolina estava com quinze anos quando foi


conhecer a Europa. Fazia tempo que essa viagem vinha
sendo planejada, calculada, adiada, reorganizada. A
Mãe sonhava com Portugal (faço questão de conhecer
a terra de onde veio o meu avô: eu era a neta predileta
dele) e Espanha: não abro mão de Barcelona: a Quiqui
nunca mais arredou o pé de lá, eu morro de saudades
dela! e vocês sabem muito bem que ela sempre foi a
minha irmã preferida.
O interesse forte do Pai era a Itália. Desde garoto
se sentiu atraído pelas coisas de lá; achava a língua
italiana belíssima, escuta só o som dessa língua, escuta
só! E recitava emocionado:
Ma dimmi, c’è misura nel male?
Dimmi, è giusto dimenticare i morti?
E dove fiorisce tale usanza?
Là non vorrei alcun onore.
54 Lygia Bojunga

Toda a vida tinha sido um amante da ópera


italiana, Verdi, então, nem se fala, era só chegar junto
da mala pra já começar a cantarolar árias da Traviata,
do Rigoletto, do Trovatore. Começou a fazer a mala
logo depois de reservar as passagens; um dia optava
por uma tal camisa, um tal livro, um tal suéter, dia
seguinte achava melhor levar um tipo diferente de
leitura, uma camisa mais fina, um suéter mais grosso,
e já na outra semana achava que o livro era muito
pesado, a camisa clara demais, ia sujar logo, suéter
assim tão grosso ocupava muito lugar na mala. Se
foi difícil resolver a bagagem, imagina a hesitação
na hora de resolver o roteiro: sonhava com Veneza,
Roma e Florença, mas sonhava também com cidades
pequeninhas das Dolomitas, da Toscana, da Costa
Amalfitana, da Sicília. Cada dia se lembrava de um
outro quadro que queria ver na viagem, chamava
Carolina pra mostrar o quadro reproduzido num livro
e outro, você vai ver como os pré-rafaelitas tinham
razão, Carolina, a grande arte é anterior a Rafael, a
gente vai ver cada obra-prima de arrepiar, olha pra
esse Adão e Eva do Masaccio que tem lá na Capela
Brancacci (quem sabe é melhor botar mais dias pra
Florença?), olha só pra esse Giotto, minha filha! a
gente vai ver esses afrescos lá em Assis e em Pádua.
Retratos de Carolina 55

E suspirava emocionado, se imaginando cara a cara


com Giotto, e depois com Boticelli, e depois com
Mantegna, e depois...
Carolina aguardava a viagem com a mesma
ansiedade que o Pai. Queria conhecer tudo. Mas, mais
que tudo, queria ver Paris e Londres. Não tinha dúvida
de que Paris ia ser uma paixão; e se perguntada, tendo
que escolher uma só, qual das duas você escolhe? ela
nem hesitava: Paris.

Londres marcou a etapa final de uma viagem


que durou mais de três meses (vai ver o Pai intuía, por
tudo que economizou e planejou, que aquela seria sua
primeira e última viagem à Europa); e Londres foi a
grande paixão que Carolina sentiu.
Na hora em que o roteiro ficou pronto, quinze
dias foram reservados pra Paris e quinze pra Londres.
Chegando em Paris, Carolina logo achou que era dia
demais reservado pra Londres. Mas agora, neste último
dia da viagem, Carolina, sozinha, vai varando a tarde
cinzenta e volta devagar pro hotel, mal segurando a
vontade de chorar, de tanto que dói pensar que está
indo embora de Londres. Não se conforma de terem
sido só quinze dias por lá e, enquanto vai botando um
56 Lygia Bojunga

olhar triste de despedida em cada prédio, cada gradil,


cada árvore, não para de se perguntar, quando é que eu
volto pra cá?
(“Mas, Carolina, hoje a gente vai jantar mais
cedo por causa do concerto que tem depois.”
“Eu sei, mãe, eu sei, mas eu quero me
despedir da cidade.”
“O programa de despedida é de noite,
minha filha.”
“Mas eu quero me despedir mais!”
“Descansa um pouco, Carolina, você não
parou desde que chegou aqui.”
“Eu não quero perder um minuto desta
cidade.”
“Mas onde é que você vai?”
“Andar por aí, olhar pra ela.”
“Mais?”
“Mais.”)
E aí vai Carolina pensando, eu tenho que dar um
jeito de voltar pra cá; mas que jeito? Uma bolsa de
estudos? Será? Eu podia vir trabalhar aqui e... não: só
com dezoito anos; puxa, esperar mais três anos? Ah,
não! é demais; mas bolsa também não vai dar, primeiro
eu tenho que me formar, mas então que jeito eu vou
dar? ô, meu deus, por que que a gente só reservou
Retratos de Carolina 57

esses míseros quinze dias pra cá? Joga um último


olhar pro rio, pros barcos passando, pra cúpula de
St. Paul, sente vontade de voltar à National Gallery
e se despedir de dois quadros que ela tinha amado.*
Atravessa a estação de Charing Cross, sai no Strand,
se encaminha pra Trafalgar Square, absorta num

* Um Turner e um Stubbs. Carolina já tinha ido duas vezes


à Galeria, na companhia do Pai. Quando disse pra ele que,
podendo escolher dois quadros pra levar pro Rio, ela levava
aqueles dois, o Pai se surpreendeu:
– De todas as pinturas que você viu desde que saiu do
Brasil?
– É.
O Pai brincou:
– Eu sei que você adora cavalo. Mas você não acha esse do
Stubbs um pouco grande demais pra levar?
– A gente dá um jeito...
– E por que que você gostou tanto do Turner? Vai ver foi
por causa da lebre...
– Não, não, eu acho esse trem meio fantasma, ele me
intriga: ele me encanta...
O Pai riu:
– Confessa, Carolina, essa predileção é porque se trata de
dois pintores ingleses, não é não?...
58 Lygia Bojunga

papo mental com um amigão que deixou no Rio; há


pouco tempo ele tinha ido à Europa, mas não foi a
Londres, e por que que você não foi lá? ela quis saber,
fazer o quê? ele respondeu, eu não gosto daquela
cidade, mas como é que você pode não gostar se você
nunca foi lá? porque eu sei que eu não vou gostar,
mas sabe como?, sabendo, ué, essas coisas a gente
intui... Agora, abrindo caminho entre os pombos de
Trafalgar, Carolina já está escutando a pergunta que o
amigo vai logo fazer quando ela chegar, você quer, por
favor, me explicar por que que você gostou tanto de
Londres? Ah, sei lá, paixão é coisa difícil de explicar,
eu concordo que Paris é mais bonita, Veneza então
nem se fala, Madri eu também achei linda, mas elas
todas se mostram logo, tipo: olha eu aqui, vê só o
arraso que eu sou! mas Londres, não: ela se esconde,
se a gente não gasta sola de sapato procurando, acaba
não encontrando os maiores encantos que ela tem;
não olha assim pra mim, é verdade: ela não é uma
cidade que vai logo se entregando, a gente tem que
ir atrás e, mesmo assim, ela só vai se revelando aos
pouquinhos, eu acho lindo esse jeito assim fechado
que ela tem, ah! e tem também outra coisa, quer dizer,
outra não! tem um monte de coisas que só com tempo
é que vai dar pr’eu te contar, mas essa coisa que eu
Retratos de Carolina 59

ia te contar agora é um negócio de atmosfera, que eu


fiquei entendendo melhor quando eu soube de tudo
que é vilarejo que, com o tempo, foi se juntando
até formar essa cidade gigante que ela é hoje; então,
quando você começa a descobrir a cidade, você vai
sentindo uma porção de atmosferas diferentes: o tal
negócio dos vilarejos do passado; puxa! eu vou te
contar de quando eu descobri Hampstead e Highgate
e... não, primeiro deixa eu te contar do Heath, ah não!
antes eu preciso te descrever Kenwood e, de lembrança
em lembrança, o papo vai se estendendo, Carolina
querendo convencer o amigo que, em matéria de
intuição ele é um fracasso, quando se dá conta de que
a Galeria Nacional já ficou pra trás e que ela está em
pleno agito de Leicester Square. Ainda se orientando
mal na cidade, vai pro lado oposto ao que pretende:
atravessa Piccadilly e começa a descer Regent Street.
Foi aí que, de repente, o olho bateu no vestido.

O vestido veste um manequim sem cabeça.Vai ver


foi também por isso que a primeira reação de
Carolina foi achar ele diferente.
O vestido está numa vitrine grande de uma loja
famosa pelos espaços que cria nas vitrines que
60 Lygia Bojunga

apresenta ao público. Esta agora é uma ambientação


de Londres, armada com ampliações de fotos antigas
que mostram vários pontos conhecidos da cidade: o
Parlamento, a Torre, o Tâmisa, o Big Ben, os jardins
de Kensington, o palácio de Buckingham, alguns
pubs, a estação de Vitória, a abadia de Westminster,
Harrods, e a própria loja, diante da qual Carolina
está agora parada. O antigo das fotos deixa elas meio
sépia.
Há uma encenação na vitrine: lampiões em
ferro trabalhado criam a ilusão da luz a gás; um
certo fog, uma reminiscência da fumaça que saía das
chaminés, acinzenta o cenário. E o cenário exibe um
único vestuário feminino: o vestido, o sapato, a bolsa,
o chapéu e o abrigo. Dispersos; fragmentados; um
no chão, outro pendurado num velho cabide de pé,
outro atirado numa cadeira, e ovestido, confeccionado
em gaze, passando pela mesma variedade de
acinzentados que caracteriza a vitrine, ora o cinza se
esbranquiçando, às vezes se azulando, outras vezes
se avizinhando do preto. O decote do vestido é
ousado. A cintura é ajustada por um rolotê, no tom
onde a gaze mais se azula. O mesmo tom aparece
no início das mangas, o azul assim realçando os
despencamentos do tecido ao longo dos braços e das
Retratos de Carolina 61

pernas, criando mangas e saia de caimento variado e


comprimento não uniforme.
Carolina, fascinada, vai chegando mais pra junto
do vidro, meu deus! esse vestido é a cara de Londres.
Olha pro cenário; se encanta nos lampiões e no cabide
de pé, mas o olho quer voltar pro vestido e se demorar
por lá. Depois ela examina os acessórios, o abrigo
(tipo manto) retém o olho por um momento, mas
ele volta pro vestido, é incrível! é incrível! botar esse
vestido vai ser feito me vestir de Londres.
Carolina começa a se imaginar no vestido.
Volta e meia o olho dá um pulinho na arquitetura do
Parlamento, do Palácio, dos prédios que aparecem nas
fotos, e Carolina se pergunta se houve a intenção de
mostrar que o que tem qualidade atravessa o tempo,
e que aquele mesmo vestuário, a julgar pelos quadros
que ela viu nas galerias de arte, podia muito bem estar
em moda um século atrás.
Quanto mais Carolina olha pro vestido, mais
sente um enamoramento que nunca sentiu por roupa
nenhuma. O vidro da vitrine agora faz também de
espelho: Carolina se examina, já se vendo no vestido.
A tristeza da despedida de Londres, que tanto
vinha doendo, vai sendo varrida pra longe, e o lugar
agora varrido é logo todo ocupado pela vontade
62 Lygia Bojunga

intensa de possuir o vestido. Carolina sai correndo


pro hotel.

Carolina entra no quarto do hotel de fôlego já se


perdendo:
– Paizinho, paizinho, eu sei que não é hora de
pedir um presente, mas eu preciso que você me dê
um presente. Agora. Já! A loja não é longe, vem, vem
comigo! – Puxa o Pai pra porta; pergunta segredado:
– Cadê a mãe?
– Acabou de entrar no banho.
– Maravilha! ela não ia deixar você me dar aquele
presente, mas você tem que me dar, paizinho, olha,
você sabe que eu não sou de pedir presente, não é?
– Bom, essa viagem é um presentão, não é não?
– Claro, claro, mas eu não pedi, e foi presente pra
nós três. Um presente só pra mim, faz muito tempo
que eu não te peço, é ou não é?
– É. Mas escuta, minha filha...
– Você ainda tem dinheiro?
– Tenho uma reserva que...
– Paizinho, por favor, por favor! Gasta essa
reserva no meu presente e eu te prometo que eu vou
passar outro tempo enorme sem te pedir mais nada.
Retratos de Carolina 63

– Mas Carolina, o que é que te deu? que agitação


é essa?
– Acabei de me apaixonar! Vem.
– Apaixonar?!
– Por um vestido.
– O quê?
– Vem!
– Um vestido? Você? Mas... pera aí.
– Não posso esperar, vem! – vai arrastando o Pai
pra fora do quarto; grita pro banheiro:
– Mãe! Tô dando uma saidinha rápida com o pai;
a gente já volta.
Agora os dois vão indo tão depressa pela rua
movimentada (Carolina na frente, sem largar a mão
do Pai), que nem dá pra perguntar mais nada, explicar
mais nada.
Carolina para na frente da vitrine, toma fôlego e
faz um gesto de apresentação:
– O vestido!
O Pai fica olhando pra vitrine, muito mais
empenhado em se recuperar da correria do que em
apreciar o vestido.
– Não é o máximo, paizinho? Não é a cara de
Londres?
O Pai passeia o olhar pelas fotos. Aponta uma delas:
64 Lygia Bojunga

– Olha que interessante aquela foto. Deve ter sido


tirada há mais de um século e, veja, Carolina, aquela
parte da cidade se manteve inalterada.
– O vestido, pai, o vestido!
– O quê?
– O meu vestido. Não é o máximo?
O Pai fixa o olhar no vestido. Inclina a cabeça
pr’um lado; recua um passo; inclina a cabeça pro
outro lado; chega de novo pra perto do vidro.
– Não é demais, pai?
– Bom, minha filha, eu não entendo muito de moda.
– Esse vestido não tem nada a ver com moda, é
por isso que eu gosto dele. Moda é coisa feita pra
passar depressa, esse vestido já era legal pra minha avó
quando era moça, é legal pra mim agora, vai ser legal
pra minha filha...
O olho do Pai caminha vagaroso pelo vestido.
– Mas... Carolina... você não acha que esse vestido é
assim mais pra... uma mulher mais... você não acha que
você é ainda meio garota pra esse vestido?
– Que garota que nada, pai! Esse vestido é
Londres: bom pra qualquer idade. Me dá ele, pai, me
dá? Ah, me dá.
– Mas logo você! Sempre de calça, sandália e
camiseta, vai enlouquecer por um vestido assim?
Retratos de Carolina 65

– Você falou! En-lou-que-cer. Taí, paizinho, é


isso: eu estou enlouquecida. Primeira vez na vida que
eu me apaixono assim por um vestido. Eu nem sabia
que a gente podia se apaixonar por uma roupa.
– Mas me diz uma coisa, minha filha, quando é
que você vai usar um vestido desses? Isso não é coisa
pra se usar assim todo dia, é?
– Claro que não! Ele é um vestido especial. Feito
pra ser usado numa hora especial. – Piscou o olho.
– Talvez até hoje à noite. Na nossa despedida dessa
viagem maravilhosa. Ah, pai, me dá ele de presente.
Por favor.
O Pai estava, no mínimo, surpreendido. Já tinha
visto Carolina se apaixonar por livros, por filmes, por
móveis, por casas, por ideias, por lugares, e, embora
nenhum dos amigos e namorados da filha tivesse
despertado nela nenhuma paixão, o Pai estava sempre
conjeturando como seria, e por quem seria, a paixão
de Carolina por alguém (ela se deixava arrebatar
tão intensamente! será que ia ser o alguém certo pra
ela?...), mas o que o Pai não tinha imaginado é que
Carolina podia também se apaixonar por um vestido.
E foi confundido por essa surpresa que o Pai lançou
um último olhar pro vestido e se virou pra filha. Ela
estava de respiração suspensa, aguardando a decisão.
66 Lygia Bojunga

Resistir como? O Pai fez que sim com a cabeça e


Carolina se precipitou pra entrada da loja. Empurrou
a porta de vidro. Empurrou com mais força. Recuou.
Procurou uma maçaneta, um fecho, uma campainha.
O Pai chamou a atenção de Carolina para uma placa
discreta de metal polido, onde estavam impressos os
horários de funcionamento da loja, o encerramento
marcado para as cinco e meia. Carolina olhou pro
relógio: vinte pras seis.
– Não acredito! Não acredito!! Nenhuma loja
pode fechar assim tão cedo. – Começou a bater na
porta. O Pai se assustou:
– Que é isso, Carolina!
– Não é possível, pai, eles têm que abrir essa
porta, isso não é hora de loja nenhuma fechar. – E
toca a bater com a mão espalmada na porta.
– Para com isso, Carolina.
– Mas ainda tem gente aí dentro, eu tô vendo
daqui, tem gente!
– Carolina, a loja já fechou. Você já viu como rola
isso aqui: fechou, tá fechado, não tem dá-um-jeito
não.
– Mas amanhã de manhã não vai dar tempo.
– Não vai mesmo: a gente tem que estar no
aeroporto às oito horas.
Retratos de Carolina 67

– Mas então o que que eu faço? o que que eu


faço? – Voltou a bater na porta.
– Minha filha, já estão até olhando, para com isso.
– Se a gente não compra ele agora, não compra
nunca mais.
Um funcionário se aproximou, abriu a porta, e
perguntou o que que Carolina desejava. Num inglês
macarrônico ela respondeu que queria comprar
aquele vestido. Apontou. O funcionário se desculpou,
indicou o horário da loja na plaqueta de metal, pediu
licença, fechou a porta e Carolina desatou a chorar.
A surpresa do Pai virou perplexidade:
– Mas, Carolina, o que que é isso? Chorando por
causa de um vestido? Você?!
E ela, aos soluços:
– Você fala como se fosse um vestido qualquer.
Então você não vê que ele é especial?
– Francamente, minha filha, eu estou te
desconhecendo.
– Perdido. Perdido pra sempre. Pra nunca mais. –
Foi se distanciando devagar da loja. Agora eram duas
perdas pra sofrer: Londres e o vestido. A primeira
doía, mas Carolina sabia que não era irreparável: mais
dia menos dia eu volto aqui. A segunda, no momento,
doía mais porque parecia eterna, nunca mais eu vou
68 Lygia Bojunga

gostar de outro feito eu gostei dele; nunca mais eu vou


ver ele!
Como é que ela podia imaginar, não é? Que um
dia os dois iam se encontrar de novo, ela e o vestido...
Retratos de Carolina 69

arolina está com vinte anos. Cursa uma


faculdade de arquitetura. É lá que ela encontrou a
Bianca; e as duas enturmaram. Não por afinidade:
os valores de uma são bem diferentes dos da outra.
A Bianca estuda arquitetura porque acha lindo dizer
que estuda arquitetura. Ainda vai achar mais lindo um
dia poder dizer, eu sou casada com um arquiteto. Faz
planos pra isso. E declara, sem a mais leve inibição: o
melhor lugar pra conhecer um futuro marido arquiteto
é uma faculdade de arquitetura.
A Bianca é fascinada pela Carolina. Não só porque
a Carolina pretende mesmo projetar espaços, mas
porque a Carolina ensina pra ela muito do que os
professores não conseguem fazer ela entender. Mas
a fascinação por Carolina vai além da arquitetura: a
Bianca sempre quis ser alta, a Bianca vive às voltas com
regime pra emagrecer, a Bianca acha lindo gostar de ler;
70 Lygia Bojunga

e quanto a gostar de estudar, a Bianca sempre disse, é


o máximo!
E assim, de Carolina magra, alta e sempre de livro
na mão, pronto: a Bianca não largou mais a Carolina.
– Hoje você não vai mais pegar em livro nenhum,
Carolina: hoje você vai a uma festa comigo.
– Outra?
– Outra como? Tem cinco dias que eu não vou a
festa nenhuma. Desse jeito eu acabo num convento.
Ainda existe convento, Carolina?
– Mas que festa vai ter hoje?
– Um coquetel. No consulado francês.
Chiquérrimo.
– Xi!...
– E você vai comigo. Ah, vai! Você sabe que eu
odeio chegar sozinha nesses lugares. Fica descansada:
você não vai ter trabalho nenhum: pego o carro da
mãe e te apanho às sete horas; na volta também:
te deixo na porta de casa. Serviço a domicílio pra
ninguém botar defeito.
– Mas coquetel é uma coisa tão chata, Bianca, a
gente nunca tem um papo legal com ninguém, é tudo
uma conversa picadinha, um nhenhenhém sem fim.
– Escuta aqui, Carolina, você não vai ser arquiteta?
Não vive dizendo que vai viver do seu trabalho?
Retratos de Carolina 71

Então? Tem que conhecer gente! Que mania de só


querer viver numa de livro, de cineminha, de papo a
dois, você tem que ampliar o seu círculo de relações,
conhecer mais gente, circular! badalar! Sete horas eu tô
te apanhando em casa, tchau-tchau.
Carolina se resignava; ia. Não sempre, é claro:
mesmo que se interessasse pela intensa vida social
da Bianca, não ia ter tempo pra acompanhar a
programação: a Bianca adorava se relacionar com um
monte de gente e vivia esvaziando tudo que é recurso
imaginativo que tinha na tarefa de ser convidada pra
coquetel, pra vernissage, pra estreia de peça de teatro,
pra show, pra reunião íntima, pra megafesta, pra
ensaio de escola de samba, e, se tinha velório de gente
badalada, quase sempre a Bianca estava lá.
Quando Carolina acompanhava Bianca a essas
festas, quase nunca se interessava em saber o motivo
da reunião. O que sempre despertava a curiosidade
dela era o espaço onde elas iam. Casa, apartamento,
pátio, varandão, barracão, o que fosse. E, junto com
o espaço, os móveis. Carolina era ainda bem pequena
quando deu pra se interessar por mesa, cadeira,
armário, escrivaninha, cômoda. Folhear livro de
mobiliário era tão bom quanto ver filme bom. Muito
cedo resolveu estudar arquitetura. Entrou ano e saiu
72 Lygia Bojunga

ano e ela nunca desresolveu. Vivia desenhando plantas


e interiores, tô treinando, dizia, e todos os espaços que
ela projetava nasciam e cresciam junto com os móveis,
nesse canto mora uma cômoda, essa parede é toda
tomada por uma estante, essa janela tem um banco
embaixo, pra essa porta funcionar aqui tem que ter
um armário ali, e passava dias e semanas idealizando
o armário, o banco, a estante, que iam dar relevância
a uma parede, uma janela, uma sequência de degraus.
Então, no coquetel, na reunião, na festa, lá estava a
Carolina de ar distraído, o olho zanzando no soalho,
subindo pro teto, descendo pr’uma janela, se detendo
na mobília em volta; e lá estava ela entrando e saindo
várias vezes por uma mesma porta, pra examinar
melhor a maçaneta, a fechadura, o alizar, o batente.
E se, na volta pra casa, a Bianca perguntava, gostou?,
a Carolina, sempre um pouco tomada de surpresa,
respondia, mais ou menos; e se, chegando em casa, a
Mãe perguntava, a dona da festa estava bem vestida?
ela é bonita? o bufê estava bom? a Carolina fazia um
esforço de memória e acabava sempre virando a mão
de um lado pra outro, registrando no ar um gesto
vago de mais ou menos.
Retratos de Carolina 73

– Por que, hein, Bianca?


– Por que o quê?
– Essa mania que você tem de conhecer mais e
mais gente. Isso já nem é mania, é aflição.
– Quanto mais gente eu conheço, mais chance eu
tenho de encontrar o homem certo.
Carolina caiu na gargalhada.
– Tá rindo de quê?
– Desse teu homem certo.
– Por quê?
– O que que você acha que um homem precisa
pra ser certo?
– Certo pra mim.
– Sim, não há de ser pra mim. Mas me explica: o
que que um homem tem que ter pra ser certo-pra-
você? Além de ser arquiteto.
– Bom, também não tem que ser arquiteto. Se for,
melhor. Se não for, paciência.
– Mas, o que mais que ele precisa pra ser certo-
pra-você?
– Ah, Carolina, você já me perguntou isso antes.
– Eu sei: não é a primeira vez que você fala nesse
tal de homem certo. Então, não é de hoje que eu tô
querendo saber o que que você acha que um homem
tem que ter pra ser certo.
74 Lygia Bojunga

– Já te disse antes: na hora que eu encontrar o


homem certo, eu te explico di-rei-ti-nho o que que
um homem tem que ter pra ser certo.
Aí, um belo dia aconteceu: a Bianca telefonou pra
Carolina e anunciou:
– Encontrei o homem certo! – E desligou. (Então
ia perder essa chance de deixar a Carolina na maior
curiosidade?) Só dias depois forneceu mais detalhes:
o Homem Certo tinha o dobro da idade dela. E
ela não tinha a menor dúvida: isso era coisa que só
um homem certo podia ter. Era casado. Quer dizer,
descasado: a mulher tinha ido embora com outro, e
você não imagina como ele ficou carente, coitado;
e você sabe, não é, Carolina, um homem pra ser certo
tem que ser carente. Mais uns dias, mais uns detalhes:
ele é alto, magro, usa o cabelo assim meio comprido,
e aqui, sabe, eu já vi uns fiozinhos brancos, nossa! mas
que homem certo. Mais adiante, veio uma dúvida, eu
não sei se ele cheira pó, viu, Carolina, às vezes eu acho
que sim, às vezes, eu acho que não, e essa coisa de
eu-acho-e-desacho tem a ver com o jeito que às vezes
ele olha pra mim.
– Que jeito?
– É um jeito assim... como é que eu vou te
explicar... um jeito... ah, não sei. Mas é lindo.
Retratos de Carolina 75

– O jeito?
– O jeito, ele, tudo, lindo, lindo, certo, certíssimo!
– E no outro dia já escancarava a confissão. – Carolina,
eu tô numa paixão que eu não te conto. Sabe que ele
mora numa casona? Pelo jeito deve ganhar uma grana
firme: homem certo pra caramba, minha amiga.
– Trabalha em quê?
– Não sei direito, parece que é negócio de
investimento, bolsa, sei lá! essas coisas.
– Mas, Bianca... se ele não é arquiteto, como é que
ele é o teu homem certo? Você não disse sempre que...
– Ah, isso não faz mal, Carolina, não faz mal
mesmo. Pra que que ele precisa ser arquiteto? a casa
dele já é tão linda.
Carolina se interessou:
– A casa é bonita, é?
– Se é! E ele mora lá sozinho, já pensou? Quer
dizer, sozinho-sozinho, não: ele tem uma empregada,
dessas que tem toda a cara e todo o jeito de dona
da casa, sabe como é que é? Ele chama ela de Dona
Judite. Não é lindo? Ah! e ele tem também um
cachorro. Pastor-alemão. Se chama Piedoso.
– Se chama o quê?
– Piedoso.
– Que nome esquisito pr’um pastor.
76 Lygia Bojunga

– Não acho não. Acho lindo. Tipo do nome pro


cachorro de um homem certo. Quer conhecer?
– O Piedoso?
– A casa.
– E o Homem Certo também?
– Claro, ué. Vamos marcar um jantarzinho lá?
Marcaram. Coisa íntima. Só elas, o Homem
Certo, o Piedoso e a Dona Judite.
– Não vai esquecer: quinta-feita às oito horas.
Te apanho em casa.
– Combinado.

Bianca tocou a campainha. Um latido dentro


de casa respondeu.
– É o Piedoso – Bianca segredou contente.
Pouco depois dona Judite abria a porta:
– O patrão está um pouco atrasado, Bianca. Mas
ele me telefonou há coisa de uma hora pedindo pra
você fazer as honras da casa até ele chegar.
Bianca não se fez de rogada: tirou o sapato
(o Homem Certo dizia que pé de mulher é pra ser
admirado em sua inteireza), se serviu de uísque (o
homem certo não gostava de beber sozinho), foi até a
cozinha ver o andamento do jantar (o Homem Certo
Retratos de Carolina 77

dizia que toda mulher deve manter uma certa intimidade


com a cozinha), e quando voltou pra sala e viu Carolina
analisando o caimento do teto, se lembrou:
– Esta casa tem um banheiro art déco pra lá de
engraçado; o vitral, então, vai te interessar demais.
– Onde?
– Lá em cima. No fim do corredor.
– Posso ir ver?
– Claro, ué.
Carolina subiu a escada, enveredou pelo corredor,
passou por uma porta que estava fechada, passou por
outra entreaberta, logo adiante parou, a curiosidade
aguçada pelo pedaço de armário entrevisto na porta.
Voltou atrás. Espiou melhor; o armário parecia uma
peça interessantíssima. Empurrou devagarinho a
porta, e a cara se abriu num espanto emocionado ao
dar com o guarda-roupa inteiro. Peça de colecionador,
ela pensou, o olho já devorando os três segmentos do
armário. Sem nem se dar conta, foi entrando na ponta
do pé pra não perturbar o silêncio em volta. Parou
diante do guarda-roupa, analisando cada detalhe. A
porta da seção da esquerda tomava toda a altura do
móvel; a da direita se dividia em duas partes. A
seção do meio era a mais larga das três e tinha, na
parte superior, um espaço vazio (pra livros? pra um
78 Lygia Bojunga

objeto de decoração?); a seguir uma porta de uns três


palmos de altura, esculpida em toda a extensão; a
parte inferior era tomada por três gavetões. Encantada
com a tonalidade da madeira, Carolina se juntou ao
guarda-roupa, querendo identificar pelo cheiro que
madeira era aquela. Alisou um veio com a ponta do
dedo; se perdeu na contemplação dos puxadores: não
tinha visto iguais em livro e museu nenhum, nem
tampouco parecidos: tão delgados e elegantes! o metal
trabalhado, miniaturando os motivos geométricos da
pequena porta esculpida.
A curiosidade de Carolina ia num crescendo. De
onde tinha vindo esse móvel? Será que por dentro
ele era forrado de tecido, feito aquele armário que
ela tinha visto no... O dedo que alisava a madeira
parou no puxador da porta mais alta. Uma peça
assim tão trabalhada, tão inventada, tinha que ter
uma surpresa qualquer lá por dentro, será que...
O dedo recuou, não, que horror! imagina! abrir o
guarda-roupa de uma pessoa que ela nem conhecia;
se fosse um guarda-comida, um guarda-louça, um
guarda... E enquanto Carolina pensava distraída, o
que que um guarda-o-quê podia guardar pra não ser
assim tão horrível de abrir e olhar, a mão aproveitou
a distração do pensamento e, fingindo que só estava
Retratos de Carolina 79

fazendo uma festa no puxador, abriu a porta um


bocadinho só.
Foi mais que espanto: foi susto. Um susto tão
grande, que a mão se esqueceu que disfarçava e
escancarou a porta do guarda-roupa.
Não tinha mais que meia dúzia de vestidos
pendurados. E ele era o segundo. Da esquerda pra
direita.
A mão não pensou duas vezes: arrancou o cabide
do guarda-roupa e levantou ele alto, pro olho vir
deslizando vestido abaixo.
Mas era possível? Era mesmo possível? Ah, era
sim, era ele mesmo, mesminho, ele todo!
Carolina cheirou o vestido. Sentiu que ele tinha
sido pouco usado; sentiu ele perfumado; sentiu ele há
muito tempo guardado. A aparência era de um vestido
novo em folha, o tecido, o rolotê, tudo perfeito.
Dentro de Carolina, Londres acordou num
pulo; o perfume de uma trepadeira (madressilva?)
e o ruído de um bater de asas (pombo?) permeando
uma sucessão de imagens da cidade. Emocionada e
perplexa pelo reencontro imprevisto, Carolina
acariciava o vestido, revivendo a mesma atração
sentida quando viu ele na vitrine de Regent Street.
A vontade frustrada daquele dia londrino, em que
80 Lygia Bojunga

ela quis tanto se enfiar no vestido, voltou com força.


Esquecida por completo da casa onde estava, do
jantar, da Bianca, de tudo, agora ela só pensava na
porta fechada da loja, onde ela batia, batia e ninguém
abria. Nem sentia a mão desabotoando a blusa e a saia
que vestia, nem tampouco o pé se livrando do sapato
esportivo que não tinha nada a ver com o vestido. Meio
que se encolhendo, meio que se arrepiando, foi assim
que, num vagar sinuoso, ela foi pra dentro do vestido; e
mesmo antes de se olhar no espelho que cobria a parte
interna da porta do guarda-roupa, ela já tinha pensado,
eu sabia, eu sabia que ele foi feito pra mim.
Olhou pro espelho. Primeiro, só enamorada do
vestido. Depois, se enamorando da imagem toda.
Ficou de costas; foi virando o pescoço pra se ver
refletida assim; ondulou o corpo pro vestido se
movimentar; e rodopiou devagar querendo ver o
movimento se completar.
– Eduarda!
Que susto. Ah, mas que susto-que-logo-virou-
vergonha quando ouviu aquela voz exclamando
Eduarda!, e quando viu o homem parado na porta do
quarto. Se abraçou, querendo se cobrir, feito coisa
que estava nua. O olhar admirado do homem tinha
arrancado ela do devaneio, e agora, sem atinar com
Retratos de Carolina 81

nenhuma explicação, nenhuma frase convincente, ela


se limitou a balbuciar:
– Eduarda? Não. Eu sou Carolina.
– Carolina! – a Bianca gritou da porta. – E ela
também, ficou de olho admirado. – Que bonita que
você ficou dentro desse vestido! – Veio chegando pra
junto de Carolina. – Que vestido tão... Mas onde é
que... – Olhou pra porta do guarda-roupa aberta;
disfarçou: se virou pro homem: – Essa é que é a minha
amiga. – E pra Carolina: – Esse é o dono da casa...
O constrangimento da Carolina cresceu;
perguntou baixinho:
– O Homem Certo?
A Bianca soltou uma risada (pouco risonha):
– É.
O Homem Certo continuava parado. Parecia
hipnotizado por Carolina. Bianca olhou pra ele;
olhou pra Carolina; resolveu não disfarçar mais nada:
perguntou com clareza:
– E esse vestido? saiu de onde?
A cabeça da Carolina fez um gesto lento pro
guarda-roupa.
Bianca olhou de novo pro Homem Certo.
Nesse momento o Piedoso entrou em cena.
Saltou pra junto de Carolina, um salto tão impetuoso,
82 Lygia Bojunga

que deixou ela aterrorizada. Começou a farejar o


vestido.
Se abraçando ainda mais forte, Carolina fechou os
olhos pra não ver o pior que ainda ia acontecer.
Mas o que aconteceu foi teatralmente ótimo:
Dona Judite apareceu na porta e anunciou que o
jantar estava servido.

Foi só escutar que o jantar estava servido


e Carolina abriu os olhos, arrebanhou saia, blusa e
sapato, correu pro banheiro e se trancou. Respirou
fundo. Saiu de dentro do vestido e pendurou ele
num cabide atrás da porta. O susto foi serenando, a
vergonha não: Carolina tinha a impressão de que o
rosto estava fervendo. Se inclinou pra pia e começou
a jogar água na fervura, mas por quê? por que que
ela tinha entrado naquele quarto? como é que ela
ia enfrentar agora o olhar do Homem Certo? Se
assustou de novo: ele devia estar esperando por ela.
Ele, a Bianca, a Dona Judite. E a comida devia estar
esfriando. Será que o Piedoso também estava
esperando? Quem sabe ali atrás da porta?... Enxugou
o rosto, se vestiu e se calçou depressa. O olho se
despediu do vestido. Respirou fundo de novo; a mão
Retratos de Carolina 83

abriu a porta devagar. Bom, pelo menos o Piedoso


não estava à vista. Desceu pro jantar.
Assim que se sentaram pra comer, Carolina quis
logo desabafar o caso do vestido: o primeiro encontro
que teve com ele na vitrine da loja de Regent Street;
o amor à primeira vista; a frustração da loja fechada;
a lembrança amorosa que sempre guardou do vestido.
Depois falou do fascínio que ela sente por móveis
raros; da curiosidade insustentável que ela sentiu pelo
guarda-roupa quando viu um pedaço dele pela porta
entreaberta, querendo, então, ver ele todo e, por causa
do guarda-roupa, o reencontro com o vestido, revivendo
nela a vontade intensa de sentir ele na pele. Tomou
coragem pra enfrentar o olhar do Homem Certo (que
ela sentia o tempo inteiro cravado nela), e concluiu:
– Eu sei que nada disso pode desculpar o fato de
ter entrado no seu quarto...
– Não é meu, era o quarto de vestir da Eduarda.
– ...de ter aberto o seu guarda-roupa...
– Não é meu, era da Eduarda. Eu digo era porque
ela abandonou o coitado.
– ...e de ter tido a ou-sa-dia de experimentar um
vestido da Eduarda.
– Ele também: foi abandonado por ela.
Carolina ficou abismada:
84 Lygia Bojunga

– Ela abandonou o vestido?


O Homem Certo fez que sim. Carolina não
encontrou o que dizer: o olho desceu pro prato, a
testa se franziu, como era possível? como era possível?
Mas o Homem Certo estava fascinado por toda
aquela história, queria mais detalhes do caso, como
era a loja? e que dia era? de que mês? de que ano? Ah,
então o vestido ficou muito tempo na loja, ele e a
Eduarda tinham ido a Londres uns seis meses depois
de Carolina ter passado por lá.
– E o vestido ainda estava na vitrine?
– Não, não, estava lá dentro. Tão escondido que
eu nem sei como é que a Eduarda descobriu.
– Ah, mas tinha mais é que descobrir! E foi
também... é ... amor à primeira vista?
– Foi. Mas ela quase que não usou ele.
– Por quê?
O Homem Certo ficou olhando pra Carolina.
E foi a Bianca que acabou respondendo:
– Porque você não tem nada que ver com isso.
Houve uma pequena pausa pra digerir a resposta
da Bianca. E durante o resto do jantar não se falou
mais no vestido.
Comida ótima. O vinho também. Teve risada.
Teve muito caso que a Bianca contou. O Homem
Retratos de Carolina 85

Certo escutava distraído, estudando a Carolina. A


Bianca falava e falava, estudando o Homem Certo.
E quando veio a sobremesa a Carolina começou a
se estudar: era susto que ela estava sentindo? mas o
susto já tinha passado, não tinha não? era a vergonha,
então? não, também não, ah, vai ver era o vinho que
estava deixando ela assim... mas assim como? assim
tão... com medo?... é ... mas medo de quê? de olhar pra
ele?... por quê?... medo dele estar olhando pra ela?...
medo dele não estar olhando pra ela?... mas ele estava!
mesmo não olhando pra ele ela via ele olhando pra
ela... era isso que estava deixando ela assim?... mas
assim como?... E o estudo recomeçava.
No final da noite, Carolina se despediu do
Homem Certo sem deixar o olhar dela se encontrar
com o dele. Medo de revelar o resultado de tanto
estudo?

No outro dia, quando Carolina saiu da faculdade,


encontrou a Bianca esperando por ela. Séria,
cerimoniosa, convidou Carolina pra ir tomar um café.
Depois do primeiro gole fez o seguinte discurso:
– Carolina, eu vou ser franca: nunca passei uma
vergonha tão grande na vida feito a que você me fez
86 Lygia Bojunga

passar ontem à noite. Eu falei tanto pra ele que você


era a minha melhor amiga! Até agora ele deve estar
pensando que se a melhor amiga, na primeira vez
que aparece na casa dele, vai entrando pelos quartos,
remexendo nos armários, se apossando de vestidos...
– Ah, ‘pera lá, Bianca, eu...
– ...imagina só o que não vai fazer a pior.
– Mas eu disse...
– Pra não piorar ainda mais as coisas, Carolina,
eu acho melhor não te levar mais lá. E como agora
nós estamos sempre juntos, ele e eu, eu também acho
melhor ficar um tempo sem te ver. Mais pra frente eu
te procuro de novo. Mas agora deixa a poeira assentar.
– Levantou, pagou o café e soprou um beijinho pra
Carolina.
Retratos de Carolina 87

té o dia de se casar com o Homem Certo,


Carolina viveu numa casa antiga, de um pavimento só,
numa das ladeiras de Santa Teresa, no Rio.
O móvel da casa que ela gostava mais era a
escrivaninha do Pai.
Quando Carolina tinha uns três ou quatro anos,
um dia ela quis saber onde é que estava o Pai. A Mãe
respondeu que ele estava no esconderijo dele. Carolina
gostou da resposta: ela adorava brincar de se esconder,
e o fato do escritório do Pai ser um esconderijo fazia
daquela peça ensolarada, onde duas janelas olhavam
pra rua, e onde as paredes se cobriam de livros, um
lugar mais que especial: pra Carolina, o escritório era
mágico.
A escrivaninha morava entre as janelas e vivia na
companhia de duas cadeiras de assento de palhinha:
uma tinha braços e a almofada que a Mãe bordou
88 Lygia Bojunga

em ponto de cruz; a outra era pequena, de perna


curta e sem braços, mas do mesmo estilo e da mesma
madeira da cadeira maior. O Pai tinha dado a cadeira
pequena pra Carolina quando ela fez cinco anos, mas
não demorou muito pra Carolina tirar a cadeira do
quarto dela e levar pro escritório:
– Pode, pai? pode deixar a minha cadeirinha aqui?
– Se você gosta dela aqui...
– Gosto.
E a cadeira pequena ficou morando ao lado da
escrivaninha, de frente pra cadeira do Pai.
O escritório tinha um sofá e uma poltrona, mas
era na cadeira da escrivaninha que o Pai se sentava pra
ler. Horas a fio.
O Pai era um homem quieto, reservado, tudo que
usava, roupa, sapato, banheiro, deixava limpo e
arrumado. Tinha hábitos enraizados, saía e voltava do
trabalho sempre à mesma hora. Chegava, ia dar um alô
pra mulher, trocava de roupa e, no tempo de Carolina
pequena, ia logo brincar, jogar, contar história pra ela.
Depois ia pro escritório e encostava a porta (nunca
fechava; nunca deixava ela aberta), sentava na cadeira de
braços e lia. Ora de cotovelo apoiado na escrivaninha,
ora descansando o queixo na mão, às vezes apoiando a
testa na ponta dos dedos, ou então levando o livro com
Retratos de Carolina 89

ele quando se recostava no espaldar da cadeira. Tomava


nota num caderninho de tudo que impressionava
ele mais na leitura; um pensamento, uma frase, uma
dúvida. Não gostava de sublinhar nada nem de fazer
anotação na margem: mais tarde Carolina podia ler
o livro e ele não queria influenciar a filha com uma
preferência ou uma dúvida dele.
Mas as notas que o Pai tomava não se limitavam
aos livros que lia. Não, não: ele tomava nota das
despesas da casa, dos filmes a que assistia, das músicas
que ouvia, e na viagem que fez à Europa anotou
tintim por tintim de tudo.
Cada assunto tinha um caderno. Todos de
formato igual (pequeno). Na capa, o Pai desenhava
o assunto do caderno: livro, mapa, projetor de
filme, Carolina, etc. Sempre gostou de desenhar.
Desenhava pequeno, miniaturas. E nunca mostrou
desenho algum pra ninguém. Nem mesmo pra
Carolina. Nos cadernos-Carolina, ele sempre
desenhava a filha a partir de uma foto qualquer;
e repetia o que fazia com a leitura: anotava no
caderno tudo que chamava mais a atenção dele
no comportamento e nas palavras da filha. A cada
aniversário de Carolina ele tirava novas fotos dela.
Escolhia as que gostava mais pra colar no caderno,
90 Lygia Bojunga

anotando embaixo: Carolina aos seis anos, Carolina


aos quinze anos, Carolina aos...
Anotando assim tanto de tudo, em cadernos
sempre pequenos, não só a escrivaninha se povoou por
inteira, como virou a guardiã dos pensamentos do Pai.
Quando pequena, Carolina se intrigava de
ver o Pai passar tanto tempo na companhia da
escrivaninha. De intriga em intriga, criou o hábito
de sempre pensar nele junto dela, ora ela servindo de
apoio pro livro que ele lia, ora ela de gaveta aberta
se deixando arrumar, ora, simplesmente, os dois se
olhando. Já nessa época a Carolina e o Pai conversavam
bastante: costume e prazer que, anos afora, deitaram
raiz profunda. Mas desde cedo Carolina intuiu que o
Pai não gostava de se trazer para o papo. Ele falava de
tudo, mas não dele. Então, sem mesmo se dar conta,
Carolina começou a imitar o Pai: tentava se enfiar no
canto mais escondido da conversa. Às vezes conseguia,
outras vezes não. Mas nada disso perturbava o gosto
que os dois sentiam no papo. Ao contrário: vendo o
prazer dos dois conversando, a gente podia até opinar
que um papo assim tão curtido era justo, porque nem
um nem outro se metia na conversa...
E a escrivaninha ali: ladeando Carolina; olhando
pro Pai. Entra ano e sai ano. E agora também: os
Retratos de Carolina 91

três ali juntos. Mas em silêncio. Mais de uma vez


um papo nasceu. Logo morreu. Hoje Carolina não
está querendo se esconder na conversa: quer falar
dela, DELA! Mas reluta em começar. O Pai quer
ajudar:
– Que foi, minha filha? Ei!... Carolina?
– Hmm?
– Eu estou te achando meio pertur... meio... longe.
Você está viajando? Está indo pra que país?
– Pai...
O Pai espera.
– Eu estou me sentindo tão... esquisita.
O Pai esperando.
– Pai...
– Hmm?
– Eu não sei direito o que que eu estou sentindo,
porque eu nunca senti o que que eu estou sentindo,
mas é que... eu acho que... é paixão.
O Pai fica alisando de leve a madeira da
escrivaninha.
– É, acho que é isso, pai. E dessa vez não é por
uma cidade, nem por um espaço, nem por um vestido.
Agora se trata de um homem. Que tem o dobro da
minha idade. E que ainda por cima é... quer dizer, era
o namorado da Bianca.
92 Lygia Bojunga

O movimento da mão alisando a madeira agora


é mais lento.
– Pai.
– Hmm?
– Eu nunca me senti tão mexida, tão... atingida pelo
olhar de alguém como eu me sinto pelo olhar dele.
–?
– Do Homem Certo.
– Quem?
Carolina ri um riso curto.
– Homem Certo. É assim que a gente começou a
chamar ele, a Bianca e eu. – Outro riso curto. – Vai
ver ele é até o Homem Errado, não sei. O que eu sei é
que eu nunca fiquei assim tão... perturbada, feito você
disse.
– Eu?
– Você não ia dizendo pertur... quando mudou
pra... longe?
– É: ia.
– Pois é, nunca ninguém me deixou assim. Feito
ele me deixa.
Está ventando lá fora. Durante um tempo o Pai
fica acompanhando o balanço do galho de uma
trepadeira que, volta e meia, bate de leve na vidraça.
Faz um gesto de cabeça:
Retratos de Carolina 93

– Tua mãe plantou essa dama-da-noite não faz muito


tempo; olha só como ela cresceu: já alcançou a janela.
– É aquela que só abre a flor quando cai a noite?
– É. E que perfume!
– Mas ela já está dando flor?
– Deu ontem pela primeira vez.
– Não vi.
– Você não estava em casa.
– Ah, é.
O galho bate, e bate, e bate no vidro. Carolina
desabafa:
– É um tesão por ele que não tem mais tamanho,
pai. Eu nunca pensei que tesão podia ser uma força
forte assim. É isso também que está me deixando tão
perturbada. Eu digo também porque tem uma coisa
que eu não sei direito o que que é, eu só sei que é uma
coisa que... me fascina, mas que... ao mesmo tempo
que me fascina, me incomoda; mais até: uma coisa que
me assusta um pouco.
O Pai olha pra ela.
– É o jeito que ele olha pra mim.
O olho do Pai vai voltando pra dama-da-noite:
– É um jeito especial?
– É! É! É, sim. Só que eu não sei te dizer que jeito
que é. – Puxa a cadeirinha mais pra junto do Pai e,
94 Lygia Bojunga

sem se dar conta, pega aquele tom segredado que ela


em pequena pegava quando achava que por uma fresta
qualquer tinha desvendado outro segredo da vida:
– Mas t’aqui, ó – bate na testa – t’aqui o tempo
todo, e t’aqui e t’aqui também. Se eu tô comendo, se
eu tô me vestindo, se eu tô na faculdade, se eu tô
conversando, tudo parece assim... irreal, a única coisa
que existe, mas que existe mesmo, é ele olhando pra
mim.
O Pai nota, na superfície da escrivaninha, uma
mancha no couro que ele não se lembrava de ter
visto antes. Olha as manchas que tem no braço (sol?
idade?), comparando as manchas que estão na pele e
as que estão no couro.
– Pai, eu fico sem saber se... – se cala.
– Fala, Carolina.
– Você acha que paixão e amor... se confundem?
O Pai responde com uma espécie de riso. Carolina
olha pra ele numa indagação.
– Acho que não, Carolina, acho que não.
– E, pra você, a diferença qual é?
– Ah, minha filha, que coisa tão difícil de definir,
essa, que a gente chama amor.
– E a outra?
– A paixão?
Retratos de Carolina 95

– É.
– Bom, eu acho que a paixão é uma emoção que
nos cega. Nos confunde. Nos arrasta...
– Ah, pai.
– Que foi?
– Mas é isso mesmo que está me acontecendo,
eu estou cega pro resto: só vejo ele; eu estou confusa
demais: nunca pensei que meu primeiro amor por um
homem fosse pegar esse feitio; eu me sinto arrastada
pelo olhar dele, pelo jeito dele, pelo cerco dele. Ele
está me cercando, pai! Mas é um cerco tão lindo,
todo feito de chocolate e de flor, e de voz no telefone
que eu adoro ouvir, e de cartão e de carta, que eu leio
não sei quantas vezes, e tudo me chama tanto pra ele!
e mesmo não sabendo direito pra onde é que eu tô
indo, eu quero ir, e mesmo intuindo que eu tô indo
pra onde eu não devo, eu me sinto arrastada por ele,
confundida por ele, cegada por ele, ah, pai: paixão.

À medida que Carolina foi crescendo (sobretudo


depois que ela levou a cadeira dela pra junto da
escrivaninha), as histórias que o Pai contava pra ela,
os jogos que os dois brincavam, as conversas que
tinham foram acontecendo no escritório. Um dos
96 Lygia Bojunga

fatores que mais pesava na atração que Carolina sentia


por aquele espaço era a escrivaninha.

“Não entra! Teu pai está escrevendo.”


“Deixa ela entrar.”

“Sai de perto dessa porta! Teu pai está lendo.”


“Já acabei. Entra, Carolina.”

Carolina rondava de levinho a porta encostada


do escritório. Mas, se o Pai não chamava, ela não
entrava. E a atração pela escrivaninha não era só
porque ela tinha associado o pai ao móvel: era
também pelo móvel escrivaninha.
Quem arquitetou a escrivaninha obviamente
tinha problemas em relação à mesmice: não só ela era
diferente do comum das escrivaninhas, mas também
nela mesma, ela não se repetia. Assim, as gavetas que
moravam dos dois lados, vizinhas do espaço vazio
onde o Pai estendia as pernas, não só eram todas de
altura diferente, como o interior variava: as mais altas
sem repartições, boas pra pastas, fichários; as médias
tinham repartições que também variavam; duas delas
tinham chave (os assuntos íntimos...), as outras só
puxador; encimando o espaço pras pernas, uma de
Retratos de Carolina 97

altura pequeníssima, onde o Pai enfileirava caneta,


lápis, borracha, apontador, canivete, tesourinha,
pregador assim, abridor assado, e mais um monte de
imprescindíveis miúdos, que encontravam ali a
morada ideal.
O couro que revestia grande parte da superfície
da escrivaninha também se diferençava no tom,
dependendo do mais ou do menos que teve, aqui ou
ali, o roçar de mão.
E no pé também: a escrivaninha nasceu calçada
de metal, que se azinhavrou mais pra mais, mais pra
menos dum lado e doutro.
A extremidade da superfície (encostada na parede,
entre as duas janelas) sustentava um “dúplex” de
escaninhos. Também: variando de altura, de largura
e de privacidade (uns tinham portinha, outros não;
duas portinhas tinham chave, a outra não; uma chave
trancava, a outra só puxava).
Gavetas e escaninhos foram se povoando e, às
vezes, se superlotando ao longo dos anos. Com a
ordem que botava em tudo, o Pai organizou aquele
condomínio de maneira exemplar: aqui caderninho
disso, aqui daquilo, aqui envelope, aqui papel de
carta, aqui fichário, aqui jornal dobrado, aqui
suvenir.
98 Lygia Bojunga

Guardar suvenir era outra predileção do Pai.


Guardava suvenir de tudo que é lugar que ia, de todo
passeio que fazia; se gostava do filme, da peça, do
concerto, guardava o programa de recordação; e a
gaveta de folhas secas tinha tantas, que, se não fosse
o hábito do Pai escrever em cada uma local, data,
acompanhamento-ou-não, nunca que ele ia se lembrar
do porquê de ter guardado tal ou qual folha.
Muitas vezes Carolina se perguntou se o Pai tinha
comprado a escrivaninha porque calhava às mil
maravilhas pra tanta pequena coisa e pra tanta grande
lembrança, ou se ele começou a colecionar tanta
anotação, tanto suvenir, tanto papel, pra povoar tudo
que é gaveta e escaninho e repartição da escrivaninha.
Um dia fez a pergunta a ele. Mas o Pai se limitou a
um leve encolher de ombros: sabe que eu não sei?
Desde bem pequena Carolina gostou de se
avizinhar da escrivaninha. É lá que ela está agora. Ela
e o Pai.
– Que cheiro tão bom que tem essa escrivaninha,
não é, pai?
– Tua mãe tá sempre massageando ela com cera de
abelha...
– Ah, é isso. – Respira fundo. – É isso que dá pra
ela esse cheiro de ar livre; a gente se sente meio, sei
Retratos de Carolina 99

lá, meio no campo, na vizinhança de uma floresta, na


beirada de um riacho, pisando um capinzinho
recém-lavado de chuva...
O Pai riu. E pensou que, depois, ia anotar no
caderno-Carolina o que a filha tinha acabado de dizer.
Sem nem pensar que ia também anotar o que ela vai
dizer agora, e que vai dar nele uma vontade tão grande
de chorar.
– A mãe saiu?
– Foi fazer compras.
– Bom, então quando ela chegar eu conto pra ela.
– O quê?
– O que eu vou te contar agora.
O Pai reclina as costas no espaldar da cadeira e
fica olhando pra Carolina. Ela meio que ri. Depois
suspira, feito quem toma fôlego:
– Ele tem insistido tanto, pai! Não resisti mais:
hoje disse a ele que sim.
– Sim... o quê?
– Eu caso com ele, sim.
O Pai mal disfarça o susto:
– Casar? Casar, Carolina??
– É, pai. Sabe, eu nunca vi um cerco assim tão
fechado. Eu já tinha te falado disso, não é? Logo
depois do nosso primeiro encontro ele começou a me
100 Lygia Bojunga

cercar e, de saída, foi falando em casamento. E todo


dia é a mesma coisa. Em cada encontro, em cada
telefonema, em cada presente que chega, vem sempre
o mesmo pedido: casa comigo! Não resisti mais, pai,
hoje eu disse que sim.
Mais que susto: o Pai parece alarmado.
– Que foi, pai?
Ele ganha tempo. Esfrega a testa com a mão.
– Pai, que é?
– Mas... pra quê, Carolina, pra quê?
– O quê?
– Casar? Ou melhor, casar com ele? Por quê?
– Você não gostou dele?
– Não se trata de gostar ou não gostar... a conversa
que nós dois tivemos foi... muito superficial, mas...
mesmo assim, eu... eu acho que... – Parece que não
está encontrando as palavras que busca. Se cala.
– É porque ele é muito mais velho que eu?
– Não! claro que não.
– Então por que que você não gostou dele?
– Já te disse, não é questão de gostar ou não.
– É então que questão?
– Bom, me pareceu que... que vocês não têm muito
a ver um com o outro... – Arrisca olhar bem dentro
do olho de Carolina: – Você acha?
Retratos de Carolina 101

– Que eu tenho a ver com ele?


O Pai faz que sim.
– Bom, pai, tem tanta gente que casa sem ter a
ver um com o outro. E dá certo. Até tem um ditado,
não tem? que diz dois bicudos não se beijam?...
– Mas por que essa pressa de casar, minha filha?...
– A pressa é dele, pai!
– ...se dê um pouco mais de tempo, pra ver com
que cara essa paixão vai ficar mais pra frente.
– Ah, pai, não tá dando mais pr’aguentar.
– O quê? A paixão?
– Também, mas...
– Você não tem que aguentar, você tem que viver
essa paixão. Quem sabe até, vivendo... ela morre?
– ...mas, mais difícil de aguentar é a pressão, pai.
Você viu, não é? Ele não me deixa, não me larga.
Cerco assim, cheio de charme, quem é que aguenta?
Você viu, até a mamãe, sempre sisuda, já anda toda
derretida por ele. Você não acha ele charmoso?
– Carolina...
– Eu acho. Eu acho demais.
– Carolina...
– Só tem uma coisa que, sei lá, continua, volta e
meia, me incomodando; não, intrigando. É, intrigando:
é um certo jeito que ele tem de olhar pra mim.
102 Lygia Bojunga

O Pai se surpreende com a própria voz apelando


com firmeza:
– Pense mais um pouco nessa decisão que você
está tomando, Carolina.
– Ih, pai, eu tenho pensado tanto!
– Mas muito depressa. Pensamento é como
tudo mais: pra dar fruto tem que ser trabalhado,
pede vagar.
– Quando eu contei pra ele da minha paixão por
Londres, ele logo me arrastou para uma agência de
turismo pra escolher o roteiro e as datas de uma ida
à Europa. Pra nossa lua de mel. – Se levanta e enlaça
o pescoço do Pai. – Vai dar certo, paizinho, vai dar
certo, você vai ver.
O Pai resolve não dizer mais nada. O abraço de
Carolina se prolonga. O Pai então desresolve:
– Escuta, filha, antigamente era difícil uma
moça dar rédea livre pr’uma paixão, mas hoje em dia
é tão fácil, vocês tão tão liberadas. Viva essa paixão
com a mesma intensidade que você vive tudo. Mas
não se amarre tão depressa num
casamento que...
Carolina ri:
– Mas, meu pai, eu já dei rédea livre pra minha
paixão. – Estreita ainda mais o abraço. – Eu tenho
Retratos de Carolina 103

vivido ela intensamente. E é tão bom! – Segreda: – Vai


dar certo. Eu te garanto que vai dar certo.
Carolina e o Homem Certo se casaram em
cerimônia simples, assistida por poucos amigos e pela
família de Carolina.
A ausência da família do Homem Certo, no dia
do casamento, se explica por esse

Quando o Homem Certo conheceu a Eduarda, se


apaixonou logo por ela. Não sossegou até o dia em
que ela concordou em se casar com ele.
Passado um tempo, a Eduarda começou a
reivindicar do Homem Certo o abandono de antigas
predileções, feito cheirar pó (você vive dizendo que
não é dependente; mas se não é, vai ficar), adular o
uísque (por que você não aprende a parar depois do
primeiro ou segundo?), fumar três maços por dia (se
você não se importa de morrer, eu me importo: não
tô mais aguentando respirar tanta fumaça), um
consumismo que ela achava excessivo (você não é mais
104 Lygia Bojunga

criança, já tinha que saber que não se pode gastar


desse jeito!), um ritual superelaborado na fazeção de
amor (lá uma vez que outra, tá bem, mas isso todo dia
não tem que aguente), etc.
Mas as predileções do Homem Certo estavam
muito enraizadas.
Eduarda resolveu reivindicar com mais energia.
Tudo continuou na mesma.
Um belo dia ela deu o ultimato:
– Você escolhe: ou eu, ou esse estilo de vida que
você não faz o mais leve esforço pra mudar.
Ele escolheu a Eduarda:
– Você sabe que eu não vivo sem você. – E fez
um pequeno esforço pra atenuar as predileções.
Achou que bastava. Não bastou: tanto a Eduarda
quanto as predileções eram mais fortes do que ele e,
um dia, lá por volta das cinco da tarde, a Eduarda
declarou: vai pro inferno! Largou tudo pra lá,
marido, casa, guarda-roupa, pastor-alemão, e foi
s’embora pra nunca mais voltar. Pior: foi s’embora
com outro, que tinha muitos anos menos que o
Homem Certo, e só bebia água mineral, e jamais teve
a curiosidade de experimentar nem um único
baseado, e liderava campanhas antitabagistas, e estava
empenhado em abrir uma pousada numa praia quase
Retratos de Carolina 105

deserta da Bahia, e disse pra Eduarda: a praia é


lindíssima, vem comigo, vem! e ela foi.
Foi só a mulher ir s’embora que o Homem Certo
se entregou pr’as predileções: ele não tinha mentido
quando disse que não podia viver sem a Eduarda;
desde o dia em que conheceu a Eduarda ele viveu em
estado de fascínio por ela, e quando ela sumiu da vida
dele bem que ele andou cogitando de ir mesmo pro
inferno, mas na hora faltou coragem e então optou
pela alternativa mais fresquinha do gelo no copo.
O tempo passou. Mas a falta da Eduarda, não. Ao
contrário: aumentou.
Às vezes o Homem Certo experimentava um
namoro. Se entediava rapidinho. Só conseguia transar
acompanhado de todas as predileções. Fechava o
olho com força. A mesma força que empregava pra
imaginar que a mulher que ele tinha nos braços era a
Eduarda. Mas a imaginação do Homem Certo não era
lá essas coisas: nem sempre se prontificava a prestar
ajuda.
E aí, e por causa do vestido, aconteceu o momento
mágico: já meio entediado do namoro recente com
a Bianca, o Homem Certo chega em casa pra jantar,
vai lá em cima trocar de roupa, e quem é que ele vê
quando passa pelo quarto de vestir da Eduarda?
106 Lygia Bojunga

A Eduarda.
Pois é.
Não que a semelhança física da Carolina e da
Eduarda fosse extraordinária. Mas, assim sem sapato
(feito a Eduarda gostava de andar), com o cabelo
preso, e mal preso, no alto da cabeça (feito a Eduarda
costumava usar), mais pra magra e mais pra alta,
feito a Eduarda era também, e, ainda por cima, vestida
no vestido da Eduarda, o Homem Certo, e por que
não? achou que a Carolina era a Eduarda-que-tinha-
voltado.
E (aí é que foi curioso) quando viu que a Carolina
não era a Eduarda, não se decepcionou muito, não. É.
Ficou cativado pelo jeito da Carolina olhar, pelo jeito
da Carolina falar (achou que era jeito-de-Eduarda), e
já que ela não era a Eduarda, ele agora transformava
ela numa cópia do original, pronto.
Durante o jantar, quanto mais ele estudava a
Carolina (e quanto mais vinho provava), mais ele
se convencia de que podia reeditar a Eduarda na
Carolina.
Quando chegou a sobremesa, a Bianca já era
objeto de museu pro Homem Certo; quando o café
foi servido o Homem Certo já tinha resolvido
que no dia seguinte começava o cerco.
Retratos de Carolina 107

E começou. Um verdadeiro bombardeio de cesta


de flor, de pedido de encontro misturado com
chocolate, de telefonema, de presente, e de charme e
mais charme se derramando pela voz no telefone,
pela letra nos bilhetes, pelo olhar no abraço.
E quando, “de brincadeira”, só pra relembrar o
primeiro encontro, o Homem Certo pediu pra
Carolina se enfiar outra vez no vestido, ficou tão
seduzido pelo jogo amoroso daquela noite, que
contagiou Carolina e ela se seduziu também.

O fato é que o Homem Certo ainda era


apaixonável. Bonito toda vida. Envolvente que só
vendo. E ainda tinha dinheiro: contava ponto pra
caprichar no cerco. E, se a gente diz que ainda era e
ainda tinha é porque, no passado, ele foi e teve muito
mais: nasceu numa família rica e devotada: cada vez
que o Homem Certo se endividava demais, morria um
pai, uma mãe, um tio, uma tia, um avô, e o Homem
Certo herdava. Era só liquidar tudo que é dívida
pra começar a se endividar outra vez, aguardando,
confiante, a próxima morte. Essa história de
trabalhar nunca chegou a despertar uma curiosidade
muito grande no Homem Certo. Mesmo porque
108 Lygia Bojunga

ele começou a ter cedo as tais predileções, e logo


entendeu que a manhã tinha sido feita pro sono.
Agora, recém-chegado aos quarenta, o Homem
Certo já mostra na cara e já sente no bolso um certo
ar de fim de festa, e, cada vez que se lembra que só
tem mais um parente devotado pra morrer, a cara
mostra mais um bocadinho do apagar das luzes.
Mas a Carolina só conheceu o Homem Certo
agora: não pode comparar o que ele é com o que ele
foi. Resultado: se enfeitiçou. E quando ele disse,
vamos casar! não quero mais esperar pra você ser
minha, exclusivamente minha, a Carolina (sem achar
esquisito nem nada de passar a ser de alguém depois
de vinte e um anos sendo dela) só perguntou:
– E a Eduarda?
Ele já ia respondendo, você é a Eduarda. Mas se
segurou a tempo e respondeu a pergunta com um
afago sedutor.
Retratos de Carolina 109

ssa ampulheta é tão parte da escrivaninha!


Há quantos anos ela taí, pai?
– Desde que o teu avô morreu. Você tinha... deixa
ver... você tinha quatro anos.
– Ah, então é por isso que eu não me lembro de
jamais ter visto a escrivaninha sem a ampulheta.
– Depois da morte dele, quando a mamãe começou a
distribuir as roupas, os sapatos, os objetos de uso pessoal
dele, ela me chamou lá e disse, toma, essa ampulheta é pra
você: um dia o teu pai e eu estávamos conversando sobre
você e ele me disse, olha, se eu morrer de repente (parecia
até que ele estava adivinhando!), você dá essa ampulheta
pra ele: ele também gosta de olhar pra ela e ficar vendo o
tempo medir a vida que passa. – Fica pensativo. Depois
conclui: – Cheguei em casa e botei ela aí. Justo aí, onde ela
está até hoje.
– É um objeto tão bonito, não é?
110 Lygia Bojunga

– Sabe que o papai descobriu essa ampulheta na


lua de mel dele?
– É mesmo?
– É.
– Olha só! e você nunca me contou.
– Não?
– Não.
– Pois foi. Em Buenos Aires. Meio escondida no
canto de um antiquário. Você tem a quem sair: teu avô
sempre gostou de móveis, vivia visitando antiquários.
Resolveu logo comprar a ampulheta, pra ficar de
lembrança da lua de mel. Chorou o preço que só
vendo. Não adiantou nada: o dono do antiquário não
baixou um tostão: disse que era um objeto tão velho
quanto raro.
– Deve ser muito antigo mesmo, olha só pra essa
madeira aqui. Sabe que eu nunca vi outra ampulheta?
Quer dizer, vi sim: umas pequenininhas assim, de
plástico, tem gente que usa elas na cozinha pra medir
o tempo certo de um ovo quente. Mas uma ampulheta
assim grande, bonita, pra valer, feito essa... hmm-hmm:
só essa.
– Não senhora.
– Não o quê?
– Você já viu uma outra, e até bem parecida.
Retratos de Carolina 111

Carolina arregala o olho; fica vasculhando a


memória; de repente grita:
– Ah, já sei, já sei, lembrei! Num quadro lá do
Museu do Prado: uma pintura impressionantíssima:
uma moça, uma velha e a Morte: a Morte está
segurando uma ampulheta.
– Isso!
Riem.
– É verdade! como é que eu fui m’esquecer? Ah,
pai, mas essa ampulheta aqui é mais bonita.
– Também acho.
Ficam olhando o escoar lentíssimo da areia. O riso
vai se apagando do rosto dos dois. Depois:
– Pai.
– Hmm?
– Eu tranquei a minha matrícula na faculdade.
Silêncio comprido.
– Já deu pra notar que o teu marido não vê com
bons olhos os teus estudos.
– Ele se recusa a entender o quanto eu quero, o
quanto eu preciso ter a minha profissão.
O Pai não diz nada; continua olhando pra ampulheta.
– Sabe o que que ele diz? “Você vai ser a arquiteta
da nossa vida”. E acha isso engraçado, imagina.
Outra vez o silêncio.
112 Lygia Bojunga

– Puxa, pai, eu fiz tudo, absolutamente tudo, pra ele


compreender que desde muito cedo eu quis ter a minha
profissão, eu quis ser uma arquiteta. Você sabe, não é,
pai, você sabe melhor que ninguém: eu nunca mudei
de ideia. Todo mundo que eu conheço ora quer ser
uma coisa, ora quer ser outra, mas eu não! você sabe, eu
sempre quis criar espaços, eu sempre... ah, deixa pra lá.
O olho do Pai larga a ampulheta e corre pra Carolina:
– Deixar pra lá??
– Pelo menos por enquanto.
– Mas você já largou a faculdade?
– Já, já! Você sabe que eu detesto essa história
de ficar brigando, discutindo, e a gente agora estava
sempre brigando e discutindo por causa do meu
interesse pelo estudo. Ele cismou que eu não preciso
estudar, que eu não preciso trabalhar, que eu não
preciso ter uma profissão, que eu não... – Tranca a
boca. Espera um tempo pra se acalmar. – Ele é uma
pessoa muito... insegura, sabe, pai. Muito mesmo. –
Se levanta: – É melhor eu ir andando, hoje a gente vai
jantar fora. – Se inclina e beija a testa do Pai: – Tchau,
paizinho.
– Tchau, minha filha.
Retratos de Carolina 113

Pai entra no escritório e vê Carolina


sentada na cadeira dele, o corpo inclinado pra frente, a
cara escondida no braço que se apoiou na escrivaninha.
– Carolina? – o Pai chama baixinho.
Ela não se mexe. O Pai estende o braço pra
acender a luz. Muda de ideia. Se encaminha devagar
pra junto da filha.
O escritório está iluminado somente pela luz que
vem da rua.
De repente, Carolina sente a presença do Pai e
se assusta. Levanta a cabeça. Mas logo vira o rosto pro
lado, evitando olhar pra ele.
– Pensei que você estava dormindo.
– Não, não, pai... Eu estava pensando.
O Pai percebe que ela está tentando controlar a voz.
– Tua mãe me disse que há horas você está aqui
fechada...
114 Lygia Bojunga

Depois de um tempo:
– É.
– ...sem querer falar com ela...
– É.
– ...sem querer ver ninguém.
– É.
– Você prefere continuar aqui sozinha, minha filha?
– Não, não. – E, ainda sem olhar pra ele, ela se
levanta, senta na cadeirinha e vira a cabeça pra janela.
– Senta, pai.
O Pai se senta com certo esforço. Um esforço que
Carolina não chega a notar.
– Eu hoje tive que fazer uns exames, por isso é que
eu cheguei mais tarde. Mas se eu soubesse que você
estava aqui me... Você estava me esperando, Carolina?
– Não. Quer dizer, vai ver estava. Não sei. É que eu
precisava ficar quieta. Num lugar bom... que eu amo...
Aqui. – Parece que vai se virar pro Pai; hesita; acaba
ficando na mesma posição. – Pra ver se passa, pra ver
se eu... – Meio que encolhe o ombro; se cala de novo.
– É melhor dizer pra tua mãe que você vai jantar
aqui conosco?
– Não, não, eu não tenho fome, vai você, pai,
vai jantar.
– Tua mãe ainda não chamou.
Retratos de Carolina 115

O Pai tenta respeitar o silêncio de Carolina. Mas


vai ficando angustiado de sentir a dor que ela está
sentindo; angustiado de não saber que dor que ela está
sentindo. Mesmo sem conseguir encontrar o olhar da
filha, parece ao Pai, num relance, que a fisionomia de
Carolina está enrijecida, dura, e ele pensa: uma dureza
que só a revolta sabe engendrar. Sente que precisa
fazer qualquer coisa, mas fazer o quê, se Carolina não
fala? Quando não consegue mais suportar o silêncio,
ele pergunta:
– Que foi, Carolina? Que foi, minha filha?
– Eu não tô legal, pai.
– Isso eu sei, mas...
– É melhor a gente não falar da gente. É melhor a
gente nem falar.
O Pai se contém. Reclina as costas e não diz mais
nada.
Lá pela tantas, sentindo que já pode dominar a
voz, Carolina pergunta:
– Pai?
– Hmm.
– Você se lembra daquele dia, quando eu era
criança e você foi me buscar numa festa de aniversário
de uma amiga que eu tinha, a Priscilla?... Naquele dia
que a mãe me bateu com...
116 Lygia Bojunga

– Lembro! lembro, claro. Por quê?


– Você... você se lembra se eu abri a porta da
gaiola?
– Se... o quê?
– Quando você me encontrou eu estava junto de
uma gaiola, lembra? Uma gaiola quase da minha
altura, não lembra não?
O Pai começa a procurar a cena na lembrança.
– Dentro da gaiola tinha um pássaro grande.
Preto. Bonito. Você lembra, pai, você lembra?
– Eu estou me lembrando, sim: tinha uma gaiola
do teu lado, mas... mas tava meio escuro naquele
jardim, não estava não?
– Estava.
– E você estava muito perturbada, não é?
– É.
– Pois é, eu devo ter ficado também perturbado de
te ver assim porque eu não me lembro de ter prestado
atenção nem no pássaro, nem na gaiola.
– Você não viu se a porta estava aberta ou fechada?
– Não, eu não me lembro desse detalhe. Eu acho
que... é, eu acho que eu só prestei atenção em você.
Mas por quê?
– É que... sempre que eu recordo essa cena, eu
fico em dúvida se eu cheguei a abrir a porta da gaiola
Retratos de Carolina 117

pro Pet poder fugir... ou se eu deixei ele lá preso. Eu


contei pra você, não é? que eu tinha ficado muito
magoada com a Priscilla naquele dia. A gente não
ficou mais amiga, a Priscilla e eu. E nem ia dar pra
ficar: pouco tempo depois a família dela se mudou do
Rio, a gente nunca mais se viu. Então... – deixa a frase
no ar.
– Mas por que que você está se lembrando disso
agora?
– É que... sei lá... eu passei anos e anos sem me
lembrar disso, mas agora... ultimamente... é... eu
tenho me lembrado dele... do Pet... tão grande, tão
bonito... preso naquela gaiola... Com tanto lugar
pra voar e ele ali preso. A gente... tava lá escondido
no jardim... eu e ele... ninguém ia nem ver se eu
ajudasse ele a fugir... mas... mas eu acho que eu não
abri a porta... eu acho que eu deixei ele continuar lá...
prisioneiro. Ah!...
O ah de Carolina faz o Pai reviver a impressão que
tinha tido de relance, quando pareceu ver a fisionomia
da filha endurecida de revolta. E já que ela se obstina
a não olhar pra ele, ele se levanta e tenta olhar ela de
frente, querendo confirmar a impressão.
A Mãe entra no escritório:
– Vamos jantar?
118 Lygia Bojunga

Carolina se levanta num movimento rápido. Vê


que a Mãe vai acender o abajur da escrivaninha; se
interpõe:
– Não vai dar pra ficar, mãe: eu tenho um
compromisso, já estou atrasada. – Corre pra porta e
mal se vira pra jogar um beijo pros dois.
A Mãe fica esperando o portão lá fora bater.
– A comida já está na mesa.
– Estou indo.
A Mãe sai. O olho do Pai vai pra ampulheta. No
último ano ele fica mais e mais tempo olhando a areia
escorrer, pensando no quanto o tempo vem marcando
Carolina, marcas sempre tão visíveis a cada visita
que ela vem fazer. Visitas que vêm se espaçando, se
espaçando cada vez mais.
Chega a voz da Mãe avisando que a comida está
esfriando.
O Pai se levanta devagar.
Retratos de Carolina 119

telefone toca; Carolina atende e tem uma


surpresa: é o Pai, pedindo pra ela ir lá falar com ele. E,
surpreendendo Carolina ainda mais (é a primeira vez,
desde que Carolina saiu de casa, que o Pai telefona
pra “cobrar” uma visita), o Pai acrescenta que se trata
de um assunto pessoal, coisa muito minha, que eu
preciso falar com você.
– Daqui a pouquinho mesmo eu já estou aí, pai.

A porta do escritório estava encostada, como de


costume, mas assim que Carolina entrou o Pai pediu
pra ela fechar a porta.
A tarde ia acabando do mesmo jeito que a
manhã tinha começado: chuvosa e fria. Era junho,
e os dias curtos; ainda não tinha dado cinco horas,
mas só um resto de luz do dia entrava pela vidraça.
120 Lygia Bojunga

O abajur sobre a escrivaninha estava aceso, e foi


só o Pai levantar a cabeça do livro que tinha na
mão pra Carolina ver que o pai estava abatido e
envelhecido. Beijou ele na testa, pensando que talvez
o abajur estivesse sombreando o rosto dele; puxou a
cadeirinha mais pra perto, sentou e olhou pro pai de
outro ângulo. Não: ele estava mesmo envelhecido e
com uma fisionomia cansada. Se lembrou da última
visita que tinha feito, e só então se deu conta de que,
naquela ocasião, não tinha olhado pro Pai.
– Estava com saudades, Carolina.
– Eu também.
– Faz tempo que você não aparece.
– É.
– Você está bem?
Ela disse por dizer que estava, sabendo que ele
sabia que ela não estava.
– Hmm.
E os dois ficaram calados.
No meio do silêncio, nasceu um susto na Carolina.
Que logo cresceu, se espalhou nela toda, esfriando pé
e mão, fazendo o coração bater forte, a garganta secar.
Na Carolina é assim; a intuição sempre dispara na
frente; disparou também agora, dando a notícia que
só depois o Pai vai dar.
Retratos de Carolina 121

O silêncio se encomprida.
Lá pelas tantas, sem querer, o olho do Pai se
encontra com o olho de Carolina. Um encontro curto.
Mas suficiente pra apagar o brilho de esperança que
tinha se acendido no olho dela. E pronto, se separam.
Os livros na última prateleira da estante encostam
no teto. É pra eles que Carolina fica olhando.
Quando o silêncio fica longo demais, o Pai fala:
– Eu não vou querer prolongar a doença, Carolina.
Já avançou muito. Com uma rapidez que nos tomou
de surpresa, os médicos, a tua mãe, eu. Daqui pra
frente, vai ser só sofrimento. – Pausa. – Dor. – Pausa.
– Despesas. – Pausa. – Por que consumir o pouco
que eu consegui economizar numa vida que já está
condenada? – Pausa. – Não, não quero.
E o silêncio outra vez.
– Mas quando é que essa doença começou, meu
pai?
– Eu não vinha me sentindo bem já desde o ano
passado. Mas você sabe, não é? Eu sou meio alérgico
a médico, remédio, hospital, essa coisa toda; não
tomei nenhuma providência. Há coisa de dois meses
eu comecei com umas dores fortes no estômago. Os
primeiros exames que eu fiz acusaram o câncer em
estado avançado.
122 Lygia Bojunga

– Dois meses? E eu sem saber de nada?!


– Achei que você ia sofrer, pedi pra tua mãe
não falar no assunto com ninguém, nem contigo. Já
bastava o que estava te acontecendo. – Carolina olhou
pro Pai; ele corrigiu: – O que está te acontecendo.
Ela conseguiu fazer uma cara meio desconfiada,
meio brincalhona:
– E o quê que está me acontecendo?
– Frustração. – Se calou. Ela também ficou quieta.
Não era só a notícia sombria do câncer que fazia
a conversa assim, tão intercalada de silêncios; era mais
aquela falta de costume que os dois tinham de trazer
um pro outro o desabafo de emoções.
– Frustração grande – ele acrescentou. – Grande,
não: enorme.
Carolina continuou sem dizer nada. Só quando ele
pediu uma confirmação: – Não é? – é que ela fez que
sim com a cabeça.
– Por que, Carolina?
– O quê?
– Que isso continua?
– Isso?
– O teu casamento.
É mesmo, ela ficou pensando, por que será que
isso continua? e o Pai continuou:
Retratos de Carolina 123

– Já está indo pra quatro anos que você se casou.


Na época eu te perguntei, por quê? Bastou ter
conhecido teu marido pra ver que vocês não tinham
nada a ver um com o outro. Você lembra que eu te
perguntei, por quê?
– Claro. E eu te respondi, eu me apaixonei.
– E eu não te perguntei mais nada: quando eu
era moço, eu também me apaixonei por uma mulher
que não tinha nada a ver comigo. – O olhar dos dois
se encontrou de novo. Dessa vez um encontro mais
demorado. – E me casei com ela. E, se alguém tivesse
me perguntado, por quê?, eu teria respondido isso
mesmo: me apaixonei; a beleza dela me seduziu: tua
mãe foi sempre muito bonita, não é?
Carolina fez que sim. Lembrou que ainda era bem
pequena quando se perguntou, pela primeira vez, por
que será que ele se casou com ela? E quantas vezes
mais tarde ela tinha se perguntado, será que ele não
tem vontade de ir embora dela? Foram tantas as vezes
que ela perguntou isso calada, que, de tanto ficar sem
resposta, de repente a pergunta saiu em voz alta:
– Demorou pra descobrir que vocês não tinham
nada a ver?
– Menos do que está durando o teu casamento...
– Mas o teu dura até hoje...
124 Lygia Bojunga

– É.
Silêncio.
Será que ela tinha o direito de continuar
avançando pela emoção dele adentro? Esperou. Ele
acabou vindo ao encontro da expectativa dela:
– Quando eu era moço, a separação era um bicho
de mais cabeças do que é hoje em dia. Fora disso,
quando a minha paixão foi diminuindo, eu comecei a
sentir pena da tua mãe. Uma pena que, essa sim, não
diminuiu nunca de tamanho.
– Pena? – e abaixou a voz, repetindo, pena?
– Pra mim, ela é uma coitada. E é por isso,
porque eu acho ela uma coitada, que hoje eu quis
ter essa conversa contigo. – Apoiou o cotovelo na
superfície da escrivaninha, descansou a cabeça na
mão, e o olhar se perdeu lá por onde o pensamento
andava. – Quando você nasceu, eu fui surpreendido
pelo interesse que eu senti em ser pai. Interesse e
alegria. Que foram crescendo te vendo crescer. E o
fato de você procurar sempre a minha companhia,
e termos nos tornado tão bons companheiros, foi
muito significativo na minha vida; foi tão importante
pra mim que por si só bastaria pra não ter desfeito a
relação pobre que eu sempre mantive com a tua mãe.
– Ficou um tempo pensativo. Meio que encolheu o
Retratos de Carolina 125

ombro. – Talvez ela não ache pobre, não sei; ela foi
programada pra achar que, se as contas são pagas, o
conforto assegurado, a família agregada, a casa limpa
e arrumada, então está tudo bem, o resto não chega a
interessar. Então, é possível que ela seja feliz. De uma
coisa eu tenho certeza: ela não se acha uma coitada.
– Por quê?
– Coitada?
– É.
– Passou a vida dependendo de mim pra tudo. Só
porque se casou comigo. Até hoje diz que não sabe
conferir conta nenhuma, preencher um cheque
qualquer; nunca falou em dinheiro: só fala essa
coisa de dinheiro, e pra ela, essa coisa é coisa feita
pra marido resolver. Arte é coisa feita pra essa gente
boêmia; política é coisa pra homem; pobreza é coisa
pra pobre, e diz que se Deus criou pobres e ricos, Ele
deve ter lá suas razões. Criatividade, pra ela, é uma
palavra oca, feita só pra impressionar. Nunca teve
a curiosidade de abrir um só desses livros pra ver o
que é que tem dentro; nunca pensou que, provando
o estudo, podia gostar do gosto; sequer cogitou se
valia ou não a pena ir ao encontro de uma profissão,
de um projeto de trabalho. E quando um dia eu disse
pra ela (isso no tempo em que eu ainda imaginava que
126 Lygia Bojunga

ela podia mudar), quando eu disse pra ela que, por


ser mulher ela não precisava ser uma coitada, ela não
entendeu: pra tua mãe, só é coitada a mulher que não
arruma um homem pra sustentar ela.
Carolina estava tão surpresa com o desabafo
do Pai, que ficou olhando pra ele, sem nem mesmo
pensar se devia falar qualquer coisa ou não, e, por um
momento, a surpresa chegou até a amortecer a dor
que estava sentindo com a revelação da doença grave.
Já não entrava mais nenhuma claridade pelas
janelas.
Depois de um tempo o Pai retomou a fala, no
mesmo tom baixinho e cansado:
– Então, pra mim era uma alegria enorme te ver
optando por um caminho tão diferente do dela, tão
rico de possibilidades. Com o talento que você tem,
e com a tua vocação pra lidar com espaços, senti
tanta pena quando, por causa desse casamento, te vi
abandonando tudo que sempre te interessou tanto. O
fato mesmo do teu marido ter te feito abandonar teus
estudos, tua vocação, teus amigos, me pareceu prova
não só da insegurança dele quanto dos sentimentos
que ele tem por você. – Esperou um comentário
qualquer de Carolina, mas ela continuava não só
surpresa com a maneira pessoal e direta do Pai se
Retratos de Carolina 127

expressar, como sentia de novo a garganta apertada,


agora menos por ele do que por ela. Quis dizer
alguma coisa pra ele. Mas só teve vontade de chorar
por ela. Respirou mais fundo, querendo fazer
a vontade passar.
– Eu posso estar enganado, mas eu não te sinto
mais enamorada do teu marido.
Carolina quieta.
– Você ainda gosta dele?
Ela experimentou outra vez respirar fundo.
– Desculpa, Carolina, eu sei que eu estou
invadindo o teu espaço...
– Que é isso, meu pai?
– ...mas eu sei também que... sem essa conversa...
eu não vou poder enfrentar com serenidade... o que
eu tenho que enfrentar.
Feito coisa que não bastava o corpo assim tão pra
frente, Carolina chegou a cadeirinha ainda mais pra
perto da cadeira do Pai. E quando, afinal, começou
a falar, falou baixinho feito ele; mais até: falou no
tom cochichado que, em pequena, ela usava quando
achava que tinha descoberto um outro pedaço do
Grande Segredo:
– Você não está enganado, não: é isso mesmo:
eu não gosto mais dele. Mas não é que ele me
128 Lygia Bojunga

seja indiferente, não, não! É mais: eu des-gos-to


dele. Pior: cada dia que passa eu desgosto mais.
Eu me apaixonei, eu me envolvi com ele depressa
demais, não foi? É... Mas, em compensação, eu
estou me desenvolvendo devagar pra caramba. Já
faz tempo que a paixão foi embora. Mas isso não
resolveu o problema: no lugar dela entrou a revolta.
Mas o que que adianta a revolta se a gente sente
medo? se a gente sente culpa? dá no mesmo, ué: a
gente continua atolada. Lembra quando, logo no
princípio dessa história toda, eu te contei que eu
ficava meio perturbada com o jeito que ele olhava
pra mim? um jeito que eu nunca tinha sido olhada
antes. Lembra que eu te contei?
O Pai faz que sim.
– Perturbada e intrigada. Quer dizer: fascinada.
Você sabe, não é? pra mim, fascínio é feito de intriga.
Eu estava tão envolvida com ele, que eu não sacava,
mas não sacava mesmo que o jeito dele olhar pra mim
me intrigava porque não era um jeito dele olhar pra
mim: era um jeito dele olhar através de mim. Pai, o
olho dele me atravessa com força (e com que força!)
pra enxergar a Eduarda. Lá – a mão de Carolina
experimenta desenhar no ar o contorno de um espaço
vago. – Lá, onde mora a fantasia dele, sei lá! Só sei
Retratos de Carolina 129

que é lá que a Eduarda mora, e que pra encontrar


ela lá, o olho dele tem que me atravessar. É claro
que desde o princípio eu vi que ele gostava de me
ver na roupa que ela largou pra trás, no perfume que
ela abandonou, na cama que ela ocupou, usando o
armário, a penteadeira, o banheiro que ela usou. Mas
eu levava isso tudo um pouco na brincadeira; achava
que fazia parte de um jogo amoroso que agradava ele,
e, se agradava, por que não?; achava que ia passar. Mas
em vez de passar foi aumentando, se complicando,
e só devagar é que eu fui entendendo que eu era o
instrumento que ele precisava pra ter outra vez a
Eduarda nos braços. – Suspira de um jeito que parece
que está tomando fôlego. – Ah, pai, como me doeu
descobrir que, pra ele, eu não era eu. Me lembro do
dia em que eu, afinal, saquei; pra ele eu sou um
mero instrumento; e depois me corrigi, mero coisa
nenhuma! pra ele esse instrumento é tão precioso que
ele não quer arriscar nada que tire esse instrumento
da mão dele; e só aí eu entendi o cerco cada vez
mais fechado pra me botar na gaiola, pra me manter
prisioneira. Que faculdade, que amigos, que estudos,
que profissão coisa nenhuma! era perto dele que eu
tinha que estar; sempre ao alcance: ele nunca sabe
quanto tempo, quantos copos, quanto pó vai precisar
130 Lygia Bojunga

pra chegar lá onde a Eduarda está. – Dá uma pausa.


Depois: – Aí, quando o meu olho encontrava o dele,
eu já não me intrigava mais: o fascínio tinha sumido.
E foi sumindo tudo atrás; sumiu a vontade de deitar
na cama que foi dela, de abrir o armário que era dela,
de morar na casa onde ela tinha morado. Você não
imagina como ele se sentiu inseguro, pai. Começou,
então, a me ameaçar. Primeiro, pouco. Depois, mais.
Ficou violento. Um dia me agrediu. De um jeito que
me deixou atordoada. Você sabe, não é, pai, a única
vez que eu sofri uma agressão física foi naquele dia do
aniversário da Priscilla, lembra, pai? lembra que a
mãe...
– Lembro, sim, Carolina, lembro.
– Aí eu não consegui mais deitar com ele. Mas
não consegui mesmo. Era só ele chegar perto de mim
que eu já ficava assim, ó, tão tensa, tão rígida, que
uma perna não conseguia descolar da outra. Passei
a dormir no sofá da sala. Aí... uma noite... eu estava
dormindo... ele me acordou e...
O Pai vê a mão de Carolina se crispar,
nota a voz dela se alterando, a fisionomia se
ensombrando.
– ...e veio com aquela história d’eu vestir o
vestido... o vestido que eu te contei uma vez que eu
Retratos de Carolina 131

encontrei na casa dele, o vestido que você viu em


Londres, na vitrine daquela...
– Eu sei, minha filha, eu me lembro.
– É um vestido odioso! horrendo! Eu odeio
aquele vestido, eu acho que eu nunca odiei nada tanto
feito eu odeio aquele vestido, e aí ele foi tirando a
minha roupa, e me abraçando, eu vi que ele estava
superbebido e disse que não, tô cansada, eu quero
dormir, me deixa em paz, ele disse que não, eu disse
me deixa! e quando eu quis fugir dele, ele me pegou
à força e aí a gente se engalfinhou pra valer, eu
esperneava, eu dava pontapé, eu unhava, eu mordia,
mas ele é grande, não é, pai? mesmo assim, com aquela
tonelada de uísque dentro dele, ele é forte, abriu
minhas pernas na marra, e quando eu disse que ele
estava me estuprando, ele achou até graça: perguntou
se eu tinha esquecido que eu era casada com ele. Feito
coisa que casamento dá direito do homem violentar
a mulher. – Fica um momento só lembrando. –
Naquela noite, depois que... que ele se encontrou com
a Eduarda, e que... tudo acabou... ele virou pro lado
e dormiu, e eu... eu resolvi que tinha que acabar com
essa relação.
O Pai vai reclinando o corpo no encosto da
cadeira.
132 Lygia Bojunga

– Mas quando eu participei isso a ele, foi uma


tragédia. Jurou que ia me matar, jurou que ia se matar,
ameaça atrás de ameaça. Eu comecei a me sentir mais
insegura do que eu já vinha me sentindo, e quando
a gente se sente assim, vai dando uma... sei lá... uma
espécie de paralisia, não é? A gente se convence que...
que tem que ganhar tempo, não é? ...pra arrumar
coragem... acho que é isso... insegurança acaba com a
coragem que a gente precisa ter pra fazer o que tem
que fazer. E foi quando eu caí nessa paralisia que
chegou o dia da menstruação e: cadê? Não precisou
atrasar mais que uma semana e eu já tinha certeza, sem
exame, sem nada, que eu estava grávida. Quando eu
fiz o exame não deu outra.
O olho do Pai procura a gravidez no corpo de
Carolina, mas só vê a linha esguia de sempre.
– Eu fiquei desesperada, meu pai; quis tanto vir falar
com você de tudo que eu estava pensando e sentindo.
O Pai, quase alarmado:
– E por que não veio?
Ela hesitou. Depois:
– Achei que... pra te contar o que eu queria fazer,
eu ia... sei lá, eu ia chatear você, e aí eu ainda ia me
sentir pior. Ah, pai, eu não devia estar te contando
tudo isso agora. Justo agora que...
Retratos de Carolina 133

– Por favor, Carolina, não interrompe o teu


desabafo. Eu quero ouvir; eu preciso ouvir.
Por favor.
Carolina ficou quieta um tempo; depois fez que
sim:
– Tá. Mesmo porque, não é?... se eu não te conto
o que eu estava te contando, como é que você vai
entender por que que eu ainda continuo com ele. –
Suspira fundo. – Mas eu também não sei se você vai
me entender se eu te digo que a coisa que eu mais
queria, quando eu descobri que estava grávida, era
me livrar da gravidez. Acho que é difícil um homem
entender direito esse pesadelo que tanta mulher tem
que viver. O pesadelo de saber que aqui... dentro da
gente... começou a se formar um ser que a gente não
planejou, nem quer ter. Eu pensava nisso o dia inteiro.
E de noite acordava pra pensar nisso também. Cada
dia que nascia eu me dizia e repetia que ia acabar
me habituando com a ideia de ser mãe. Mas cada
dia que acabava só fazia o pesadelo crescer: tinha
passado mais um dia pro ser-que-um-dia-ia-ser... ser.
Entende? – Ela faz a pergunta sem olhar pro Pai nem
esperar resposta. – E quanto mais eu pensava no ser
que eu tinha que criar, mais eu me dava conta de que
não era uma hospedagem de nove meses dentro de
134 Lygia Bojunga

mim, depois uma parição e pronto: era uma vida, que


eu autorizava ou não, mas que, autorizando, eu ia ser
pra sempre responsável por ela; e mesmo depois da
criança não ser mais criança eu ia sempre saber, sempre
sentir, que ela tinha nascido pra uma vida que eu tinha
dado e que, então, eu tinha que dar o melhor de mim.
Feito você me ensinou a tentar. Lembra quando eu
era garota? Volta e meia eu queria fazer isso e aquilo,
e fazia. Fazia de qualquer jeito e pronto. E você me
dizia, pra fazer de qualquer jeito, pra que fazer? Fazer
de qualquer jeito é fácil demais, Carolina, não vá atrás
do que é tão fácil assim. – E agora ela olha pro Pai: –
Lembra?
Ele faz que sim.
– Pois é. Imagina só fazer uma vida. Uma vida
que nasceu de uma violência, gerada de um homem
que eu não gosto mais. – Muda de posição na
cadeirinha; muda o tom de voz. – A ideia de me
emaranhar numa maternidade que eu não queria, e
continuar num casamento que eu não queria mais, me
su-fo-cou: resolvi abortar. Eu sabia, ou melhor, eu sei
que se eu não retomo as minhas expectativas de vida, as
que eu sempre tive, as que você me ajudou a ter, e que
eu fui traindo uma a uma depois que eu me casei com
ele, eu não vou nunca mais me recuperar direito dessa
Retratos de Carolina 135

traição. A ideia do aborto me desgostava (alguma


mulher pode gostar?), e, além disso, eu estava atolada
naquela paralisia que eu te contei: cada dia eu me
dizia, amanhã eu vou e faço; e não fazia. E a angústia
crescia: eu estava dando mais um dia pro ser-que-não-
ia-ser... Foi por isso que eu sumi, meu pai: não queria
que você sentisse a angústia que eu estava sentindo.
– Mas eu senti. Da última vez que você veio, eu
senti.
– Até que... até que, lá pelas tantas, eu não
aguentei mais aquela aflição: fui e fiz. E depois que fiz
contei pra ele que tinha feito. Aí o mundo veio
abaixo. Primeiro ele cismou que o filho devia ser de
outro. (Eu sei que ele queria demais ter um filho
da Eduarda. Mas não teve.) Quando acreditou que
era dele, em vez de apelar pra violência (como eu
imaginava), caiu numa depressão que me desarmou,
se declarando o culpado d’eu ter matado uma criança.
É assim que ele diz, é assim que ele fala. Chamou a
minha mãe lá e se abraçou com ela.
– A tua mãe foi lá?
– Foi, foi. E ele começou a chorar nos braços dela,
e contou como gostava de mim, e contou do aborto,
e disse que o responsável pelo crime (é assim que ele
fala! e o pior é que ela também) era ele. Porque ele
136 Lygia Bojunga

não tinha sabido me fazer feliz. Ela foi ficando com


uma pena danada dele e acabou querendo convencer
ele que não, não! Ele não tinha culpa nenhuma, a
culpada de tudo era eu. – A voz de Carolina começa
a se complicar, ora gagueja, ora some, ora volta. – Eu
não sei se... de tanto eles falarem em culpa, eu, que
tinha me sentido tão aliviada depois de tudo acabado,
comecei a me sentir culpada. Culpada, inclusive, de ter
resolvido acabar com o meu casamento. Quando ele
contou isso pra ela, ela começou a convencer ele de
que eu ia mudar de ideia; falou que nem ia contar
nada disso pra você porque você ia morrer de
desgosto e me disse não sei quantas vezes: é claro que
você não pode dar esse desgosto pro teu pai. – A voz
agora já se complicou demais. Carolina se cala.
Durante um tempo grande, os dois ficam em
silêncio. Carolina olhando pro sapato que o Pai usa
em casa; o Pai olhando pra ampulheta.
– Carolina... minha filha... eu estou me sentindo
aliviado.
Carolina levanta a cabeça, olha surpresa pro Pai.
– Repito o que eu já te disse, Carolina: as minhas
expectativas em relação a você sempre foram grandes.
Eu sempre te senti corajosa, honesta com você mesma,
apta a uma vida plena. Mas, depois que você se
Retratos de Carolina 137

casou, aos poucos eu comecei a achar que você estava


se perdendo de vista. A cada ano eu achava mais. E
confesso que, ultimamente, eu já estava duvidando
que você ia se reencontrar. – Traz o corpo pra frente.
Estão agora cara a cara:
– O teu desabafo reviveu as minhas expectativas,
que alívio! Apesar de te ver ainda desfigurada pela
crise que você viveu, que você ainda está vivendo, eu
já te sinto reencontrada contigo mesma, com teus
ideais, com tua coragem...
– Coragem?
– Sim: coragem. Por quê?
– Você não condena o que eu fiz? Não acha que
foi covardia?
– O aborto?
– É.
– É um direito teu. Você escolheu ter filhos
quando, ou se, achar que está preparada pra essa tarefa.
Só você vai saber fazer essa hora; ninguém mais.
– Quer dizer que você... me entende?
– Mais, Carolina: eu te dou razão: a hora que você
está vivendo, em relação ao teu casamento, é o tipo
da hora adversa para a criação de um novo ser: você
disse agora mesmo que só está ganhando tempo pra
encerrar essa relação de uma vez por todas, não disse?
138 Lygia Bojunga

– Disse.
– Então?
– E isso também... não te magoa?
– O quê?
– Eu ir m’embora dele...
– Do teu marido?
– É.
– Mas se é esse justamente o grande alívio que eu
estou sentindo, Carolina! Você não pode imaginar
como me perturbava a ideia de ir m’embora da vida te
sabendo presa a uma relação que está te fazendo tão
mal. – Vai levando o corpo pra trás. Mal consegue
disfarçar um gemido. Carolina olha assustada pra ele.
Mas assim, reclinado na cadeira, o Pai parece
sereno. Ficam quietos durante um tempo.
Depois:
– Meu pai...
– Hein?
– Às vezes eu acho que essa... culpa que eu ando
sentindo de deixar ele... é mais medo que culpa.
– Medo? De quê?
– Pois é isso que eu me pergunto: será que é medo
das ameaças que ele me faz?
– Vai ver é medo de que a tua mãe queira que
você venha morar com ela depois da separação.
Retratos de Carolina 139

Outra vez Carolina olha surpresa pro Pai. E vendo


a expressão meio brincalhona no olho dele, ri. O Pai
então ri também. E ela acha tão bom ver ele rindo,
que ri mais.
O Pai aproveita o embalo do riso e assume de vez
o ar brincalhão:
– Mas eu acho que você devia, gentilmente,
declinar do convite...
– Você acha mesmo?
– Acho.
– Ah, que bom, eu também acho; na hora de
recomeçar a minha vida era assim mesmo que eu
queria: eu comigo só. – Volta ao tom segredado:
– Mas você vai ver: ela vai fazer tragédia d’eu
morar sozinha.
– Agora você é dona outra vez da tua vida.
– Ainda não.
– Mas a hora está chegando.
– Você acha mesmo?
Ele faz que sim. Ficam de novo sérios. Calados.
Carolina pensa na doença do Pai: se sente outra vez
invadida por uma tristeza grande, uma quase
vontade de morrer também. O Pai fica pensando que
bom que ia ser viver pra ver a vida que Carolina vai
ter. Inclina de novo o corpo pra frente:
140 Lygia Bojunga

– Escuta... tem mais uma coisa que eu queria


conversar contigo. – Alisa de leve a superfície da
escrivaninha. – A minha vida está memorizada aqui,
em tudo que é gaveta, escaninho, pasta, caderno,
suvenir. – Levanta o olhar pra Carolina: – Você
sempre gostou desta escrivaninha, não é?
– Claro: você e ela sempre juntos...
– Eu quero te fazer presente dela. Assim mesmo:
com tudo que tem aí dentro.
– Ah, pai, por favor, não vai agora...
– Deixa eu acabar o que eu estava dizendo, minha
filha. Hoje, afinal, chegou o dia de conversarmos de
coisas íntimas: deixa eu te falar disso também.
Carolina percebe o cansaço tomando conta do Pai.
Cruza os braços no peito, querendo sossegar
o coração.
– Eu quero que você leve a escrivaninha pra
tua nova morada. Assim mesmo, feito ela está aqui,
com a ampulheta, o abajur e o que tem nas gavetas.
Espero que ela te faça boa companhia. – Outra vez
um leve alisar na madeira. – Feito ela sempre fez pra
mim. O resto, Carolina, e você sabe que não é muito
(eu deixo tudo especificado aqui nessa gaveta do
meio), o resto é pra tua mãe. Ela me parece incapaz
de abrir qualquer caminho: vai precisar de tudo que
Retratos de Carolina 141

eu consegui armazenar. Caso contrário, ela vai se


pendurar em você, e eu creio que a coisa que você
mais vai querer, na hora de se livrar desse casamento, é
se sentir livre...
– Pra abrir o meu caminho! É, sim, pai, é.
– É por isso que eu, abre aspas, te lesei, fecha
aspas, nas minhas disposições financeiras. Espero
que você me compreenda e perdoe.
A porta se abre e a Mãe pergunta:
– A conversa particular ainda continua?
O Pai se recosta na cadeira:
– Há tanto tempo a Carolina não aparecia por aqui...
– Mas que tanta economia de luz! Não é melhor
acender essa outra lâmpada? – A Mãe vem pra junto
da escrivaninha e acende a lâmpada mais forte do
abajur.
O Pai protege os olhos com a mão e diz pra
mulher:
– Escuta, a Carolina vai mandar buscar essa
escrivaninha dentro de poucos dias...
Carolina olha pra ele, mal conseguindo disfarçar
a surpresa que os poucos dias causaram nela.
– ...tem uma papelada imensa aqui dentro, a
Carolina vai fazer uma limpa, ver o que que guarda
e o que que não guarda.
142 Lygia Bojunga

– Ah, é: essa história de papelada não é comigo.


E você sempre gostou desse móvel, não é, Carolina?
– É.
– O abajur e a ampulheta vão junto – o Pai fala.
– E a cadeirinha também.
– Que dia você vai mandar buscar isso, Carolina?
O olho de Carolina se encontra com o olho do
Pai. Não é um encontro demorado, mas dura o
suficiente pro Pai ver a afirmativa tão buscada, e que,
agora encontrada, deixa ele tranquilo.
– Dentro dos poucos dias que o pai falou, mãe.
Eu te aviso com antecedência.

A gravidade da doença do Pai demoliu Carolina.


Chegou em casa querendo encontrar um amigo só: o
travesseiro; e se abraçar com ele no escuro; e dar pra
ele tudo que é lágrima que ela escondeu na conversa
com o Pai.
Muito tempo Carolina e o travesseiro ficaram lá
abraçados, antes dela mudar de posição e descansar a
cabeça nele. Agora, de olho já seco, ela vê na escuridão
do quarto a tranquilidade que apareceu no semblante
do Pai quando ela confirmou que ia mandar buscar
a escrivaninha dentro de poucos dias. Ah! que bom
Retratos de Carolina 143

que o Pai tinha visto no olho dela a certeza, nascida


naquele justo momento; a certeza que varria longe o
medo, varria a culpa, varria a dúvida; a certeza de que
eram mesmo poucos dias que separavam ela... dela
mesma. Certeza que agora vai apaziguando Carolina,
até fazer ela cair num sono pesado.
É despertada pelo telefone chamando na
madrugada. Era a Mãe, dizendo, acordei ainda
agorinha, não vi teu pai na cama, fui no escritório
ver se ele ainda estava lendo e encontrei ele sem vida,
debruçado na escrivaninha.
144 Lygia Bojunga
Retratos de Carolina 145

arolina se senta no banco e deixa o


olho passear à vontade pelo espaço em volta. Vai
se lembrando de cada demão de tinta que deu nas
paredes, de cada raspada e encerada que deu no
soalho, de cada quadro e cada pôster que pendurou,
de cada objeto, cada vaso de planta, cada
agrupamento de livros, cada um dos poucos móveis
que arrumou.
O olho se detém satisfeito em cada uma das duas
janelas, a pequena, da quitinete, e a grande, do
quarto e sala; depois inspeciona cada uma das duas
portas, a do banheiro e a da entrada, e Carolina
pensa, nossa! que mão de obra que essas quatro me
deram. Examina tudo tintim por tintim e aí descansa
as costas na parede e suspira contente. Que diferença
da semana passada, quando ela tinha entrado pela
primeira vez ali por aquela porta. Ela e o corretor.
146 Lygia Bojunga

Ficaram olhando esmorecidos pras paredes que outrora


foram pintadas de cor-de-rosa, e quando Carolina
olhou pro soalho pintado, ou melhor, descascado
de verde, o corretor tentou fazer graça: devia ser um
mangueirense fanático que morava aqui, ele disse.
Era na Glória. Edifício antigo. O andar, alto. O
conjugado, de fundos. A janela mostrava um pedaço
generoso de Santa Teresa; vegetação generosa também,
e céu, muito céu pra olhar. O aluguel era mais baixo
do que a maioria dos horrores pequenos que Carolina
tinha visitado. Alugou. Se mudou. Mandou buscar a
escrivaninha. Se entregou de corpo e alma pra tarefa de
recompor e decorar o espaço, raspando, inventando,
pintando, arrumando, encerando, criando, se sentindo
melhor à medida que o trabalho progredia.
E agora ela está aí sentada. Mas volta e meia se
levanta, e puxa um pouco a cortina, e empurra um
vaso pro canto, e faz um ou outro livro ir morar num
lugar diferente, e se senta de novo, e fica outra vez
olhando, e compara, lembrando, era assim e ficou
assim.
Se levanta mais uma vez. Mas agora pra fazer um
café e se deixar ficar na companhia dele, aproveitando
aquele momento bom.
Campainha na porta.
Retratos de Carolina 147

Susto duplo de Carolina: é a primeira vez que


ela escuta a campainha e acha o som estridente; não
está esperando ninguém, mas intui que é a Mãe. Fica
parada.
A campainha toca de novo.
Carolina espia no olho mágico: é a Mãe.
Abre a porta.
A Mãe entra, vestida de cinza na saia e de preto
no blazer; uma blusa de seda branca clareia a
fisionomia. No dedo, o anel e a aliança que ela usa
sempre. No pulso, o relógio de ouro que ela olha
sempre. No pescoço, uma corrente de três voltas. Na
orelha, brinco pequeno e preto. Meia. Saltinho no
sapato fechado.
É só a Mãe entrar e o espaço de Carolina é
tomado pelo perfume que a Mãe usa sempre.
Um beijo de cada lado de cada rosto.
Carolina fecha a porta.
O olho da Mãe dá uma corrida em volta, se
detém na escrivaninha e na cadeira do Pai, relanceia a
cadeirinha, a ampulheta e o abajur, anda vagaroso pelo
estrado com colchão, cobertos por um pano artesanal,
e depois segue para a mesa estreita, ladeada de dois
bancos, junto da quitinete.
A Mãe ignora a janela e se aproxima de um banco:
148 Lygia Bojunga

– É aqui que eu me sento?


– Onde você quiser, minha mãe.
– Não tem muita escolha, não é?
– Tem a minha cama aqui.
– Cama?
– O colchão é muito bom, e olha, se você bota
as almofadas assim, fica ótimo pra sentar.
– Espero que o fato de você não ter trazido a
sua cama (a que ficou lá em casa, eu quero dizer),
signifique que você pretenda voltar.
– Eu não trouxe a cama porque o meu quarto
ficou sendo quarto de hóspedes depois que eu saí
de casa, mãe...
– Mas Carolina...
– Eu não quero desarrumar aquele arranjo que você
fez: ficou tão bom! Mas, se você não quer sentar aqui,
tem aí a cadeira do Pai, que...
– Essa é a cadeira dele. – Hesita entre a cama e
os bancos. Acaba escolhendo um deles pra sentar
e descansa a bolsa de alça curta no outro.
Unha bem tratada: o esmalte rosa antigo, que
sempre usou.
Cabelo bem cortado, bem curtinho, bem pintado.
A idade continua pouco alterando o rosto: olho,
boca, nariz, tudo irretocável. Mas os anos trouxeram
Retratos de Carolina 149

quilos a mais, e quando a Mãe se arruma pra sair, se


não está muito calor, ela se aperta num blazer pra
disfarçar. Esse que ela está usando agora tem botão
esmaltado.
A Mãe continua tendo no olhar uma certa
expressão de ingenuidade, que sempre acrescentou
(ela sabe) mais encanto ao rosto. É só ela se sentar e o
indicador da mão direita cai no antigo hábito: a unha
começa a empurrar a cutícula da unha do polegar.
De sola de sapato bem apoiada no chão, a Mãe
levanta um bocadinho o salto e fica imprimindo
à perna um movimento de vaivém, pra cima e pra
baixo, pra cima e pra baixo.
Carolina senta na cadeira do Pai. O olho foge pela
janela. A mão fica alisando de leve a beirada
da escrivaninha.
– Às vezes eu me belisco, Carolina, pra ver se eu
estou sonhando, e acordo.
O blazer da Mãe tem enchimento nos ombros.
Carolina fica aguardando o resultado do belisco.
– Eu tenho tentado, Carolina. Eu juro que eu
tenho tentado te entender. Mas não consigo.
– Mas, mãe, o que mais que tem pra entender
que eu já não tenha te explicado? Não tem mistério
nenhum em nada.
150 Lygia Bojunga

A Mãe olha incrédula pra Carolina. Desabotoa um


botão do blazer.
– Você mata o seu filho, você se separa do seu
marido, você se recusa a morar com sua mãe, você
despreza uma casa simples mas confortável (a minha,
do seu pai, a nossa casa) e uma casa luxuosa (a do seu
marido) pra se enfiar nesse... nessa coisinha aqui, e
você acha que eu posso entender uma atitude dessas?
Nem eu, nem ninguém!
– Eu não tinha dinheiro pra alugar um
apartamento maior que este.
– Mas você não tinha que alugar coisa nenhuma!
você estava morando numa casa excelente.
– Que não era minha.
– A partir do momento em que você se casou com
ele, a casa passou a ser tão sua quanto dele.
– Ô, mãe, por favor, não vamos voltar a isso, você
sabe que eu não quero nada do que é dele.
– Mas não vamos voltar a isso como, se é sua vida
que está em jogo...
– A minha vida não tem mais nada que ver com
ele nem com nada que é dele.
– ...e se é a minha vida que está em jogo
também.
– A sua vida? Por quê?
Retratos de Carolina 151

– Porque a minha filha, a minha única filha, está


me abandonando na hora mesma em que eu fico viúva
e desamparada, na hora em que eu mais preciso de
alguém junto de mim.
– Mas, mãe, eu não estou abandonando você, eu
apenas não quero morar com você.
– Lá em casa é muito mais confortável do que
aqui, Carolina, e além disso...
– Mas eu não estou atrás de conforto, eu já te
expliquei que o importante pra mim agora é ficar
sozinha comigo mesma pra...
– Você ainda é moça demais pra ficar sozinha.
– Mãe, eu não estou querendo ficar sozinha pra
sempre...
– Mas você não precisa ficar sozinha...
– ...eu estou querendo ficar sozinha agora.
– ...só fica sozinha quem precisa...
– Mãe...
– ...e sozinha por quê?, se eu estou querendo, se
eu estou pedindo pra você ir lá pra casa, nem que seja
por enquanto.
– Mas é justamente por enquanto que eu quero...
– E tem outra coisa, Carolina...
– ...que eu quero só, não: que eu preciso ficar
sozinha comigo mesma. Não dá pra entender que...
152 Lygia Bojunga

– ...não sou só eu que estou querendo a sua


companhia, o seu marido também está. Ele falou
comigo, Carolina. E não foi por telefone não, minha
filha, ele foi lá em casa pedir para eu interceder
junto a você.
Carolina esfrega a testa com a mão.
A Mãe desabotoa outro botão e chega mais pra
beirada do banco:
– Ele não se conforma com a separação, Carolina.
Ele disse que está pronto pra perdoar o crime que você
cometeu...
– Eu não cometi crime nenhum! Crime seria ter um
filho que eu não queria, nascido de um estupro que eu sofri.
A Mãe toma um susto tão grande, que se levanta
num pulo:
– Você foi estu... estru... ai, eu não consigo dizer
essa palavra...
– Eu fui estuprada, sim.
– Meu Deus do Céu!
– Por ele. Ele me pegou à força...
– Ele...
– ...quando eu já não gostava mais dele...
– ...quem?
– ...quando a coisa que eu mais queria já era me
separar dele.
Retratos de Carolina 153

– ...o teu marido??


Carolina vai responder que... Mas o espanto que
ela vê na cara da Mãe faz ela calar a boca. Se levanta e
vai olhar Santa Teresa da janela.
A Mãe desabotoa o último botão. A unha do
indicador recomeça o empurra-empurra na vizinha.
– Carolina...?
Silêncio.
– Minha filha...?
– Hmm?
– Eu não... – Mas o resto da fala sai em feitio de
risada.
Carolina se vira.
A Mãe tapa a boca com a mão. Meneia a cabeça:
– O teu pai tinha razão: você tem cada uma! Dizer
que foi estup... pelo marido, ah! Só mesmo você,
Carolina.
– Você tá a fim de um café, mãe?
A Mãe fica séria:
– Não, não se incomode, nós ainda não acabamos
de falar.
– A gente já falou que chega disso tudo.
– Você pode ter falado, mas eu não: afinal de
contas, eu vim aqui com uma missão, e você nem
me deixou terminar: o teu marido...
154 Lygia Bojunga

– Ele não é mais meu marido!


– Pra ele, é. Continua sendo. E perante a lei
também: ele é teu marido. E nem ele nem eu nos
conformamos de ver você aqui enfiada num...
– Eu estou muito contente com esse cantinho
que eu arrumei. Tem uma estação de metrô logo aí
adiante: vai ser bom pra ir pra faculdade quando eu
recomeçar os estudos, e já está sendo bom pr’eu
procurar trabalho.
– Você vai trabalhar?!
– Mas, se eu não trabalho, como é que eu pago esse
aluguel? e a comida? e...
A voz da Mãe agora é estridente, exaltada:
– Que coisa mais absurda, Carolina!
– Mais absurda por quê?!
– Pare com esse fingimento!
– Que fingimento?
– O teu marido lá te esperando de volta naquela
bela casa, eu te querendo na minha casa, e você aqui
bancando a vítima: procurando emprego pra pagar o
aluguel desse buraco... isso só pode ser um fingimento
pra nos castigar ainda mais! – Olha pro céu e pergunta:
– Que pecado eu cometi, meu Deus, pra que a minha
filha, a minha única filha, me queira assim tão mal?
– Ah, mãe, não fala assim...
Retratos de Carolina 155

– Não estou falando com você, estou falando


com Deus.
– ...não diga isso outra vez, você sabe que não é
verdade.
– Carolina, se você gostasse de mim, se você
gostasse um pouquinho de mim, você não poderia me
ferir assim: três vezes! E tão fundo, que eu mesma não
sei qual dos três golpes me fere mais; se é você não
querer dar uma segunda chance ao seu marido...
– Mãe, o que mais que eu preciso dizer pra você
conseguir entender que eu não posso continuar junto
de um homem que eu passei a detestar.
– ...se é você não querer morar comigo...
– Mãe, depois dessa crise toda, eu tô vivendo um
momento difícil, doído; você não vê que eu preciso
ficar sozinha pra poder... pra poder digerir a minha
dor e...
– Eu também estou sozinha e nem por isso eu
quero ficar longe de você.
– Mas nós somos muito diferentes. Será que
você nunca percebeu?
A voz da Mãe se descontrola:
– Diferentes, iguais, que que importa?! O que
importa é que estamos as duas sem marido e temos
que nos unir.
156 Lygia Bojunga

– Calma, mãe, calma, não comece agora a ficar


agitada. Procure compreender que você está presa
a um passado, a um tempo em que uma mulher
tinha que ter um marido. Pra ser sustentada. Pra
ser respeitada. Pra ser confortada. Pra...
– Isso não mudou! Toda mulher quer um marido.
– Toda mulher quer alguém que ela ame, que
ela respeite, com quem ela se entenda, pra poder
partilhar o bom e o ruim da vida, não precisa ser
um marido.
– Você fala assim porque está pouco se
incomodando com o fato de que eu estou sozinha,
sozinha, SOZINHA!
– Eu também. Depois que o pai morreu, eu
também tô me sentindo muito sozinha.
– Pois então? Nós temos que nos juntar.
– Mãe, somar solidão só pode dar numa solidão
maior.
– Tá vendo só como você é? Não adianta pedir,
não adianta querer te mostrar como eu tô sofrendo,
como o teu marido está sofrendo, isso pra não falar
naquele que mais sofreu: o teu filho, que, por tua
causa, sofreu a maior de todas as privações: a própria
vida. Você não se comove diante de nada disso: pra você,
só interessa o que você quer. Eu só me pergunto é o que
Retratos de Carolina 157

que eu te fiz pra você me querer assim tão mal. – Se


levanta. De dedo nervoso, tenta abotoar o blazer.
Carolina vai chegando devagar pra junto da
escrivaninha. A ponta do dedo ensaia de leve um
risco na madeira. A voz pergunta, baixo, mais pra ela
mesma, Carolina, do que pra Mãe:
– Mas se eu não me sinto livre, eu não posso ser
eu mesma... posso?... eu não posso abrir o meu
caminho... posso?
O dedo da mãe desiste de lutar com o botão.
– Ainda bem que o teu pai não está aqui vendo
até que ponto vai o teu egoísmo: o meu caminho, a
minha liberdade, a minha vida: a vida dos outros que
se dane, não é? você está pouco se incomodando com
os outros! – Pega a bolsa e sai.

Durante um tempo Carolina permanece imóvel.


Depois vai devagar fechar a porta. Vai pra quitinete.
Fica um tempo enorme parada, encostada no fogão.
Até que, lenta, cada vez mais lenta, faz um café,
despeja numa caneca de louça, volta pra escrivaninha
segurando a caneca com as duas mãos; senta na
cadeira do Pai e fica olhando pra ampulheta. De vez
em quando levanta a caneca e bebe um gole; e mesmo
158 Lygia Bojunga

quando o café acaba ela continua assim, segurando a


caneca com as duas mãos.
Carolina só se mexe quando o vaso superior da
ampulheta se esvazia: inverte a posição dos vasos; e só
aí se dá conta do tempo que ficou ali parada, o olho
de fora acompanhando o escorrer vagaroso da areia,
o olho de dentro acompanhando o escuro que vai se
alastrando dentro dela.
A escuridão se adensa lá fora. Dentro de
Carolina também.
De repente, Carolina tem um movimento de dor:
se sente trespassada por uma saudade intensa do Pai.
Que vontade de se sentar na cadeirinha baixa e ver ele
na frente dela, sentado onde ela está.
Sabe, pai, na semana passada, quando eu conversei
com a mãe... Por um momento a frase fica em suspenso:
Carolina pensando que está pegando o hábito de
conversar pensado com o Pai; depois retoma o que
estava dizendo: ...teve uma hora lá que eu pensei
que ela ia compreender as minhas razões. Mas hoje,
ela... Também, pensando melhor, por que que ela ia
compreender, não é? por quê? Cada um é como é, e
pronto. Ninguém muda assim, de uma hora pra outra,
não é?
Ah, pai.
Retratos de Carolina 159

Meu deus, tanta coisa que eu queria conversar com


você, tanta coisa.
Mas assim... sem te ver, sem te ouvir, é feito...
feito... Não sei, pai, eu estou me sentindo tanto... mas
tanto mesmo, dentro daquela velha imagem do túnel
que a gente tem que atravessar...
Tá escuro, meu pai.
Tá escuro esse túnel.
E eu tô com tanto medo.
Tanto, que... ah, não dá mais pra falar.
Carolina sente o pensamento meio que se
apagando. Procura se concentrar na areia.
Lá pelas tantas o pensamento meio que se aviva e
ela tenta retomar o papo, que que é isso, pai? que
apagão tão grande é esse que tá de novo tomando
conta de mim? Eu tava indo, pai, eu tava caminhando...
Hoje teve até um momento em que eu cheguei a me
sentir contente... Mas agora... É culpa, não é?... Será que
é?... Custou tanto pr’eu me livrar da culpa com ele...
Agora é com ela?... Será? Me diz, pai, é culpa? é medo?
são os dois? é o quê? O que que eu faço? diz, diz!
Ah.
Outra vez tenta se concentrar na areia.
Tô cansada, pai. É melhor a gente deixar esse
papo pra outra hora.
160 Lygia Bojunga

A noite vai avançando.


E Carolina ali. O olho na areia que escorre, mais
adivinhada do que vista: a noite é sem lua.
No pensamento, um vazio.
Na imaginação, a imagem flutuante de um túnel
comprido e escuro.
No peito, uma angústia palpitando.

Outra hora que passa, outra hora que passa, outra


hora...
Uma claridade levíssima anuncia o dia que vem lá.
Carolina se debruça na escrivaninha, atendendo ao
sono chegando.
Lá pelas tantas, num ponto qualquer do sono, a
imagem do túnel se intromete, vira sonho:

Carolina está na boca de um túnel comprido e


escuro, que ela tem que atravessar. A angústia no
peito se traduz em medo. Cada vez que ela vai
entrar no túnel, falta a coragem pra travessia: dá
pra trás.
Mas de dentro do túnel vem um canto de pássaro.
Carolina se surpreende. Avança pra escuridão. Estende
Retratos de Carolina 161

os braços; as mãos se espalmam pra fazer de escudo,


prontas pra defender um embate. Vai avançando. O
pé rasteja cada pedaço de chão antes de prosseguir. A
boca do túnel desaparece.
O canto silencia.
A ansiedade aumenta: parece que o pé vem
rastejando há muito, muito tempo; parece que o túnel
não vai mais ter fim. Carolina experimenta correr:
consegue aos bocadinhos; para a todo instante pra
tomar coragem.
De repente, o embate temido: os dedos entram
por uma coisa adentro. Logo recuam, apavorados.
Carolina está paralisada, sentindo uma presença na
frente dela.
Quem é? Consegue enfim articular num sopro.
Silêncio.
A angústia agora é quase insuportável.
Sem identificar a presença, Carolina sente que
não pode se mexer, não pode mais avançar. A mão se
estende e procura um rosto; não encontra; desce então,
hesitante, tateia: encontra a presença: macia. A mão
começa a investigar, apalpar, não é seda, não é algodão,
nem cetim. Fica nervosa quando sente que é gaze.
Treme na descida que faz à procura do rolotê, chega
nele, o dedo rodeia ele todo, é ele, é o vestido!
162 Lygia Bojunga

As pernas de Carolina vão se vergando; a mão


escorrega pelo vestido e tenta se apoiar no chão pra
aparar a queda do corpo. Mas no chão tem outra
presença. A mão se encolhe, medrosa.
Feito coisa que a escuridão não basta, Carolina
junta as duas mãos feito bacia e mergulha a cara lá
dentro. Pra não ver ainda mais.
Mas é compulsório: a mão tem que investigar: vai
desfazendo a bacia e se abaixa pra tatear, pra buscar.
Encontra e apalpa a presença no chão. O dedo afunda
nela; afunda mais; e aí desliza suave pelo couro macio
e velho do sapato.
É só a mão reconhecer o sapato que o Pai usava em
casa que já levanta ele do chão pra se agarrar mais nele.
No gesto atabalhoado, o sapato cai. A mão tateia atrás
dele. Mas ele não está mais lá. Procura então o vestido.
Mas também não tem mais.
Sem coragem de retomar a travessia Carolina se
sente morrer. Fecha os olhos. Quando abre eles de
novo, mal acredita: o que que é aquilo lá?
É uma luz.
Deve ser um sonho, ela pensa, será que lá é o
fim daqui? E já vai se levantando. E já vai
andando. À medida que avança pra luz, vai vendo
que a luz é feérica.
Retratos de Carolina 163

O medo vai indo s’embora. A ansiedade vai atrás.


Uma energia nova toma o lugar que eles largaram:
Carolina apressa o passo, apressa mais, vislumbra
um pedaço de céu, ah, é lá fora! e agora Carolina
corre, e corre, sentindo uma urgência de ver de perto,
de ver direito que traços tão fortes são
aqueles que a luz ilumina.
Os traços ganham nitidez. O espanto para
Carolina, já a poucos passos da presença iluminada:
é a gaiola do Pet.
A gaiola está de porta aberta.
Aberta, só, não: escancarada.
Dentro da gaiola, um vazio bonito demais: um
vazio de libertação.
Carolina chega junto da gaiola. Pega o broto
de bambu que serve de fecho pra porta. Aperta ele
na mão.
E vai se sentindo encantada pela certeza de que
ela fez a coisa certa, naquele dia, lá atrás, o dia do
aniversário da Priscilla, quando ela sentiu tanta
raiva e tanta mágoa que nem se deu conta do que a
mão dela fazia.
Mas a mão tinha feito a coisa certa: tinha
aberto a porta da gaiola pro Pet ir s’embora, voar,
ser livre.
164 Lygia Bojunga

O encantamento faz Carolina abrir os braços e


soltar a voz: fui eu, fui eu! com essa minha mão aqui,
que abri a porta pra ele ir s’embora, voar! ser dono de
novo da vida que é dele. Espalma a mão no ar e olha
pra ela com a curiosidade de quem está vendo uma
coisa pela primeira vez; e repete, feito custando a crer,
e fui eu! e fui eu que abri a porta pra ele ser dono da
vida dele. Com essa mão aqui. Com essa minha mão
aqui.
A luz começa a diminuir.
Vai diminuindo, diminuindo...

Agora é a luz sutil da madrugada que entra pela


janela.
O olho de Carolina vai se acostumando com a
mudança de luz, vagueia pela escrivaninha, desce
pro soalho, trepa na janela pra espiar o dia que
nasce.
E aí Carolina se lembra. É mesmo! eu tinha me
esquecido por completo da sensação daquele broto de
bambu na minha mão. Se lembra da voz da Mãe-da-
Priscilla dizendo, pra abrir a porta da gaiola a gente
levanta esse bambuzinho aqui, olha só que gracinha
que ele é, puxa ele assim pra cima da argola, ó.
Retratos de Carolina 165

A lembrança vai se esfumando. As imagens do


sonho também.
Carolina tira o olho da janela e dá uma volta
com ele no espaço que ela recriou. Gosta do que vê.
Examina as plantas, devem ter dormido bem, ela
pensa, que bonitas que elas tão.
Em câmara lenta, Carolina estica o corpo, a mão,
o dedo; vai compondo com o corpo um s’espreguiçar;
a boca vai se abrindo em feitio de superbocejo; o
olho meio que se fecha, embalado no prazer do
afrouxamento do corpo, mas em seguida se abre,
atento à mão que se espalmou
no ar.
Durante um tempo Carolina fica olhando pra
mão, tentando trazer pra lembrança uma imagem
sonhada que fugiu.
A cabeça começa a fazer um movimento de
assentimento. A voz sai clara, sublinhando
o que a cabeça afirma:
– Ser dona da minha vida...
Com essa minha mão
aqui... eu vou
fazer.
166 Lygia Bojunga
168 Lygia Bojunga
Retratos de Carolina 169

Na segunda versão do meu livro Feito à Mão, em


forma de introdução, eu converso com você, que me
lê. Hoje, aqui, nos Retratos de Carolina, eu venho
conversar de novo (obviamente, gostei da prática),
mas já disposta a mudar um pouco o feitio do nosso
papo.
Deixa ver se eu me explico: se lá no Feito à Mão
eu uso o espaço da nossa conversa pra te contar como
é que eu desenvolvi o projeto de um livro artesanal,
aqui, nos Retratos, eu uso um espaço diferente
(justo quando o livro vai acabando é que eu começo
o papo) pra te contar a hesitação que me perseguiu
até conseguir botar um ponto final na Carolina. Só
que, dessa vez, eu converso com você em feitio de
história-que-continua.
Foi também no Feito à Mão que eu perdi de
vista o meu gosto de privacidade e trouxe as minhas
moradas pro texto do livro. Agora, aqui, nos Retratos,
retomo também essa prática: a de trazer minhas
170 Lygia Bojunga

moradas pro meu texto. Mas com um propósito um


pouco diferente: o de começar a integrar minhas
personagens com os meus espaços (pensando assim: se
eu sou uns e outras, por que dissociar uns das outras?),
encarando o fato de que agora nós – meus personagens
e eu – passamos, “fisicamente”, a morar juntos.
Foi por causa disso que:

um dia desses, no Cata-vento, ouvi a porta se


abrindo e fechando lá embaixo. Pensei, qual deles está
chegando? Mas quando escutei a cadência dos passos
subindo a escada eu logo senti que era a Carolina. Ela
parou na porta e passeou um olhar atento pela minha
mesa de trabalho:
– Você estava escrevendo?
– Na cabeça; quer dizer: tava pensando.
– Em mim?
Hesitei. Ela veio chegando pra perto:
– Será que dá pra gente conversar um pouco?
– Claro, ué.
Ela puxou uma cadeira pra junto da mesa e
sentou:
– Desde que você botou aquele ponto final em
mim eu estou querendo esse papo contigo. Mas eu
Retratos de Carolina 171

sei que, quando eu resolvi reconstruir a minha vida


com essa minha mão aqui – espalmou a mão sobre a
mesa – você logo se envolveu com o Discípulo, e eu
não quis, de saída, perturbar o affair de vocês dois. –
Meio que riu.*
Fiquei olhando pra mão espalmada: grande,
forte, sem esmalte na unha curta, sem anel em dedo
nenhum; mão de quem vai mesmo abrir um caminho,
eu pensei; que bom que eu fiz ela assim. Carolina
recolheu a mão e disse, eu queria te pedir pra fazer
mais um ou dois retratos de mim.
Não olhei com bons olhos pra ela.
– Já sei – ela foi logo dizendo –, já sei que o
teu interesse tá agora no Discípulo, e que você me
considera, abre aspas, acabada, fecha aspas. Sei
também que você não gosta que a gente se intrometa
no teu trabalho, mas... – Hesitou. – Bom, pra ser bem
franca: eu não me conformo da gente se separar assim:
só deixando retratos negativos de mim.
– Negativos?
– Então não são?

*Discípulo é o personagem-chave de uma peça que eu estou


escrevendo.
172 Lygia Bojunga

– Não mesmo! Eu te retratei estudiosa, corajosa,


criativa; eu te fiz valorizar uma coerência com você
mesma, uma...
– Você pode até ter me feito uma pessoa legal,
como você diz, mas os retratos que você fez de mim
são todos negativos.
– Negativos por quê?
– Mas será que você não se deu conta disso?
– Disso o quê, Carolina?
– Ora o quê! Primeiro você me retrata aos seis
anos, sentindo todo o alvoroço de um primeiro amor;
mas em vez de fazer a minha amizade com a Priscilla
florescer, você logo bota uma traição no meio e nos
separa. Não me dá nem tempo de curtir a Priscilla e a
família dela: aqueles irmãos todos que ela tinha, o pai
que fazia gato e sapato de nariz, peito e orelha...
Comecei a rir. Carolina parou de falar e ficou me
olhando. Séria.
– Eu concordo com você, Carolina, a Priscilla e a
família dela davam um monte de retratos coloridos.
Mas eu estava a fim de preto e branco, o que que eu
posso fazer? Estava a fim de te fazer descobrir bem
cedo que amor e ódio andam assim, ó, juntinho um
do outro; tava a fim de te mostrar de saída a dor de
uma traição.
Retratos de Carolina 173

– Então tá bem, você podia ter me mostrado e


pronto. Mas você não se deu por satisfeita, muito
ao contrário: me leva pra outros retratos e cria em cada
um deles uma nova frustração.
– Ah, Carolina, para com isso! Posso ter te
frustrado aqui ou ali, mas te dei também muita coisa
boa. Não vai me dizer agora que você não adorou
aquela viagem à Europa e aquela paixão por Londres.
– Mas no meu retrato com Londres...
– E nesse amor eu não te frustrei, te fiz voltar lá
na tua lua de mel, e do jeito que eu te fiz resoluta
pra abrir o teu caminho, eu tenho certeza que você vai
poder matar muitas vezes a saudade desse amor.
– Mas no meu retrato com Londres o que aparece
mesmo é uma frustração!
– Frustração de quê?!
– Daquela loja fechada! Do vestido que não deu
pr’eu comprar.
– Mas, se eu não fecho a loja, como é que, depois,
você vai se enfiar num vestido da Eduarda? E criar o
impacto que criou no Homem Certo?
– E pra quê? e pra que o impacto? Tudo que é
retrato que você fez de mim a partir do momento que
eu me apaixono por ele é uma frustração atrás da outra.
Pra não falar na morte do meu pai, não é? Você pega
174 Lygia Bojunga

aquele homem adorável, e que doença você dá pra


ele, me diz! Ora, francamente, você tem mais é que
concordar comigo: teus retratos são uma sequência de
negativos.
Senti que a Carolina queria levar longe aquela
discussão. Senti que a coisa que eu menos queria era
encompridar a discussão: me levantei. Mas ela estava
embalada:
– Até na minha profissão você me prepara uma
frustração.
– Essa agora eu não entendi.
– Por que que você me forçou essa vontade de ser
arquiteta?
– Não forcei nada, Carolina, você já nasceu assim.
– Podia ter nascido com a vontade de ser modelo,
não é? Alta e magra, feito eu sou.
– O que que te deu hoje, hein? Se você fosse
uma Carolina-querendo-ser-modelo você não ia ser a
Carolina-que-você-é. E você não ia ter o pai que você
teve: um homem apaixonado pelas artes e que passou
essa paixão pra você. E ele sabia, como você também
deve saber, que a arquitetura é a arte na sua forma mais
abrangente. Então eu te dei essa vocação de presente.
Em vez de ficar contente, você me vem agora com esse
enigma de que eu te preparei outra frustração.
Retratos de Carolina 175

– Enigma nenhum. Será que você desconhece que


quem estuda arquitetura, ou come o pão que o diabo
amassou pra poder ser criativa ou mofa num escritório
o resto da vida, detalhando e calculando plantas que
não têm nada a ver com o que a gente quer criar.
– Mas então você pensa que isso também não
acontece com...
– E nessa profissão, se a gente é mulher, come
dobrado o pão que o diabo amassou.
– Em qualquer profissão.
– Numas mais que outras.
– Mas, Carolina, esse tal pão que o diabo amassa,
se é bem digerido, não faz tão mal assim; em muitos
casos pode até fortalecer. E não esquece também
que eu te dei um bom aparelho digestivo: isso conta
ponto, viu? E agora me dá licença que eu vou acabar
de arrumar minhas coisas: tô voltando pro Rio.
– Eu vou com você.
– Ah, não vai não.
– A gente ainda não acabou o papo.
– Tá acabado, sim.
– Eu preciso te convencer a fazer outro retrato de
mim.
– Esquece isso, meu bem.
– Deixa eu ir junto, me leva.
176 Lygia Bojunga

– Não, Carolina, o Discípulo tá me esperando lá


em Santa Teresa.
– Eu prometo que eu não perturbo vocês dois.
– Então eu não te conheço? – Nem deixei ela falar
mais nada; vim m’embora pro Rio.

8 de setembro

Ela foi s’embora e me deixou aqui. Melhor que


tivesse me deixado na Boa Liga: lá a gente olha de cada
janela e só tem verde-que-te-quero-verde: montanha,
vale, floresta; é um lugar retirado, estradinha de terra,
ainda não tem poluição visual. Mas aqui? Eu chego
na janela e o meu olho de arquiteta tropeça logo
num horror qualquer de tijolo e cimento. Não me
conformo de ver essa desarmonia arquitetônica, esse
levantar de parede às carreiras, esse fazer de qualquer
jeito invadindo tudo.
Mas isso, que me incomoda tanto, ela parece que
nem vê. Diz que amestrou o olho: assim que ele chega
na janela, vai direto pro mar; ou pra lagoa; ou pras
dunas; ou então pras salinas.
Há muitos anos atrás, quando ela conheceu São
Pedro d’Aldeia, ela se encantou com essa lagoa aí: tão
Retratos de Carolina 177

imensa, tão gostosa pra nadar, tão aberta pro mar e


pros pescadores, águas (naquela época) tão limpas.
Planejou uma morada na colina mais alta de São
Pedro, planejou um barquinho pra explorar a lagoa,
e quando visitou uns amigos que tem lá (o dia era
claro e sem névoa) apontou a outra margem da lagoa,
lá longe, e quis saber o que que tinha lá. Só se via um
risco tênue, delineando o estreito istmo que separa a
lagoa do oceano. Disseram que era um local de salinas;
falaram em Massambaba, Praia Seca; ela quis ir lá
ver, mas avisaram que a estrada era muito ruim. Ela
ficou imaginando que máximo de lugar era aquele,
beiradeando uma lagoa que mudava de cor todo dia
e que, ainda por cima, tinha só uma carreira de dunas
separando ele do mar.
A morada de São Pedro d’Aldeia todo ano era
adiada pro outro ano. Ela ia lá, visitava o terreno
que tinha comprado, curtia os amigos, nadava na
lagoa e, se não tinha névoa, ficava olhando a ponta de
Massambaba, o olho forçando caminho pra ver até
onde podia chegar.
Até que um dia ela veio. A estrada era um areão,
ainda nem se pensava em asfalto, mas se não chovia
demais dava pra vir solavancando por aí afora. Se
apaixonou por esse lugar na hora. A praia deserta. O
178 Lygia Bojunga

mar encapelado. As dunas e as salinas a perder de vista.


Montes de sal. Os cata-ventos rodando (aqui venta
que só vendo). Paixão que virou logo compulsão: aqui
ela ia ter a morada do mar. Foi procurar o corretor
da região: a casa tinha que olhar pro mar, pra lagoa
e pras dunas; tinha que custar pouca grana; podia ser
bem pequena; e não precisava estar pronta não. (Quase
tudo que é casa por aqui ficava inacabada: estrada
difícil, grana difícil, construção difícil acabavam
esmorecendo os entusiastas da região). Mas a casa
precisava ter quarto, banheiro, cozinha e poço, “pra
gente entrar logo e morar”. Dormiu numa pousada
que descobriu no caminho, e no dia seguinte comprava
esta casa aqui. De saída achou a casa mais com jeito
masculino que feminino, chamou ela de Cata-vento. E
durante três anos ficou naquela coisa de troca daqui,
completa dali, espicha de lá.

15 de setembro

Esse vento tá me dando nos nervos. É o nordeste.


Às vezes ele sopra assim a semana inteirinha. Noite e
dia. Não dá nem pra gente abrir uma janela, voa tudo.
O quarto dela então é um terror! tem duas janelas e
uma claraboia, cada uma espiando pr’um lado: o vento
Retratos de Carolina 179

ali deita e rola. Mas, sei lá, parece que ela não se
incomoda.

Ela pensa que eu vou desistir, mas eu não vou não:


quando ela voltar eu começo a martelar a mesma tecla:
ela tem que fazer mais retratos de mim.

Mas, até ela voltar, o que que eu fico fazendo aqui


nesta casa? Não adianta querer planejar a minha vida,
o meu trabalho, nada! Eu ainda dependo dela pra
tudo.

2 de outubro

Quando ela chegou, da vez passada, ela disse que


tinha vindo me buscar; falou que me deixou aqui
descansando antes de me dar tchau, no caso de
ainda surgir uma dúvida aqui, outra ali; e quando foi
dormir já falou no Discípulo, disse que agora ia se
concentrar nele.
Mas, quando ela foi embora, ela disse que não me
levava junto porque eu ia perturbar os dois, ela e o
Discípulo.
Hmm...
180 Lygia Bojunga

Se ela tivesse mesmo resolvida a me dar tchau, ela


me levava embora e pronto.
É...
Se ela não me levou é porque ainda não me
desligou.
Então eu tenho que aproveitar pra martelar a
minha tecla.
Hmm...
Mas será mesmo que ela ainda está ligada em mim?

10 de outubro

Me lembro que um dia eu estava lendo um livro


sobre arquitetura e tinha lá um dito muçulmano
que era mais ou menos assim: a gente dá forma às
construções, depois as construções nos dão forma.
Uma das coisas que sempre me fascinou em
arquitetura é ver como é que ela influencia todo o
mundo.
Eu sei que a maioria das pessoas nem se dá conta
das construções que vão se espalhando nos lugares
onde elas moram, nas ruas onde elas andam. Eu
cansei de fazer essa experiência com a Bianca. E com
outros colegas também. Que prédio tem naquela
Retratos de Carolina 181

esquina onde todo dia a gente dobra?, eu perguntava.


E naquela outra onde todo dia a gente para esperando
o sinal abrir? Nunca ninguém soube dizer. E sempre
com a mesma desculpa: é tudo igual... Mas eu sei
também que, mesmo que a gente não preste atenção na
arquitetura em volta, ela é uma presença que influi no
astral da gente.

20 de outubro

Nesse tempo todo que eu estou aqui pendurada,


só esperando ela voltar, eu fico sonhando um sonho
que toda a vida eu sonhei: de repente, um poderoso
qualquer me chama e diz, Carolina, aqui vai nascer
uma cidade, você tem carta branca pra planejar ela
todinha. (Será que o Niemeyer e o Lúcio Costa
também sonhavam com isso desde pequenos?) E
aí eu começava a inventar plano-piloto, rua, prédio
público, moradia, tudo. Meu deus, que tesão que
deve ter dado no Lúcio quando recebeu o convite pra
planejar Brasília!
Mas não precisava ser um poderoso-presidente,
não! Não precisava ser nem governador. Podia ser o
prefeito de um município qualquer. E podia já ser uma
182 Lygia Bojunga

cidade existente. Desse tamanhinho assim. Podia ser


esse vilarejo aqui! O prefeito lá de Arraial me chamava
e dizia: Carolina, carta branca pra reestruturar aquele
distrito onde “penduraram” você.
– Mas, Sr. Prefeito, já aconteceu cada barbaridade
por lá!...
– Reestruture. Bote abaixo, se for preciso.
– Pode?
– Carta branca, já disse.
– Mas olha que pra cada barbaridade abaixo a
gente vai dar uma senhora indenização.
– Dê!
– A prefeitura aguenta?
– Tenho uma verba gigantesca pra salvar essa
região do desastre ecológico que vem se anunciando
faz tempo.
– Vindo de onde?
– Do FMI.
– De onde?!
– Tudo que é juro que o Brasil já pagou dessa
famigerada dívida externa está sendo devolvido. Com
juros.
– Não acredito.
– Nosso município vai ganhar um bolão desse
bolão. Justo pra isso: salvaguardar nossas riquezas
Retratos de Carolina 183

ambientais; restaurar nosso patrimônio arquitetônico.


Vamos acabar com essa poluição toda que anda por
aí, dona Carolina! inclusive a visual: reestruture! bote
abaixo!
– Mas vão mesmo devolver essa grana toda, Sr.
Prefeito? Olha que é grana pra caramba.
– Pra caramba!
– Isso não vai dar ensejo a corrupções?
– E eu? o que que eu estou fazendo aqui? Você se
esquece que os prefeitos foram feitos pra garantir os
interesses públicos? É claro que nós não vamos permitir
que o povo seja lesado por qualquer corrupção.
(Se é pra sonhar, vamo’ lá.)
Aí eu ia e começava a atacar cada barbaridade.
Começava por qual? Deixa ver... Xi! já são tantas...
Bom mesmo era começar da estaca zero: terreno
limpo; o primeiro projeto, as primeiras linhas, ah! que
máximo que ia ser. Quanta planta e quanto projeto eu
já desenhei, sonhando com o dia em que eu vou poder
criar eles. Mas sempre gostei de começar do zero, ela
não: só teve uma casa que ela começou do princípio:
a Boa Liga; nas outras moradas ela sempre pegou casa
já levantada e já vivida por gente que chegou antes.
Engraçado, parece que ela não se incomoda com isso.
Acho até que ela gosta é assim: vai transformando
184 Lygia Bojunga

devagar. Um belo dia some uma parede. Meses depois


aparece uma janela onde não tinha, e onde tinha uma
porta de repente não tem mais.
Sempre andando juntos: tijolo e cimento, caderno
e livro. Ela já disse que vai ser assim até o fim. Se
envolve com as moradas do mesmo jeito que se
envolve com a gente.
Só uma vez ela alugou a morada de Santa Teresa,
durante um tempo grande que ficou lá por Londres.
Quando voltou, a inquilina contou pra ela que tinha
tido um filho lá na casa; durante mais de um ano
amamentou a criança numa cadeirinha baixa, de
braços, que morava lá. A vivência de amamentar ali o
filho tinha sido tão maravilhosa, que nem ela nem a
criança podiam mais dispensar a cadeira: ao deixarem
a casa, levaram a cadeira junto. Ela riu, achou ótimo,
tipo da coisa natural, e disse que ela também era
assim: os personagens que ela nutria numa morada
durante meses, às vezes anos, deixavam uma impressão
tão forte no lugar que, depois que eles iam embora,
ela continuava presa ao lugar onde tinha criado eles.
Não sei se é por isso, mas que ela deita raiz nessas
casas, ah! deita.
Por isso que, quando há pouco eu me lembrei
daquele dito muçulmano, eu me lembrei logo dela: cada
Retratos de Carolina 185

uma dessas moradas a que ela dá forma vai formando


ela. Ela e a gente. É meio esquisito, mas é assim.
Essa casa aqui, por exemplo, o Cata-vento.
Não tem nenhum sofá, nada de confortável pra
gente afundar, é tudo tão despojado, só tem cadeira
dura pra gente sentar. Se quer afundar, tem rede lá
embaixo, ela diz. E pronto. No chão, só ladrilho; nas
paredes também quase nada, e pra quê? ela pergunta,
se tem janela pra gente ver a lagoa, as dunas, o mar?
Mesmo livro tem pouco. Aqui ela quer tudo bem
pouco. Já chega a natureza, ela diz, que aqui se mostra
tão exuberante, quase excessiva, no jeito que o céu se
incendeia quando é hora do pôr do sol; na quantidade
de astros que aparecem quando a noite vem chegando;
na fúria que, volta e meia, ataca o mar; na estridência
do assobio do vento; na brancura-de-doer-olho
de uma duna ou de um monte de sal; ou então no
verde mutante que a lagoa sabe mostrar; é tudo tão
grandioso que ela se sente compelida a se despir
o mais possível, não só de roupa e de enfeite, mas
também de atos, palavras...
Essa casa então dá essa forma pra ela: aqui ela lê
pouco, escreve pouco, conversa pouco. É coisa demais
pra ver, ela fala. E vê sempre a mesma coisa: o céu, o
mar, as dunas, a lagoa.
186 Lygia Bojunga

Antes, ela ficava um tempão olhando a salina


aí embaixo: os cata-ventos em movimento, o sal
brotando nos retângulos da água que evapora.
A salina virou um loteamento vale-tudo, quer
dizer, sem planejamento. Ela não olha mais pra lá: o
olho se distancia pras salinas mais distantes que, um
dia desses, vão também acabar.

29 de outubro

Ela está demorando a voltar.


Será que ela vai me esquecer por aqui? Será que...
Não: mais dia, menos dia ela tem que voltar. Foi
sempre assim: ela não aguenta ficar muito tempo
numa morada só.

Quando eu cheguei no Cata-vento fui logo


dizendo pra Carolina que não ia demorar, tinha ido
só pra fazer uns pagamentos e no dia seguinte já
pretendia voltar.
– Pra ficar junto dele, não é?
Nem precisei olhar pra ela: o tom de voz já foi
suficiente pra me alertar que a Carolina estava em
plena crise de ciúme.
Retratos de Carolina 187

– Bom, eu nunca fiz mistério, não é, Carolina? eu


estou mesmo muito envolvida com o Discípulo.
– Mas se você está tão envolvida assim, por que
deixa ele lá? Você podia ter trazido ele com você, não
podia?
– Não.
– Por quê?
– Ora, Carolina.
– Porque eu estou aqui?
– Claro, não é?
– Mas eu já prometi que eu não vou perturbar
vocês. Seja aqui, seja lá.
– Mas eu sei que você vai. Eu te conheço muito
bem, Carolina, eu sei que quando você empaca,
empaca; e agora você empacou nessa história de que
eu tenho que te retratar outra vez.
– Outra vez, não: de um jeito... um jeito que... que
não me frustre como você me frustrou.
– De novo, Carolina? Mas eu já te disse, eu
compensei tuas decepções com essa tua determinação
de abrir um caminho com essa tua mão aí. E pronto!
Não me aborrece mais com isso. – Subi pro meu
quarto, fui botar o short e o pé no chão que eu logo
boto quando chego lá e tomei um susto quando ouvi
atrás de mim a voz da Carolina perguntando:
188 Lygia Bojunga

– Como é que ele é, hein? – E, em seguida, num


tom convincente e meigo: – Você nunca me contou
como é que ele é...
A Carolina, quando quer, sabe ser muito sedutora.
Fiquei logo em guarda quando vi que ela estava
querendo me ouvir falar do Discípulo. Mas aparentei
bobeira:
– Ele quem?
– Ora quem! o Discípulo. – Sentou no peitoril da
janela. – Me fala um pouquinho dele, vai.
– Não.
– Puxa, que que custa?
– Mais do que você pensa.
– Pelo menos o nome dele você vai me dizer, não
é?
– Você já sabe...
– Não sei não: você só chama ele de discípulo...
– Pois então? Ele se chama Discípulo.
– Isso não é nome.
– Pra mim, é.
– Mas por que que você chama ele assim?
– No dia em que a peça ficar pronta você vai saber.
– Que idade ele tem?
– Mais velho que você.
– Muito mais?
Retratos de Carolina 189

– Hmm...
– Que nem o Homem Certo?
– Não, não!
– Uns... trinta anos?
– É... por aí. Um pouco menos.
– Alto ou baixo?
– Assim... assim mais ou menos da tua altura.
– Mais pra claro ou pra moreno?
– É... assim... É: mais pra moreno. Os olhos são
escuros. E o cabelo também, se é que você quer saber.
– Comprido?
– O quê?
– O cabelo!
– Ih... sabe que eu não me detive nisso?
– Puxa, mas cabelo é coisa que a gente repara
logo.
– Bom... vai ver... Ah, já sei! ele amarra o cabelo
atrás do pescoço.
– Ah, que lindo, então é comprido.
– Amarrado assim, ó. É: agora eu sei que é assim.
– E o que que ele faz?
– Como, o que que ele faz?
– Não precisa ficar impaciente, não é? Puxa, afinal
de contas não custa tanto assim falar um pouquinho
dele pra mim.
190 Lygia Bojunga

– Sabe que hoje eu ainda não fiz nenhum


exercício? vou lá na lagoa nadar um pouco. – Fui
pegar minha bolsa de praia. Carolina veio atrás:
– Mas, hein?
– O quê?
– O que que ele faz? tem profissão? não tem? tá
desempregado? não tá?
– Ele é um... Carolina, vamos deixar essa conversa
pra outra hora, tá? – E saí.
Dizem que todo mundo tem lá suas superstições;
dizem que, às vezes, elas se escondem tão bem que
a pessoa nem se dá conta de que é supersticiosa.
Não sou exceção. E sempre me dei conta da
minha superstição maior: acho que se eu falo dos
personagens que ainda estou criando eles vão me
escapar. E sei que um dos tropeços maiores da minha
profissão (e não tão infrequentes...) é, de repente,
perder um personagem de vista.
Me demorei bastante na lagoa; depois fui pras
dunas ver o pôr do sol no mar, voltei com a lua.
Estava cansada. Comi uma coisinha, fui ler, mas
dormi logo.
Acordei lá pelas tantas com a Carolina sacudindo
o meu ombro; ouvi a voz dela perguntando, ou
melhor, suplicando:
Retratos de Carolina 191

– Diz: o que que ele faz?


– Amanhã, Carolina, amanhã.
– Não: agora. Não custa nada, vai; só um
pouquinho, que que custa?
Acendi o abajur:
– Mas que interesse tão grande é esse, de repente?
– Curiosidade, ué.
– Ou ciúme?
– Também. Se você me abandona por causa dele,
eu tenho mais é que ficar com ciúme, não tenho não?
Amoleci:
– Você acha mesmo que eu estou te abandonando,
meu bem?
– Então não tá? Então não me deixa aqui fechada?
Pendurada? Nessa expectativa de ver você atender ou
não ao meu pedido?
– Que pedido?
– Ah, não te faz de boba: você vai ou não vai fazer
mais retratos de mim?
Positivamente a Carolina estava acabando com o
meu sossego: ou queria saber do Discípulo, ou voltava
a bater na tecla dos retratos. Suspirei: vi que ela não
ia me deixar dormir. Sentei na cama, cruzei os braços
e fiquei olhando pra ela. Ela sentou também e ficou
esperando.
192 Lygia Bojunga

E se eu falasse um pouco dele? Só um pouco. Será


que ele me escapava?
– Mas, hein? O que que ele faz?
Afinal de contas, a Carolina não era uma pessoa
qualquer, era a Carolina; e falar do Discípulo pra
Carolina era praticamente a mesma coisa que falar
dele pra mim: ele não ia poder me escapar. Eu estava
levando aquela superstição longe demais,
não estava não?
– Ele é cientista? ele é artista?
– Não, ele é um terrorista.
– Ele é um quê?!
– Terrorista.
Ela ficou me olhando assustada. Mas depois
riu:
– Não vai me dizer que ele tinha conexões com o
Bin Laden.
– Bom, já que eu te contei o que que ele é, agora
você pode me deixar em paz, não é?
– Ah, não! Agora você tem que me contar mais
desse terrorista. Ele é a favor desses ataques suicidas?
Ele aprovou os ataques a Nova York e Washington?
– Não.
– Ah, que bom! então ele é um terrorista...
pacífico. – Riu.
Retratos de Carolina 193

– E-xa-ta-men-te. E esse é o grande problema,


o grande dilema que ele está enfrentando.
Carolina se ajeitou melhor na cama, revelando
toda a intenção de não sair dali tão cedo.
– Mas como é que um cara pacífico vira
terrorista?
– Bom, desde adolescente o Discípulo é antenado
nas questões sociais. Ele era ainda bem garoto quando
começou a se envolver em movimentos estudantis de
protesto. Mas sempre defendendo o protesto pacífico.
Como era um rapaz muito carismático (era e é), em
poucos anos assumiu a liderança de várias iniciativas
de protesto pacífico; e como vivia pregando que
cada um tem que trabalhar mais sua capacidade de
resistência, vencendo pela tenacidade e não pela
violência, ele começou a ser chamado de discípulo
de Ghandi...
– Ah!...
– ...e entrou em conflito com a família, que
queria ver ele formado em odontologia, pra logo
começar a ganhar a vida “dignamente” no consultório
do pai, em vez de “perder tempo com aquelas
coisas que não levavam a nada”. O Discípulo é um
apaixonado, sempre foi...
– É mesmo?
194 Lygia Bojunga

– ...tudo que ele faz é na base da paixão, mergulha


de cabeça...
– Bem que eu desconfiava que ele era assim.
– ...começou a escrever pra jornal e revista,
folhetim, cartaz, qualquer coisa servia pra divulgar
e incitar as mudanças que ele julgava mais necessárias:
a reforma agrária, o ensino gratuito de qualidade,
as creches, a valorização do professorado de
ensino básico. Enfiava a noite escrevendo, acabou
abandonando estudo, casa, conforto, pra viver na pele
a vida da maioria da nossa gente: os que não têm nada
ou quase nada.
– Cara legal, não é?
– É... ele era um cara legal.
– Era?
– Era.
– Ele mudou?
– Mudou.
– Mas por quê? O que que você arrumou com o
teu discípulo de Ghandi?
– Bom, eu acho que você saiu tão com mania de
querer ser coerente com você mesma, que acabou
sobrando pro Discípulo: ele já nasceu trazendo dentro
dele um belo talento pra incoerência. Então, lá pelas
tantas, ele mergulha de cabeça numa paixão pela Tânia.
Retratos de Carolina 195

– Tânia.
Achei curiosa a entonação que Carolina emprestou
à voz quando repetiu o nome da paixão do Discípulo.
– Bom, o Discípulo sempre foi meio mulherengo,
sabe, Carolina. Mas até aí tudo bem, nenhuma
incoerência. Só que ele nunca foi muito apegado
a nenhuma namorada. O que também me parece
coerente: afinal de contas, o apego maior dele era a
defesa das causas sociais. Até o dia que ele encontrou a...
– O que que ela faz?
– Primeiro ela disse pro Discípulo que fazia isso,
depois aquilo, depois começou a se referir a si própria
como ativista política. Mas o Discípulo nem se ligou
no que ela fazia ou deixava de fazer...
– Ué.
– ...só prestava atenção no olho de gata que ela
tinha e na cabeleira ondulada que se arrepiava também
toda quando a Tânia dizia que se arrepiava de horror
diante do poder dos poderosos. Por mais que ele
tentasse entender como é que aquele maciço de cabelo
se arrepiava daquele jeito, ele não conseguia. Mas não
conseguia mesmo. No princípio a Tânia não explicou
direito de que poder e de que poderosos ela falava. E
também não ocorreu ao Discípulo perguntar, porque,
de repente, ele também: só de olhar pra Tânia ele se
196 Lygia Bojunga

arrepiava todo, e tanto, que o resto saía de foco. Bom,


mas uma coisa eu tenho que dizer pra você, Carolina:
a Tânia é belíssima.
– Hmm.
E o Discípulo mergulhou numa paixão que eu não
te conto.
– Hmmm. – E depois de uma pausa: – E ela?
– Retribuiu. Igualzinho. Só que ela é de natureza
essencialmente dominadora: gostando ou não
gostando de alguém ela tem que moldar as pessoas
com quem ela convive: “botar do meu jeito”, feito
ela diz. Nasceu assim; moldar o outro já virou
uma prática enraizada. Começou logo a moldar o
Discípulo. E lançou mão da prática de uma maneira
tão sedutoramente eficiente que ele nem se deu conta
do quanto ela estava transformando a crença dele de
vencer pela resistência e não pela violência, na crença
dela de combater o poder estabelecido mediante o
emprego da violência.
– Então ela era uma terrorista?
– Era, não, minha querida: é. Das mais convictas.
Capaz até de se lançar com tranquilidade numa
missão suicida. Levando o Discípulo junto, se ela
achar que é bom pra causa. O início da peça é o
gradual despertar do Discípulo, quer dizer, ele começa
Retratos de Carolina 197

a se dar conta do quanto o envolvimento com a Tânia


já puxou ele pro fundo do poço. A essas alturas, ele já
participou de um atentado com o grupo da Tânia,
e a polícia está atrás deles.
O olhar intenso da Carolina cravado em mim de
repente me despertou: vi que estava indo longe demais
no “bocadinho” que ela tinha me pedido pra contar.
Me freei:
– Bom, já fiz a tua vontade, já te falei bastante do
Discípulo. Amanhã eu tenho que ir cedo, ele está me
esperando; tô cansada e quero dormir, TÁ? – Apaguei
a luz e sumi debaixo do lençol.

7 de novembro

Quando ouvi o motor do carro voei lá pra baixo.


Ainda era cedo, mas ela já tinha ido nadar na lagoa.
(Agora ela pegou essa mania, diz que é mágico: uma
ou outra gaivota; às vezes um vira-lata zanzando na
areia; e, lá pelas tantas, toc-toc-toc: o barulhinho do
motor da embarcação precária que os pescadores
daqui usam, e que, de longe, já anuncia a volta de um
deles que saiu pra pesca noturna; fora isso mais nada,
mais ninguém.) Ela já estava indo pro Rio.
198 Lygia Bojunga

– Me leva junto! – eu pedi. E jurei que não


perturbava ela nem o Discípulo, mas...
– Carolina, será que não dá pra entender que, no
momento, eu só estou querendo me ocupar dele?
Foi s’embora e me deixou aqui de novo em banho-
maria.

Bom, pelo menos eu sei que enquanto ela me deixa


aqui pendurada é porque ela ainda tá hesitando no
tal tchau.

Foi sempre assim: ela custa demais pra se separar


da gente de vez.

Eu tô quase apostando que eu acabo ganhando:


ela vai fazer mais retratos de mim.

15 de novembro

Puxa, ela bem que podia trazer ele pra cá...


Eu levava ele pra ver tudo de tão lindo que ainda
tem por aqui.
As bromélias lá na restinga.
A igrejinha de Massambaba.
Retratos de Carolina 199

Quilômetro e mais quilômetro de praia deserta


pra gente ir andando com o pé dentro d’água... (De
mão dada?)
Aí, a gente subia numa duna pra ver melhor a
chegada da lua...
(Eu desmanchava? Ou se desmanchava o atado no
cabelo dele?)
Na volta a gente ia pro belvedere pra ver lá longe
tudo que é luzinha de Araruama, Iguaba, São Pedro.
Mas o vento tinha que estar manso pra...
Ah, eu não devia ter insistido tanto pra ela me
falar dele.
Não devia mesmo.
Agora ele não sai da minha cabeça.
Mas eu sempre fui assim, o que que eu posso
fazer? eu sempre fui intuitiva.
Foi só saber do envolvimento dela com o
Discípulo que eu já senti esse troço aqui no meu
peito. No princípio eu pensei que era ciúme só.
Ciúme dela.
Mais que ciúme até: mágoa: antes mesmo de se
separar de mim ela já andava às voltas com ele, então
não é pra me magoar?
Mas, depois que ela me falou dele, eu saquei que
essa coisa aqui no peito era mais que ciúme, era
200 Lygia Bojunga

intuição. Intuição pura. Senti direitinho que o Discípulo


ia me tirar do sério. Não: mais. É: mais: senti direitinho
que a gente pode ter nascido um pro outro.

16 de novembro

E a Tânia? O que que ela podia fazer com aquela


medonha Tânia pra tirar ela do caminho?
Ora o quê! Uma missão suicida e pronto: lá vai a
medonha junto com a bomba e não se fala mais nisso.
Mas aposto que a Tânia ia querer levar o Discípulo
junto...
Ele não ia, ué! A gente não deixava.
Bom, isso é um detalhe.
Hmm... Não é tão detalhe assim.
Ah, mas ela dá um jeito, inventa um troço
qualquer, escritora é pra isso.
E ela disse, não disse? que a polícia já andava atrás
deles...
Taí: a polícia pega a Tânia, mas o Discípulo
escapa, pronto: que mais que precisa?
Puxa, não precisa mais nada: ele escapa e vem aqui
pro Cata-vento,
Tá resolvido.
Retratos de Carolina 201

17 de novembro

Esta noite eu tive um sonho incrível.


Era de noite e eu saí pra andar na restinga.
Tinha um quarto minguante que clareava muito
mais ou menos as dunas.
Quando eu desci uma delas vi um homem deitado
na areia.
Não tive a menor dúvida: é ele, eu pensei. Parecia
que estava dormindo. Braço cruzado tapando a cara.
Joelho levantado. Pé enterrado na areia. Do lado, uma
mochila pequena e uma sandália velha de couro.
Sem susto nem nada sentei do lado dele e fiquei
vendo ele dormir. Escutando ele dormir. Rocei minha
mão na dele pra sentir ele dormir.
A impressão é de que passou muito tempo só assim,
a onda batendo na praia e ele dormindo junto de mim.
O primeiro que se moveu foi o braço: destapou a
cara dele.
A lua era minguante, mas tinha muita estrela no
céu: eu vi o olho dele se abrindo e olhando pra mim.
E a gente ficou assim, só se olhando e mais nada.
Senti meu corpo amolecendo; foi só minha mão se
abraçar com a dele que eu já senti eu-me-molhando;
e quando me abaixei pra dizer, eu tenho te esperado,
202 Lygia Bojunga

não deu pra dizer o tanto que eu queria: a língua dele


travou minha fala, meu dente roçou no dele, e eu senti,
eu senti! que ele estava deixando a Tânia pra trás, eu
senti ele se apaixonando por mim. E aí a gente...
Nossa! Eu acordei quase morta.
De vergonha? Não, não, que é isso! De prazer
e de esperança: acho que ela vai fazer a gente
viver uma história... não: uma tremenda história
de amor.

20 de novembro

Ela precisa transformar minha intuição em


realidade. Ela tem que fazer a gente viver o sonho que
eu tive.

Dia 26

Cada vez que ela demora a voltar, eu fico pensando


se ela não vai mais voltar. Quer dizer, voltar eu sei que
ela volta, o que eu fico pensando é se ela vai “esquecer”
os meus retratos aqui pra sempre.
É bem capaz.
Retratos de Carolina 203

Não havia de ser a primeira nem a última vez que ela


“se esquece” da gente pra sempre numa morada dessas.
Não, não pode ser... Essa demora deve ser porque
ela foi embora chateada com o Cata-vento. Chateada
de ver construção brotando feito cogumelo nesse
paraíso todo por aqui, que é área de preservação
ambiental. Loteamento tomando lugar de salina;
invasão acontecendo pra cá e pra lá; às vezes vem o
Ibama e a invasão desacontece: às vezes vem o Ibama
e a invasão continua acontecida; e quase tudo que é
construção fica no tijolo; dizem que é a falta de grana
que não acaba a casa; mas dizem também que
casa-que-não-acaba não paga IPTU. Será?
Mas o que deixou ela mais perturbada foi que,
quando ela chegou aí na janela, viu um trator fazendo
terraplenagem na restinga. Justo lá onde eu sonhei que
tinha encontrado o Discípulo e que a gente... Hmm...
foi tão bom! Quem sabe essa noite eu sonho de novo
com ele...

Dia 29

Quando ela voltar, vai ficar aliviada: a invasão


na restinga desaconteceu: o Ibama embargou.
204 Lygia Bojunga

E essa invasão não era de quem-não-tem, era de quem-


tem: dono de salina. Dono? Os antigos da região falam
que isso tudo por aí não foi comprado: foi arrendado
pra explorar o sal. Quem arrenda não é dono, é ou
não é? um dia tem que devolver. Sei lá. Só sei que essa
discussão de invade não invade tá sempre vindo à baila
aqui no Cata-vento. Tem os que acham que se o istmo
não resiste a essas invasões todas, o cerco da lagoa se
fecha e ninguém mais salva ela da poluição total. (Mas
será possível que vão deixar esse milagre da natureza
sem salvamento?) E tem os que defendem as invasões.
Eles falam que, se é invasão de pobre, a gente tem que
respeitar: o importante é quem não tem casa passar
a ter; e, se é invasão de rico, quer dizer, loteamento,
também é bom: dá emprego, atrai veranista, ajuda o
comércio local. É cada discussão que rola por aqui!

Agora eu fiquei pensando que lado o Discípulo ia


defender: invade ou não invade?
Acho que eu vou ficar pensando mais nisso: já
notei que, sempre que eu fico pensando o dia inteiro
numa coisa de noite, eu sonho com ela. Ia ser tão bom
sonhar de novo com o Discípulo...
Retratos de Carolina 205

Dia 30

Sonhei!
(Ou será que imaginei?)
Ele estava lá mesmo. Na restinga. Deitado. O
braço atrás da cabeça, fazendo de travesseiro.
O olho bem aberto pro céu.
Pensando.
– Em quê, meu amor? – eu quis saber. E me sentei
do lado dele.
A barba dele tinha crescido.
Ele pegou a minha mão e ficou roçando a barba na
palma dela.
Bom.
Tinha uma orquídea em flor bem perto dele.
Amarela e roxa.
Bonito que era olhar pros dois. Mas eu queria
saber:
– Pensando em quê, meu querido?
– Você.
Fui me sentindo meio bamba. Que nem da outra
vez. (Foi ontem a outra vez, não foi?) (Esse negócio
de tempo... aqui... é meio irreal...)
E aí eu desabafei pra ele: eu tenho estado tão
sozinha que você nem imagina; faz tempo que eu não
206 Lygia Bojunga

transo com ninguém; por isso que só da tua barba


roçar minha mão eu já fico assim, ó, sente só.

Ultimamente eu sonho tanto com essas coisas que


eu acordo até cansada.
Isso eu não disse pra ele, eu tô pensando é agora.
Sonho de me acabar!
Com sexo.
Mas aí, no sonho eu quero dizer, quando ele tirou
minha blusa pra casar a barba dele com o meu peito,
chegou um garoto. Magrinho toda vida. Pé no chão.
Short rasgado. Camiseta que político distribui em
tempo de eleição. Disse que tinha um recado pra dar:
“Tão esperando vocês dois pra votar lá na eleição.”
“Que eleição?”
“Hoje vão resolver como é que fica essa história de
invasão.”
“Mas logo agora?”
“Todo mundo já votou. Só falta vocês dois.”
Eu disse que a gente não podia ir: “A gente agora
vai se amar.”
Mas o garoto não arredou pé: “Tem que ir. O lado
que apoia invasão tá perdendo. Vão querer derrubar
casa que invasor levantou, e a gente vai morar onde?
Mas vocês votando a favor a gente empata, vem, vem!”
Retratos de Carolina 207

O Discípulo foi falar. Minha boca tapou a dele.


O garoto estava aflito: “A votação tá acabando,
vem!”
Mas o meu tesão já tinha incendiado o Discípulo.
“Vem, vem!”
“Agora, não! Diz pra eles aguentarem a mão:
depois a gente vai lá e vota, juro! Some!”
O garoto sumiu.
Só eu e o Discípulo de novo. Nosso incêndio foi
se alastrando, se alastrando, e depois... eu acordei.
Cansada daquele jeito.
E a gente não foi lá votar, que vexame, meu deus!
um assunto tão importante desses e nós dois ali, só
querendo transar. Que coisa.

Quando eu cheguei no Cata-vento, nem sinal da


Carolina. Em compensação, logo vi o diário dela.
Estava na minha mesa. Bem aberto. Em frente da
cadeira onde eu me sento pra ler e escrever. Resolvi
fingir que não tinha visto. Abri a janela que dá pras
dunas. Que surpresa tão gostosa! Não tinha nem
vestígio de trator nem de máquina nenhuma, a
terraplenagem tinha sido suspensa. Iam respeitar
a restinga! Iam deixar ela em paz. Fiquei tão
208 Lygia Bojunga

desperturbada, tão levinha, que fui logo tirando roupa


e sapato pra me meter num maiô e ir pra lagoa nadar.
Mas meu olho não largava o diário.
Não-largava-e-não-largava. Acabei não resistindo
ao convite e me sentei pra ler. Quando acabei, fechei
o caderno devagar e saí de mansinho. Doida pra não
encontrar a Carolina. Nem a Carolina, nem ninguém.
Minha leveza tinha sumido e eu estava outra vez
perturbada: “minhas” dunas não tinham ido embora,
mas “meu” Discípulo tinha. E agora? Em vez de ir
nadar fui pra lagoa ruminar. Fiquei lá muito e muito
tempo, sentada na areia, com o pé dentro d’água,
pensando e pensando neles, no Discípulo e na
Carolina. Depois voltei pro Cata-vento.
Foi só abrir o portão que a Carolina veio correndo ao
meu encontro. Me abraçou, me beijou e logo quis saber:
– Dessa vez você trouxe ele, não trouxe?
– Quem?
– Ora.
– O Discípulo?
– Quem mais?
Fiquei um tempo olhando pra Carolina, pensando
devo? ou não devo? contar logo pra ela o que
aconteceu dentro de mim depois que eu li o diário.
Resolvi que devia, sim, devia dizer:
Retratos de Carolina 209

– Trazer o Discípulo por quê, se você já se


apossou dele?
– Eu o quê?
– Carolina, Carolina...
– Não estou te entendendo.
– Olha dentro do meu olho, Carolina. Você não vai
me dizer agora que não se lembra de ter deixado o teu
diário bem aberto lá na minha mesa, num pedido mais
que óbvio pr’eu ler tudo que você tinha escrito, vai?
Um risinho espreitou no olho dela.
– E você leu?
– O que que você acha?
O riso se aventurou mais um pouco:
– Tinha mais é que ler mesmo, não é?
– É.
– E aí?
– E aí você achou que, com isso, ia me influenciar
pr’eu te retratar do jeito que você quer: vivenciando
uma romântica história de amor com o Discípulo, é
ou não é?
– Bom... – E o riso se mostrou todo: – É.
Suspirei:
– Ah, Carolina, esse teu lado me escapa; sempre
me escapou.
–?
210 Lygia Bojunga

– Esse teu lado fantasioso, eu quero dizer.


Não satisfeita de ter fantasiado um amor impossível...
– Impossível não sei por quê.
– ...você fantasia que essa fantasia vai me fazer
te retratar do jeito que você quer.
O riso foi indo s’ embora; deixou no olho dela
uma decepção:
– E não vai não?
– Mas, Carolina, te retratar pra quê, se você
já se retratou? Agora só falta o título: Autorretrato
aos 26 anos.
Silêncio.
Carolina me olhando. De repente, resolveu
protestar com veemência:
– Ah, pera lá! A única coisa que eu fiz foi rabiscar
um diário que...
– ...que agora é parte da tua história...
– ...que fala de uma vontade, que tece uma
fantasia...
– ...e que dá um feitio diferente ao Discípulo que
eu inventei.
– Não foi por mal.
– Isso eu sei.
– Foi só pra te mostrar que, fazendo uma história
de amor entre nós dois, você salvava ele...
Retratos de Carolina 211

– Mas eu não botei ele na minha peça pra ser


salvo!
– ...você fazia ele voltar a ser o discípulo de
Ghandi que ele era antes...
– Carolina...
– Você não vê que ele tem que se livrar da Tânia?
Ela tá levando ele pr’uma desgraça total. Você precisa
sumir com aquela mulher!
– Eu não preciso sumir com ninguém, porque eu
não tenho mais Discípulo: você trouxe ele pra tua
história. E se eu não tenho mais Discípulo eu não
tenho mais peça. Foi isso que aconteceu, Carolina, só
isso: a minha peça já era.
Carolina ficou me olhando perplexa. Depois de
um tempo perguntou: já era? A tua peça já era? Feito
coisa que não dava pra entender o que eu tinha dito.
– O Discípulo não é onipresente, não é?
Ou bem ele está lá na minha peça, ou bem ele está
aqui na tua história. – Fui sentar no degrau da porta.
Carolina sentou também, sem tirar o olho
de mim.
– Não era à toa que eu relutava tanto pra te falar
dele; não era à toa que eu deixava ele sempre no Rio
quando vinha...
– Mas, se a tua peça já era, como é que ele fica?
212 Lygia Bojunga

– Hein?
– Como é que ele fica? como é que ele fica?
– O Discípulo?
– Quem mais, quem mais?!
– Calma, Carolina, não precisa ficar nervosa.
– Mas como é que ele fica?
– Ué: fica como ficou no teu autorretrato. Nem
mais, nem menos.
– Mas não pode.
– Por que que não pode?
– É claro que não pode! Lá ele não tem... não tem
história. Não tem começo-meio-e-fim. Lá ele... ele
só vive na minha imaginação; não é feito o meu pai,
feito... a minha mãe, feito a Bianca...
– Mas você mesma não disse, lá no teu diário, que
eu sou fruto desses espaços que eu venho criando?
Então? O Discípulo fica sendo fruto do espaço da tua
imaginação, dos teus sonhos. É só lá que ele vai viver.
– Mas por quê? por que que agora que não tem
mais peça... – Franziu a testa, ficou em dúvida: –
Você disse, não disse? que não tinha mais peça?
– É, Carolina, não tem mais peça. O que
antes era peça vai virar papel rasgado. Que vai pro
lixo. O caminhão vai levar. E vai deixar no depósito
de reciclagem. E o que era peça vira papel reciclado.
Retratos de Carolina 213

E vai pr’uma papelaria. E um dia eu passo por lá.


E vejo o papel à venda. E acho ele legal, bom pra
escrever. Compro e levo ele pra casa. Começo a
escrever nele. Me assalta a impressão de que eu já
lidei com ele em algum lugar, em alguma época.
Começo a criar nele um novo personagem. Diferente
do Discípulo. Mas que, lá pelas tantas, dá uma risada
igualzinha a uma risada que o Discípulo deu numa
das páginas que foi pro lixo, e que o caminhão levou,
e que deixou no depósito de reciclagem, e que...
– Pelo amor de deus! quer fazer o favor de se
concentrar no que a gente tava falando?
– Hmm?
– Você jura que a tua peça já era?
– Quantas vezes você quer que eu repita?
– Mas então aproveita e bota o Discípulo pra
valer dentro da minha história! Faz outro retrato
de mim, dessa vez vivendo uma história de amor
caprichado e não aquela paixão esdrúxula que você me
fez viver com o Homem Certo.
Comecei a rir. Carolina se levantou:
– Tá rindo de quê?!
– Não é de você não, meu amor, é do esdrúxula:
nunca te imaginei usando essa palavra.
Carolina sentou de novo; me abraçou:
214 Lygia Bojunga

– Diz! Diz que vai fazer outro retrato de mim.


– Puxa vida! Já não chega ter me tomado o
Discípulo, não? – Me levantei, fui pro quarto e fechei
a porta, resolvida a não dar mais trela pra Carolina.
Mas hoje, já no café da manhã, Carolina voltou
a martelar a tecla do “retrato não-frustrante”. Só
que, dessa vez, ela martelou com tanto charme, com
tanto abraço e carinho, que me seduziu de vez: acabei
prometendo que ia retratar ela de novo:
– Mas do meu jeito, tá bem, Carolina?
do meu jeito. Não vai você querer se intrometer
no meu trabalho e dizer que tem que ser assim e
que tem que ser assado. Combinado?
Ela concordou.

E agora eu estou aqui. Olhando pro papel em


branco.
Acho que já que a Carolina se habituou no
Cata-vento é melhor fazer o retrato aqui mesmo nesta
mesa. Pausando o olho na lagoa. No mar.
Nas dunas.
Continuo escrevendo à mão. Agora usando
mais caneta que lápis. Às vezes experimento o
computador. Mas volto pro papel e pra caneta:
Retratos de Carolina 215

é feito voltar pra casa, tirar o sapato e botar


o short.
Uma coisa já resolvi: pra história de amor já basta
o que ela andou sonhando no autorretrato.
Se ela martelou tão bem martelada a tecla de um
novo retrato, eu vou também agora martelar a minha
tecla...
Outra coisa resolvida: já se passou algum
tempo desde aquele dia em que a Carolina sonhou
com a gaiola vazia do Pet, lá no apartamentinho
da Glória.
Quanto tempo? Um?... dois... três... quatro
anos? ... É: quatro anos. Então:
216 Lygia Bojunga
Retratos de Carolina 217

á antes de se formar, Carolina tinha


conseguido emprego num movimentado escritório
de arquitetura, onde ela trabalha até hoje. Sempre
sonhando com a chance de criar inteiro, criar redondo,
quer dizer, criar ela mesma espaços que vão ser
levantados, em vez de ficar na prancheta, desenhando
e calculando detalhes de plantas que outros arquitetos
criam (os donos da empresa, por exemplo). É
competente no que faz. Já teve dois aumentos de salário.
Mas a tarefa de desenhar e calcular esse ou aquele
segmento dessa ou daquela planta é uma tarefa que se
repete, e se repete, e se repete.
Todo dia a mesma prancheta. Todo dia o mesmo
canto da sala. Nove horas Carolina chegando, ué!
de novo essa planta aqui na minha prancheta pra ser
recalculada? Seis horas Carolina saindo, e no dia
seguinte às nove horas voltando e encontrando outra
218 Lygia Bojunga

vez a planta, que tem que ser redesenhada, tem que


ser recalculada, pra ficar mais econômica, e ser mais
competitiva, tudo tão repetitivo!
Repetitivo, é. Mas tem emprego: viva! E já botou
a vida em dia, e já pagou o que devia, e já comprou
a parafernália-dita-necessária: microsoft, microonda,
microisso, microaquilo, faxfreezervídeotevêsomcelular.
Casa própria nem pensar: continua alugando o
conjugado da Glória, mas já comprou um terreno na
serra, está pagando em prestação, e já inventou a casa
que vai levantar quando acabar de pagar: uma casa tão
inventada, que ela vai se desfrustrar de todo esse tempo
que ela fica naquela mesma prancheta, naquele mesmo
canto de sala, recalculando e redesenhando cálculos
e desenhos que têm que ser mais econômicos, mais
competitivos, mais repetitivos.
Namora um pouco.
Dança um pouco. Se diverte um pouco.
Visita a Mãe um pouco.
Tudo um pouco.
Muito só sonho.
Mas hoje Carolina acordou com muito de uma
outra coisa: depressão.
Em vez de pular da cama e se entregar pra ioga
que vem fazendo, se encolheu debaixo do lençol.
Retratos de Carolina 219

Pela primeira vez, desde que começou a trabalhar, se


sentiu sem coragem pra enfrentar a mesma prancheta,
e mais as tais linhas, e mais os tais cálculos. Queria
criar com paixão! Namorar com paixão! Viver
com paixão! Mas acordou achando a vida dela tão
nhenhenhém, que só tinha vontade de puxar o lençol
pra cabeça, e puxou; só queria se esconder dela, da
vida, de tudo que é sonho que continuava sonho, de
tudo que é expectativa que continuava esperando,
de tudo que ia acontecer e que todo dia não
acontecia; e se escondeu.
Passou a hora da ioga.
Passou a hora do café da manhã.
Passou a hora da condução.
E a Carolina ali, coberta de lençol dos pés à cabeça
pra não enxergar nem uma fresta do mundo lá fora.
Quando a manhã já ia alta, resolveu se sacudir
daquela inércia. Foi pro banheiro, abriu um chuveiro
frio e se demorou debaixo d’água até tomar ânimo
pra enfrentar o resto do dia. Depois bebeu o suco
que sempre bebia, tomou o iogurte que sempre
tomava, comeu a torrada que sempre comia e pegou
o metrô que nunca pegava: depois de somar tanto
baixo astral, o resultado tinha sido um hiperatraso no
horário de trabalho.
220 Lygia Bojunga

Tinha lugar no carro do metrô. Sentou. Tirou da


bolsa o livro que vinha lendo. Mas voltou a inércia:
ficou de livro esquecido na mão, olhando-por-olhar as
pessoas que estavam em volta.
Estação Catete.
Uma moça entrou, olhou em redor, não encontrou
lugar pra sentar, ficou de pé, perto de Carolina.
Carro em movimento.
Carolina olhou pra moça.
Lá pelas tantas a moça olhou pra Carolina.
Ficaram se olhando um momento. Desviaram o olhar.
Depois de um tempo pequeno, o olho da
Carolina voltou pra moça: um jeito de olhar entre
pensativo e intrigado.
O olho da moça foi voltando pra Carolina,
também meio pensativo.
A testa de uma se franziu; a mão da outra pegou
uma ponta de cabelo e ficou virando ele no dedo,
de um jeito que a gente só vira quando está muito
absorta num pensamento qualquer.
O olho de uma saiu do olho da outra. Mas não
demorou muito voltou. Se afastaram outra vez.
A testa que tinha se franzido, se franziu com mais
força. O dedo que virava a ponta do cabelo, virou
mais rápido.
Retratos de Carolina 221

E outra vez – agora mais demorado, mais fundo –


o encontro do olho de uma e de outra.
A boca da moça foi se abrindo de leve, feito coisa
que queria falar, perguntar. A boca da Carolina se
apertou um pouquinho. E o olho das duas, agora
mostrando uma dúvida, uma certa perplexidade, saiu
andando pelo chão, pelo teto, pela cara das outras
pessoas que estavam no metrô.
Estação Largo do Machado.
Entrou uma porção de gente. Alguns se colocaram
entre a moça e Carolina.
Carolina começou a procurar no banco uma
posição melhor pra ver a moça.
A moça foi se deslocando, abrindo caminho, se
chegando pra Carolina.
O olho das duas se encontrou de novo. A moça
conseguiu dar mais um passo, Carolina foi se levantando
devagar, e quando, afinal, se viram assim cara a cara, se
perguntaram justo-justo ao mesmo tempo:
– Carolina?
– Priscilla?
E as duas fizeram que sim.
Estação Flamengo.
O alvoroço foi o mesmo numa e noutra; Priscilla
mostrou ele inteiro, Carolina foi mais reservada. No
222 Lygia Bojunga

princípio elas não sabiam muito bem se se abraçavam,


se riam, o que é que faziam com um encontro assim
tão-fora-de-qualquer-cogitação.
– Quanto tempo, Carolina?
– Bom, eu estou agora com vinte e nove.
– Eu também. Puxa! vinte e dois anos!
– Já pensou?
E o que mais alvoroçava a Priscilla, e também a
Carolina, era o fato de, agora, mulheres, as duas terem
se reconhecido, elas que, então, eram tão crianças.
Estação Botafogo.
– Eu tenho que saltar aqui.
– Eu também.
Saltaram. Ora andando, ora parando, Priscilla
foi detalhando pra Carolina, tintim por tintim, tudo
que a lembrança e a imaginação tinham trabalhado
a partir do momento em que o olho das duas se
encontrou no metrô. Às vezes andava mais depressa,
puxando Carolina pelo braço; mais adiante parava e
continuava despejando palavras que Carolina ouvia
atenta, aqui e ali o olho roubando a atenção pra
examinar Priscilla, às vezes se prendendo no cabelo
comprido e anelado (e não é que continuava
avermelhado?), outras vezes na gesticulação abundante
e no riso descontraído que volta e meia se enfiava
Retratos de Carolina 223

pelas palavras adentro; e quando a Priscilla andava, o


olho logo seguia o jeito pra lá de firme que ela pisava.
De repente, toda aquela movimentação parou de
estalo e a Priscilla exclamou:
– Puxa! já é quase meio-dia. Deixa eu te
convidar pra almoçar? Olha, aqui bem perto tem um
restaurantinho que eu acho um barato. Vamos lá.
Carolina se deteve hesitante: almoçar com a
Priscilla? Mas...
A Priscilla não quis saber de hesitação nenhuma:
– Ah, vem! Vem me contar o que que você andou
fazendo esse tempo todo.
– Mas eu tenho trabalho, Priscilla.
– Eu também, ué
– Você?
– Por quê?
– Bom...
– Eu não trabalhava quando você me conheceu
porque eu só tinha seis anos – e o riso veio logo botar
um ponto na frase.
A curiosidade da Carolina foi mais forte que a
hesitação:
– Trabalha em quê?
– Eu dirijo a fundação do meu pai. – E deu um
empurrãozinho na Carolina pra ela sair andando.
224 Lygia Bojunga

– Mas o teu pai não era médico?


– Ci-rur-gi-ão plás-ti-co, é. Só que ele ganhou
tanto dinheiro tirando peito, tirando ruga, tirando
barriga, tirando tudo que todo mundo quer que
tire achando que vai ficar mais bonito, e botando
tudo que todo mundo quer que bote achando que
vai ficar menos feio, que até eu, que sou consumista
de nascença, um dia fiquei meio chateada de ver ele
ganhar tanto dinheiro em cima de tanta vaidade e
sugeri que ele botasse um pouco desse dinheirão todo
numa fundação qualquer que atendesse gente que
não tem grana (e como tem, meu deus!) e que precisa
de uma plástica pra corrigir coisa séria: queimadura,
acidente, defeito de nascença, o diabo.
– Legal.
– Essa sugestão veio no meio de uma discussão
que a gente teve (a gente discute à beça); falei
que na hora dele prestar contas a Nosso Senhor,
Nossa Senhora, Santa Teresinha, esse pessoal todo
com quem ele vive às voltas (meu pai é carola que
você precisa ver), isso ia contar ponto. Pelo menos,
eu falei, você vai poder dizer pra eles que aqui
na terra você não atendeu somente à vaidade;
eu tenho certeza que isso vai impressionar eles bem.
– Priscilla ia andando tão depressa que Carolina mal
Retratos de Carolina 225

conseguia acompanhar. – Acertei na mosca com esse


argumento dele ganhar ponto pra entrar no céu. Mas
ele é meio turrão, sabe, e falou assim:
“Eu tenho uma fila gigante de nariz e ruga e peito
e bunda me esperando: onde é que você quer que eu
arrume tempo pra organizar uma fundação?...”
“Quem vai organizar sou eu.”
“...pra procurar uma casa...”
“Quem vai procurar sou eu.”
“...pra levantar um espaço que...”
“Deixa comigo” eu falei. – Parou em frente de um
sobradinho. – O restaurante é esse. Vamos entrar?
O restaurante estava recém-abrindo. Tudo
tranquilo. Escolheram a mesa mais simpática, num
canto junto à janela, e Priscilla se acomodou com
prazer na cadeira, querendo saber o que que Carolina
fazia: trabalhava onde? tinha estudado o quê?
Foi só Carolina falar na vocação de arquiteta,
arraigada desde criança, que Priscilla logo se mostrou
interessadíssima. Estimulada pela atenção da
ex-amiga (e pela caipirinha que Priscilla fez chegar
à mesa), Carolina começou a falar nos sonhos e nas
frustrações da carreira de arquiteta. E mesmo depois
que a caipirinha acabou e que escolheram o que
iam comer, Carolina, puxada pelas perguntas cada
226 Lygia Bojunga

vez mais interessadas da Priscilla, foi detalhando


sonhos, projetos e desilusões. Perguntas e respostas
só ganharam uma pausa quando chegou o prato que
Carolina escolheu: uma lasanha.
A lasanha ocupava o centro de um prato grande e
oval; do lado esquerdo, mais como decoração do que
como acompanhamento, folhas de alface, lisa, crespa
e roxa, formavam uma flor; o miolo da flor era uma
ameixa seca.
Foi só olhar pra ameixa que Carolina emudeceu. E
ficou um tempo parada, só olhando pra ameixa e mais
nada. Quando afinal levantou o olho do prato, meio
que se surpreendeu com a expressão de intriga que viu
no rosto da Priscilla. Voltou a pousar o olho no prato.
E as duas começaram a comer em silêncio.
Lá pelas tantas a Priscilla reclamou:
– Mas conta mais, Carolina!
– Contar o quê?
– Ora! Tudo que você estava me contando que fez
e que sonhou desde aquele dia em que brigou comigo.
– Mas eu não briguei com você, Priscilla.
– Ué: eu me lembro que no dia seguinte do meu
aniversário eu cheguei na escola e você mal me olhou.
– Carolina fez menção de retrucar, mas Priscilla
continuou: – E, no outro dia, menos ainda. – Riu.
Retratos de Carolina 227

– Aí eu quis mostrar pra você que eu não estava me


incomodando com a tua zanga e fui eu que não te
olhei mais. Bom, e aí foi aquela reviravolta na minha
vida: saiu a nomeação do meu pai pro Hospital de
Cirurgia Plástica em Washington, minha mãe recebeu
uma proposta pra cantar no Metropolitan, ficou
num alvoroço medonho, fizeram as malas correndo,
resolveram que eu era muito pequena pra ficar com
os meus irmãos, quando eu vi... estava chegando
em Nova York. E pronto: ficamos morando lá nos
Estados Unidos. Mas chão da gente é chão da gente,
não é? No fim de cinco anos tava todo mundo louco
pra voltar. Começando por meu pai, que resolveu
abrir uma clínica em São Paulo; depois em Belo
Horizonte; depois em Curitiba; ia de uma pra outra,
operava noite e dia, já tava querendo até operar dentro
do jatinho que levava ele pra cá e pra lá. Funcionava
em ritmo frenético; foi desaprendendo o resto da
vida, só sabia falar de nariz, orelha, peito e ruga
que era assim e ficou assado. – Caiu na gargalhada.
Mastigou uma garfada e, de repente, num tom sério,
quase solene: – Antes tarde do que nunca: queria te
pedir desculpas de ter chamado a tua mãe de puta.
– E vendo uma expressão de total incompreensão no
rosto de Carolina: – Naquele dia. Dos meus sete anos.
228 Lygia Bojunga

Você desabafando comigo toda dor de uma surra que


a tua mãe tinha te dado com o chinelo do teu pai,
lembra? e eu ali, não só morta de impaciência de ficar
te ouvindo, como ainda acabo chamando a tua mãe de
puta. Você tinha mesmo que se magoar comigo, não
é, Carolina. Você era tão sensível. Era, não: eu sinto
que você continua igualzinha. Então... com toda a
sinceridade, aqui fica o meu pedido de desculpas.
O olho de Carolina foi descendo devagar pro
prato. Mas era possível? Era possível que a Priscilla
tivesse achado... mesmo... que esse tinha sido o motivo
da mágoa? Era possível que... até hoje ela achasse?
Devagar, o olho foi voltando pra Priscilla.
– Sabe que eu nunca tinha pensado nisso,
Priscilla?
– Nisso o quê?
– Que você pudesse achar que a minha mágoa
tinha sido por causa disso.
Silêncio. As duas se olhando.
– Mas não foi não?
– Não, claro que não.
– Mas... mas foi por que então?
Será que era de verdade essa cara de espanto que a
Priscilla mostrava? Será que ela não estava
representando?
Retratos de Carolina 229

– Foi por quê, Carolina??


– Foi por causa do caroço da ameixa.
Pausa.
– Caroço?
– Priscilla, você está bem lembrada daquele dia?
– Estou. Quer dizer, acho que estou. Faz tanto
tempo, não é?
– O caroço da ameixa. As ameixas que vinham no
bolo. Três caroços estavam marcados pros três
prêmios. A boneca maravilhosa, do tamanho da gente.
A espingarda de ar comprimido. O Pet.
– Pet?
– O pássaro preso na gaiola de bambu, lembra?
– Ah, lembro, lembro.
– Eu ganhei a boneca: o caroço da ameixa que eu
mastiguei tava marcado com o número um. Mas
você fez uma “mágica”, Priscilla: transformou o meu
caroço de número um num caroço de número três, e
eu fiquei com o Pet. Pouco depois você fez a segunda
“mágica”: tirou do bolso um caroço marcado com o
número um, fazendo todo mundo acreditar que você
tinha tirado ele da boca. E ganhou a boneca. Eu nunca
entendi o porquê dessa traição: você tinha todas as
bonecas que queria... – Baixou o olho pro prato e
recomeçou a comer devagar.
230 Lygia Bojunga

Durante um tempo bem grande as duas ficaram


em silêncio.
Foi Carolina que acabou quebrando a pausa:
– Anos atrás eu tive um sonho que me deixou uma
impressão muito forte.
– Conta.
– Não tem muito que contar: foi um sonho
curto (embora me desse a impressão de que tinha
sido supercomprido). Ainda há pouco você disse
que se lembrava do Pet, o tal pássaro-prêmio do
bolo do teu aniversário... – Notou que a Priscilla
desviava o olhar e a fisionomia pegava um ar um
pouquinho... impaciente? contrariado? – Mas tocou
a fala pra frente: – No meu sonho eu vi a gaiola
dele, não sei se você lembra, uma gaiola grande, toda
feita de...
– Lembro, lembro.
– No sonho, a gaiola estava vazia e a porta aberta;
e eu acordei com a certeza de que eu tinha aberto a
gaiola pro Pet ir embora daquela prisão.
Priscilla ficou esperando.
– Ele... o Pet... fugiu mesmo, Priscilla? naquele
dia? no dia da tua festa? a porta estava mesmo aberta?
– Estava. Lembro que, no fim da festa, o
jardineiro trouxe a gaiola vazia. De porta aberta. Disse
Retratos de Carolina 231

que tinha ido recolher um guarda-sol e viu a gaiola


escondida atrás de uma planta.
– E aí?
– Aí a minha mãe quis te avisar, mas eu falei que
na certa você não estava a fim do prêmio, tinha
soltado o pássaro e largado a gaiola pra lá. E ficou
tudo por isso mesmo.
Carolina ficou um momento olhando pra
Priscilla. Depois resolveu desconversar. Meio que
suspirou:
– Então eu sonhei certo: que bom. – Olhou
pro relógio: – Xi! Tenho que voltar pro trabalho.
Voltar, não: eu nem fui de manhã, mas...
– Pera aí, pera aí, Carolina, eu quero te contar
uma ideia que eu tive ainda agorinha mesmo. Pode
te interessar. Pode, não: vai te interessar, eu tenho
certeza. Mas antes deixa eu pedir um cafezinho
pra gente. Ei! Amigo! Dois expressos, por favor.
No capricho. A ideia é a seguinte, Carolina: a
gente tá procurando um arquiteto. A gente sou
eu. Quer dizer, eu e o Nando. O Nando é o meu
marido. Incorporador imobiliário; vive às voltas
com construção de prédios; tá sempre metido com
arquitetos...
Carolina se endireitou na cadeira.
232 Lygia Bojunga

– ...e joga no teu time: fissurado em arquitetura.


Mas, no momento, a gente quer um determinado
arquiteto. Não é pro Nando, não, é pra mim; quer
dizer, pra fundação do papai; quer dizer, minha: eu
quero a fundação pela fundação, e o papai só quer a
fundação pra impressionar o pessoal lá de cima. Mas
eu e o Nando não estamos a fim de nenhum arquiteto
já famoso, que vai logo cobrar um monte; a gente
resolveu procurar um cara de talento mas ainda não
conhecido. Por que não uma cara? você?
Carolina ficou imóvel: será que ela tinha
escutado bem?
– Mas... Priscilla... você, vocês não conhecem nada
das minhas ideias, do meu trabalho...
– Mas é exatamente isso que eu pensei te propor:
conhecer; marcar um encontro de nós três, você, Nando
e eu (ele tá sempre atrás de novos talentos) e aí você
nos mostra projetos de tudo que você fez e gostou, de
tudo que você não fez e gostaria de fazer. Se bater com
a gente, eu te dou o projeto: você planeja tudinho que
eu quero enfiar lá naquele prédio. A fundação começou
a engatinhar numa casa precaríssima lá no Catete, mas
que tinha um terrenão. Tinha, não: tem. O prédio,
além de precário, é medonhento: já convenci o papai a
implodir o monstrinho e executar um projeto pra valer.
Retratos de Carolina 233

Na imaginação de Carolina saltaram colunas e


telhados, rampas e degraus.
– Tem espaço pra ter lá-fora também? um jardim,
quero dizer.
– Tô te dizendo: é um terrenão.
E da cabeça de Carolina já brotaram arbustos e
árvores, plantas rasteiras, trepadeiras em flor.
– Teu café vai esfriar.
A mão da Carolina até tremeu um bocadinho
quando pegou a xícara.
– Me dá teu telefone. Vou falar com o Nando, ver
o dia que é bom pra ele, e depois te dou um toque
pra marcar nosso encontro.

Parei de escrever; olhei pra janela: o sol estava


se pondo lá no mar: hora pra andar na areia, o pé
recebendo a onda que termina, o olho flanando na
vastidão do céu ainda incendiado de tudo que é
vermelho e amarelo que vão pintando o fim da tarde.
Mas antes de sair imitei Carolina: deixei meu
caderno bem aberto no Carolina aos vinte e
nove anos e escrevi um bilhete pra ela, dizendo:
“Gostaria de ouvir tua opinião sobre o teu novo
234 Lygia Bojunga

retrato”, e saí pra curtir o escoar espichado dessas


tardes de verão.
Estava já no meu caminho de volta quando vi
Carolina correndo ao meu encontro. Chegou rindo.
Me abraçou e me puxou pra sentar na areia, ali mesmo
onde a onda vem morrer. Eu estava curiosa:
– Então? gostou do seu almoço com a Priscilla?
– Puxa! você me pegou de surpresa: nunca na
vida eu pensei que ia me encontrar outra vez com a
Priscilla. E vou te contar: quando o meu olho bateu no
dela, lá no metrô e, devagarinho-devagarinho, o olho-
da-Priscilla-de-sete-anos foi abrindo caminho na minha
memória, olha! foi mesmo interessante a gente se ver e
se sentir assim: transformada pelo tempo.
É: isso foi legal.
– E... o que é que não foi legal?
– Bom... tem uma coisa que não me caiu bem lá
no almoço.
–?
– Eu fiquei sem saber se a Priscilla tava sendo
sincera quando disse que eu tinha me magoado com
ela porque ela chamou a mamãe de puta. E até agora
eu tô sem entender porque que ela não disse nada,
ab-so-lu-ta-men-te nada quando eu falei da traição do
caroço de ameixa.
Retratos de Carolina 235

– É verdade.
– É verdade o quê?
– Foi mesmo muito desconcertante aquela atitude
da Priscilla. A gente fica sem saber, não é? se ela estava
fingindo, se ela ficou surpresa, se ela nunca imaginou
que você tivesse percebido a trapaça, se ela estava
arrependida, se ela estava o quê.
– E afinal?
– Afinal o quê?
– Ela estava fingindo?
– Ah, Carolina, isso eu não sei.
Carolina ficou me olhando, feito coisa que eu
estava brincando.
– Não sabe?
Fiz que não.
– Como, não sabe?
– Não sei, ué.
– Mas você tem que saber!
– Mas eu não sei, o que que eu posso fazer?
Carolina não gostou:
– Ah, essa não! Se você não sabe, quem é que vai
saber?
Espichei o queixo, levantei o ombro.
Carolina ainda gostou menos. Levantou a voz:
– Mas isso não pode ser! Você tem que saber.
236 Lygia Bojunga

Me impacientei:
– Mas que mania vocês todos têm de que a gente
tem que saber tintim por tintim de vocês. Desde
quando alguém sabe tintim por tintim de um outro
alguém?!
O olho de Carolina me abandonou, foi pra alto-
mar. Notei que eu tinha deixado ela meio emburrada.
Já-já vai passar, eu pensei. Esperei; e depois perguntei:
– Mas, fora essa incerteza, você ficou satisfeita
com esse teu novo retrato?
– Ainda não acabou, não é?
– Falta pouco.
– Pouco? A Priscilla ainda nem me telefonou pra
marcar o tal encontro...
– Ah, mas é um telefonema muito rápido: só pra
dizer que ela e o Nando tão te esperando no sábado:
reservaram a tarde toda pra você.
– E o que que vai acontecer no sábado?
– Você vai levar as tuas melhores plantas, os teus
melhores projetos (desde mocinha que você vive às
voltas com isso, não é), vai expor pra eles as tuas
melhores ideias, eles vão ficar entusiasmadíssimos
(porque talento a gente já sabe que você tem...), e a
Priscilla vai te contratar pro projeto da fundação. Não
é maravilha?
Retratos de Carolina 237

Carolina ficou me olhando. Agora tinha um


sorriso gostoso no olhar dela.
– Ah, isso é ótimo. E depois?
– Depois o quê?
– E depois do encontro, o que que vai acontecer?
– Puxa, Carolina, você é mesmo insaciável, hein?
Então não chega? Não deu pra ver que essa é a chance
profissional que você estava esperando? Ainda mais
com o tal do Nando sempre às voltas com novos
empreendimentos, superdisposto a dar um empurrão
em novos talentos (incluindo você), meu deus,
que chance maior que você quer, Carolina? é claro que
agora você vai deslanchar.
– Calma, calma, eu não tô reclamando, eu tô
achando superlegal, só que...
– Só que... o quê?
– Só que... já que você tá me retratando agora de
um jeito menos frustrante, mais... mais positivo, não
é? não vai te custar continuar nesse caminho, vai?
Me deu um cansaço!... uma impaciência!... Mas me
controlei:
– O que que você ainda está querendo, meu bem?
– Ah, você sabe.
– Carolina, você não vai voltar agora pr’aquela
história do Discípulo, vai?
238 Lygia Bojunga

– Vou. Vou, sim.


– Ah, não.
– Ah, vou.
– Escuta aqui, moça, você já acabou com a minha
peça, você já ganhou o retrato positivo que queria,
mas você continua empacada nessa bobagem de viver
uma história de amor com o Discípulo. Você não acha
que está passando um pouco dos limites?
– Mas uma história de amor pra você não custa
nada! num instantinho você faz. Olha aqui, você pega
a Tânia, bota ela numa missão...
– Carolina, vê se entende, filha: a tua história
chegou ao fim. Com esse teu retrato aos vinte e
nove anos eu quis deslanchar a tua profissão, a tua
criatividade, a tua independência econômica e, acima
de tudo, a tua confiança nessa tua mão aí. O resto,
Carolina, inclusive essa tal história de amor que
você tanto quer viver, isso... e o mais... virão como
consequência, pode ter certeza.
– Mas o Discípulo...
– Ele fica na tua fantasia, eu já disse: o papel
dele acabou sendo esse. O que não é nada de fazer
ninguém chorar: quantas coisas, quantos alguéns
ficam morando pra sempre na fantasia da gente?
– Mas sem ele, você...
Retratos de Carolina 239

– Não te preocupa, Carolina, eu já tenho outro


no lugar.
– O quê?
– É.
– No lugar dele?
– É.
– Apareceu quando?
– Ainda há pouco. Assim que eu saquei que o teu
reencontro com a Priscilla vai dar aquele empurrão
pra você criar o que sempre quis criar, eu fiquei
tranquila. E vim andar aqui na praia. E entre ver o
mar e ver o céu, eu vi ele também.
– Ele... quem?
– Ah, minha querida, esse eu não vou te contar.
Senão você ainda me pega ele, me bota ele na tua
fantasia, e aí começa tudo outra vez. – Me levantei.
Ela se levantou também:
– Mas escuta...
– Psiu! – e fiz o gesto de selar a boca com o
dedo.
Ela entendeu. E, por um momento, ficamos nos
olhando.
Intensamente nos olhando.
E aí eu fui me afastando pra duna.
– Espera! – ela gritou.
240 Lygia Bojunga

Mas eu continuei me afastando. Sem querer olhar


pra trás.
Eu não vou mais olhar pra trás.
Eu não vou mais olhar pra trás.
Mas não resisti, acabei me virando: Carolina
continuava no mesmo lugar. A fisionomia dela estava
resignada. Resignada, não: serena. Muito serena.
Respirei aliviada.
Levantei o braço e acenei com a mão.
Esperei.
Sem pressa, mas sem nenhuma hesitação,
ela respondeu ao meu aceno,
me dizendo também:
tchau.
Retratos de Carolina 241
OBRAS DA AUTORA

Os Colegas - 1972
Angélica - 1975
A Bolsa Amarela - 1976
A Casa da Madrinha - 1978
Corda Bamba - 1979
O Sofá Estampado - 1980
Tchau - 1984
O meu Amigo Pintor - 1987
Nós Três - 1987
Livro – um Encontro - 1988
Fazendo Ana Paz - 1991
Paisagem - 1992
Seis Vezes Lucas - 1995
O Abraço - 1995
Feito à Mão - 1996
A Cama - 1999
O Rio e Eu - 1999
Retratos de Carolina - 2002
Aula de Inglês - 2006
Sapato de Salto - 2006
Dos Vinte 1 - 2007
Querida - 2009
Intramuros - 2016
Este livro foi composto na tipologia Centaur, no corpo 13,5.
A capa em Cartão Supremo 250g e
miolo em papel Pólen Bold 90g.
Impresso na Imos Gráfica e Editora Ltda.

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