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M I R C E A E L I A D E

A PROVA DO
L A B I R I N TO

C o n v e r s a ç ões com
CLAUDE-HENRIROCQUET

EDICIONESCRISTIANDAD
L i b e r a l o s L i b r o s

Este livro foi publicado por Pierre Belfond, Paris 1979, com o título L'EPREUVE DU
LABYRINTHE

Traduziu ao espanhol J. VALENTE MALLA

EDIÇÕES CRISTANDADE, S. L.
Madrid 1980
PREFÁCIO
O título deste livro enquadra perfeitamente a sua natureza: A prova do
labirinto. O costume sugere que o confidente escreva o prefácio do diálogo
suscitado pelo jogo de suas perguntas. Posso expor, ao menos, as razões que
me levaram, para lhe fazer perguntas, em torno deste mundo um pouco
legendário: Eliade. Quando tinha vinte anos li na biblioteca do Instituto de
Estudos Políticos, no que por certo não me encontrava encaixado, um
primeiro livro de Mircea Eliade (acredito que era Imagens e símbolos). Os
arquétipos, a magia das ligaduras, os mitos da pérola e da concha, os
batismos e os dilúvios, tudo aquilo me chegou mais a quão fundo a ciência de
meus professores de economia política: ali estavam o sabor e o sentido das
coisas. Anos mais tarde, quando me dedicava a inculcar aos futuros
arquitetos que o espaço do homem só pode medir-se de verdade quando está
orientado conforme os pontos cardeais do coração, não tive melhores aliados
que Bachelard de La Poétique de l'espace e Eliade O sagrado e o profano.
Finalmente, lendo e relendo, como quem passeasse por Siena ou Veneza, os
Fragments d'un Journal —desdobramento de um mundo, presença de um
homem, caminho de uma vida— vi como brilhava, repentina e próxima,
através do edifício dos livros, a labareda de uma personalidade. Agora penso
que me cumpriu um desejo: encontrei ao antepassado mítico, posso dizer que
nos tornamos amigos e que à força de insistência consegui que surgisse no
centro do território da escritura e das idéias —a obra de Eliade— este
microcosmos e este ponto de entrevista que são estas Conversações.
Para entrar neste labirinto e descobrir a unidade de uma obra e uma
vida é boa qualquer porta. A aprendizagem na Índia aos vinte anos e a
proximidade de Jung em «Eranos» vinte anos depois; as profundas raízes
romenas reconhecíveis inclusive nessa maneira de ter o mundo por pátria; o
inventário dos mitos corroborado por sua compreensão; a tarefa do
historiador e a primitiva paixão para inventar a fábula; Nicolás de Cusa e o
Himalaya. Assim se entende por que em Mircea Eliade ressoa com tanta força
e freqüência o tema da coincidentia oppositorum. Teremos que dizer que ao
final todas as coisas convergem em um ponto? Mas bem é que tudo brota da
alma original que, como o grão ou a árvore, atrai para si todos os rostos do
mundo para lhe responder ao lhe interrogar, para enriquecê-lo com sua
presença. Em definitivo, a origem se manifesta por tudo aquilo que se
realizou e se juntou.
Fui ao encontro de um homem cuja obra tinha iluminado minha
adolescência e me encontrei com um pensador atual. Eliade jamais incorreu
no engano de pretender que as ciências do homem tomem como modelo as
da natureza. Jamais esqueceu que, tratando-se das coisas humanas, é preciso
as compreender primeiro para as entender, e que quem expõe interrogantes
não pode sentir-se alheio ao que é interrogado. Jamais experimentou a
sedução do freudismo, do marxismo, do estruturalismo ou, melhor diríamos,
dessa mixórdia de dogma e moda que designamos com tais termos. Em uma
palavra, nunca esqueceu o lugar irredutível da interpretação, o desejo
inextinguível de sentido, a palavra filosófica. Mas precisemos: esta atualidade
de Eliade não é a das revistas. Ninguém sonhou sequer ver nele a um
precursor dos peregrinos californianos ao Katmandú, ninguém pretenderia
descobrir nele um «novo filósofo» inesperado. Se Mircea Eliade for moderno, o
é por ter compreendido já faz meio século que a «crise do homem» é em
realidade uma «crise do homem ocidental», que é preciso entendê-la e
superá-la admitindo as raízes —arcaicas, selvagens, familiares— da humana
condição.
Mircea Eliade, «historiador das religiões»... Esta maneira tão oficial de
lhe definir entranha o risco de lhe desconhecer. Ao menos, entendamos que
história é memória e recordemos também que toda memória é um presente. E
que para Mircea Eliade, a pedra de toque da religiosidade é o sagrado, que
quer dizer encontro ou pressentimento da realidade. Tanto a arte como a
religião se deixam imantar por essa realidade. Mas, no que
fundamentaríamos a diferença entre um e outro? Acredito que captaremos
perfeitamente o pensamento de Eliade se cairmos em conta do muito que
responde ao de Malraux. Se Malraux vir na arte a moeda do absoluto, quer
dizer, uma forma do espírito religioso, Eliade considera os mitos e os ritos do
homem arcaico —sua religião— como outras tantas obras de arte, umas obras
de arte verdadeiramente Mestras. Mas, estas duas almas têm em comum o ter
descoberto o valor imprescritível da imaginação e o fato de que não há outro
meio para reconhecer os conteúdos da imaginação hoje abandonados ou
estranhos, a não ser propondo aos homens, sempre imprevisíveis, sua
recreação. Nem o desejo de saber nem a atenção do filósofo parecem ser o
âmbito essencial de Eliade, mas sim, melhor, a fonte do poema que
transfigura a vida mortal e nos enche de esperança.

Claude-Henri Rocquet

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O SENTIDO DAS ORIGENS

O NOME E A ORIGEM
Claude-Henri Rocquet: —Mircea Eliade é um nome muito belo...

Mircea Eliade: —Por que? Eliade: hélio; e Mircea: Mir, raiz eslava que quer
dizer paz...

—... e mundo.

—Sim, mundo também, cosmos.

—Não pensava precisamente no significado, porém, na musicalidade.

—Eliade é de origem grega e remete sem dúvida a hélio. Em princípio se


escrevia Héliade. Era um jogo com hélio e hellade: sol e grego... Mas, não é o
sobrenome de meu pai. Meu avô levava o da Ieremia. Mas, resulta que na
Romênia, quando um indivíduo é um pouco preguiçoso, muito lento ou
vacilante, recorda-lhe o provérbio: «É como Ieremia, que não era capaz de
fazer sair sua carreta!» A meu pai o repetiam no colégio. Quando foi maior de
idade, decidiu trocar de sobrenome. Escolheu este, Eliade, porque assim se
chamava um escritor muito conhecido do século XIX: Eliade Radulescu. Por
isso começou a chamar-se «Eliade». Eu o agradeço, porque prefiro Eliade a
Ieremia. Eu gosto de meu sobrenome.

—Quem leu os Fragmentos de um jornal conhecem já um pouco ao homem Mircea


Eliade e as linhas mestras de sua vida. Mas esse Jornal se inicia em Paris o ano 1945,
quando tinha quarenta anos. Antes vivera na Romênia, na Índia, em Lisboa, em
Londres. Era já um escritor célebre na Romênia e um «orientalista». A tudo isto faz
alusão o Jornal. Mas, nada sabemos dos anos que precedem sua chegada à Paris e
menos ainda dos primeiros anos de sua vida.

—Pois bem, nasci em 9 de março de 1907, um mês terrível na história da


Romênia, quando se produziu a revolta dos camponeses em todas as
províncias. No liceu me diziam sempre: «Ah, você nasceu em meio da revolta
dos camponeses!» Meu pai era militar, como meu irmão. Era capitão. Em
Bucareste fui à escola primária, na rua Mántuleasa, a mesma escola que
evoquei na Strada Mántuleasa —em francês, Le Vieil Homme et l'Officier—.
Logo assisti ao liceu Spiru-Haret. Um bom liceu ao que se deu o nome de
Jules Ferry romeno.

—Seu pai era oficial. Mas, como era sua família?


— Eu me considero como uma síntese: meu pai era moldávio e minha mãe
olteniana. Na cultura romena, Moldávia representa o lado sentimental, a
melancolia, o interesse pela filosofia, pela poesia e uma certa passividade ante
a vida. Interessa menos a política que os programas políticos e as revoluções
no papel. De meu pai e de meu avô, um camponês, herdei esta tradição
moldávia. Estou orgulhoso de poder dizer que sou a terceira geração que
levou sapatos, porque meu bisavô andava descalço ou com opinci, uma
espécie de sandálias. Para o inverno havia umas enormes botas. Uma
expressão romena dizia: «Segunda, terceira ou quarta geração... de sapatos».
Eu sou a terceira geração... Desta herança moldávia vem minha tendência à
melancolia, a poesia, a metafísica, digamos que de noite».
Minha mãe, pelo contrário, procede de uma família de Olt, a província
ocidental, perto da Iogoslávia. Os oltenianos são gente ambiciosa, enérgica;
apaixonam-se pelos cavalos e não são unicamente camponeses, a não ser
além haïduks: dedicam-se ao comércio, vendem cavalos (às vezes os roubam!).
É a província mais ativa, a mais entusiasta, a mais brutal às vezes. Justamente
o contrário dos moldávios. Meus pais se conheceram em Bucareste. Quando
caí em conta de minha herança, senti-me muito feliz. Como todo mundo,
como todos os adolescentes, tive minhas crises de desânimo, de melancolia,
que às vezes chegavam quase à depressão nervosa: a herança moldávia. Ao
mesmo tempo sentia em mim umas enormes reserva de energia. Dizia-me
então: isto vem de minha mãe. Muito devo aos dois. Aos treze anos era scout
e deu-me permissão para passar as férias na montanha, em Cárpatos, ou a
bordo de um navio no Danúbio, no delta, no Mar Negro. Minha família
aceitava tudo, especialmente minha mãe. Aos vinte e um anos disse: parto-
me à Índia. Éramos uma família da pequena burguesia, mas meus pais
acharam aquilo normal. Estávamos em 1928 e alguns grandes sanscritistas
ainda não conheciam a Índia. Acredito que Louis Renou não fez sua primeira
viagem até os trinta e cinco anos. Eu o fiz aos vinte... Minha família permitiu-
me isso tudo: ir à Itália, comprar toda classe de livros, estudar hebreu, persa.
Desfrutava de uma grande liberdade.

—Família da pequena burguesia, mas que demonstrava um certo gosto pelas coisas do
espírito. Não diríamos melhor família de «pessoas cultivadas»?

—Certo, despretensioso de uma grande cultura, mas ao mesmo tempo sem a


opacidade, digamos, da pequena burguesia.

—Era filho único?

—Somos três irmãos. Meu irmão nasceu dois anos antes que eu e minha irmã
quatro anos mais tarde. Foi uma grande sorte vir entre um e outra. Porque,
bem entendido, o preferido durante anos foi meu irmão, o filho maior e logo,
foi minha irmã, a pequena. Não poderia dizer que vivesse com escassez de
carinho, mas nunca me senti arrasado por um excesso de carinho paterno ou
materno. Foi uma grande sorte. E além disso tive a vantagem de contar com
um amigo e mais tarde com uma amiga: minha irmã e meu irmão.

—A imagem que de tudo isto se desprende é a de um homem contente de seu


nascimento e de sua origem...

—Certo. Não me recordo lamentar ou protestar enquanto era adolescente.


Mas não era rico, não tinha dinheiro suficiente para comprar livros. Minha
mãe dava-me algo de suas pequenas economias, ou quando vendia alguma
coisa; mais tarde chegamos inclusive a alugar uma parte da casa. Não era
rico, mas nunca me queixava. Estava em paz com minha situação humana,
social e familiar.

O DRAGÃO E O PARAÍSO
—Que imagens lhe vêm à memória de sua primeira infância?

—A primeira imagem... Tinha eu dois anos, dois anos e meio. Ocorreu em um


bosque. Encontrava-me ali e olhava. Minha mãe perdera-me de vista.
Tínhamos ido ali lanchar. Perdi-me ao afastar-me uns quantos metros. E de
repente descubro diante de mim um enorme e esplêndido lagarto azul. Fiquei
maravilhado... Não sentia medo, a não ser fascinação ante aquele animal
enorme e azul. Sentia os batimentos do coração, de meu coração, pulsados de
entusiasmo e temor, mas ao mesmo tempo lia o medo nos olhos do lagarto.
Via pulsar seu coração. Durante muitos anos recordei esta imagem.
Em outra ocasião, quase à mesma idade, pois tenho a lembrança que
ainda engatinhava, a coisa ocorreu em nossa casa. Havia nela um salão ao
que não me estava permitido entrar. Acredito além, que a porta estava
sempre fechada com chave. Um dia, na hora da sesta, pois era verão, por
volta das quatro, minha família estava ausente, meu pai no quartel, minha
mãe em casa de uma vizinha... Aproximo-me, faço um intento e a porta se
abre. Apareço, entro... Aquilo foi para mim uma experiência extraordinária:
as janelas tinham as persianas verdes; como era verão, toda a habitação era de
cor verde. É curioso, senti-me como dentro de um grão de uva. Estava
fascinado pela cor verde, verde dourado, olhava em torno e era
verdadeiramente um espaço jamais conhecido até então, um mundo
completamente distinto. Aquela foi a única vez. No dia seguinte tratei de
abrir a porta, mas já estava fechada.
—Sabe por que motivo lhe estava proibido aquele salão?

—Havia ali muitas prateleiras repletas de objetos curiosos. Além disso, minha
mãe, junto com outras senhoras da cidade, organizava festas infantis com
tômbola. À espera da festa, depositavam-se naquele salão os prêmios da
tômbola. Minha mãe, com toda razão, não queria que seus filhos vissem
aquela enorme quantidade de brinquedos.

—Viu aqueles brinquedos ao entrar?

—Sim, mas já os conhecia, tinha visto minha mãe levando-os ali. Não foi
aquilo o que me interessou, a não ser a cor. Era, verdadeiramente, como estar
dentro de um grão de uva. Fazia muito calor, a luz era extraordinária, mas
filtrada através das persianas. Uma luz verde... De verdade, tive a impressão
de achar-me dentro de um grão de uva. Leu O bosque proibido? Nessa novela,
Stéphane recorda uma habitação misteriosa de quando era menino, a
habitação «Sambo». Se perguntar o que poderia significar aquilo... Era a
nostalgia de um espaço que tinha conhecido, um espaço que não se parecia
com nenhuma outra habitação. Ao evocar aquela habitação «Sambo»,
evidentemente, pensava em minha própria experiência extraordinária de
penetrar em um espaço completamente distinto.

—Sentia-se um pouco assustado de sua audácia, ou simplesmente, maravilhado?

—Maravilhado.

—Não sentia nenhum temor? Não experimentava a sensação de cometer uma falta
deliciosa?
—Não... O que me atraiu foi a cor, a calma e logo a beleza: aquilo era o salão,
com suas estantes, seus quadros, porém, submerso na cor verde, banhado de
uma luz verde.

—Agora falo com o conhecedor dos mitos, com o hermeneuta, com o amigo de Jung. O
que pensa destes dois acontecimentos?

—Curioso, nunca tratei de interpretá-los! Para mim trata-se de simples


lembranças. Mas, é certo que o encontro com aquele monstro, com aquele
réptil de uma beleza extraordinária, admirável...

—Aquele dragão...

—Sim, é o dragão. Mas, o dragão fêmea, o dragão andrógino, porque era


realmente muito belo. Estava assombrado de sua beleza, daquele azul
extraordinário...

—Apesar de seu medo, teve entretanto presença de ânimo suficiente para captar o
medo do outro.

—É que o via! Via o medo de seus olhos, via-lhe cheio de medo ante o
menino. Aquele enorme e muito belo monstro, aquele sáurio tinha medo de
um menino. Fiquei estupefato.

—Diz que o dragão era de uma grande beleza por ser «fêmea, andrógino». Significa
isto que, em seu sentir, a beleza está essencialmente ligada ao feminino?

—Não, entendo que há uma beleza andrógina e uma beleza masculina. Não
posso reduzir a beleza, nem sequer a do corpo humano, à beleza feminina.

—Por que fala de «beleza andrógina» a propósito do lagarto?

—Porque era perfeita. Ali estava tudo: graça e terror, ferocidade e sorriso,
tudo.

—Em seu caso, a palavra «andrógino» não carece de importância. Falou muito do
tema do andrógino.

—Mas, insistindo sempre em que andrógino e hermafrodita não são uma mesma
coisa. No hermafrodita coexistem os dois sexos. Aí estão as estátuas de
homens com seios... O andrógino, por sua parte, representa o ideal da
perfeição: a fusão dos dois sexos. É outra espécie humana, uma espécie
distinta... E acredito que isto é importante. Certamente, os dois, o
hermafrodita e o andrógino existem na cultura não só européia, mas também
universal. Por minha parte, sinto-me atraído pelo tipo do andrógino no que
vejo uma perfeição dificilmente realizável, ou possivelmente, inexeqüível nos
dois sexos separados.

—Penso agora em certa oposição que descobre a análise «estrutural» entre o bestial e o
divino na Grécia arcaica: Admitiria que o hermafrodita se situa do lado do
monstruoso e o andrógino do lado do divino?

—Não, pois não acredito que o hermafrodita represente uma forma


monstruosa. Trata-se de um esforço desesperado para alcançar a totalização.
Mas não é a fusão, não é a unidade.
—Que sentido dá à habitação grão de uva? Sabe por que conservou tão viva essa
lembrança?

—O que me impressionou foi a atmosfera, uma atmosfera paradisíaca, aquele


verde, aquele verde dourado. E depois, a calma, uma calma absoluta. E o
penetrar naquela zona, naquele espaço sagrado. Digo «sagrado» porque
aquele espaço era de uma qualidade completamente distinta; não era um
ambiente profano, cotidiano. Não era meu universo de todos os dias, com
meu pai, minha mãe, meu irmão, o pátio, a casa... Não, era algo
completamente distinto. Algo paradisíaco. Um lugar proibido até então e que
seguiria proibido depois,... Em minha lembrança, aquilo foi algo
verdadeiramente excepcional. Mais tarde chamei «paradisíaco» àquele lugar,
quando aprendi o que significava essa palavra. Não foi uma experiência
religiosa, mas compreendi que me encontrava em um espaço completamente
distinto e que estava vivendo algo de todo diferente. A prova é que essa
lembrança me obcecou.

—Um espaço completamente distinto, verde ou verde e ouro; um lugar sagrado,


proibido (mas de forma que não houve transgressão, não é assim?); imagens
realmente paradisíacas: o verde, original, o ouro, a esfericidade do lugar, aquela luz.
Como se em sua primeira infância tivesse vivido um momento de paraíso, digamos de
Éden, o Paraíso original.

—Sim, assim é.

—Mas, através desse completamente distinto, ouço ressonar notoriamente o ganz


andere com que Otto define o sagrado. E ao mesmo tempo advirto que essa imagem
de sua infância é uma das que mais tarde, nos mitos, teriam que fascinar e absorver a
Mircea Eliade. Qualquer um que lera seus livros, ao escutar este recordo sem saber
que é dele, não deixaria de lhe recordar. Não será estas grandes experiências do dragão
e da estadia fechada e luminosa orientaram profundamente sua vida?

—Quem sabe... Conscientemente, sei que leituras, durante minha


adolescência, que descobrimentos despertaram em mim o interesse pelas
religiões e os mitos. Entretanto, não posso saber em que medida essas
experiências da infância determinaram minha vida.

—Em O jardim das delícias de Bosch há seres que vivem no interior de umas
frutas...

—Verdadeiramente, eu não tinha a sensação de me achar dentro de uma fruta


enorme. Todavia, não podia comparar a luz verde, dourada, a não ser com a
que se transluz através de um grão de uva. Não era a idéia da fruta, de estar
dentro de uma fruta, a não ser a de me achar em um espaço, certamente
paradisíaco. É a experiência de uma luz.

«COMO DESCOBRI A PEDRA FILOSOFAL»


—Sua primeira escola foi a da rua Mántuleasa... Que lembranças guarda dela?

—O descobrimento da leitura acima de tudo. Por volta dos dez anos comecei
a ler novelas —novelas policiais—, contos, em resumo, tudo o que se costuma
a ler aos dez anos e um pouco mais. Alexandre Dumas traduzido ao romeno,
por exemplo.

—Ainda não escrevia nada?

—Comecei de verdade a escrever na primeira classe do liceu.

—Sei que, por então, apaixonava-lhe a ciência.

—As ciências naturais, mas não a matemática. Comparava-me com Goethe...


Goethe, que não podia sofrer a matemática. Como ele, também sentia paixão
pelas ciências naturais. Comecei pela zoologia, mas, interessou-me sobretudo
a entomologia. Escrevi e publiquei artigos sobre os insetos em uma revista, a
«Revista de ciências populares».

—Um jovem autor de doze anos!

—Sim, publiquei meu primeiro artigo quando tinha treze anos. Uma espécie
de conto científico que apresentei em um concurso aberto a todos os alunos
de liceu romenos pela «Revista de ciências populares». Meu pequeno texto
intitulava-se: Como descobri a pedra filosofal. Obtive o primeiro prêmio.

—Acredito que fala desse texto em seu Diário, e diz: «Perdi-o, já não o poderei
encontrar, mas como eu gostaria de relê-lo de novo!» Não pôde encontrá-lo?

—Sim! Em Bucareste, um leitor do Jornal foi à biblioteca da Academia,


encontrou-o e teve a gentileza de copiá-lo e enviar-me. Recordava o tema e o
desenlace, mas não de toda a trama e o estilo. Fiquei assombrado ao
comprovar que a narração era boa. Nada pedante, nem «científica». Era
verdadeiramente, um relato... Tratava-se de um escolar de quatorze anos —
eu mesmo, em realidade— que tem um laboratório e tenta a experiência, pois
está obcecado, como todo mundo, pelo desejo de encontrar algo capaz de
mudar a matéria. Tem um sonho e nesse sonho recebe uma revelação: alguém
mostra-lhe o modo de preparar a pedra. Desperta e ali, em seu crisol,
encontra uma pepita de ouro. Acredita na realidade na transmutação. Mais
tarde se dará conta de que se trata de um bloco de pirita, de um sulfato.

—É o sonho o que leva a pedra filosofal?

—Era um ser que tinha, ao mesmo tempo, aspecto de homem e de animal, um


ser transformado, que me deu em sonhos, a receita. Eu limitei-me a seguir
seu conselho.

—Para que um menino escreva um conto como esse, é preciso que se interesse não só
pelos insetos, mas também além pela química e a alquimia, não é assim?

—Apaixonava-me a zoologia, especialidade «insetos»; também a física em


geral, mas sobretudo a química, e ainda mais a química mineral antes que a
química orgânica. É curioso.

—O sonho, a alquimia, o iniciador quimérico: aí estão já, do primeiro escrito, as


figuras e os temas de Eliade. Quer isso dizer que já da infância sabemos confusamente
quem somos e aonde vamos?

—Não sei... Para mim, a importância desse conto está em que, já dos doze aos
treze anos, via-me trabalhando de maneira, científica, com a matéria. E ao
mesmo tempo, sentia-me atraído pela imaginação literária.

—Essa isso ao que alude quando fala do lado diurno do espírito?

—Do regime diurno do espírito e do regime noturno do espírito.


—A ciência do lado diurno, a poesia do lado da noite.

—Sim. A imaginação literária que é também a imaginação mítica e que


descobre as grandes estrutura da metafísica.
Noturno, diurno, os dois... A coincidentia oppositorum. O grande todo. O
Yin e o Yang...

-Há em sua personalidade, por um lado, o homem de ciência e, pelo outro, o escritor.
Mas ambos se encontram no terreno do mito...

—Exatamente. O interesse pelas mitologias e pela estrutura dos mitos é


também o desejo de decifrar a mensagem dessa vida noturna, dessa
criatividade noturna.
A ÁGUA-FURTADA
—Em resumo, que antes de abandonar o liceu já era escritor.

—Em certo sentido, sim, porque não só publicara uma centena de pequenos
artigos na «Revista de ciências populares», mas também, além de alguns
relatos, impressões de viagem pelos Cárpatos, o relato de um périplo pelo
Danúbio e no Mar Negro; finalmente, alguns fragmentos de uma novela, A
novela de um adolescente míope... Novela absolutamente autobiográfica. Igual a
meu personagem, quando sofria alguma crise de melancolia —minha herança
moldávia...— lutava contra essa crise com todo tipo de «técnicas espirituais».
Lera o livro de Payot, L'Education de la volonté, tratava de pô-lo em prática no
liceu, começara o que eu mesmo chamaria mais tarde a «luta contra o sonho».
Queria ganhar tempo. Com efeito, interessava-me não só pelas ciências, mas
também, por outras muitas coisas; descobrira, progressivamente, o
orientalismo, a alquimia, a história das religiões. Li por acaso ao Frazer e Max
Müller; e como aprendera italiano (para ler Papini), descobri aos orientalistas
e historiadores das religiões italianos: Pettazzoni, Buonaiuti, Tucci e outros...
E escrevia artigos sobre seus livros, ou sobre os problemas que tratavam.
Evidentemente, tive uma grande oportunidade para tudo isso: na casa
materna de Bucareste vivia eu em uma água-furtada, mas aquela água-
furtada era completamente independente. Por isso, aos quinze anos podia
receber meus amigos e podia ficar ali durante toda a tarde, ou toda a noite
bebendo café e discutindo. A água-furtada estava isolada, o ruído não
incomodava a ninguém. Quando tomei posse daquela água-furtada, tinha
dezesseis anos. Em princípio tive que compartilhar com meu irmão, mas meu
irmão entrou no liceu militar e eu fiquei como dono único da água-furtada,
duas pequenas habitações maravilhosas. Podia ler impunemente durante
toda a noite... dá-se conta?
Quando se têm dezessete anos, descobre a poesia moderna e tantas
outras coisas, o que mais gosta é de ter uma habitação própria que alguém
possa arrumar, transformar a seu gosto, que deixa de ser algo, simplesmente,
recebido dos pais. Aquele era verdadeiramente meu local. Ali vivia eu, tinha
minha cama, com uma determinado cor. Tinha figuras que recortava e colava
aos muros. Mas, tinha sobretudo meus livros. Mais que um quarto de
trabalho, era um lugar para viver.

—Parece-me que os deuses ou as fadas favoreceram seus primeiros passos.

—Acredito que sim, pois o certo é que tive todas as oportunidades possíveis
até o momento de partir de minha casa.
—Quando entrou na Universidade, como era a atmosfera intelectual, a atmosfera
cultural da Romênia daquela época, quer dizer, de 1920 à 1925?

—Éramos a primeira geração que nascia à cultura, no que então, chamava-se


«a grande Romênia», a que seguiu à guerra de 1914-1918. Primeira geração
sem programa preestabelecido, sem um ideal a realizar. A geração de meu
pai e de meu avô tinham um ideal: reunificar todas as províncias romenas.
Este ideal já estava realizado. Eu tive a sorte de formar parte da primeira
geração romena livre, sem programa. Éramos livres para descobrir não só as
fontes tradicionais, mas também todo o resto. Eu descobri a literatura italiana,
a história das religiões e depois o Oriente. Um de meus amigos descobrira a
literatura americana; outro, a cultura escandinava. Descobrimos Milarepa na
tradução de Jacques Bacot. Tudo era possível, como vê. Preparávamo-nos por
fim, a uma verdadeira abertura.

—Uma abertura para o universal, a Índia presente nos espíritos, Milarepa, ao que lerá
Brancusi...

—Sim,e ao mesmo tempo, pelos anos de 1922 a 1928, dispúnhamo-nos, na


Romênia, a descobrir ao Proust, Valéry e, é óbvio, o surrealismo.

—Mas, como se conjugava este desejo de universalidade com, digamos, um desejo de


chegar às raízes romenas?

—Pressentíamos que uma criação puramente romena resultaria muito difícil


de levar a cabo no clima e nas formas da cultura ocidental que tinham gozado
nas preferências de nossos pais: Anatole France, por exemplo, ou o mesmo
Barres. Sentíamos que quanto tínhamos que dizer nos exigia uma linguagem
distinta da dos grandes autores, os grandes pensadores que tinham
apaixonado à nossos pais e à nossos avós. Sentíamo-nos atraídos pelos
Upanishads, por Milarepa e inclusive por Tagore e Gandhi, pelo Oriente
antigo. E pensávamos que assimilando a mensagem destas culturas arcaicas,
extra-européias, encontraríamos o meio de expressar nossa herança cutural
própria, traco-eslavo-romana; e, ao mesmo tempo, proto-histórica e oriental.
Tínhamos consciência de nossa situação entre o Oriente e Ocidente. Como
sabe, a cultura romena constitui uma espécie de «ponte» entre o Ocidente e
Bizâncio, por uma parte; e o mundo eslavo, o mundo oriental e o mundo
mediterrâneo por outra. A verdade é que até mais tarde não me dava conta
de todas estas virtualidades.

—Evocou o surrealismo, mas não disse nada do dadaismo, nem de Tzara, seu
compatriota...
—Conhecíamo-os, lêramos nas revistas de vanguarda, que nos apaixonavam.
Mas, pessoalmente, não me deixei influenciar pelo dadaismo, nem pelo
surrealismo. Assombrava-me e digamos que admirava sua coragem...
Todavia, eu sentia-me ainda sob o impacto do futurismo, que acabávamos de
descobrir. Estava muito interessado, como sabe, por Papini, o primeiro
Papini, o de antes da conversão, o grande panfletário e autor de Maschilitá, de
Uomo finito, sua autobiografia... Aquilo era para nós a vanguarda. Também
descobri ao Lautréamont, coisa curiosa, através de León Bloy. Lera uma
recopilação de artigos, de panfletos, Belluaires et Porchers, possivelmente...
Havia naquele livro um artigo extraordinário sobre Les Chants de Maldoror,
com extensas entrevistas. Deste modo, descobri Lautréamont, antes que ao
Mallarmé, ou inclusive Rimbaud. Mallarmé e Rimbaud não os li até mais
tarde, na universidade.

—Em vários lugares de seu Diário fala de um certo clima «existencialista» na


Romênia, que precedera inclusive ao existencialismo na França.

—Certo, mas a coisa ocorre um pouco mais tarde, pelos anos de 1933 à 1936.
Entretanto, já da universidade, lera algumas obra menores do Kierkegaard,
em tradução italiana; descobri logo a tradução alemã, quase completa.
Lembro-me escrever em um jornal, «Cuvántul», um artigo intitulado
Panfletista, enamorado e ermitão. Acredito que é o primeiro artigo sobre o
Kierkegaard publicado na Romênia; foi em 1925 ou 1926. Kierkegaard
significou muito para mim, sobretudo como exemplo. E não só por sua vida,
mas também pelo que anunciava, por isso antecipava. Desgraçadamente, é de
uma prolixidade exasperante, por isso, penso que Etudes kierkegaardiennes de
Jean Wahl é possivelmente... o melhor livro de Kierkegaard, pois há nele
muitas entrevistas acertadamente escolhidas, o essencial.

—Na universidade compartilha com os jovens de sua geração determinadas atitudes,


mas, o que é que o afeta mais em particular?

—Em primeiro lugar o orientalismo. Tentei aprender por minha conta o


hebreu, logo o persa. Comprei gramáticas, fiz exercícios... O orientalismo,
mas também, a história das religiões, as mitologias. Ao mesmo tempo, segui
publicando artigos sobre a história da alquimia. E isto é o que me
singularizava dentro de minha geração: eu era o único que se apaixonava, ao
mesmo tempo, pelo Oriente e pela história das religiões. Pelo Oriente antigo
quão mesmo pelo moderno, por Gandhi; quão mesmo por Tagore e
Ramakrishna; por aqueles anos ainda não ouvira falar de Aurobindo Ghose.
Lera, como todos quantos se interessam pela história das religiões, O ramo de
ouro, de Frazer e logo Max Müller. Precisamente, para ler as obras completas
de Frazer comecei a aprender inglês.

—Tratava-se unicamente de um desejo de horizontes culturais novos? Ou


possivelmente, inconscientemente, de uma busca, através da diversidade, do homem
essencial, do homem que poderíamos considerar «paradigmático»?

—Sentia a necessidade de certas fontes desatendidas até meus tempos, umas


fontes que estavam ali, nas bibliotecas, que era possível encontrar nelas mas,
que careciam de atualidade espiritual ou inclusive cultural. Dizia-me mesmo
que o homem, inclusive o homem europeu, não é unicamente o homem de
Kant, de Hegel, ou de Nietzsche. Que na tradição européia e na tradição
romena havia outras fontes mais profundas. Que a Grécia não é, unicamente,
a Grécia dos poetas e dos filósofos admiráveis, a não ser a de Elêusis e do
orfismo, que esta Grécia fundava suas raízes no Mediterrâneo e no Próximo
Oriente antigo. Entretanto, algumas daquelas raízes, igualmente profundas,
já que se afundavam na proto-história, podiam-se encontrar nas tradições
romenas. Era o legado imemorial dos dacios e, antes deles, das populações
neolíticas que habitaram em nosso atual território. Pode ser que não tivesse
consciência de procurar o homem primitivo, mas em todo caso, dava-me
conta da importância que têm certas fontes esquecidas da cultura européia.
Por este motivo, em meu último ano de universidade, comecei a estudar as
correntes hermetistas e «ocultistas» (a Cabala, a alquimia) na filosofia do
Renascimento italiano. Este foi o tema de minha tese.

—Antes de nos ocupar de sua tese, eu gostaria de lhe perguntar pelas razões pessoais
que o levavam a estudo das religiões. As que acaba de expor são de ordem intelectual.
Mas, qual era sua relação interior com a religião?
—Conhecia mal minha própria tradição, a do cristianismo oriental. Minha
família era «religiosa», mas, como sabe, no cristianismo oriental, a religião é
acima de tudo algo que se aprende por costume, que se acostuma pouco, pois
não há catecismo. O que importa é sobretudo a liturgia, a vida litúrgica, os
ritos, os coros, os sacramentos. Eu participava daquela vida religiosa como
todo mundo. Mas aquilo não tinha nenhum valor essencial. Meu interesse ia
por outro lado. Na época, eu estudava filosofia, ao estudar os filósofos, os
grandes filósofos, sentia que algo me faltava. Sentia que não é possível
compreender o destino humano e o modo específico de ser do homem no
universo, sem conhecer as fases arcaicas da experiência religiosa. Ao mesmo
tempo, sentia que me resultaria difícil descobrir essas raízes através de minha
própria tradição religiosa, quer dizer, através da realidade atual de uma
determinada Igreja que, como todas as demais, estava «condicionada» por
uma longa história; por umas instituições cujo significado e formas sucessivas
eu ignorava. Pensava que seria muito difícil descobrir o verdadeiro sentido e
a mensagem do cristianismo através de uma só tradição. Por isso, queria
aprofundar ainda mais.
Primeiro, o Antigo Testamento, logo Mesopotâmia, Egito, o mundo
mediterrâneo e a Índia.

—Mas a tudo isto, nada de inquietação metafísica, nada de crise mística, nada de
dúvidas, nem tampouco uma fé muito viva? Parece liberado de algo que tantos
adolescentes conhecem, a tortura religiosa ou metafísica.

—Certo, não conheci essa grande crise religiosa. É curioso... Não estava
satisfeito, mas não sentia nenhuma dúvida, pois não acreditava muito. Sentia
que, verdadeiramente, o essencial, o que de verdade devia encontrar e
compreender era algo que devia procurar por outro lado e não só em minha
própria tradição. Para me entender, para entender...

—Poderíamos dizer, portanto, que seu caminho é o da gnosis e do jñana ioga?

—Pode ser que sim. Gnosis, jñana ioga...

—Acredito que ambas as coisas são uma mesma.

—Exatamente a mesma. Também, sentia a necessidade de uma técnica, de


uma disciplina, de algo que não encontrava em minha tradição religiosa. O
certo é que não o procurara nela. Muito bem, poderia fazer-me monge,
retirar-me ao Monte Athos e descobrir todas as técnicas yóguicas, por
exemplo, o pranayama...
—O hesicasmo...

—Sim, mas naquela época eu ignorava tudo isto. Sentia, é verdade, a


necessidade da gnosis, mas ao mesmo tempo sentia falta de uma espécie de
técnica, de meditação prática. Ainda não compreendia o valor religioso do
culto dominical. Descobri-o depois de minha volta da Índia!

—Deixamos em suspense sua tese. Qual era exatamente seu tema?

—Era a filosofia italiana desde Marsilio Ficino até Giordano Bruno. Todavia,
interessou-me em especial Ficino, e também Pico de la Mirandola. Fascinava-
me o fato de que através desta filosofia do Renascimento fora redescoberta a
filosofia grega, mas também o fato de que Ficino traduzira ao latim os
manuscritos herméticos, o Corpus hermeticum, comprovados por Cosme de
Médicis. Apaixonava-me igualmente o fato de que Pico conhecia esta tradição
hermética e que estudara o hebreu, não só para melhor entender o Antigo
Testamento, mas também, sobretudo para compreender a Cabala. Via,
portanto, que não se tratava, unicamente, de um descobrimento do
neoplatonismo, mas sim, de um transbordamento da filosofia grega clássica.
O descobrimento do hermetismo implicava uma abertura para o Oriente,
para o Egito e Pérsia.

—Quer isso dizer que era sensível, no Renascimento, a tudo o que este implica de
abertura ao não especificamente grego ou clássico?

—Tinha a impressão de que esse transbordamento revelava-me um espírito


muito mais amplo, muito mais interessante e mais criador que tudo que
aprendera no platonismo clássico redescoberto em Florência.

—Havia uma certa analogia entre aquele Renascimento —o Renascimento dos


cabalistas, diríamos— e quanto estava ocorrendo na Romênia, que supunha uma
aspiração a superar as fronteiras do homem mediterrâneo e a participar de uma
criação cultural nutrida de tradições não européias...

—Uma tradição... não digamos «não européia», a não ser «não clássica», quer
dizer, mais profunda que a herança clássica recebida de nossos antepassados
tracios, dos gregos e os romanos. Mais tarde compreendi que se trata desse
fundo neolítico que é a matriz de todas as culturas urbanas do Próximo
Oriente antigo e do Mediterrâneo.

—«Mais tarde», quer dizer, através do conhecimento da Índia... Entretanto,


assombra-me que entre Pico e Bruno não me diga nada de Nicolas de Cusa.
—Fazia várias viagens à Itália e inclusive passei ali três meses seguidos.
Assim descobri De docta ignorantia e a famosa fórmula da coincidentia
oppositorum que tão reveladora foi para meu próprio pensamento. Entretanto,
não o estudei para minha tese, não pude aprofundar tanto... Em
compensação, quando comecei meus cursos, no ano 1934, em Bucareste,
dediquei um seminário à docta ignorantia. Nicolás de Cusa apaixona-me
ainda.

O RENASCIMENTO E A ÍNDIA
—Mircea Eliade, em 10 de fevereiro de 1949 recebe uma carta de seu «velho Mestre
Pettazzoni», que elogia calorosamente o Tratado de história das religiões, recém
publicado; em sua resposta escreve: «Lembro-me aquelas manhãs de 1925, quando
acabava de descobrir I misteri, e lancei-me à história das religiões com a paixão e a
segurança de um moço de dezoito anos. Lembro-me do verão de 1926, quando, depois
de iniciada minha correspondência com Pettazzoni, recebi como presente Dio, que li
sublinhando, quase uma por uma, todas suas linhas. Recordo-me...».

—Sim, recordo-o... Fui à Itália muitas vezes durante meus tempos de


estudante em Bucareste. A primeira vez fiquei ali cinco ou seis semanas.
Conheci Papini em Florência. Em Roma entrevistei-me com Buonaiuti, o
célebre historiador do cristianismo, diretor de Ricerche religiose. Em Nápoles,
com o Vittorio Macchioro, então diretor do Museu Nacional, grande
classicista e grande especialista em orfismo. Não vi o Pettazzoni naquela
viagem. Conheci-o mais tarde. Porém, mantinha correspondência com ele.

—Não é comum que um homem tão jovem vá visitar os Mestres e que seja recebido
por eles. Todavia, penso que lhe animava a paixão de saber e, em conseqüência, de ir
às fontes mesmas. Daí o bom acolhimento que tinha... O que esperava, por exemplo,
de Macchioro?

—Foi sua tese o que acima de tudo me interessou. Acreditava ter descoberto
as etapas de uma iniciação órfica nas pinturas da Villa dei Misteri de Pompeya.
Acreditava além, que a filosofia de Heráclito se explicava pelo orfismo.
Pensava também, que São Paulo não era tão somente um representante do
judaismo tradicional, mas sim, fora iniciado além nos mistérios órficos e que,
em conseqüência, a cristologia de São Paulo introduzira o orfismo no
cristianismo. Esta hipótese tivera má acolhida, mas, eu tinha vinte anos e
parecia-me apaixonante. Por isso, fui ver Macchioro.
Enquanto isso, eu preparava minha tese, algumas vezes em Bucareste e
outras em Roma. Mais em Roma, é verdade, porém, em Bucareste tinha a
maior parte de minha documentação e de minhas notas. Ao mesmo tempo,
que trabalhava em minha tese de licenciatura sobre a filosofia do
Renascimento, nutria meus pensamentos com os historiadores das religiões e
os orientalistas italianos: descobri o orfismo com Macchioro, o Joaquín de
Fiore com Buonaiuti. E lia Dante, ao que Papini (e outros) relacionavam com I
fedeli d'amore. No fundo, estudar aos filósofos do Renascimento e a história
das religiões devia ser a mesma coisa.

—Imagino que não era unicamente a leitura de Dante o que lhe interessava em
Papini, mas o homem, o escritor tumultuoso.

—Já publicara vários artigos sobre Papini, escrevera-lhe e ele respondera-me


com uma extensa carta que começava assim: «Querido amigo
desconhecido...» Lamentava que me dedicasse a estudar a filosofia, «a ciência
mais vazia inventada pelo homem...». Eu anunciara-lhe minha visita e ele
recebeu-me em um pequeno quarto de trabalho lotado de livros. Esperava
ver-me ante um «monstro de fealdade», tal como ele mesmo descrevera-se
em Un uomo finito. Mas, apesar de sua palidez e de seus «dentes de canibal»,
Papini pareceu-me majestoso e quase belo. Fumava um cigarro atrás de
outro, ao mesmo tempo que me perguntava por meus autores favoritos e
ensinava-me os livros de alguns autores italianos contemporâneos que eu
desconhecia. Por minha parte, fiz-lhe numerosas perguntas a propósito de
seu catolicismo intransigente, intolerante, quase fanático (ele admirava
enormemente à León Bloy); sobre o Dizionario dell'uomo selvatico, abandonado
depois da publicação do primeiro tomo; e sobre seus projetos literários, em
primeiro lugar sobre um livro que anunciara várias vezes, Rapporto sugli
uomini. Aquela mesma tarde redigi uma entrevista que publicaria logo em
uma revista de Bucareste.
Voltei a ver-lhe, exatamente, um quarto de século depois, em maio de
1953. Estava quase cego e acabava de interromper Julgamento universal, seu
opus magnum, para escrever O diabo. Também desta vez publiquei uma longa
entrevista em Les Nouvelles Littéraires, coisa que lhe fez feliz, pois se dava
conta de que perdera sua popularidade na França. Pouco tempo depois, a
cegueira e a paralisia o reduziram à condição de um coveiro em vida.
Sobreviveu pouco mais de um ano, fazendo esforços sobre-humanos, em
umas condições de vida que raiavam com o milagre, para ditar as famosas
Schegge, que publicava duas vezes ao mês o «Corriere della Sera».

—Conheceu Papini em Florência, mas será em Roma onde se decidirá uma grande
parte de seu destino...

—Sim, em Roma, na biblioteca do seminário do professor Giuseppe Tucci,


que por então estava na Índia, descobri um dia o primeiro volume da História
da filosofia da Índia, do célebre Surendranath Dasgupta. No prefácio li a
comemoração de gratidão que Dasgupta dedica a seu protetor o marajá
Chandra Nandy de Kassimbazar. Diz assim: «Este homem ajudou-me a
trabalhar cinco anos na universidade de Cambridge. É um verdadeiro
mecenas. Protege e fomenta a investigação científica e filosófica; sua
generosidade é também famosa em Bengala...». Tive então, uma espécie de
intuição. Escrevi duas cartas imediatamente, uma ao professor Dasgupta, na
universidade de Calcutá, e a outra ao Kassimbazar, ao marajá, em que lhes
dizia: «Preparo nestes momentos minha tese de licenciatura, que apresentarei
em outubro, e minha intenção é estudar a filosofia comparada. Desejaria,
portanto, aprender seriamente o sânscrito e a filosofia hindu, mas sobretudo,
o ioga...». Dasgupta, com efeito, era o grande especialista em ioga clássico;
escrevera dois livros sobre o Patañjali.
Pois bem, dois ou três meses mais tarde, de novo na Romênia, recebi
duas cartas. Uma era de Dasgupta e dizia: «Sim, é uma idéia muito boa. Se de
verdade deseja estudar a filosofia comparada, o melhor será estudar o
sânscrito e a filosofia hindu aqui, na Índia, e não nos grandes centros de
indianismo europeus. E como não disporá de uma ajuda importante para
seus estudos, tratarei de interessar ao marajá...». Com efeito, o marajá me
escrevia: «Sim, muito boa idéia. Venha, concedo-lhe uma ajuda, mas não para
dois anos (...eu indicara dois anos, por discrição). Em dois anos não lhe seria
possível aprender convenientemente o sânscrito e a filosofia hindu. Concedo-
lhe uma ajuda para cinco anos». Deste modo, imediatamente depois da
defesa de minha tese, em novembro de 1928, já licenciado em letras,
especialidade «filosofia», recebi um pouco de dinheiro de meus pais e a
promessa de uma ajuda da universidade de Bucareste, parti de Constanza a
bordo de um navio romeno até Port-Said, e de Port-Said em um navio
japonês até Colombo, e dali, por trem, parti à Calcutá. Fiquei duas semanas
em Madras, onde conheci Dasgupta.

—Uma formosa história, que viria muito bem para terminar um capítulo. Entretanto,
para não deixar nada no tinteiro, a bordo daquele navio, ou às vésperas de sua
partida, quais eram seus sentimentos?

—Dava-me conta do que significava aquela partida e de que então tinha eu


vinte e um anos. Eu era, possivelmente, o primeiro romeno que se decidia
não viajar até a Índia, a não ser a permanecer e trabalhar ali durante cinco
anos. Tinha o sentimento de que aquilo era uma aventura, que resultaria
difícil, mas aquilo me apaixonava. E muito mais, tendo em conta, eu sabia
bem, que ainda não estava formado. Aprendera muito de meus professores
de Bucareste e de meus mestres italianos, historiadores das religiões,
orientalistas, todavia, necessitava uma nova estrutura. Dava-me conta disso.
Ainda não era adulto.
Fiquei dez dias no Egito. Minhas primeiras experiências egípcias...
Todavia, o mais importante foi a travessia. Não tinha muito dinheiro,
esperava a chegada do navio menos caro, um navio japonês no que encontrei
um beliche em terceira classe. Ali comecei a falar inglês pela primeira vez.
Demoramos duas semanas de Port-Said à Colombo. Porém, já no Oceano
Índico comecei a conhecer a Ásia. O descobrimento da ilha de Ceilão foi algo
extraordinário. Vinte e quatro horas antes da chegada notavam-se já os
perfumes das árvores, das flores, uns aromas desconhecidos...
Deste modo cheguei à Colombo.

INTERMÉDIO
—Logo que entrei me falou que a idéia do título que lhe acaba de ocorrer para nossas
Conversações.
—Sim, ocorreu-me esse título como fruto de minha experiência, não do
diálogo, mas sim da gravação, que impõe entre nós, em todo momento, a
presença da «máquina», coisa que para mim deve ser uma prova, uma
verdadeira «prova iniciática» e a qual não estou habituado a tal coisa. Daí o
título de A Prova do Labirinto. Com efeito, por uma parte supõe a prova,
para mim, de ver-me na necessidade de recordar coisas quase esquecidas. E
logo está o fato deste ir e vir; deste começar constantemente de novo, que é
como caminhar por um labirinto. Mas penso que o labirinto é a imagem por
excelência de uma iniciação... Por outro lado, considero que toda existência
humana está constituída por uma série de provas iniciáticas; o homem vai-se
fazendo ao fio de uma série de iniciações conscientes, ou inconscientes. Sim,
acredito que este título expressa perfeitamente o que sinto ante o aparelho.
Mas, ao mesmo tempo, agrada-me porque é uma expressão muito justa,
acredito eu, da condição humana.

— Acho este título excelente... Ao subir pela rue d'Orsel, também vinha pensando no
título para estas Conversações. Acabava de ler algumas páginas de seu Diário e
pensava em Ulisses, no labirinto. Ulisses no labirinto? Possivelmente, um pouco
recarregada esta mitologia. Porém ao tocar a campainha de sua porta e ao receber-me
diz de supetão...

—«Já pensei um título», sim.

—Será uma casualidade?... Em todo caso, prefiro seu título, parece-me definitivo.
Quanto à prova do gravador, já sei que lhe custa muito superar a repugnância que lhe
inspira.

—E me pergunto por que será. Possivelmente, seja a idéia de que quanto digo,
a espontaneidade mesma, fica imediatamente registrada... ou, possivelmente,
melhor, o fato de que haja entre nós um controle ou, melhor dizendo, um
objeto. Um objeto que resulta muito importante no diálogo. É isto, sem
dúvida, é este objeto que se mistura no diálogo e que me paralisa um tanto.

—O que lhe incomoda, possivelmente, seja o desejo de perfeição e o desgosto de


entregar uma palavra inacabada, imperfeita, mas que o aparelho fixará em uma
espécie de falsa perfeição.

—Não, minha impressão é que tudo se deve à presença da «máquina», e que


por isso resulta imperfeita a palavra. Pelo resto, a expressão é como pode
ser... Sei muito bem que em uma conversação, não é possível expressar-se
com a mesma exatidão que em um artigo, ou em um livro... Não, o que me
incomoda é o aparelho, essa presença física desumana.

—Trataremos de esquecê-lo... Apesar de tudo, na fita ficam registradas coisas que


desconhecerá o leitor: o canto dos pássaros entre os ramos das árvores que há no lugar
sobre a qual se abre sua janela, o vôo das pombas que a cruzam para posar-se sobre
uma máscara rodeada de grinaldas, sobre um frontão grego...

—Sim, o teatro de l'Atelier.

—Como chegou a converter-se em inquilino deste piso, nesta praça? Deve-se a uma
eleição premeditada?

—Não, foi pura casualidade, uma feliz casualidade. Procurava onde me


instalar em Paris para passar umas férias. Mas, de repente, afeiçoei-me com
esta praça e este bairro.

—Gosta deste bairro unicamente pela atmosfera que reina nele? Não influiria o fato de
que Charles Dullin...?

—É verdade, a mitologia do bairro... Conhecia-a antes de saber nada desta


casa. Entretanto, acho que a praça é muito bela e mesmo o bairro. Não falo
unicamente das «alturas» de Montmartre, mas também de algumas ruas, não
longe daqui, que eu gosto muito.

—Estamos entre o mercado Saint-Pierre e o Sacré-Coeur.

—O Sacré-Coeur e a praça de Abbesses, que é também muito bela.

—O Sacré-Coeur é um edifício muito denegrido...

—Sei muito bem, pessoalmente, eu não gosto nem de sua arquitetura, nem a
cor de seus muros. Todavia, sua localização é admirável: a perspectiva, o
espaço... É uma montanha, certamente. E está além disso, a história da colina
de Montmartre, que não se pode ignorar. Aí está, e aqui mudou pouco a vida,
felizmente. Estes dias relia os últimos volumes do Journal de Julien Green e
chamou-me atenção a insistência com que Green fala da fealdade progressiva
que está caindo sobre Paris. Cortam-se as árvores, são demolidas certas
mansões magníficas do século XVIII ou o XIX, levantam-se edifícios
modernos, mais cômodos, sem dúvida, mas desprovidos de todo encanto. É
verdade, Paris possuía uma beleza peculiar que está a ponto de desaparecer.
Mas, trata-se de um tema tristemente banal. Não falemos mais disso.
—Quando poderemos ler esse livro ao que se refere em seu Diário em 14 de junho de
1967 e no qual se propõe falar da estrutura dos espaços sagrados; do simbolismo das
moradias, das aldeias e das cidades; dos templos e dos palácios?

—É uma obra escrita, como fruto de seis conferências, pronunciadas em


Princeton, sobre as raízes sagradas da arquitetura e do urbanismo. Nela
volto, mas com um enfoque específico, sobre quanto disse a propósito do
«centro do mundo» e do «espaço sagrado» no Tratado de história das religiões e
em outros lugares. Só ficou por fazer uma seleção das ilustrações. Mas, estou
decidido a terminar esta obra porque os arquitetos me manifestaram que o
esperam com interesse. Alguns escreveram-me que meus livros lhes
esclareceram muitas coisas sobre o sentido de sua profissão.

—Em algum lugar disse antes que o sagrado se caracteriza pelo sentido: orientação e
significação...

—Para a geometria, alto e baixo são idênticos. Entretanto, do ponto de vista


existencial, todos sabemos que subir, ou descer uma escada, não é,
absolutamente, a mesma coisa. Sabemos também que a direita não é quão
mesmo a esquerda. Ao longo dessa obra insisto no simbolismo e nos ritos
relacionados com a experiência das diversas qualidades do espaço: esquerda
e direita, centro, zênite e nadir...

—Mas não está também ligada a arquitetura a temporalidade?

—O simbolismo temporário vai inscrito no simbolismo arquitetônico, ou na


moradia. Na África, algumas tribos costumam orientar as choças de maneira
distinta segundo as estações; e não só a choça, mas também os objetos que se
guardam nela: alguns utensílios, diversas armas. Aí tem um caso exemplar da
inter-relação do simbolismo temporário e o simbolismo espacial. Mas a
tradição arcaica é rica em exemplos similares. Recordará o que diz Marcel
Granet sobre o «espaço orientado» na China antiga.

—Sim, e não é unicamente a casa a que se considera «sagrada», nem o templo, mas
também o território, a terra da pátria, a terra natal...

—Todo país natal constitui uma geografia sagrada. Para quem teve que
abandonar, a cidade da infância e da adolescência converte-se para sempre
em uma cidade mítica. Para mim, Bucareste é o centro de uma mitologia
inesgotável. Através dessa mitologia cheguei a conhecer sua verdadeira
história. E a minha, possivelmente.
A ÍNDIA ESSENCIAL

O APRENDIZ DE SANSCRITISTA
—Em 18 de novembro de 1948 escreve em seu Diário: «Faz vinte anos, por volta das
quinze e trinta horas, conforme acredito, saí da estação do Norte de Bucareste em
direção à Índia. Ainda vejo-me no momento de partir; vejo o Ionel Jianu com o livro
de Jacques Riviére e o pacote de cigarros, seus últimos presentes. Eu levava duas
pequenas malas. O que terá influenciado em mim aquela viagem antes de cumprir os
vinte e dois anos! Como seria minha vida sem a experiência da Índia no começo de
minha juventude? E a segurança que após me acompanha: aconteça o que acontecer,
sempre haverá no Himalaya uma gruta que me espera...». Poderia responder agora a
essa pergunta que então se fez a propósito da influência da Índia em sua vida e em sua
obra? Em que sentido lhe formou a Índia? Este será, se lhe parecer bem, o tema
essencial de nossa conversação de hoje.
Paramos em que Dasgupta lhe esperava em Madras.

—Sim, estava trabalhando ali sobre textos sânscritos, na biblioteca da


Sociedade teosófica, célebre por sua coleção de manuscritos. Ali o conheci e
dedicamo-nos, imediatamente, a preparar minha estadia em Calcutá. Em
1928 era um homem que poderia ter quarenta e cinco anos. Era baixo, forte,
de olhos um pouco inchados, «olhos de batráquio», diríamos; uma voz que
me pareceu, como a dos bengaleses em geral, muito melodiosa. Uma
profunda amizade terminaria por me unir àquele homem, ao qual admirei
muito.

—Suas relações com Dasgupta, foram as que revistam dar-se entre professor e aluno;
as de discípulo e mestre; ou guru?

— Um e outro. Em princípio, eu era o estudante e ele era o professor de corte


universitário, ao estilo ocidental. Foi ele mesmo quem traçou meu programa
de estudos na universidade de Calcutá; ele indicou-me as gramáticas, os
manuais, os dicionários indispensáveis. Também, encarregou-se ele de
buscar-me uma habitação no bairro anglo-hindu. Supôs, com toda razão, que
me resultaria muito difícil viver no primeiro momento como um hindu.
Trabalhava com ele não só na universidade, mas também em sua casa,
no bairro Bhowanipore, o bairro hindu, muito pitoresco, no que Dasgupta
ocupava uma casa admirável. Ao cabo de um ano sugeriu-me a conveniência
de trabalhar com um pandit, que ele mesmo se encarregou de escolher, para
me iniciar na conversação em sânscrito. Dizia-me que mais adiante teria
necessidade de falar em sânscrito, sequer em nível elementar, para conversar
com os panedits, os verdadeiros iogues, os religiosos hindus.
—Em que dificuldades pensava Dasgupta ao assegurar que não lhe seria fácil viver no
primeiro momento ao estilo hindu?

—Dizia que em princípio até mesmo a alimentação puramente hindu era


pouco recomendável. Possivelmente, pensasse também que me resultaria
difícil viver no bairro hindu de Bhowanipore com o traje que eu levava,
muito singelo, mas europeu. Sabia que não me seria possível passar
diretamente, no curso de umas quantas semanas, nem sequer de alguns
meses, da indumentária européia ao dhoti bengalês.

—Por sua parte, sentia desejos de levar a vida cotidiana dos bengaleses, de adotar seus
costumes quanto à alimentação e a vestimenta?

—Sim, mas não em princípio, pois não conhecia ainda nada de tudo aquilo. Ia
ao menos duas vezes por semana à casa de Dasgupta para trabalhar ali.
Pouco a pouco, o ar misterioso daquelas casas enormes com terraços,
rodeadas de palmeiras e de jardins, terminaram por fazer seu efeito.

—Vi essa formosa fotografia que aparecerá nas capas dos «Cahiers de l'Herne». É a
indumentária que levava em Calcutá?

—Não, essa fotografia foi tirada no ashram de Himalaya. A indumentária com


que apareço nela era uma túnica de cor amarela ocre. É a indumentária
própria de um swami, ou um iogue. Em Calcutá levava o dhoti, uma espécie
de larga camisa branca.

—Acredita que a experiência de viver na Índia pode ser distinta vestindo como as
pessoas do país?

—Acredito que se trata de um algo muito importante. Porque de repente,


resulta muito mais cômodo, no clima tropical, levar um dhoti e caminhar com
os pés descalços, ou de sandálias. Logo, chama-se menos a atenção. Como
vivia ao sol, estava tão moreno como os outros, com o resultado de que
passava quase desapercebido. Os meninos já não me gritavam: White monkey!
Era, além disso, uma forma de solidarizar-se com a cultura em que me queria
iniciar. Meu ideal era chegar a falar perfeitamente o bengalês. Nunca o
consegui, mas ao menos o lia. Traduzi alguns poemas de Tagore e inclusive
tentei ler e até traduzir os poetas místicos da Idade Média.
Não eram unicamente os aspectos erudito e filosófico, o ioga e o
sânscrito, os que me interessavam, mas também, a cultura hindu viva.

—Sua relação com a vida hindu não era tão somente a de um intelectual, a não ser a
de toda sua pessoa...

— De toda a pessoa. Entretanto, tenho que frisar que não abandonei a


consciência, digamos a Weltanschauung do homem ocidental. Queria aprender
seriamente o sânscrito à maneira da Índia, mas também, com o método
filosófico próprio do espírito ocidental. Estudar, ao mesmo tempo, com os
recursos do investigador ocidental e de dentro. Jamais renunciei meu
instrumento de conhecimento especificamente ocidental. Trabalhara algo com
o grego, o latim e estudara a filosofia ocidental; não desprezei nada de tudo
isto. Ao adotar o dhoti ou o kutiar, quando estive no Himalaya, não rechacei
minha tradição ocidental. Como vê, também no plano da aprendizagem
reaparece meu sonho de totalizar os contrários.

—Do mesmo modo, que não foi a tortura metafísica o que o levou para o estudo das
religiões, tampouco foi o gosto do exótico, ou o desejo de perder sua identidade o que
lhe conduziu a vestir a túnica amarela dos ascetas. Conservou sua identidade, sua
formação ocidental, em um desejo de aproximar-se da Índia através dessa perspectiva,
para fundir finalmente dois pontos de vista, ou melhor ainda, para organizá-los e
conjuntá-los.

—É a mesma coisa. Estudei profunda, «existencialmente», a cultura indiana.


No início do segundo ano disse-me Dasgupta: «Agora sim, já chegou o
momento, pode viver comigo». Vivi com ele um ano.

—Seu propósito não era unicamente estudar a língua e a cultura indiana, mas
também, o de praticar o ioga. Quer dizer, experimentar em seu próprio corpo e
pessoalmente aquilo de que se falava nos livros.

—Exatamente. Em seguida falaremos da prática que empreendi, vestido com


meu kutiar, no Himalaya. Mas, estando ainda em Calcutá, em casa de
Dasgupta, disse-lhe muitas vezes: «Professor, dê-me algo mais que os textos».
Porém, ele respondia-me sempre: «Espere um pouco, é preciso conhecer de
verdade tudo isto do ponto de vista filológico e filosófico...». Tenha em conta
que mesmo Dasgupta era um historiador da filosofia, formado em
Cambridge, um filósofo, um poeta. Entretanto, pertencia a uma família de
pandits procedente de uma aldeia de Bengala, o que significa que dominava
perfeitamente toda a cultura tradicional de uma aldeia indiana. Dizia-me às
vezes: «Para os europeus, a prática do ioga resulta ainda mais difícil que para
nós, os hindus». Possivelmente, temia as conseqüências. Calcutá é uma
grande cidade e, com efeito, não é prudente praticar o pranayama, o ritmo da
respiração, em uma cidade em que o ar está sempre um tanto poluído. Soube
mais tarde, em Hardwar, nas ladeiras do Himalaya, em uma atmosfera mais
favorável...

—Como trabalhava com Dasgupta? Como aprendeu o sânscrito, primeiro com ele e
logo com o pandit?

—Bem, pelo que se refere ao estudo do sânscrito, apliquei método do


indianista italiano Angelo de Gubernatis, tal como ele mesmo o expõe em
Fibra, sua autobiografia. Consiste em trabalhar doze horas ao dia, com uma
gramática, um dicionário e um texto. É o que ele mesmo fez em Berlim.
Weber, seu professor, disse-lhe: «Gubernatis (era início de verão), no outono
começo meu curso de sânscrito, mas resulta que é o segundo curso, e não é
possível começar de novo só em benefício dele. Será preciso que adiante por
sua conta...». Gubernatis encerrou-se em um refúgio, muito perto de Berlim,
com sua gramática e seu dicionário de sânscrito. Duas vezes por semana,
alguém lhe levava pão, café e leite. Tinha razão, e decidi-me seguir seu
exemplo. Por outro lado, eu fizera já algumas experiências, não tão radicais,
mas, enfim... Quando estudava inglês, por exemplo, trabalhava muitas horas
seguidas. Porém, desta vez, desde o começo, trabalhava doze horas ao dia e
unicamente o sânscrito. Como únicas interrupções permitia-me alguns
passeios, a hora do chá, ou das comidas, que aproveitava para aperfeiçoar
meu inglês: lia-o muito bem, mas o falava muito mal. Dasgupta, em sua casa,
fazia-me pergunta de vez em quando, entregava-me algum texto para
traduzi-lo e deste modo podia observar meus progressos. Foram rápidos,
mas, acredito que devido a este esforço que propunha me dedicar a estudar
só o sânscrito. Durante muitos meses não toquei sequer um periódico, uma
novela policial, nada. Esta concentração exclusiva em um só tema, o sânscrito,
deu-me resultados surpreendentes.

—Mas, com esse método, possivelmente, corra-se o risco de não obter a exatidão e a
vivência próprias da língua falada.

—Certamente, mas, tratava-se de assentar acima de tudo e para começar


umas bases sólidas, de adquirir as estruturas, a concepção gramatical, o
vocabulário básico... Mais tarde, é óbvio, dediquei minha atenção à história e
à estética indianas, à poesia, às artes. Em princípio, entretanto, terá que
atender à aquisição metódica e exclusiva dos rudimentos.

—Acredito recordar que Daumal via no sânscrito a ocasião para um trabalho


filosófico, como se a gramática do sânscrito predispusesse a uma certa metafísica,
como se levasse a conhecimento de si mesmo e do ser. Crê assim? Que benefícios lhe
reportou o conhecimento do sânscrito?
—Tinha razão Daumal, todavia, no meu caso, não era tanto o valor, ou a
virtualidade filosófica da língua em si mesmo, o que mais me interessava em
princípio... O que pretendia acima de tudo, era dominar este instrumento de
trabalho para ler uns textos que não destacavam precisamente por seu valor
filosófico. Não eram o Vedanta, ou os Upanishads o que então me interessava,
a não ser, acima de tudo, os comentários dos Ioga-Sutras, os textos tântricos,
quer dizer as expressões da cultura indiana menos conhecidas no Ocidente,
justamente porque sua filosofia não está à altura dos Upanishads, ou do
Vedanta. Isto era o que me interessava mais que nada, pois aspirava conhecer
as técnicas da meditação e da fisiologia mística, quer dizer o Ioga e o Tantra.

—Aprendeu o italiano para ler ao Papini, o inglês para ler ao Frazer, o sânscrito para
ler os textos tântricos. Trata-se sempre, ao que parece, de abrir uma porta a algo que
lhe interessa. A língua é o caminho, jamais o fim. Não lhe expõe tudo isto uma
questão? Poderia converter-se não em um historiador das religiões, dos mitos, do
mundo da imaginação, a não ser em um sanscritista, em um lingüista. Cabia dentro
do possível uma obra totalmente distinta, um Eliade diferente. Ingressasse no grêmio
dos Jacobson, dos Benveniste, contribuindo seu estilo peculiar a este campo. Poder-se-
ia sonhar nessa obra imaginária... Não lhe tentou alguma vez esse caminho?

—Sempre que tratei de aprender uma nova língua foi para possuir um novo
instrumento de trabalho. Uma língua foi sempre para mim uma
possibilidade de comunicação: ler, falar se fosse possível, mas sobretudo ler.
Entretanto, houve um momento enquanto permaneci na Índia, em Calcutá,
quando contemplava os esforços de um comparativismo mais amplo —por
exemplo, as culturas indo-européias com as culturas pre-hindus, as culturas
oceânicas, as culturas da Ásia central—, quando contemplava aqueles sábios
extraordinários como Paul Pelliot, Przylusky, Sylvain Lévy, conhecedores
não só do sânscrito e o pali, mas também do chinês, tibetano, japonês e, além
disso, das línguas chamadas austroasiáticas, sentia-me fascinado por aquele
universo enorme que se abria à investigação. Já não se tratava unicamente da
Índia ária, mas, além da Índia aborígine, da abertura para o Sudeste asiático e
Oceania. Eu mesmo tentei iniciar esse caminho. Dasgupta dissuadiu-me. E
tinha razão. Sabia adivinhar. Todavia, empreendi o estudo do tibetano com
uma gramática elementar. Pude observar que, ao tratar-se de algo que não
desejara, verdadeiramente, do mesmo modo, que desejara o sânscrito, ou o
inglês, ou mais tarde o russo, ou o português, a coisa não saía muito bem.
Então, fiquei furioso e abandonei. Disse-me que jamais alcançaria a
competência de um Pelliot, de um Sylvain Lévy, que jamais seria um
lingüista, nem sequer um sanscritista. A língua em si mesmo, suas estruturas,
sua evolução, sua história, seus mistérios não me atraíam como...
—Como a imagem, como os símbolos?

—Exatamente. A língua não era para mim mais que um instrumento de


comunicação, de expressão. Mais tarde, senti-me contente de deter-me neste
ponto. Porque, em definitivo, trata-se de um oceano. Nunca se acaba a tarefa:
terá que aprender o árabe; depois do árabe, o siamês; depois do siamês, o
indonésio; depois do indonésio, o polinésio; e assim pela ordem. Preferi ler os
mitos, os ritos pertencentes a essas culturas, tentar compreendê-los.

IOGUE NO HIMALAYA
—Em setembro de 1930 sai de Calcutá em direção ao Himalaya. Separa-se de
Dasgupta...

—Sim, por causa de uma desavença, que lamento muito. Também ele a
lamentou. O certo é que já não me interessava permanecer naquela cidade em
que, sem Dasgupta, nada tinha que fazer. Parti para o Himalaya. Fui detendo
em numerosas cidades, mas ao final decidi ficar algum tempo em Hardwar e
Rishikesh, pois ali é onde começam os verdadeiros eremitérios. Tive a sorte
de conhecer Swami Shivanananda, que falou com mohant, o superior,
conseguiu-me uma pequena choça no bosque... As condições eram muito
singelas: levar um regime vegetariano e prescindir da indumentária européia;
entregava-se ao aspirante uma túnica branca. Cada manhã tinha que
«mendigar» leite, mel e queijo. Fiquei ali, em Rishikesh, seis ou sete meses,
possivelmente até abril.

-Rishikesh está já no Himalaya, mas ainda não é o Tibete.

—Para ir ao Tibete faltava passaporte... Entretanto, em 1929, passei três ou


quatro semanas em Darjeeling, em Sikkim, limite com o Tibete e onde já se
nota uma atmosfera tibetana. Vêem-se muito bem as montanhas do Tibete.

—Como era a paisagem em torno de sua choça?

—Enquanto que Darjeeling está a não sei quantos metros de altura, em uma
paisagem alpina, Rishikesh se acha à beira do Ganges, mas o Ganges é ali um
pequeno rio: cinqüenta metros em alguns sítios e logo, de repente, duzentos
metros; às vezes, estreita-se muito: vinte metros, dez metros. Ali há selva, a
selva. Em meus tempos não se via por ali outra coisa que umas quantas
choças e um pequeno templo hindu. Não havia gente. No bosque, as choças
estavam escalonadas ao longo de dois ou três quilômetros, a duzentos metros
umas das outras, às vezes, só a cento e cinqüenta ou cinqüenta. Dali subia à
Lakshmanjula, primeira etapa de minha peregrinação, por assim dizê-lo. Ali
resulta muito elevada a montanha. Havia uma série de grutas nas quais
viviam os religiosos, contemplativos, ascetas, iogues. Conheci muitos deles.

—Como escolheu a seu guru?

—Era Swami Shivanananda, mas, naquela época ninguém lhe conhecia, não
publicara nada (logo publicaria uns trezentos volumes...). antes de converter-
se em Swami Shivanananda fora médico, tinha uma família e conhecia muito
bem a medicina européia, que praticara, conforme acredito, em Rangun.
Depois, um belo dia, abandonou tudo. Despojou-se de seu traje europeu e
veio a pé desde Madras ao Rishikesh. Demorou quase um ano percorrendo o
caminho. É um homem que me interessou pelo fato de que possuía uma
formação ocidental. Igual Dasgupta. Era um bom conhecedor da cultura
indiana e estava em condições de comunicá-la a um ocidental. Não se tratava
de um erudito, mas tinha uma longa experiência de Himalaya; conhecia os
exercícios do ioga, as técnicas de meditação. Era médico e, em conseqüência,
entendia perfeitamente nossos problemas. Foi ele quem me orientou um
pouco nas práticas da respiração, da meditação, da contemplação. Coisas que
eu conhecia de cor, pois não só as estudara nos textos, em comentários, mas
sim, além disso, ouvira falar delas outros saddhu e contemplativos em
Calcutá, em casa de Dasgupta, e em Santiniketan, onde conheci Tagore.
Sempre havia ocasião de conhecer alguém que já praticara algum método de
meditação. Sabia de tudo isto, por conseguinte, algo mais do que há nos
livros, mas nunca tentara pô-lo em prática.
—Acaba de falar da selva. Teremos que pensar em tigres, em serpentes?

—Não recordo ouvir falar nunca de tigres, todavia, havia muitas serpentes, e
também macacos, uns macacos extraordinários. Acredito que foi ao terceiro
dia de minha instalação na choça quando vi uma serpente. Tive um pouco de
medo, tinha a impressão de que era uma cobra; lancei-lhe uma pedra para
espantá-la. Um monge viu-me e disse-me (falava muito bem o inglês; era um
antigo magistrado): «Por que? Embora seja uma cobra, nada terá que temer.
Neste eremitério não me recordo que se produziu nenhuma só mordida de
serpente». Fiquei perplexo, entretanto, perguntei-lhe: «E mais abaixo, na
planície?» Respondeu ele: «Sim, ali é verdade, mas não aqui». Coincidência
ou não... Em qualquer caso, a partir de então, quando via uma serpente,
deixava-a passar tranqüilamente. Isto era tudo. Nunca voltei a espantar uma
serpente lançando-lhe uma pedra.

—Passaram quase cinqüenta anos entre aqueles tempos do iogue noviço e o dia de hoje
em que já se converteu em autor célebre de três obras sobre o ioga. Um deles leva
como subtítulo Imortalidade e liberdade. Outro intitula-se Técnicas de ioga... O
que é o ioga? Um caminho místico, uma doutrina filosófica, uma arte de viver? Qual
é seu objetivo, dar a salvação, ou dar a saúde?

—Para falar a verdade, há algum tempo já não me interessa tanto falar do


ioga. Comecei minha tese em 1936; levava por título Ioga, ensaio sobre as
origens da mística hindu. Reprovou-me, e com razão, o termo «mística».

—Trabalhara sob a direção de Dasgupta, e inclusive, conforme acredito, ditou-lhe seu


comentário de Patañjali...

—Sim, mas antes já me senti interessado pelo aspecto técnico da pedagogia


espiritual hindu. Conhecia, evidentemente, a Tradição especulativa, dos
Upanishads até Shankara, quer dizer a filosofia, a gnosis, que apaixonara aos
primeiros indianistas ocidentais. Por outro lado, lera os livros sobre os
rituais... Mas, sabia além, que existia uma técnica espiritual, uma técnica
psicofisiológica, que não era pura filosofia ou sistema ritual. Com efeito, lera
algumas obra sobre Patañjali e os livros de John Woodroff (sob o nome de
Arthur Avallon) sobre o tantrismo. Pensava que com este método tântrico,
quer dizer, com esta série de exercícios psicofisiológicos (aos que chamei
«fisiologia mística», pois, trata-se de uma fisiologia mais imaginária),
tínhamos a oportunidade de descobrir certas dimensões pouco atendidas da
espiritualidade hindu. Dasgupta já tinha apresentado o aspecto filosófico
deste método. Por minha parte, julgava importante a descrição das técnicas
em si mesmas e a apresentação do ioga em um horizonte comparativo: junto
à ioga clássico, descrito pelo Patañjali nos Ioga-Sutras, os diversos iogas
«barrocos», marginais; também o ioga praticado por Buda e o budismo na
Índia e logo, no Tibete, no Japão e China. Daí meu interesse por adquirir uma
experiência pessoal dessas práticas, dessas técnicas.

—Não haverá alguma relação entre esse desejo e a «luta contra o sonho» de sua
adolescência?

—Em minha adolescência tinha muito que ler e me dava conta de que não se
obtém grande coisa se dormir durante sete horas, sete horas e meia. Comecei
então um exercício que acredito ter inventado. Cada manhã fazia soar o
despertador dois minutos antes que a anterior. Em uma semana ganhei,
portanto, um quarto de hora. Com seis horas e meia de sonho por noite,
deixei de adiantar o despertador durante três meses, a fim de me habituar
perfeitamente a esta duração. Logo comecei de novo, sempre ao ritmo de dois
minutos. Deste modo cheguei às quatro horas e meia de sonho. Logo, um dia
tive vertigens e parei. Eu chamava àquilo, com a grandiloqüência dos
adolescentes, «a luta contra o sono». Depois li L'Education de la volonté, do
doutor Payot. Lembro-me uma página em que dizia: «por que, mediante a
simples intervenção da vontade, não teria que nos ser possível comer coisas
que unicamente nossos hábitos culturais nos fazem ter por não comestíveis?
Mariposas, por exemplo, ou abelhas, vermes, besouros. Ou também, um
bocado de sabão». Eu perguntava-me: «Por que não?». E comecei a «educar
minha vontade», mas acredito que entendi mal o livro. Em qualquer caso,
desejava dominar certas aversões e certas tendências naturais em um
europeu.
O ioga, efetivamente, está aparentado com esse esforço. O corpo pede
movimento, então, imobiliza-lhe em uma só posição, um asana; já não se
comporta um como um corpo humano, mas sim, como uma pedra, ou uma
planta. A respiração é naturalmente arrítmica; o pranayama impõe-lhe um
ritmo. Nossa vida psicomental está sempre agitada —Patañjali define-a como
chittavritti, «torvelinhos de consciência—, mas a concentração permite
dominar essa corrente... O ioga significa em certo modo uma oposição ao
instinto, à vida.
Todavia, não me atraiu o ioga unicamente por estas razões. A verdade é
que se me senti interessado por estas técnicas do ioga foi, acima de tudo,
porque me resultava impossível entender à Índia unicamente através da
leitura dos grandes indianistas e de seus livros sobre a filosofia vedanta, para
a qual o mundo é pura ilusão —maya— ou através do sistema monumental
dos ritos. Não podia entender que a Índia tivesse grandes poetas e uma arte
admirável. Dava-me conta de que em algum lugar existia uma terceira via,
não menos importante, e que esta via implicava a prática do ioga. Mais tarde
em Calcutá, ouvi dizer que, com efeito, um professor de matemática
trabalhava em posição asana impondo um ritmo a sua respiração, e com
vantagem. Por outro lado, já sabe que quando Nehru se sentia fatigado,
adotava durante alguns minutos a «posição da árvore». São exemplos,
aparentemente anedóticos, mas, o certo é que essa ciência, essa arte do
domínio do corpo e os pensamentos, são muito importantes para a história da
cultura e da filosofia indianas, da criatividade hindu em uma palavra.

—Não lhe vou fazer novas perguntas sobre os aspectos teóricos do ioga; umas poucas
palavras não serviriam para substituir os livros que já escreveu. Prefiro perguntar-lhe
por sua experiência pessoal e pelo que esta lhe contribuiu para o resto de sua vida.

—Se fui tão discreto a respeito de minha aprendizagem em Rishikesh, é por


razões que lhe será fácil adivinhar. É possível, entretanto, falar de certas
coisas. Por exemplo, dos primeiros exercícios do pranayama que fiz, sob a
vigilância de meu guru. Às vezes, quando conseguia submeter a um ritmo
minha respiração, ele interrompia-me. Não entendia por que, pois, sentia-me
muito bem e não estava absolutamente fatigado... Ele dizia-me: «Está
fatigado». Já vê, era importante contar com a orientação de alguém que era
médico e conhecia por própria experiência o ioga. Fiquei convencido da
eficácia dessas técnicas. Acredito, inclusive, que cheguei a entender melhor
certos problemas... Mas, como lhe dizia, não quero insistir. Com efeito, se se
abordar esta questão, terei que dizer tudo, e isso exigiria entrar em detalhes
que implicam extensas análise.

-Entretanto, posso lhe perguntar se foi possível verificar as maravilhas, ou os


prodígios que, conforme se diz, acompanham à ioga? Em um de seus livros fala da
juventude que o iogue conserva muito tempo: a meditação de um tempo diferente,
ampliado, que chega a produzir no corpo uma longevidade extraordinária...

—Um de meus vizinhos, um monge que ia absolutamente nu, um naga,


passara dos cinqüenta anos e tinha um corpo de trinta. Não fazia outra coisa
que meditar durante todo o dia e tomava muito pouco alimento. Eu não
cheguei a essa etapa em que são possíveis tais coisas. Mas, qualquer médico
pode lhe dizer que o regime e a vida sã que se levam em um eremitério
prolongam a juventude.

—O que tem essas histórias que se contam de panos molhados e gelados que se
colocam sobre a pessoa entregue à meditação e que se secam várias vezes ao longo da
noite?

—Muitas testemunhas ocidentais o viram. Alexandra David-Neel, por


exemplo. É o que se chama em tibetano gtumo. Trata-se de um calor
extraordinário que produz o corpo e que é capaz de secar um tecido. A
propósito deste «calor místico» ou, mais exatamente, gerado pelo que se
chama a «fisiologia sutil», há documentos muito sérios. A experiência dos
panos gelados que se secam, rapidamente, ao serem colocados sobre o corpo
de um iogue é uma coisa certamente real.

UMA VERDADE POÉTICA DA ÍNDIA


—Sua experiência da Índia não aparece unicamente em seus estudos, mas também em
suas novelas: Meia-noite em Serampore, A noite bengalesa... e em Isabel e as
águas do diabo, inédita em francês, que escreveu, conforme me disse, como um
desafogo durante sua intensa dedicação à aprendizagem do sânscrito.

—Efetivamente, depois de seis ou sete meses de gramática sânscrita e de


filosofia hindu, detive-me, ansioso de sonhar um pouco. Encontrava-me em
Darjeeling e ali começo essa novela, um pouco autobiográfica, um pouco
fantástica. Queria penetrar e conhecer aquele mundo imaginário que me
obcecava. Escrevi a novela em umas quantas semanas. Deste modo recuperei
a saúde e o equilíbrio.

—Nesse relato aparece um jovem romeno que atravessa Ceilão, Madras e detém-se em
Calcutá, onde se encontra com o diabo.

—Chegando à Calcutá, instalei-me em uma pensão anglo-hindu, como aquela


em que eu vivia. Há ali moças, jovens fascinados por toda classe de
problemas. Vem logo a presença do «diabo» e toda uma série de coisas que
acontecem porque o personagem principal está obcecado pelo «diabo»...

—Em Meia-noite em Serampore, quão mesmo em O segredo do doutor


Honigberger, aparece também a fantasia.

—São duas novelas escritas dez anos mais tarde. Entre Isabel e estas duas
novelas há outra, mais ou menos, autobiográfica, A noite

—Eu gostaria que nos detivéssemos um pouco mais em Meia-noite em Serampore...


até que ponto podem acreditar-se quão fatos nela se narram? São puramente
fantásticos esses personagens que revivem um passado? Ou é que crê um pouco em
tal possibilidade? Porque, com efeito, às vezes, escutam-se histórias estranhas
contadas por pessoas dignas de crédito...

—Eu acredito na realidade das experiências que nos fazem «sair do tempo» e
«evadir-nos do espaço». Durante estes últimos anos escrevo várias novelas
em que se expõe esta possibilidade de sair-se de um determinado momento
histórico... de situar-se em um espaço distinto, como ocorre ao Zerlendi. Ao
descrever os exercícios yóguicos de Zerlendi em O segredo do doutor
Honigberger, contribuí com certos indícios apoiados em minhas próprias
experiências, que silenciei em meus livros sobre o ioga. Entretanto, ao mesmo
tempo, acrescentei algumas inexatidões, justamente para mascarar os dados
reais. Por exemplo, fala-se de um bosque de Serampore, porém, em
Serampore não há nenhum bosque. Portanto, se alguém pretendesse verificar
em concreto a trama da novela, dar-se-ia conta de que o autor não se limita a
fazer uma reportagem, posto que inventou a paisagem. Isto levaria a
conclusão de que também o resto inventara, coisa que não é verdade.

—Acreditaque podem ocorrer, efetivamente, as coisas que acontecem aos personagens


de Meia-noite em Serampore?

—Sim, no sentido de que alguém pode ter uma experiência tão «convincente»
que se veja obrigado a considerá-la real.

—Ao final de O segredo do doutor Honigberger —um investigador que


efetivamente existiu, ao que cita ao princípio de Patañjali e o Ioga— o leitor pode
duvidar entre várias chaves para resolver o enigma. Qual é a sua?

-Para alguns leitores pode resultar evidente. Como o personagem que narra
essa história afirma ser Mircea Eliade, um homem que passou alguns anos na
Índia, que escreveu um livro sobre o ioga...

- Esse é o narrador, mas não se nomeia como Eliade...

- Não, porém, Mme Zerlendi escreve-lhe: «Como passou muitos anos na


Índia...». Mas, naquela época, quem podia ser esse romeno que partira à
Índia, que escrevera um livro sobre o ioga? O narrador, por conseguinte, é
Eliade. E Zerlendi, um homem dotado de clarividência, dá-se conta de que,
por um acidente lamentável, o documento extraordinário que escondera com
a esperança de que um dia alguém o decifrasse e convencesse-se da realidade
de alguns feitos relacionados com o ioga, esse documento acabava de ser
decifrado por alguém que conhecia o sânscrito, o ioga e que além disso, era
um novelista, que não deixaria de sentir-se tentado —justamente o que eu
fiz— pela idéia de narrar aquela história extraordinária. Então, para suprimir
qualquer perigo de que alguém verificasse a autenticidade do relato —pois
não resultaria difícil identificar a casa e encontrar sua biblioteca e os
manuscritos—, em uma palavra, para provar que não se trata mais que uma
fantasia literária, Zerlendi transforma sua casa, faz desaparecer a biblioteca e
sua família, afirma não conhecer o narrador. E tudo isto para evitar que o
documento que me dispunha a resumir em minha novela não se considerasse
autêntico.

—Não estou seguro de que esta conversação seja clara para quem não lera o livro.
Melhor assim, pois espero que essa mesma escuridão anime-lhes a descobri-lo... Por
minha parte, já não sei o que pensar. Sinto-me na mesma situação que os personagens
de seu último livro que escutam ao «velho». A sua é uma arte diabólica na hora de
desconcertar seus ouvintes através de umas histórias nas quais já não é possível
distinguir o verdadeiro do falso, a esquerda da direita.

—É verdade. Inclusive penso que essa é uma parte característica de minha


prosa.

—Não haverá um tanto de malícia no prazer que lhe produz a idéia de confundir um
tanto a seu interlocutor?
—Isso,possivelmente, forma parte de uma espécie de pedagogia; não se deve
entregar ao leitor uma «história» perfeitamente transparente.

—A pedagogia e o gosto pelo Labirinto?

—Sim, uma prova iniciática ao mesmo tempo.

—Deixemos, pois, seus leitores ante a porta do labirinto, à entrada do bosque de


Serampare e da biblioteca indiana de Zerlendi. Em compensação, nada tem de
fantástico em A noite bengalesa. Quando recordo este livro —porque, efetivamente,
é um livro sobre o qual se tem que refletir, pois se abre à leitura menos que à
lembrança da leitura— há algo que me chama a atenção sobre tudo: a imagem e a
evocação daquela moça, a presença do desejo mesmo. A história é muito singela, mas
irradia até abrasar uma beleza cobiçável, como os afrescos de A Última Ceia e como a
poesia erótica da Índia... Como vê este livro com a distância?

—Bem, trata-se de uma novela meio biográfica. Compreenderá que...

—Entendo que queira guardar o mesmo silêncio sobre os segredos da gnosis e os


segredos do amor... Mas, posto que acabamos de evocar a arte de A Última Ceia,
ocorreu a alguém relacionar a figura, tão sensual, de Maitreyi (A noite bengalesa) e
os afrescos de A Última Ceia? O que lhe faz pensar isto?

—Certo, já se falou isso. Em uma carta encantadora que me enviou depois de


ler minha novela, Gastón Bachelard falava de «mitologia do prazer».
Acredito que tinha razão, pois, em certo sentido, a sensualidade se
transfigura...

—O que agora me diz enlaça diretamente com uma nota de seu Diário de 5 de abril de
1947 a propósito dos afrescos de A Última Ceia: «A sensualidade destas imagens
fabulosas, a importância inesperada do elemento feminino! Como é possível que um
monge budista pudesse "liberar-se" das tentações da carne, rodeado de tanta, nudez
soberba; triunfantes em sua plenitude e em sua beleza? Só uma versão tântrica do
budismo podia aceitar semelhante elogio da mulher e da sensualidade. Algum dia se
compreenderá a função importante do tantrismo, que revelou e impôs à consciência
hindu o valor das "formas" e dos "volumes" (o triunfo do antropomorfismo mais
lânguido sobre o aniconismo original)». O componente erótico da noite bengalesa,
seu interesse pelo tantrismo e sua visão da arte indiana: esta nota permite envolvê-los
no mesmo olhar.

—Sim, além disso, ao contemplar os afrescos de A Última Ceia comecei a


admirar a arte figurativa da Índia. Tenho que reconhecer que, ao princípio, a
escultura hindu decepcionou-me. Todavia, uma obra de Coomaraswamy
permitiu-me captar o sentido daquela acumulação de detalhes. Não basta ali
a representação do deus, mas sim, prodigaliza-se toda sorte de signos, de
figuras humanas, mitológicas. Nada de espaços vazios! Aquilo eu não
gostava. Logo compreendi que o artista quer absolutamente povoar esse
universo, esse espaço que cria em torno da imagem. Que quer, em suma,
enche-lo de vida. Terminei por admirar aquela escultura.
Precisamente, se cheguei a gostar tanto da arte indiana, foi por tratar-se
de uma arte de significação simbólica, uma arte tradicional. O artista não se
propôs expressar nada absolutamente de ordem «pessoal». Compartilhava
com todos os outros o universo unitário dos valores espirituais próprios do
gênio hindu. Tratava-se de uma arte simbólica e tradicional, mais
espontâneo, se posso dizer assim. O fato de beber na fonte comum jamais
prejudicou ao florescimento das formas distintivas, a sua variedade. E isto é
verdade a propósito de todas as artes.
Na Índia, foi a música de Bengala quão única tive, até certo ponto,
ocasião de conhecer. Mas, o que mais me interessava eram as artes plásticas, a
pintura, os monumentos, os templos. Não unicamente como «criações
artísticas». Por exemplo, o templo é uma obra arquitetônica dotada de um
simbolismo muito coerente, em que a função religiosa, com seus ritos e
procissões, integra-se perfeitamente na mesma arquitetura. Por outro lado, na
Índia, igual em todas as aldeias da Europa oriental, faz, possivelmente, trinta
ou quarenta anos, o «objeto artístico» não era algo que se pendurava na
parede, ou se colocava em uma vitrine. Era um objeto que se utilizava: uma
mesa, uma cadeira, um copo, um ícone. Neste sentido, precisamente,
interessava-me a arte indiana, a arte popular quão mesmo dos templos, das
esculturas e das pinturas: por sua integração na vida cotidiana.

—E a literatura hindu?

—Eu gostava muito de Kalidasa, que é possivelmente meu preferido. É o


único poeta que cheguei a dominar, apesar de que seu sânscrito resulta muito
difícil. É inegável seu gênio poético.
Entre os modernos, li alguns escritores de vanguarda, Acinthya, por
exemplo, um jovem novelista bengalês (1930) muito influenciado por Joyce.
E, é óbvio, ao Rabindranath Tagore.

—Acredito que foi Dasgupta quem apresentou Tagore.

—Sim, tive a grande sorte de ser recebido várias vezes por Tagore em
Santiniketan. Eu tomava muitas notas depois de nossas conversações e
também sobre quanto se dizia dele, como homem e como poeta, em
Santiniketan. Ali era muito admirado, porém, alguns criticavam-lhe, e eu
tomava nota de tudo isso. Espero que esse «caderno Tagore» exista ainda, em
Bucareste, em minha biblioteca tantas vezes mudada de lugar. Admirava ao
Tagore pelo esforço que desenvolvia para condensar em si as qualidades, as
virtudes, as possibilidades do ser humano. Não era tão somente um poeta
excelente, um compositor excelente —escreveu umas três mil canções, das
quais algumas centenas, estou seguro disso, converteram-se hoje em «canções
populares» em Bengala—, um grande músico, um bom novelista, um
professor da conversação... Sua mesma vida possuía uma qualidade
específica. Todavia, não era uma «vida de artista», como a que levavam um
D'Annunzio, um Swinburne, ou um Oscar Wilde. Era uma vida rica e
completa, aberta à Índia e ao mundo. Tagore interessava-se além, por coisas
que ninguém imaginaria, que pudessem interessar a um grande poeta.
Ocupava-se dos assuntos comuns, sentia uma grande paixão pela escola que
fundara em Santiniketan. Jamais se distanciou da cultura popular de Bengala.
Em sua obra adverte-se em seguida, a importância da tradição rural, apesar
de que esteja claro que também se inspirava em Maeterlinck, por exemplo.
Além disso era formoso. Tinha um grande êxito, murmurava-se que era um
dom Juan... Ao mesmo tempo, irradiava uma espiritualidade que se
expressava através de todo seu corpo, de seus gestos, de sua voz. Um corpo,
uma imagem de patriarca.

—Acaba de traçar um formoso retrato que faz pensar em um Vinci, em um Tolstoi de


Bengala. Entretanto, em A noite bengalesa evoca ao Tagore em um tom...

—...crítico, certamente. Expressava assim a atitude da nova geração bengalês.


Na universidade tinha amigos, jovens poetas, jovens professores que, por
reação frente à seus pais, viam na obra de Tagore um não sei que
d'annunziano, qualificando-a falsa... Pode ser que hoje esteja um pouco
esquecido na Índia, por causa da grandeza de Aurobindo, de Radhakrishna,
que é um grande sábio. Porém, estou seguro de que será redescoberto.

—É difícil evocar Tagore e não nomear ao Gandhi...

—Vi o Gandhi e até ouvi, mas de longe e muito mal: o alto-falante não
funcionava, se é que havia algum aquele dia. Foi em Calcutá, em um parque,
durante uma manifestação não violenta... Admirava-lhe, como todo mundo.
Eu preocupava-me com outros problemas, mas o êxito de sua campanha da
não violência chegou a interessar-me enormemente. Entenda-se bem que, por
então, eu era cem por cento antibritish. A repressão inglesa contra os
militantes do swaraj exasperava-me, revoltava-me.

-Seus sentimentos eram, em definitivo, os de seu personagem de A noite bengalesa:


aborrecimento do colonizador e inclusive do europeu...

-Sim, muitas vezes sentia abafado ao ser reconhecido como branco,


envergonhava-me de minha raça. Não era inglês, felizmente, era cidadão de
um país que jamais tivera colônias e que, pelo contrário, fora tratado durante
séculos como uma colônia. Não tinha, portanto, motivo algum para sentir um
complexo de inferioridade. Mas, ao sentir-me europeu, envergonhava-me.

—Preocupou-lhe «a política» —para dizer do modo mais simples— durante sua


juventude?

—Na Romênia, nada, absolutamente. Sensibilizei-me à política na Índia. Ali


com efeito, pude ver a repressão. Dizia-me: «Quanta razão têm os hindus!».
Aquele era seu país, não reclamavam, a não ser, uma espécie de autonomia e
suas manifestações eram completamente pacíficas, não provocavam
ninguém, reclamavam o que era seu direito. Todavia, a repressão policial foi
inutilmente violenta. Em Calcutá tomei consciência da injustiça política, ao
mesmo tempo, descobri as possibilidades espirituais da atividade política de
Gandhi, aquela disciplina espiritual que permitia resistir aos golpes sem
responder. Era como Cristo, o sonho de Tolstoi...

—Isso significa que se deixou ganhar em coração e alma pela causa da não violência...

—E também da violência! Por exemplo, um dia escutei um extremista e dava-


lhe a razão. Entendia, perfeitamente, que também devem existir alguns
violentos. Mas, em resumidas contas, estava muito impressionado pela
campanha da não violência. Além disso, não se tratava, unicamente, de uma
extraordinária tática, mas sim, constituía uma admirável educação das
massas, uma admirável pedagogia popular que se propunha acima de tudo o
domínio de si mesmo. Era algo, verdadeiramente, superior à política, quero
dizer, superior à política contemporânea.

AS TRÊS LIÇÕES DA ÍNDIA


—Não tinha vinte e dois anos quando cheguei à Índia. Muito jovem, não lhe
parece? Os três anos seguintes foram essenciais para mim. A Índia formou-
me. Hoje trato de expressar qual foi o ensino decisivo que ali recebi, e vejo
acima de tudo que é uma lição tripla.
Em primeiro lugar, foi o descobrimento da existência de uma filosofia,
ou melhor, de uma dimensão espiritual hindu que não era nem a da Índia
clássica —diríamos a dos Upanishads e do Vedanta; em uma palavra, a
filosofia monista— nem a devoção religiosa, a bhakti. Tanto o ioga como a
samkhya professam o dualismo: a matéria por um lado e o espírito por outro.
Entretanto, não era o dualismo o que me interessava, a não ser o fato de que,
o mesmo no ioga que na samkhya, o homem, o universo e a vida não são
ilusórios. A vida é real, o mundo é real. E é possível conquistar o mundo, é
possível dominar a vida. E ainda mais, no tantrismo, por exemplo, a vida
humana pode ser transfigurada mediante os ritos, executados a seguir de
uma longa preparação yóguica. Trata-se de uma transmutação da atividade
fisiológica, por exemplo, da atividade sexual. Na união ritual, o amor já não é
um ato erótico ou um ato simplesmente sexual, a não ser uma espécie de
sacramento; exatamente como beber vinho, na experiência tântrica, já não é
beber uma bebida alcoólica, a não ser compartilhar um sacramento...
Descobri, pois, essa dimensão tão esquecida pelos orientalistas, descobri que
a Índia conheceu certas técnicas psicofisiológicas graças às quais pode o
homem ao mesmo tempo gozar da vida e dominá-la. A vida pode ser
transfigurada mediante uma experiência sacramental. Este é o primeiro
ponto.

—«A vida transfigurada», é o que chama em outro lugar «a existência santificada»?

—Sim, em resumidas contas, deve ser o mesmo. Trata-se de ver que através
desta técnica, e também através de outras vias ou métodos, é possível
santificar de novo a vida, santificar de novo a natureza...
O segundo descobrimento, o segundo ensino é o sentido do símbolo.
Na Romênia não me senti atraído pela vida religiosa, as igrejas me pareciam
abarrotadas de ícones. Entenda-se bem que aqueles ícones não me pareciam
ídolos, mas... Na Índia, enquanto vivia em uma aldeia bengalês, pude ver
como as mulheres e as moças tocavam e engalanavam um lingam, um
símbolo fálico, ou mais exatamente, um falo de pedra anatomicamente muito
exato. Ao menos as mulheres casadas não podiam ignorar sua natureza, sua
função fisiológica. Assim entrevi a possibilidade de «ver» o símbolo no
lingam. O lingam era o mistério da vida, da criatividade da fecundidade que
se manifesta em todos os níveis cósmicos. Esta epifania da vida era Shiva, não
o membro que conhecemos. Aquela possibilidade de sentir-se religiosamente
movido pela imagem, o símbolo revelou-me todo um mundo de valores
espirituais. Então disse: é verdade que ao contemplar um Ícone, o crente não
percebe tão somente a figura de uma mulher que sustenta nos braços um
menino, mas sim, vê à Virgem Maria, à Mãe de Deus, a Sophia.,.. Este
descobrimento da importância do simbolismo religioso nas culturas
tradicionais, pode imaginar a importância que teve em minha formação como
historiador das religiões.
Quanto ao terceiro descobrimento, poderíamos caracterizá-lo como «o
descobrimento do homem neolítico». Pouco antes de minha partida tive a
sorte de passar algumas semanas na Índia central, com ocasião de... uma
espécie de caçada de crocodilos, entre os aborígenes, os santali, que são pré-
ários. Fiquei impressionado ao comprovar que a Índia tem ainda umas raízes
muito profundas que se afundam, não só na herança ária, ou dravídica, mas
também, no chão asiático, na cultura aborígine. Era aquela uma civilização
neolítica, apoiada na agricultura, quer dizer, na religião e na cultura que
acompanharam ao descobrimento da agricultura, concretamente, a visão do
mundo e da natureza, assim como o círculo ininterrupto da vida, da morte e
da ressurreição, ciclo específico da vegetação, mas que rege também a vida
humana e constitui, ao mesmo tempo, um modelo para a vida espiritual...
Deste modo cheguei a entender a importância da cultura popular romena e
balcânica. Igualmente à cultura da Índia, também trata-se de uma cultura
folclórica, apoiada no mistério da agricultura. Evidentemente, na Europa
oriental há umas expressões cristãs; por exemplo, supõe-se que o trigo nasceu
das gotas do sangue de Cristo. Todavia, todos estes símbolos, têm um fundo
muito arcaico, neolítico. Com efeito, ainda há trinta anos existia da China à
Portugal uma unidade de base, a unidade solidária da agricultura, que tinha
na agricultura seu respaldo seguro e que se apoiava, por conseguinte, no
legado do Neolítico. Esta unidade de cultura foi para mim uma revelação.
Descobri que aqui, mesmo na Europa, as raízes são mais profundas do que
nós acreditávamos, mais profundas que o mundo grego, ou romano, ou
inclusive mediterrâneo, mais profundas que o mundo do Próximo Oriente
antigo. E estas raízes nos revelam a unidade fundamental não só da Europa,
mas também de toda a ekumene que se estende de Portugal até a China, desde
a Escandinávia até o Ceilão.

—Quando se lêem, por exemplo, os primeiros capítulos de sua História das crenças
e das idéias religiosas, pode-se entrever a importância que para seu pensamento,
para sua obra, teve esta revelação, o encontro, mais à frente do homem hindu, com o
homem neolítico, o homem «primitivo». Poderia precisar mais, em que grau foi isso
importante?

—Na Índia descobri aquilo que mais tarde chamaria eu a «religiosidade


cósmica», quer dizer, a manifestação do sagrado através dos objetos, ou dos
ritmos cósmicos: uma árvore, um manancial, a primavera. Esta religião, viva
ainda na Índia, é a mesma contra a que lutaram os profetas, e com razão,
posto que Israel era o depositário de uma revelação religiosa distinta. O
monoteísmo mosaico, o conhecimento pessoal de um Deus que intervém na
história; que não manifesta sua força, unicamente, através dos ritmos da
natureza, através do cosmos, como os deuses das religiões politeístas. Já sabe
que este tipo de religião cósmica ao que damos o nome de «politeísmo», ou
«paganismo», estava muito desacreditado não só entre os teólogos, mas
também, entre certos historiadores das religiões. Eu vivi entre pagãos, vivi
entre gente que participava do sagrado através de seus deuses. E seus deuses
eram figuras, ou expressões do mistério do universo, desta fonte inesgotável
de criação, de vida e de bem-aventurança... A partir daí compreendi o
interesse que tudo isso implicava para a história geral das religiões. Em
resumo, tratava-se de descobrir a importância e o valor espiritual do que
chamamos o «paganismo».
Já sabe que a época prelítica e o paleolítico duraram, possivelmente,
dois milhões de anos. É muito provável que a religião daquela humanidade
arcaica fora análoga à religião do caçador primitivo. Estabeleciam-se umas
relações, ao mesmo tempo, existenciais e religiosas; entre caçador e a peça a
que perseguia, tratava de abater por uma parte e com o «Senhor das feras»,
divindade que protegia tanto ao caçador como à caça, por outra. Por esta
razão, sem dúvida, atribuía o caçador primitivo uma grande importância
religiosa ao osso, ao esqueleto e ao sangue... Logo, possivelmente, há doze ou
quinze mil anos, produziu-se a invenção da agricultura, que assegurou e
incrementou os recursos alimentícios do homem, por isso mesmo, fez
possível toda a evolução ulterior: aumento da população, edificação de
aldeias e logo cidades, quer dizer, a civilização urbana com todas as criações
políticas do Próximo Oriente antigo.
A invenção da agricultura, e não é esta uma de suas conseqüências
menos importantes, fez possíveis certas experiências religiosas. Por exemplo,
a relação que se estabeleceu entre a fertilidade da terra e a fecundidade da
mulher. A Grande Deusa é a Terra Mãe. A mulher adquire então, uma
enorme importância religiosa e, ao mesmo tempo, econômica, em virtude de
sua solidariedade mística com a terra, que garante a fertilidade e, em
conseqüência, a vida. E, como lhe dizia um momento atrás, também graças à
agricultura captou o homem a idéia do ciclo — nascimento, vida, morte,
renascimento — e soube valorar sua própria existência integrando-a no ciclo
cósmico. O homem neolítico comparou, pela primeira vez, a vida humana
com a vida de uma flor, de uma planta; o caçador primitivo se sentia
magicamente vinculado ao animal; agora o homem se faz misticamente
solidário da planta. A condição humana compartilha o destino da planta e,
por isso mesmo, integra-se em um ciclo infinito de nascimentos, de mortes e
de renascimentos... Entenda-se bem, as coisas são muito mais complicadas,
pois, trata-se de um sistema religioso que integra todos os simbolismos da
fecundidade, da morte e do renascimento: a Terra Mãe, a lua, a vegetação, a
mulher, etc. Acredito que este sistema continha em germe as formas
essenciais de todas as religiões que viriam depois.
E até podemos observar outra coisa: com a agricultura nasce o sacrifício
cruento. Para o homem primitivo, o animal está aí, no mundo, é uma
realidade dada. A planta alimentícia, pelo contrário, o grão não está dado, não
existia já no começo do mundo. É o homem o que mediante seu trabalho e sua
magia cria uma colheita. Isto supõe, com respeito ao caçador, uma enorme
diferença, já que o homem arcaico acreditava que não era possível criar nada
sem o sacrifício cruento. Trata-se de uma concepção muito antiga, e quase
universal, concretamente, a crença de que toda criação implica uma
transferência mágica da vida. Projeta-se, através de um sacrifício cruento, a
energia, a «vida» da vítima sobre a obra que se pretende criar. É curioso
pensar em que quando o caçador abatia sua presa nunca falava de morte.
Algumas tribos siberianas pedem perdão ao urso, dizendo-lhe: «Não fui eu o
que o matou, a não ser meu vizinho, o tungús ou o russo». Em outros locais
dir-se-ia: «Não fui eu, foi o Senhor das Feras quem nos deu permissão». Os
caçadores não se reconhecem responsáveis pela matança. Entre os
paleocultivadores, pelo contrário, os mitos sobre a origem das plantas
alimentícias evocam a um ser sobrenatural que aceitou ser morto para que de
seu corpo brotassem as plantas. Daí que não fora possível imaginar uma
criação sem sacrifício cruento. Com efeito, os sacrifícios cruentos, sobretudo
humanos, estão testemunhados unicamente entre os agricultores. Nunca
entre os caçadores. Em resumo, isto é o que importava entender, a rigor
seguido deste descobrimento da agricultura se revela todo um universo
espiritual. Do mesmo modo, com a metalurgia, faz-se possível outro novo
universo de valores espirituais. Pretendi compreender o mundo religioso do
homem arcaico. Por exemplo, durante o Paleolítico, a relação entre o homem
e a planta não era absolutamente evidente. Como tampouco o era a
importância religiosa da mulher. Uma vez inventada a agricultura, a mulher
passa a ocupar um lugar muito importante na hierarquia religiosa.

—Também chama a atenção o fato de que nos dois casos —a visão do homem-planta e
a instituição da morte sagrada— seja o mais importante a relação com a morte, uma
relação determinada com a morte. Fica igualmente claro que estes dois grandes eixos
simbólicos podem dar-se também no mundo cristão: grão que deve morrer para
renascer, morte do cordeiro, pão e vinho como corpo e sangue da vítima sagrada. Sua
perspectiva do «homem neolítico» dá muito que pensar... Entretanto, como já disse,
este descobrimento não serve unicamente para esclarecer o problema do «homem
religioso», mas sim, além disso, permitiu, mediante um longo rodeio, recuperar o
mais próximo, o familiar, a tradição romena, por exemplo. Não fosse por tudo isto,
seria possível escrever esse texto que tanto eu gosto sobre o Brancusi? Brancusi,
artista romeno, homem moderno e pai de uma determinada modernidade, ao mesmo
tempo, pastor em Cárpatos. Seria-lhe possível compreender ao Brancusi da mesma
maneira, senão estivesse em contato, durante sua estadia na Índia, com a civilização
original?

—Possivelmente não, com efeito. Acaba de resumir muito bem o que penso
sobre este ponto. Ao captar a unidade profunda que existe entre a cultura
aborígine hindu, a cultura dos Balcãs e a cultura rural da Europa ocidental,
encontrava-me como em meu ambiente. Ao estudar certas técnicas e certos
mitos, encontrava-me tão a gosto na Europa como na Ásia. Nunca me senti
ante coisas «exóticas». Ante as tradições populares da Índia, via aparecer as
mesmas estruturas que nas tradições populares da Europa. Acredito que isto
me ajudou muito a entender que Brancusi não copiou as tradições da arte
popular romena. Pelo contrário, remontou-se até as mesmas fontes da
inspiração dos camponeses romenos, ou gregos; e redescobriu essa visão
extraordinária de um homem para quem a pedra existe, existe de um modo,
digamos, «hierofânico». Recuperou, de dentro, o universo dos valores do
homem arcaico. Sim, a Índia ajudou-me muito a compreender a importância,
a autoctonia; e, ao mesmo tempo, a universalidade da criação de Brancusi.
Quem aprofunda de verdade até as fontes, até as raízes que se afundam no
Neolítico, será muito romeno, muito francês e, ao mesmo tempo, um homem
universal. Sempre fascinou-me esta questão: como recuperar a unidade
fundamental, quando não do gênero humano, ao menos de uma determinada
civilização indivisa no passado da Europa? Brancusi conseguiu recuperá-la...
Já vê, com este descobrimento e com este interrogante se fecha o círculo de
minha formação na Índia.

A ÍNDIA ETERNA
—Esse interesse cada dia mais vivo que sentem os ocidentais, ao que parece, pela
Índia, pelo ioga, não lhe parece muitas vezes um falso sucedâneo do absoluto?

—Embora haja abusos, exageros, um excesso de publicidade, trata-se de uma


experiência muito importante. A concepção psicológica do ioga antecipou-se
ao Freud e ao nosso descobrimento do inconsciente. Com efeito, os sábios e
ascetas hindus sentiram a necessidade de explorar as razões obscuras do
espírito; comprovaram que os condicionamentos fisiológicos, sociais,
culturais, religiosos... eram fáceis de delimitar e, em conseqüência, de
dominar. Pelo contrário, os grandes obstáculos para a vida ascética e
comtemplativa surgia da atividade, do inconsciente, dos samskara e dos
vasana, «impregnações», «resíduos», «latências» que constituem o que a
psicologia das profundidades designa como «conteúdos», «estruturas» e
«impulsos» do inconsciente. É muito fácil lutar contra as tentações
mundanas, muito fácil renunciar à vida familiar, à sexualidade, às
comodidades, à sociedade. Mas, precisamente, quando um se crê dono de si
mesmo, surgem de repente os vasana e reaparece o «homem condicionado»
que somos cada qual. Daí que o conhecimento dos sistemas de
«condicionamento» do homem não podia ser para o ioga e para a
espiritualidade hindu em geral um fim em si mesmo. O importante não era
conhecer os sistemas de «condicionamento», mas dominá-los. trabalhava-se
sobre os conteúdos do inconsciente para, «queimá-los». Pois, diferente da
psicanálise, o ioga estima que é possível controlar os implusos do
inconsciente.
Entretanto, tudo isto, não constitui mais que um aspecto. Há outros. É
interessante, com efeito, conhecer a técnica do ioga, pois, não se trata de uma
mística, nem de uma magia, uma higiene ou uma pedagogia, mas sim de
todo um sistema original e eficaz. O importante não é deter o próprio coração
um momento —já sabe que isso é possível— nem suspender o fôlego durante
alguns minutos. O que mais interessa sempre é realizar uma experiência que
permita conhecer os limites do corpo humano.
Parece-me, portanto, evidente que esse interesse pelo ioga é muito
importante e que terá repercussões e conseqüências felizes. Entenda-me bem,
essa literatura deprimente, essas obras de «vulgarização»...

—Já sei que nestes momentos não pensa em homens como Allan Watts, a quem
também conheceu...

—Sim, e eu diria que muito bem. Era um gênio da adivinhação pelo que se
refere à certas tradições orientais. E conhecia perfeitamente, de primeira mão,
sua própria religião. Já sabe que foi sacerdote episcopaliano (Igreja da
Inglaterra). Conhecia bem o cristianismo ocidental e o zen, também podia
entender outras muitas coisas. Eu o admirava muito. Além disso possuía um
dom muito raro: expressava-se em uma linguagem que não era pretensioso,
que não correspondia a uma vulgarização superficial e que, ao mesmo tempo,
resultava acessível. Acredito que Watts não abandonou de verdade o
sacerdócio, mas sim procurou outro caminho para comunicar ao homem
moderno o que os homens de outras épocas chamavam «Deus». Converteu-se
em um professor, em um verdadeiro guru para a geração dos hippies. Não
tive com ele amizade íntima, mas acredito que era honrado, e além disso
admirava muito sua potência de adivinhação. A partir de alguns elementos,
de alguns bons livros, era capaz de apresentar a essência de uma doutrina.

—O que pensava Watts, por sua parte, dos livros de Mircea Eliade?
—Lia-me e citava-me. Nunca me reprovou o não ser mais «pessoal» em meus
livros. Com efeito, entendeu perfeitamente que meu objetivo consistia,
unicamente, em fazer inteligível ao mundo moderno —mesmo o ocidental
que oriental, à Índia quão mesmo Tóquio, ou Paris— umas criações religiosas
e filosóficas pouco conhecidas, ou mal comentadas. Para mim, o
conhecimento dos valores religiosos tradicionais é o primeiro passo para uma
restauração religiosa. Enquanto que um homem como Watts, e outros como
ele, acreditavam —possivelmente com razão— que é possível dirigir-se às
massas com algo que se pareça com uma «mensagem» e fazer que despertem,
eu pensava que nós —produto de um mundo moderno — estávamos
«condenados» a receber toda revelação através da cultura. Teremos que
recuperar as fontes através das formas e das estruturas culturais. Estamos
«condenados» a aprender e a reviver à vida do espírito mediante os livros.
Na Europa moderna já não há ensino oral nem criatividade folclórica. Por
isso penso que o livro tem uma enorme importância, não só cultural, mas
também religiosa, espiritual.

—Isso quer dizer, que não é um desses professores que queimam os livros, ou que
afetam fazê-lo.

—Não, certamente!

—Entretanto, junto ao universitário, ao escritor, está sempre desperto em sua pessoa o


ermitão de Rishikesh, o comtemplativo... Remeto-me à entrevista que recolhi ao
começo desta conversação sobre a Índia: «A seguridade de que aconteça o que
acontecer, sempre haverá no Himalaya uma gruta que me espera». É que recorda
constantemente essa gruta?

—Sim, sempre! Essa é minha grande esperança.

—E o que faria ali? Sonhar, ler, escrever, o que outra coisa?

—Se a gruta existir ainda, e seguramente existe; se não em Rishikesh, será em


Lakshmanjula, ou em Bhadrinath, posso recuperá-la... Uma gruta de
Himalaya é a liberdade e a solidão. Acredito que com isso basta: ser livre
mas não se isolar; ilhar-se tão somente do mundo que acaba de abandonar, se
é que lhe abandona... Tive sobretudo o sentimento da liberdade, e acredito
que voltarei a ter.

—Esta conversação sobre a Índia acaba justamente com a palavra liberdade, que
acaba de pronunciar. Isto faz recordar-me uma nota de seu Diário, a de 26 de janeiro
de 1961, que me chamou a atenção: «Acredito que meu interesse pela filosofia e a
ascese hindu explica-se assim: a Índia esteve obcecada pela liberdade, a autonomia
absoluta. Mas não de uma maneira ingênua, caprichosa, a não ser tendo em conta os
inumeráveis condicionamentos do homem, estudando-os objetivamente,
experimentalmente (Ioga) e esforçando-se para achar o instrumento que permitisse
aboli-los ou transcendê-los. Ainda mais que o cristianismo, o espiritualismo hindu
tem o mérito de introduzir a liberdade no cosmos. O modo de ser de um jivanmukta
não está dado no cosmos; pelo contrário, em um mundo dominado pelas leis, a
liberdade absoluta é inimaginável. A Índia tem o mérito de ter acrescentado uma nova
dimensão ao universo: a da existência livre».

—Sim, hoje voltaria a dizer isso mesmo.


INTERMÉDIO
—Sim, entendi sonhos que julgo muito importantes para mim. Sonhos
«iniciáticos» no sentido de que só mais tarde compreendi sua significação,
mas então aprendi muito e adquiri uma certa confiança. Senti que não sou
guiado, mas sim recebo uma ajuda, que sou ajudado por meu próprio eu.

—Teve o costume de anotar regularmente seus sonhos?

—Sim, durante um verão que passei em Ascona. Já sabe que os famosos


encontros de Ascona, conhecidos pelo nome de «Eranos», foram organizados
pela Olga Froebe-Kapteyn, apaixonada da psicologia de Jung. Ela mesma me
propôs esta experiência. Tomei essas notas durante um mês, dia por dia, cada
manhã. Pude me dar conta de que aqueles sonhos tinham, verdadeiramente,
uma continuidade. Acredito ter guardado o caderno em que anotava também
a data de cada sonho. Algumas vezes contei esses sonhos aos psicólogos e
conto também suas interpretações.

—Acredita acaso, que todo aquele que pretenda conhecer-se e aperfeiçoar-se deve
anotar seus sonhos?

—Não quero julgar. Mas, acredito que sempre resulta útil anotar, um sonho.
Lembro-me que depois de reler por acaso um caderno de meu Jornal em que
anotara um sonho dez anos atrás, entendi que este sonho anunciava algo com
toda precisão, e que aquilo se cumpriu. Acredito, portanto, que é coisa boa
anotar os sonhos, não só para verificar certas coisas, mas também e sem
dúvida para conhecer-se melhor.

—Em seu caso, possivelmente não se trate de «premonições», mas sim de um


conhecimento profundo.

—Acredito que nesses sonhos, que me lembro muito bem com freqüência,
temos a auto-revelação do próprio destino. É o destino que se revela, no
sentido de uma existência que se dirige para um fim preciso, uma empresa,
uma obra que é necessário realizar... Trata-se do destino profundo de cada
qual, e também dos obstáculos com que cada qual tropeçará. Trata-se de
decisões graves, irreversíveis, que é preciso tomar...

—Em dois dos sonhos recolhidos entre os fragmentos publicados em seu Diário, o
tema é a memória. Em um escolhera e esquecera uns objetos preciosos, sentiu a
ameaça de perder a memória e ajoelhava-se ante sua mulher, a única capaz de lhe
salvar... Citarei as palavras em que relata o outro: «Dois anciões que morrem cada
qual por seu lado sozinhos. Com eles desaparecia para sempre e sem deixar rastro,
sem testemunhas, uma história admirável (que eu conhecia). Terrível tristeza.
Desespero. Retirei a uma habitação contigüa e rezei. Dizia-me: se Deus não existir,
tudo terminou, tudo é absurdo».

—Consignei também outros sonhos, ou ao menos alguns episódios. Por


exemplo, aquele em que via cair as estrelas e converter-se em pãozinhos. Eu
os distribuía, dizendo: «Comam! Ainda estão quentes...». É evidente que se
recolhi estes dois sonhos na seleção dos Fragmentos foi porque me pareceram
importantes. A perda da memória é algo que efetivamente me obceca. Eu
possuía uma memória extraordinária e agora me dou conta de que já não é o
mesmo. Também obcecou-me sempre a perda da memória como
desaparecimento de um passado, de uma história que só eu conhecia.
O sonho dos dois anciões... Se Deus não existir, tudo é cinza. Se não
houver um absoluto que dê significado e valor a nossa existência, neste caso a
existência tampouco tem sentido. Não sei o que ocorrerá aos filósofos que
pensam deste modo; para mim, isso significaria não só o desespero, mas
também, ainda mais, uma espécie de traição. Porque isso não é certo, sei
muito bem que não o é. Se chegasse a pensar que isso é certo, a crise seria tão
profunda que, além do desespero pessoal, o mundo ficaria «quebrado», como
dizia Gabriel Marcel.
Nesses sonhos, possivelmente, manifeste-se meu temor, meu terror ante
a possibilidade de que chegue a desaparecer uma herança. O que ocorre aos
dois anciões pode ocorrer também à Europa, com sua herança espiritual
multimilenar, posto que as raízes da Europa se afundam no Próximo Oriente
antigo. Esta herança pode desaparecer. E seria uma perda não só para isso
que chamamos a Europa, mas também, para todo mundo. Por isso,
aterrorizava-me o desespero daqueles dois anciões que morriam isolados e
sem transmitir nada. É muito possível que nossa herança em vez de ser
recebida e enriquecida por outras culturas, seja desprezada, ignorada e
inclusive destruída. É notório que as bombas atômicas podem destruir as
bibliotecas, os museus e até as cidades... Mas, uma certa ideologia, ou
algumas ideologias, podem suprimi-la igualmente. Este seria talvez o grande
crime contra o espírito, pois, continuo pensando que a cultura, inclusive a
cultura chamada profana, é uma criação do espírito.

—Ao evocar a herança européia perdida, desprezada em uma palavra, leva-nos a olhar
nossa cultura como uma mais das quais a Europa saqueou, quebrando, cuja memória
tratou de conservar em sua obra. Em seu Diário escreveu páginas estremecedoras
sobre este tema: vê nossos países ocupados por uns povos que nada sabem do que
foram nossas culturas, nossos livros.

—Sim, seria uma tragédia, espiritual e cultural. Saqueamos outras culturas.


Felizmente, há outros ocidentais que decifraram as línguas, conservando os
mitos, guardando algumas obra mestras de arte. Sempre houve um punhado
de orientalistas, de filósofos, de poetas que salvaram o sentido de certas
tradições espirituais exóticas, extra-européias. Mas, até posso imaginar uma
possibilidade terrível: a indiferença; o desprezo absoluto para essa classe de
valores. Posso imaginar uma sociedade em que ninguém se interessaria por
uma Europa destruída, esquecida, desprezada. É um pesadelo, mas também
uma possibilidade.

EUROPA

RETORNO À BUCARESTE
—Entre seu retorno à Romênia e sua chegada à Paris, transcorreram quase quinze
anos. Hoje ocupar-nos-emos dessa etapa, rica em acontecimentos. Mas, acima de
tudo, por que abandonou à Índia ao cabo tão somente de três anos?

—Desde Calcutá escrevera várias cartas exaltadas a respeito de meus últimos


descobrimentos na Índia. Desde fazia seis meses vivia na solidão de um
ashram. Meu pai adivinhou que minha intenção era permanecer na Índia três
ou quatro anos mais, até chegou a temer que não retornasse nunca, que
escolhesse a solidão de um monastério, ou que me casasse com uma indiana.
Acredito que acertava... Como ele se encarregava de renovar minha
prorrogação militar, aquele ano, em janeiro de 1931, não o fez. No outono
escreveu-me que devia retornar. Meu pai era um antigo oficial...
Acrescentava: «Seria para mim uma vergonha e uma grande desonra para a
família que meu filho fosse um rebelde». Retornei. Tinha a intenção de voltar
em seguida à Índia para continuar minhas investigações. Enquanto isso,
defendi minha tese, sobre o ioga, e a comissão universitária pediu-me que
preparasse sua publicação em francês.

—No sorteio iria à artilharia anti-aérea, mas por causa de sua miopia destinaram-lhe
como intérprete de inglês nos escritórios... Sua tese publicou em 1936 sob o título: Le
ioga, essai sur les origines de la mystique indienne... Muito em breve converter-
se-ia em escritor célebre, ao mesmo tempo, que brilhante universitário.

A GLÓRIA SUPERADA
—Por onde começamos? Pela fama?

—Sim, «pela fama», pois, ensinou-me muitas coisas. Apresentei Maitreyi («A
noite bengalesa») em um concurso de novelas inéditas. Obtive o primeiro
prêmio. Era, ao mesmo tempo, um romance de amor e uma novela exótica; o
livro teve um enorme êxito inesperado que surpreendeu ao editor e a mim
mesmo. Fizeram-se numerosas reedições. Aos vinte e seis anos já era
«célebre»; os jornais falavam de mim, as pessoas reconheciam-me na rua, etc.
Foi uma experiência muito importante, pois conheci muito jovem o que quer
dizer «ser famoso», «ser admirado». Trata-se de algo agradável, mas nada
extraordinário. Deste modo deixei de sentir aquela tentação para o resto de
minha vida. Acredito, entretanto, que se trata de uma tentação natural em
todos os artistas, em todos os escritores. Todo autor espera obter algum dia
um grande êxito, ser conhecido e admirado pela massa de seus leitores. Eu o
tive muito jovem e sentia-me feliz daquele êxito. Aquilo me ajudou a escrever
novelas que não tinham por fim alcançar o êxito.
Em 1934 publiquei Le Retour du Paradis, primeiro volume de uma
trilogia que compreendia além: Les Houligans e Vita nova. Queria ser o
representante de minha geração. Aquele primeiro volume teve um certo
êxito. Pensava que aqueles jovens eram verdadeiros huliganes, que
preparavam uma revolução espiritual; cultural, se não política, ao menos real,
concreta. Os personagens eram, por conseguinte, jovens escritores,
professores, atores. Gente que além disso falava muito. Em resumo, um
quadro de intelectuais e pseudo-intelectuais que, no meu entender, parece-se
um pouco à Contraponto de Huxley. Era um livro muito difícil. Elogiado pela
crítica, mas não teve o mesmo êxito de público que Maitreyi.
Naquele mesmo ano publiquei uma novela quase joyciana, La lumiere
qui s'éteint.

—O mesmo título de uma novela de Kipling. Foi intencional?

—Sim, por causa de uma certa semelhança entre os dois personagens


centrais... Várias vezes tratei de reler esse livro: impossível, não entendo
nada. Tinha-me impressionado muito um fragmento de Finnegans Wake,
«Anna Livia Plurabelle». Acredito que empreguei, pela primeira vez na
Romênia, o «monólogo interior» de Ulisses. Não teve nenhum êxito. Mesmo
os críticos não sabiam o que dizer. Era absolutamente ilegível.
—Esta influência de Joyce, o que supõe de gosto pela expressão cuidada, surpreende-
me um pouco. Acredito, que até então, seu interesse estava mais em utilizar a língua
como um meio. Foi naquela ocasião que se decidiu escrever como poeta?

- Em certo sentido, sim... Mas devo dizer que o que mais me interessava era
descrever, graças ao «monólogo interior», o que ocorre na consciência de um
homem que perde a vista durante alguns meses. Precisamente, nesse
«monólogo», no que pensa, vê, imagina em meio dessas trevas, tratei de jogar
com a linguagem e isso com a maior liberdade. Daí que o livro resulte quase
incompreensível. Entretanto, o argumento é muito singelo e muito belo. Um
bibliotecário trabalha de noite, na biblioteca da cidade, para corrigir as provas
de um texto grego sobre astronomia, conforme acredito, enfim, um texto
misterioso. Em um determinado momento nota odor de fumaça e inquieta-se,
vê correr alguns ratos; quando na sala penetra a fumaça; abre a janela, a porta
e na sala de leitura, sobre uma grande mesa, vê uma jovem, completamente,
nua e, junto dela, o professor de línguas eslavas, que tinha fama de ser um
personagem diabólico, um mago. À vista do fogo, o professor desaparece. O
bibliotecário agarra a jovem, que se desvaneceu e salva-a. Mas, enquanto
desce a escada de mármore, do teto desprende-se um adorno que cai sobre
ele e deixa-lhe cego durante seis meses. Enquanto permanece no hospital
tratará de entender o ocorrido, porém, tudo parece-lhe absurdo. À meia-
noite, na biblioteca de uma cidade universitária, um professor vestido e uma
mulher nua, uma mulher a qual conhece bem, pois, trata-se da ajudante do
professor de línguas eslavas... O bibliotecário ouça dizer que o professor se
dispunha a realizar um rito tântrico e que esse rito é, precisamente, a causa
do incêndio. Logo recupera a visão, em sua alegria por ver de novo —ver,
não ler— empreende uma viagem. Não recordo exatamente o final, pois,
como lhe disse, nunca consegui reler esta novela. Lembro-me que em um
determinado momento começa o bibliotecário a falar em latim, mas a pessoas
que não são, como ele, investigadores e, portanto, não lhe podem entender.
Possivelmente, uma lembrança de Stephen Dedalus? Tudo torna-se
misterioso, enigmático... Em qualquer caso, a novela, ilegível, não teve
nenhum êxito. Depois deste terceiro livro senti-me livre. Não esqueceram
meu nome, mas, conheciam-me como autor de A noite bengalesa. Sentia-me
dispensado da obrigação de agradar.

—Basta ler seu Diário, com data 21 de abril de 1963, para compreender que se trata
de uma história muito pessoal. Não lhe farei perguntas sobre essa anotação, por razões
evidentes. Que o curioso leitor se ocupe de ir a essa passagem para ver e entrever por
si mesmo. Quanto a mim, sinto-me feliz por ver surgir estas imagens fascinantes.
Não poderiam dar lugar a uma nova criação fantástica, uma das quais agora se dispõe
a escrever? Mas, voltemos para sua experiência da fama: sente-se igualmente
insensível à lembrança dos homens? É-lhe indiferente a idéia de deixar ou não uma
obra atrás de si?

—De vez em quando digo que me lerão em romeno, que o farão meus
compatriotas, mas, não por meus méritos de escritor, mas sim porque, em
definitivo, fui professor em Chicago, publiquei em Paris, e são poucos quão
romenos tiveram estas oportunidades. Também ficarão, certamente, o grande
Ionesco e Cioran...

—Entretanto, agora você é um homem ilustre... Como reage ante o desejo que, sem
dúvida, sentirão muitos de seus leitores em lhe conhecer? Como acerta para viver com
essa fama, ou essa notoriedade que adquiriu?

—Felizmente, ignoro todas essas coisas, pois, vivo oito meses do ano em
Chicago e alguns meses em Paris. Geralmente rejeito convites, conferências,
inclusive, velórios e reuniões sociais. Ignoro, portanto, essa carga pesadíssima
da celebridade, ou notoriedade. Admiro quem tem a força necessária para
suportar as conseqüências dessa glória: televisão, entrevistas, jornalistas.
Tudo isso, resultar-me-ia muito penoso. Não se trata da perda de tempo —
falar uma hora com um jornalista, ou assistir à inauguração de uma exposição
não é tão grave—, a não ser o compromisso que se adquire, o encadeamento e
a posição em marcha de uma engrenagem. Além disso, ver-me-ia obrigado a
dizer e repetir na rádio, ou na televisão coisas que não gosto em modo algum
repetir. Não tenho essa vocação, entretanto, admiro quem é verdadeiramente
capaz de lutar também nessa frente.

UNIVERSIDADE, «CRITERION» E «ZALMOXIS»


—Já é um jovem novelista famoso e, ao mesmo tempo, orientalista; sei também que ao
começar a ditar seus cursos, amontoa-se a seu redor uma multidão de leitores de A
noite bengalesa, pelo menos, até o momento em que a seriedade do trabalho
desanima aos simples curiosos... Trabalha como ajudante de Naë Ionesco...

—Ionesco era professor de lógica, de metafísica, de história da metafísica e, ao


mesmo tempo, dirigia um periódico. É um homem que exerceu uma forte
influência na Romênia. Cedeu-me o curso de história da metafísica e um
seminário de história da lógica, convidou-me também a dar um curso de
história das religiões antes que o de história da metafísica. Dava, por
conseguinte, algumas lições sobre o problema do mal e da salvação nas
religiões orientais, sobre o problema do ser na Índia, sobre o orfismo, o
hinduísmo, o budismo. Quanto ao seminário de lógica, comecei por um tema
pretensioso: «Sobre a dissolução do conceito de casualidade na lógica
medieval budista». Seminário muito difícil, ao qual assistiu um grupo
reduzido. Mais tarde escolhi a Docta ignorantia de Nicolas de Cusa e o livro XI
da Metafísica de Aristóteles.

—Dedica-se ao ensino e, ao mesmo tempo, funda a revista «Zalmoxis».

—Com efeito, acreditava então, e acredito agora, que não há contradição entre
a investigação científica e a atividade cultural. Comecei a preparar
«Zalmoxis» pelo ano 1936, mas até 1938 não apareceu o primeiro número,
que tinha quase trezentas páginas. Eu queria fomentar o estudo científico das
religiões na Romênia. Nos meios acadêmicos, esta disciplina não tinha ainda
existência autônoma. Por exemplo, como já lhe disse, eu ensinava história das
religiões no marco da cadeira de história da metafísica. Um de meus colegas
falava de mitos e lendas em uma cadeira de etnologia e folclore. Então, para
convencer aos ambientes universitários de que se tratava de uma disciplina
muito importante, a qual era possível fazer contribuições significativas; e
como na Romênia contávamos com alguns investigadores interessados pela
história das religiões gregas, por exemplo, decidi publicar «Zalmoxis». Dirigi
a todos os investigadores, muito numerosos, que conhecia no estrangeiro.
Uma revista internacional, por conseguinte, publicada em francês, inglês e
alemão com a colaboração de vários investigadores franceses. Apareceram
três volumes. Esta foi, possivelmente, a primeira contribuição em nível,
digamos, europeu da Romênia à história das religiões.

—Suponho que os textos reunidos sob o título De Zalmoxis ao Gengis Khan


apareceram antes naquela revista...

—Não, salvo O culto da mandrágora na Romênia. O resto apareceu em outras


publicações. Por exemplo, o texto sobre o simbolismo aquático, que o incluí
em Imagens símbolos.

—Em seu Diário fala de «Criterion». Do que se trata exatamente?

—Organizamos este grupo, «Criterion», com pessoas que não são conhecidas
no estrangeiro, salvo Cioran; acredito que também assistia Ionesco. Dávamos
conferências. Era uma espécie de simpósio no qual participavam cinco
conferencistas. Abordávamos problemas muito importantes para aquela
época —nos anos 1933, 1934 e 1935— na Romênia: não só Gandhi, Gide,
Chaplin, mas também, Lenin, Freud. Como vê, temas muito controvertidos. E
além disso, a arte moderna, a música contemporânea, o jazz inclusive...
Convidávamos representantes de toda classe de movimentos. Para Lenin
houve cinco conferencistas, como de costume; o presidente era um célebre
professor universitário; um dos conferencistas era Lucretiu Patrascanu
secretário, por então, do partido comunista; outro era o engenheiro Belu
Silber, ideólogo comunista, mas, havia também um representante do Guarda
de Ferro, Poliproniade, e um representante, diríamos, da política centro-
liberal, que era conhecido deste modo como economista, filósofo e teólogo,
Mircea Vulcanescu. Estabeleceu-se um debate contraditório, acredito que este
tipo de diálogo era muito importante. Quando escrevi Le Retour du Paradis,
disse-me que era precisamente um pouco parecido ao paraíso o que
estávamos a ponto de perder, pois, nos anos 1933-1934 ainda se podia falar.
Mais tarde não houve possivelmente censura em sentido estrito, mas foi
necessário escolher temas mais culturais. «Criterion» teve uma enorme
repercussão em Bucareste. Foi ali onde pela primeira vez se falou, em 1933,
do existencialismo, de Kierkegaard e de Heidegger. Sentíamo-nos
comprometidos numa campanha contra os fósseis. Queríamos recordar à
nosso auditório que existiam Picasso e Freud. Bem entendido, que Freud era
conhecido já naquele ambiente, mas ainda ficava muito por dizer dele, quão
mesmo de Picasso. Era preciso discutir a respeito de Heidegger e Jaspers.
Falar de Schönberg... Sentíamos que precisávamos integrar a cultura na
cidade. Todos estávamos convencidos de que não era suficiente falar na
universidade. Teríamos que baixar de verdade à arena. Pensávamos que,
como na Espanha, graças ao Unamuno e Ortega, o periódico converteu-se em
instrumento de trabalho para o intelectual. Não tínhamos o complexo de
inferioridade que afligia à nossos professores, que se negavam a publicar
artigos em um jornal e só aceitavam fazê-lo em uma revista acadêmica. Nós
queríamos nos dirigir a um público mais amplo e animar a cultura romena
que, sem isso, corria perigo de sumir-se no provincialismo. Não era eu o
único que pensava assim, evidentemente, tampouco era o adiantado daquele
grupo. Todos sentiam a necessidade daquilo e dávamo-nos conta de que
éramos os únicos capazes de fazê-lo, pois, éramos jovens e não tínhamos
medo às possíveis conseqüências ingratas (quanto à «carreira» universitária,
por exemplo).

LONDRES, LISBOA
—Em 1940 sai da Romênia e marcha à Londres como agregado cultural...

—O último governo do rei Carol previa dificuldades para a Romênia. Decidiu


enviar ao estrangeiro vários jovens universitários em qualidade de agregados
e conselheiros culturais. Eu fui designado para partir à Inglaterra, e ali vivi a
Blitzkrieg. Utilizei as lembranças daquela guerra no bosque proibido. Minha
primeira imagem é uma cidade cheia de enormes globos que deviam proteger
a dos bombardeiros. E logo a noite: todo negro, a camuflagem absoluta.
Depois do grande bombardeio de 9 de setembro, alguns serviços da legação
foram evacuados à Oxford. Aquela noite fez recordar-me alguns incêndios de
Bosch: uma cidade que arde, o céu em chamas... Tive uma enorme admiração
pela coragem e a resistência dos ingleses, por aquele gigantesco esforço de
armamento a partir quase de um nada. Daí que sempre, mesmo em Londres
ou em Lisboa, acreditei na vitória dos aliados.
Quando a Inglaterra rompeu suas relações diplomáticas com a Romênia
por causa da entrada das tropas alemãs em 1941, fui transladado à Lisboa. Ali
permaneci quatro anos. Trabalhei e aprendi o português, muito bem por
certo. Comecei a redigir em romeno o Tratado de história das religiões e uma
parte de O mito do eterno retorno. Pensava escrever um livro sobre Camões,
não só porque eu gosto muito deste poeta, mas sim, porque vivera na Índia e
evoca Ceilão, África, o Oceano Atlântico. Eu gosto muito de Lisboa. Aquele
grande lugar ante o enorme estuário do Tajo, uma praça soberba; jamais a
esquecerei. E a cor pastel da cidade, branco e azul por toda parte... Pela tarde,
em todas as ruas se escutavam melodias, todo mundo cantava. Era uma
cidade que parecia ficar como à margem da história, em todo caso da história
contemporânea, fora do inferno da guerra. Era uma cidade neutra em que
podia observar a propaganda dos dois bandos, mas, eu preocupava-me de
seguir sobretudo a imprensa dos países neutros. Pelo resto, ocupava-me dos
intercâmbios culturais: conferencistas, músicos, matemáticos, autores e
companhias de teatro. Era uma atividade apreciada pelo ministério, mas não
se preocupavam muito de tudo aquilo. Eu vivia um pouco à margem da
legação, felizmente. A vida «diplomática» é muito fastidiosa, sufocante,
exasperante. Sempre se vive «em família», sempre entre membros do corpo
diplomático... Eu não poderia viver assim muito tempo.

A FORÇA DO ESPÍRITO
—Este período que passou fora da Romênia, mas na Europa, em Londres, em Lisboa e
finalmente em Paris, é um período trágico para a Romênia e para uma grande parte
do mundo: a ascensão do fascismo, os anos negros da guerra, a queda do nazismo e,
na Romênia, a instauração de um regime comunista. Como viveu esses
acontecimentos dos quais foi testemunha na realidade, ou através do pensamento?

—Para mim, a vitória dos aliados era uma evidência. Ao mesmo tempo,
quando a Rússia entrou em guerra, soube que aquela vitória seria também da
Rússia. E sabia também, o que isso significaria para os povos da Europa
oriental. Eu saíra da Romênia na primavera de 1940 e, por conseguinte, só
tinha informações de segunda mão do que ali estava ocorrendo. Todavia,
temia uma ocupação russa, sequer passageira. Sempre inspira medo um
vizinho gigante. Os gigantes são para admirar de longe. Tinha medo.
Entretanto, era preciso escolher entre a esperança e o desespero; de minha
parte sempre estou contra um desespero dessa natureza, política e histórica.
Então escolhi a esperança. Disse-me que aquilo era uma prova mais. Nós
conhecemos muito bem as provas da história, na Romênia, igualmente, na
Iogoslávia, ou na Bulgária, porque estivemos situados entre os impérios. Mas,
seria inútil resumir a história universal, que todos conhecem. Somos algo
assim como os judeus, que se achavam situados entre os grandes impérios
militares de Assíria, Egito, Pérsia e o Império Romano. Os pequenos
terminam sempre por ser esmagados. Então, escolhi o modelo dos profetas.
Politicamente, não havia solução alguma, ao menos no momento.
Possivelmente, houvesse mais tarde. Para mim e para outros emigrados
romenos, o importante era achar o modo de salvar nossa herança cultural, ver
a maneira de seguir criando em meio àquela crise histórica. O povo romeno
sobreviverá, é óbvio, mas, o que se pode fazer do estrangeiro para lhe ajudar
a sobreviver? Sempre acreditei que há uma possibilidade de sobreviver
através da cultura. A cultura não é uma «superestrutura», como acreditam os
marxistas, mas sim, é a condição específica do homem. Não é possível ser
homem sem ser, ao mesmo tempo, um ser cultural. Então disse: é necessário
continuar, terei que proteger àqueles valores romenos que correm o risco de
ser afogados no país; acima de tudo a liberdade de investigação, por
exemplo, o estudo científico da religião, da história, da cultura. Quando
cheguei à Paris, em 1945, fui para prosseguir minhas investigações, para pôr
em dia alguns livros em que tinha grande interesse, sobretudo o Tratado de
história das religiões e O mito do eterno retorno.
Perguntou-me como vivi aquele período trágico. Disse-me que se
tratava de uma grande crise, mas que o povo romeno já tinha conhecido
outras ao longo de sua história, três ou quatro crises por século. Os que
ficaram ali fariam o que o destino lhes permitisse fazer. Mas aqui, no
estrangeiro, não teria que perder tempo em nostalgias políticas, com a
esperança de uma intervenção iminente da América e estas coisas. Estávamos
em 1946, 1947, 1948: naqueles anos eu estava realmente convencido de que
uma resistência não pode ser, verdadeiramente, importante senão se fizer
algo. Porém, a única coisa que era possível fazer era a cultura. Eu mesmo,
Cioran e muitos outros escolhemos trabalhar, cada qual conforme a sua
vocação. O qual não quer dizer que nos desentendêssemos do país. Ao
contrário, aquela era a única maneira de contribuir alguma ajuda. Certo que
sempre é possível assinar um manifesto, protestar na imprensa. Mas isso
poucas vezes é o essencial. Aqui, em Paris, organizamos um círculo literário e
cultural, a Estrela da manhã (Luceafarul), adotando o título de um poema
célebre de M. Eminescu, um centro de investigações romenas. Já vê:
tentávamos manter a cultura da Romênia livre e, sobretudo, publicar textos
que não fosse possível dar a conhecer na Romênia. Literatura em primeiro
lugar, mas também, estudos históricos e filosóficos.

—Em 25 de agosto de 1947 escreve em seu Diário: «Alguns dizem-me que é preciso
solidarizar-se com o momento histórico. Hoje estamos dominados pelo problema
social, mais exatamente pelo problema social tal como o expõem os marxistas.
Teremos que responder, por conseguinte, através da própria obra, de uma ou de outra
maneira, ao momento histórico em que vivemos. Certo, mas eu trataria de responder
como o fizeram Buda e Sócrates: superando seu momento histórico e criando outros,
ou preparando-os». Estas palavras estão escritas em 1947.

—Sim, porque, em definitivo, não podemos considerar Buda ou Sócrates


como homens que «evadem-se». Eles partiram de seu momento histórico e
responderam àquele momento histórico, só que em um plano distinto e com
outra linguagem. E foram eles os que puseram em marcha as revoluções
espirituais, na Índia assim como na Grécia.

—Em seu Diário adverte-se que levava muito mal a exigência tantas vezes exposta ao
intelectual de que consuma suas energias na agitação política.

—Sim, quando conheço antecipadamente que essa agitação não pode dar
nenhum resultado. Se alguém me dissesse: manifestará na rua todos os dias,
publicará artigos durante três meses, assinará todos os manifestos, e depois
disso não digo que a Romênia será livre, mas sim, ao menos, os escritores
romenos serão livres para publicar seus poemas e suas novelas, faria-o, faria
tudo isso. Mas sei que, de momento, semelhante atividade não pode ter
conseqüências imediatas. Terá que administrar prudentemente as próprias
energias e atacar ali onde cabe a esperança de obter alguma repercussão, um
eco ao menos. Isso é o que alguns exilados romenos fazem nesta primavera, a
propósito do movimento arrojado na Romênia pelo Paul Goma. Organizaram
uma campanha de imprensa que obteve resultados positivos.

—Em seu caso imaginava que se trataria de uma certa indiferença para a coisa
política. Mas, agora caio em conta de que se trata melhor de lucidez e de uma
negativa à ação ilusória e à distração. Não se pode falar de indiferença.

—Não, não se trata de indiferença. Por outro lado, acredito que em


determinados momentos históricos há uma certa atividade cultural,
especialmente a literatura e a arte, capaz de constituir uma arma, um
instrumento político. Quando penso na ação dos poemas de Puchkin... Para
não falar de Dostoievski! E penso também em alguns contos de Tolstoi.
Acredito que há momentos em que quanto fazemos no terreno da arte, das
ciências, da filosofia não deixará de ter repercussões políticas: mudar a
consciência do homem, infundir-lhe uma certa esperança. Penso, portanto,
que seguir trabalhando e criando não significa afastar do momento histórico.

—É inevitável pensar aqui em um homem como Soljenitsin.

—Admiro-lhe enormemente. Sim, admiro ao escritor. Mas, admiro sobretudo


sua coragem de testemunha, o fato de que aceitou o papel de testemunha,
com todos seus riscos, como um mártir. (Entre parêntese, a palavra latina
martyr deu em romeno martor, que quer dizer «testemunha».) Felizmente,
possuía também alguns meios, seu nome que tem um certo peso, e não só o
prêmio Nobel, mas também além disso, o grande êxito popular de suas
novelas. E além disso, sua imensa experiência...

—Sobre as relações do intelectual com a política, em seu Diário escreve esta nota em
16 de fevereiro de 1946: «Reunião em minha habitação do hotel com uma quinzena de
intelectuais e estudantes romenos. Convidei-os a discutir o problema seguinte:
Estamos ou não de acordo em que hoje, e sobre tudo amanhã, o 'intelectual', pelo
fato de ter acesso aos conceitos, será considerado cada vez mais como o inimigo
número um, e que a história lhe confia (como tantas vezes no passado) uma missão
política? Nesta guerra de religiões em que nos achamos comprometidos, ao
adversário só lhe preocupam as "minorias", que, por outra parte, são muito fáceis de
suprimir com ajuda de uma polícia bem organizada. Em conseqüência, "fazer
cultura" é no momento a única política eficaz que têm a seu alcance os exilados.
Inverteram-se as posições tradicionais; já não são os políticos os que estão no centro
concreto da história, a não ser os sábios, as 'minorias intelectuais'. (Prolongada
discussão que será preciso resumir algum dia)».
—Sim, acredito que essa passagem resume perfeitamente o que eu queria
dizer. Penso, com efeito, que a presença do intelectual, no verdadeiro sentido
da palavra —os grandes poetas, os grandes novelistas, os grandes filósofos—
acredito que essa presença triunfa enormemente a qualquer regime policial,
ou ditatorial de direita, ou de esquerda. Sei muito bem, porque li muito
atentamente quanto possa ler-se a respeito dele o que Thomas Mann
representava para a Gestapo, a polícia alemã. Sei o que um escritor como
Soljenitsin representa, ou o que representa um poeta romeno; sua mesma
presença física saca de gonzo aos ditadores, e por isso digo que é preciso
prosseguir a criação cultural. Um grande matemático afirmava que se um dia
os cinco matemáticos mais importantes tomassem o mesmo avião para ir a
um congresso e esse avião explodisse, no dia seguinte ninguém seria capaz
de entender a teoria de Einstein... Possivelmente, seja um pouco exagerado,
mas esses «cinco» ou «seis» são muito importantes.
ENCONTROS
—Durante aqueles anos conheceu homens eminentes, Ortega e Gasset e Eugenio
d'Ors, por exemplo.

—Conheci Ortega em Lisboa. Não se considerava exatamente exilado, mas de


qualquer maneira, não queria retornar à Madrid. Vinha muitas vezes almoçar
conosco e mantínhamos longas discussões. Eu admirava-lhe muito.
Admirava sua capacidade para seguir trabalhando apesar de todos os seus
problemas pessoais e políticos. Na época preparava seu livro sobre Leibniz.
Era um homem de uma ironia mordaz, ao que todos temiam um pouco
quando falava. Um aristocrata. Falava um francês excelente e preferia falar
em francês, inclusive com os alemães, sobretudo com um certo jornalista
alemão, que também falava muito bem, pois passara seis anos em Paris como
correspondente de um grande jornal. Tenho que advertir que aquele alemão
não era nazista; participara de um complô contra Hitler e seus familiares
foram executados... Ortega lamentava, indubitavelmente, ser menos
conhecido na França que na Alemanha, onde foram traduzidos quase todos
os seus livros. Na França, conforme acredito, unicamente, conheciam os
Ensaios espanhóis, publicados por Stock, que compreendiam A rebelião das
massas. É um ensaio que ainda se pode ler, é absolutamente atual, pois as
massas estão cada vez mais movidas pelas ideologias. Por outro lado, quanto
dizia a propósito da história, conservava todo seu interesse, o mesmo quando
escreveu a respeito das culturas «marginais», por exemplo, a cultura
espanhola, integrada na cultura européia, mas não como ele queria. Acho
muito importante seu esforço para despertar à consciência espanhola a uma
certa forma de hispanismo, ao mesmo tempo que de «europeismo». Foi além
disso, um homem que já se expôs o problema da máquina: teve que chegar a
um diálogo com o maquinismo. Sim, admirava-lhe muito. Não era tão
somente um professor de filosofia, um excelente ensaísta e o magnífico
escritor que já conhece, mas sim além disso, um grande jornalista. Também
ele acreditava, como meu professor Naë Ionesco, que o periódico é hoje a
verdadeira arena, em vez das revistas ou os livros; que é precisamente
através do periódico como se estabelece contato com o público, ao que é
possível influenciar e «cultivar» por este meio. Na Espanha continua lendo,
reeditando, comentando Ortega. Não entendo que seja tão mal conhecido na
França, que tenha sido tão escassamente traduzido.

—E d'Ors?

—Ia eu freqüentemente à Madrid comprar livros e ali tive a ocasião de me


entrevistar, longamente, duas ou três vezes, com Eugenio d'Ors. Era homem
de trato mais amável que Ortega. Sempre sorria. Acredito que sua maior
ambição era ser bem conhecido na França. Eu admirava nele o jornalista
genial, ao dilettante genial. Admirava sua elegância literária, sua erudição.
Ortega e d'Ors se parecem muito deste ponto de vista. Ambos descendiam de
Unamuno, apesar de que em muitos pontos se separavam dele... Admirava-
me seu jornal, o Novo Glossário, o jornal de seus achados intelectuais: cada dia
escrevia uma página em que dizia exatamente o que descobrira, ou pensara
naquele mesmo dia ou, digamos, na véspera; e publicava ao mesmo tempo.
comprometeu-se a não se repetir nunca. Eu admirava este esforço por
manter-se alerta, esta decisão de expor cada dia novas perguntas e tratar de
dar-lhes resposta. É uma obra interessante, mas desconhecida. Os cinco ou
seis volumes do Novo Glossário estão esgotados na Espanha e nunca foram
traduzidos. Pelo resto, tinha pontos de vista curiosos sobre o estilo
manuelino; é célebre seu livro sobre o barroco. Nesta mesma ordem de idéias,
escreveu uma espécie de filosofia do estilo, Cúpula e monarquia. É uma
filosofia das formas, uma filosofia da cultura elaborada por um
tradicionalista. Há tradução francesa desta obra. Se encontrar este livro em
uma livraria antiga, não o deixe de ler. É apaixonante.

—O que não me diz é que Eugenio d'Ors admirava Mircea Eliade.

—É certo. Conhecia «Zalmoxis» e gostara muito de O mito do eterno retorno.


Esta admiração gerou-se mediante um intercâmbio epistolar e algumas
longas conversações.

—Em 3 de outubro de 1949 anota em seu Diário: «Eugenio d'Ors envia-me um novo
artigo sobre O mito do eterno retorno, que leva por título Trata-se de um livro
muito importante. Mais que qualquer outro crítico cujas resenhas lera eu, Eugenio
d'Ors sente-se entusiasmado pelo fato de que tenha posto de relevo a estrutura
platônica das antologias arcaicas e tradições (''populares")». É certo que acrescenta:
«Espero, entretanto, que se entenda também o outro aspecto de minha interpretação,
relativo à abolição ritual do tempo e, em conseqüência, a necessidade da "repetição".
As conversações que a respeito deste tema mantive até agora foram decepcionantes...»
Ademais, também agradara d'Ors o Tratado...

—Sim, foi minha última obra que pôde ler. Morreu no ano seguinte, conforme
acredito.

—Nomeou ao Unamuno a propósito de Ortega e Eugenio d'Ors.

—Não cheguei a lhe conhecer. Morreu, conforme acredito, em 1936, eu fui à


Espanha, pela primeira vez, em 1941. Entretanto, senti sempre uma grande
admiração por ele. Sua obra é extremamente importante e um dia será
descoberto em todas as partes. Há nele um certo «existencialismo» que me
toca muito de perto. Também admiro muito ao grande poeta em que chegou
a converter-se, que foi descoberto vinte anos depois de sua morte, quando
foram publicados seus últimos poemas. Sim, trata-se de um homem
admirável, sua obra é essencial por conseguir mostrar as raízes «viscerais» da
cultura. Igualmente à Gabriel Marcel, Unamuno insistia na importância do
corpo. Gabriel Marcel dizia que os filósofos ignoraram o corpo, que
ignoraram que o homem é um ser encarnado. Unamuno por sua vez, insistia
na importância espiritual da carne, do corpo, do sangue, pelo que ele
chamava «a experiência visceral do espírito». Algo muito original, muito
novo. Possuía, além disso, um imenso talento como escritor, como poeta,
prosista, ensaísta...

—Estas Conversações serão, entre outras coisas, uma incitação a reler uns autores
tão pouco lidos e que são três grandes escritores: Ortega, d'Ors, Unamuno...

—Sim, sobretudo Unamuno.

—Em Londres entrou em contato com um romeno que foi muito conhecido, logo um
pouco esquecido e ao que hoje se volta a editar, Matila Ghyka...

—Sim, Matila Ghyka era conselheiro cultural da embaixada da Romênia.


antes de lhe conhecer pessoalmente já lera, é óbvio, O número áureo, mas não
conhecia sua bela novela A chuva de estrelas. Admirava-o muito, apesar da
diferença de idades chegamos a ser muito amigos. Possuía uma cultura
prodigiosa, tão científica como literária e histórica. Já sabe que foi oficial de
marinha, logo agregado naval em São Petersburgo e em Londres. Depois da
Segunda guerra mundial ocupou a cadeira de estética na universidade de Los
Angeles. Além de seu trabalho pessoal, lia ao menos um livro cada dia. Daí
que assinava a cinco organizações de leitura. Tinha, às vezes, opiniões
singulares; acreditava, por exemplo, que a guerra recém começada era o
supremo enfrentamento entre duas ordens de cavalaria, os templários e os
cavaleiros teutônicos. Um dia mostrou-me a fotografia de uma família muito
numerosa reunida na suntuosa escalinata de uma mansão; em uma janela do
segundo piso podia distinguir o rosto velado de uma dama anciã. Mas,
aquela senhora anciã, precisou Matila Ghyka com voz serena e profunda,
morrera alguns meses antes de que lhe tomasse a fotografia... Em Paris o vi
uma só vez, em 1950; acabava de escrever uma novela policial que se
propunha publicar com pseudônimo. Seus últimos anos foram muito difíceis;
traduzia qualquer classe de livros para Payot, aceitava qualquer tipo de
trabalho, apesar de que passava já dos oitenta anos.

PARIS, 1945

Paris
—Em 1945 decide não retornar à Romênia e viver em Paris. Por que esta eleição?

—Em 1945 a Romênia entrava em um processo histórico que resultava quase


evidente, com uma mudança brutal, imposto desde fora, das instituições
sociais e políticas. Por outro lado, depois dos quatro anos passados em
Lisboa, sentia a necessidade de viver em uma cidade em que me fosse
possível freqüentar umas bibliotecas bem dotadas. Começava o Tratado de
história das religiões em Londres, graças ao British Museum; segui trabalhando
nesta obra em Oxford, graças à magnífica biblioteca da universidade; em
Lisboa não foi possível realmente trabalhar. Instalei-me em Paris com idéia
de permanecer aqui algum tempo, uns anos possivelmente, para trabalhar e
terminar o livro. Tive a sorte de ser convidado imediatamente pelo professor
Georges Dumézil a dar um curso livre na Escola de estudos superiores.
Também foi Georges Dumézil quem me apresentou no Gallimard e escreveu
o prefácio a meu Tratado.

—É acolhido pelo professor Dumézil. Entretanto, começa, e disso há rastros no


Jornal, uma vida de grande penúria, de incerteza quanto ao futuro. É também um
período de intenso trabalho, não só científico, mas também literário. Pode-nos falar
desta vida de «estudante pobre», como alguma vez disse, de trabalhador , de homem
de ciência, de escritor?

—Pobre, porque vivia na habitação de um hotel e eu mesmo preparava meu


café da manhã em um fogão. Depois de casarmo-nos, Christinel e eu,
comíamos em um pequeno restaurante do bairro. Nisto consistia nossa
pobreza. O grande problema era o trabalho. Além disso, agora tinha que
escrever em francês. Eu sabia muito bem que meu francês não era o francês
perfeito do Ionesco ou do Cioran, a não ser um francês análogo ao latim da
Idade Média, ou koine, o grego que se falava e se escrevia durante a época
helenística, mesmo no Egito, como na Itália, na Ásia Menor, ou na Irlanda.
Não me preocupava o estilo, como ao Cioran, porque ele adorava o idioma
francês por si mesmo, como uma obra mestra; não queria nem humilhar, nem
causar ferida alguma a esta língua maravilhosa. Felizmente, eu não tinha
aqueles escrúpulos; aspirava escrever em um francês exato e claro, sem mais.
Trabalhei, escrevi vários livros em francês que, é óbvio, revisaram alguns de
meus amigos, especialmente Jean Gouillard.
—Que obras escreveu então?

—O Tratado estava já virtualmente acabado. Escrevi O mito do eterno retorno e


os primeiros artigos recolhidos logo em Imagens e símbolos. Também um
extenso artigo sobre o xamanismo em «Revue d'histoire des religions», e
alguns outros em «Paru», em «Nouvelle Revue francaise» e em «Critique»,
por convite de Georges Bataille.

—Sei que Georges Dumézil lhe admirava muito por realizar um trabalho tão
documentado em condições tão pouco favoráveis.

—Sim, estranhava que fosse possível pôr a ponto, quando não escrever, um
livro como o Tratado em uma habitação de hotel. Mas, era assim. É óbvio,
freqüentava as bibliotecas, embora passava muitas horas em minha mesa de
trabalho, sobretudo de noite, porque de dia soavam por toda parte os ruídos
da vizinhança.

—Acredito que seu trabalho científico se via turbado por um demônio, o demônio da
leitura —a de Balzac— e da obra literária.

—Sim, Balzac gostara sempre, mas de repente, por me achar em Paris, senti-
me conquistado de verdade. Inundei-me em Balzac. Até comecei a escrever
uma vida de Balzac em romeno, que pensava publicar na Romênia por
ocasião do centenário de sua morte. Perdi muito tempo naquela aventura,
mas não o lamento. Como pode ver, tenho sempre Balzac em minha estante,
muito à mão.

—Começou a escrever então O bosque proibido?

—Mais tarde, em 1949. Mas antes escrevi algumas novelas. Sentia de vez em
quando a necessidade de voltar às minhas fontes, à minha terra natal. No
exílio, a terra natal é a língua, o sonho. Então, punha-me a escrever novelas.

—Em suas palavras de hoje não se transluz o despojo que sofreu então. Com efeito,
não é unicamente que vivesse em condições muito ingratas, mas sim produzindo uma
ruptura com seu passado. Entretanto, ao reler seu Diário, tem-se a impressão de que
aquela perda e aquela ruptura pareciam-lhe cheias de sentido. Não seria aquilo, em
seu caso, como a experiência de uma morte iniciática e de um renascer?

—Sim, já o disse, acredito que a melhor expressão e a definição mais exata da


condição humana é uma série de provas iniciáticas, quer dizer, de mortes e
ressurreições... Por outro lado, é certo, aquilo significou uma ruptura, dava-
me conta perfeitamente de que não poderia de momento escrever ou publicar
unicamente em romeno. Mas, ao mesmo tempo, vivia no exílio, aquele exílio
não significava para mim uma ruptura completa com meu passado e com a
cultura romena. Sentia-me no exílio exatamente como um judeu de
Alexandria se sentiria na diáspora. A diáspora de Alexandria e Roma estava
em uma espécie de relação dialética com a pátria, com a Palestina. Para mim,
o exílio formava parte do destino romeno.

—Não pensava unicamente no exílio, também na perda, por exemplo, de seus


manuscritos, quando tratou de reconstruir de cor os escritos perdidos.

—Efetivamente, senti aquela perda. Mais tarde soube que uma grande parte
dos manuscritos e da correspondência se perdeu. Logo o aceitei. Reconciliei-
me com aquela perda. Comecei de novo e continuei.

— Em Paris de 1945 não estabeleceu contato com os existencialistas, a não ser com
Bataille, Breton, Véra DaumaI, Teilhard de Chardin e, é óbvio, os orientalistas e os
indianistas. Em seu Diário não aparece menção alguma de Sartre, de Camus, de
Simone de Beauvoir, de Merleau-Ponty...

—Lia-os e acredito contei muitas coisas, mas quando preparei esta seleção —
uma terceira, possivelmente uma quinta parte do manuscrito original— não
retive as passagens em que, por exemplo, falo da célebre conferência de
Sartre «O existencialismo é um humanismo»; assisti-a, mas são coisas que
formam parte até certo ponto de nossa atmosfera cultural... Preferi outros
fragmentos. Por outro lado, minhas relações com Bataille, Aimé Patri,
possivelmente inclusive com Breton, alguns orientalistas, Filliozat, Paul Mus
e Renou, eram muito mais contínuas que com os filósofos existencialistas.
Bataille mostrou vivos desejos de conhecer-me porque lhe interessara muito
meu livro de 1936 sobre o ioga. Descobri nele um homem muito interessado
pela história das religiões. Tratava de construir uma história do espírito, e a
história das religiões formava parte daquela obra enorme. Estava fascinado, e
interessava-me muito conhecer a causa, pelo fenômeno erótico. Discutíamos
longamente sobre o tantrismo. Pediu-me que publicasse um livro sobre o
tema em sua coleção das Editions de Minuit. Não tive tempo de escrevê-lo.

—Que julgamento lhe merece a obra de Bataille?

—Não a li completa e ponho em dúvida me pronunciar. Era, em todo caso,


um pensamento que sempre me estimulava, que às vezes me irritava. Havia
ali coisas que eu rechaçava, mas ao mesmo tempo sabia que, se não as
aceitava, era por não as captar em toda sua profundidade. Em todo caso,
trata-se de um espírito muito original e importante para a cultura francesa
contemporânea.

—Ao mesmo tempo que ao Bataille, conheceu também ao Caillois, Leiris?

—Ao Leiris, não. Mas conheci muito bem ao Caillois. Utilizei muito seus
livros e os citei, quão mesmo seus artigos. O que nele me atraía era seu
universalismo, seu enciclopedismo. É um homem do Renascimento que se
interessa tanto pelo romantismo alemão, como pelos mitos da Amazônia,
pela novela policial, ou pela arte poética.

—E Breton?

—Admirava-lhe como poeta, como homem e inclusive fisicamente. Via-me


com ele muitas vezes em casa do doutor Hunwald e na de Aimé Patri.
Olhava-lhe e sentia-me fascinado por sua cabeça de leão. Era um homem cuja
presença, sentia eu, como algo mágico. Assombrava-me que tivesse lido
minha pequena obra sobre as técnicas do ioga. Assombrava-lhe a coincidentia
oppositorum conseguida mediante o ioga, que se parecia muito à situação
paradoxal que ele descrevera em sua famosa fórmula: «Um ponto, em que o
acima e o abaixo deixam de ser percebidos contraditoriamente». Sentia-se
surpreso e feliz ao descobrir a coincidentia oppositorum de tipo yóguico.
Interessavam-lhe o ioga e o tantrismo quão mesmo a alquimia, tema de que
discutíamos longamente. Intrigava-lhe o mundo imaginário que se revela nos
textos alquimistas.

—Em seu Diário se fala de outros encontros, de Teilhard de Chardin, por exemplo.

—Vi-lhe duas ou três vezes, em sua cela da rue Monsieur, na casa dos padres
jesuítas. Naquela época era totalmente desconhecido como filósofo. Seus
livros não podiam ser publicados, como sabe. Só publicava artigos
científicos. Tivemos longas conversações; eu sentia-me fascinado por sua
teoria da evolução e do ponto Ômega, que até me parecia estar em
contradição com a teologia católica: levar Cristo até a última galáxia parecia-
me mais ao tom com o budismo mahayanista que com o cristianismo. Mas
era um homem que me fascinava, que me interessava enormemente. Mais
tarde senti-me feliz ao ler seus livros. Então compreendi até que ponto era
cristão seu pensamento, sua originalidade e sua coragem. Teilhard reage
contra certas tendências maniqueístas que se infiltraram no cristianismo
ocidental. Mostra o valor religioso da matéria e da vida. Tudo isto me recorda
o «cristianismo cósmico» dos camponeses da Europa oriental, que
consideram «santo» o mundo, pois foi santificado pela encarnação, a morte e
a ressurreição de Jesus Cristo.

SER ROMENO
—É óbvio, mantinha contato com os romenos residentes em Paris. Em seu Diário fala
da «diáspora romena». Mas acredito advertir uma contradição em seus sentimentos
sobre o exílio. Quer e ao mesmo tempo não quer ser um exilado, «levar uma vida de
estudante pobre, mas não necessariamente de emigrado», diz. Toma a decisão de
escrever em francês, e diz também: «Não imitar ao Ovidio, a não ser a Dante». E
inclusive encontra na emigração algo especificamente romeno; parece-lhe que
«prolonga a transumância dos pastores romenos ». Diz também que este «mito da
diáspora romena dá um sentido a minha existência de exilado», e a seguir: «Para
mim, o exílio formava parte do destino romeno». Poderia esclarecer-nos quais eram
seus sentimentos naquela época?

—Na tradição popular romena existem duas correntes, duas expressões


espirituais complementares. Uma, a corrente pastoralista; é a expressão
poesia lírica, e também filosófica, dos pastores. A outra corresponde aos
sedentários, à população agrícola. Na Romênia, até o ano 1920, oitenta por
cento da população estava formado por lavradores, mas havia uma minoria
muito importante de pastores. Estes pastores, que conduziam seus rebanhos
desde a Checoslováquia até o mar de Azov, abriram ao povo romeno um
mundo muito mais amplo que o da aldeia. Os pastores e a poesia pastoril
fizeram a contribuição mais importante à poesia popular romena. As mais
belas baladas romenas, e em especial a mais bela de todas, Mioritsa (A cordeira
vidente), nasceram entre os pastores. O resto era cultura de lavradores, de
sedentários. Também eles fizeram uma enorme contribuição, sobretudo no
folclore religioso e na poesia popular... Simplifico intencionalmente, pois as
coisas são realmente mais complicadas, mas pode dizer-se que a cultura
romena é o resultado da tensão entre sedentarismo e transumância ou, se o
preferir, entre bairrismo, provincialismo e universalismo. Na cultura escrita
reaparece essa mesma tensão. Há grandes escritores romenos que são
tradicionalistas, que representam ou prolongam a espiritualidade das aldeias,
dos sedentários. Mas outros se mantêm abertos ao mundo, são
«universalistas» (até foram acusados de cosmopolitismo). Poder-se-ia dizer
também que os primeiros se interessam pela religião, pela mística, enquanto
que os outros são melhor espíritos críticos que se sentem apanhados pela
ciência. Mas, trata-se de uma tensão criadora entre as duas tendências. O
maior poeta romeno, Eminescu, o escritor romeno mais importante do século
XIX, conseguiu uma síntese admirável entre estas duas correntes. Para
responder, por conseguinte, a sua pergunta, é certo que o exílio significava
uma ruptura com a terra natal, mas essa ruptura existia já no pensamento dos
romenos, quão mesmo existe na história do povo judeu, que constitui em
certo modo uma história exemplar que considero como um dos modelos do
mundo cristão. Para nós, os romenos de Paris, e em geral para todos os que
decidiram permanecer no Ocidente, eu dizia que não éramos emigrantes, mas
sim vivíamos no exílio. Pensava que um escritor exilado deve imitar a Dante,
não ao Ovidio, porque Ovidio era um proscrito —sua obra está cheia de
lamentos e saudades, dominada pela nostalgia das coisas perdidas— e Dante,
em troca, aceitava esta ruptura, e não só a aceitava, mas também graças
àquela experiência exemplar pôde acabar a Divina Comédia. Para Dante, o
exílio não foi só um estímulo, a não ser ainda mais a fonte mesma de sua
inspiração. Eu dizia então que não teria que escrever com nostalgia, a não ser,
pelo contrário, aproveitar esta crise profunda, esta ruptura, como fez Dante
em Ravena.

—Para dizer com uma expressão de Nietzsche, alguma vez foi um homem de
ressentimentos?

—Não. Sentia que esta experiência possuía o valor de uma iniciação.


Precisamente, o que me parecia desastroso era o ressentimento. É algo que
paralisa a criatividade e que anula a qualidade da vida. Um homem
ressentido é para mim um homem desventurado que não aproveita a vida.
Sua existência é como a de uma larva. Isso é o que tratava de dizer. Dava
muitas conferências para nosso grupo e escrevi muitos artigos na imprensa
romena de Paris, ou da Europa ocidental para dizer: terei que aceitar a
ruptura e, acima de tudo, criar. A criação é a resposta que podemos dar ao
destino, ao «terror da história».
—Através de seu Diário, dir-se-ia que as duas figuras mais profundas de sua vida são
o labirinto e Ulisses: duas figuras duplas. Em Ulisses são inseparáveis o caminhar
errante e a pátria; quanto ao labirinto, só tem sentido ao perder-se nele, mas não de
maneira caótica e para sempre. O que diria hoje de Ulisses?

—Ulisses é para mim o protótipo do homem, não só moderno, mas também


do homem do futuro, pois é o tipo do viajante acossado. A sua era uma
viagem para o centro, para a Ítaca, quer dizer, para si mesmo. Era bom
navegante, mas o destino —ou dito de outro modo, as provas iniciáticas que
era preciso superar— a força em atrasar indefinidamente seu retorno ao lar.
Acredito que o mito de Ulisses é muito importante para nós. Todos nós
seremos um pouco como Ulisses, em busca de nós mesmos, sempre
esperando chegar, até encontrar finalmente a pátria, o lar, em que também
encontraremos a nós mesmos. Mas, igualmente ao labirinto, em toda
peregrinação corre-se o risco de perder-se. Se se consegue sair do labirinto,
voltar para o lar, é-se já um ser distinto.

—Compara ao homem moderno com o Ulisses, mas também se reconhece a si mesmo


em Ulisses.

—Sim, reconheço-me. Acredito que seu mito constitui um modelo exemplar


para certo modo de existir no mundo.

—Poderia ser esta sua figura emblemática? —Sim.

—Ficávamos de que mantinha contatos freqüentes com seus amigos romenos, Ionesco,
Cioran e também Voronca, Lupasco.

- Conhecia muito bem ao Cioran. Já éramos amigos na Romênia, pelos anos


1933-1938, e senti-me muito feliz ao lhe encontrar aqui, em Paris. Admirava
ao Cioran desde seus primeiros artigos, publicados em 1932, quando ele tinha
apenas vinte e um anos. Sua cultura filosófica e literária era excepcional para
sua idade. Já lera ao Hegel e ao Nietzsche, aos místicos alemães e a
Açvagosha. Possuía além disso, e já desde muito jovem, uma surpreendente
mestria literária. Escrevia tanto ensaios filosóficos como artigos panfletários
de um vigor extraordinário; podia comparar-lhe com os autores de
apocalipse e com os mais famosos panfletários políticos. Seu primeiro livro
em romeno, Nos topos do desespero, era apaixonante como uma novela, mas ao
mesmo tempo, melancólico e terrível, deprimente e exaltante. Cioran escrevia
tão estupendamente em romeno que resultava impossível imaginar que um
dia demonstraria a mesma perfeição literária em francês. Acredito que seu
caso é único. É certo que sempre tinha admirado o estilo, a perfeição
estilística. Dizia com toda seriedade que Flaubert tinha toda a razão quando
passava uma noite inteira trabalhando para evitar um subjuntivo...
Em Paris me fiz amigo de Eugene Ionesco. Conheci-lhe em Bucareste,
em outros tempos, mas como ele diria muitas vezes em brincadeira, havia
entre nós uma diferença de dois anos. Aos vinte e seis anos, eu era célebre,
recém-chegado da Índia, e já professor, enquanto que Eugene Ionesco, de
vinte e quatro anos, preparava por então seu primeiro livro. Daí que aqueles
«dois anos» constituíram uma diferença muito importante. Entre nós havia
uma certa distância. Mas desapareceu desde nosso primeiro encontro em
Paris. Eugene Ionesco era conhecido na Romênia como poeta e mais ainda
como crítico literário, ou melhor como «anticrítico», pois tratara de
demonstrar, em um livro que teve enorme repercussão na Romênia (o livro,
muito polêmico, intitulava-se Não!), o que a crítica literária não existe como
disciplina autônoma... Em Paris senti curiosidade por saber que caminho
escolheria: a investigação filosófica, a prosa literária, o jornal íntimo? Em
qualquer caso, não adivinhei que estava a ponto de escrever A cantante calva.
A noite da estréia já era eu um grande e sincero admirador de seu teatro, e
não me cabiam já dúvida sobre sua carreira literária na França. O que mais
me impressiona no teatro de Eugene Ionesco é a riqueza poética e a potência
simbólica da imaginação. Cada uma de suas obras revela um universo
imaginário que participa, ao mesmo tempo, das estruturas do mundo onírico
e do simbolismo das mitologias. Sinto-me especialmente sensível à poética do
sonho que informa seu teatro. Entretanto, não se pode falar simplesmente de
um «onirismo». Parece-me em muitas ocasiões que atiro aos «grandes
sonhos» da matéria viva, da Terra Mãe, da infância dos futuros heróis e dos
futuros fracassados. E o certo é que alguns desses «grandes sonhos»
desembocam na mitologia...
Também em Paris conheci Stéphane Lupasco, a quem admiro
enormemente como homem e como pensador. A Voronca, infelizmente, não o
vi a não ser duas ou três vezes. Como sabe, se suicidou muito em breve.
Quando lhe conheci, em 1946, fiz-lhe esta pergunta: «Como consegue
escrever seus poemas em francês?» Respondeu-me: «É uma verdadeira
agonia».

—Lupasco recorda ao Bachelard, do que agora não falamos, mas ao que também
conheceu.

—Vi-lhe muitas vezes, em casa de Lupasco precisamente. Lera dois de meus


livros. Técnicas do ioga interessara-lhe muito, especialmente pelo mundo
imaginário que ali descobriu, nas meditações visuais tântricas. Também lera
com grande interesse, conforme me disse, o Tratado de história das religiões, de
que falou muito em seus cursos, pois há nesta obra muitas imagens para
analisar o simbolismo da terra, da água, do sol, da Terra Mãe... Lamento não
lhe haver tratado a não ser entre os anos de 1948 a 1950. Logo perdi-lhe de
vista. Mas, admirava-lhe muito. Também eu gostava de sua maneira de viver.
Vivia exatamente igual à Brancusi. Este grande filósofo e historiador da
ciência vivia como um camponês, igualmente à Brancusi em sua oficina.

—Acaba de citar ao Brancusi. Pouco antes se referiu à unidade contraditória da


cultura romena. Poderíamos ir mais longe? No fundo, o que é ser romeno? O que
significa em seu caso mesmo ser romeno?

— Eu sentia-me descendente e herdeiro de uma cultura interessante pelo


fato de estar situada entre dois mundos: o ocidental, puramente europeu, e o
oriental. Formava parte destes dois universos. Ocidental pela língua, a latina,
e a herança de Roma quanto aos costumes. Mas, ao mesmo tempo, formava
parte de uma cultura influenciada pelo Oriente e enraizada no Neolítico.
Assim é no caso de qualquer romeno, mas penso que ocorre o mesmo com os
búlgaros, os servo-croatas e em geral com todos os balcânicos, a Europa do
Sudeste e uma parte da Rússia. E esta tensão Oriente-Ocidente;
tradicionalismo-modernismo; mística religião, contemplação-espírito crítico,
racionalismo, desejo de criar concretamente; esta polaridade aparece em
todas as culturas. Entre Dante e Petrarca, por exemplo, ou, como dizia Papini,
entre a poesia de pedra e a poesia de mel. Entre o Pascal e Montaigne, Goethe
e Nietzsche. Mas esta tensão criadora possivelmente resulte um pouco mais
complexa em nós, pois nos achamos situados nos limites dos impérios
mortos, como disse um autor francês. Ser romeno, para mim, era viver e
expressar, e também valorar, este modo de ser no mundo. Era preciso tirar
proveito desta herança. Aprender o italiano, para nós, não custa trabalho. E
quando comecei a aprender o russo, ajudou-me muito a vertente eslava do
romeno. Tirava proveito de todas estas coisas que me vinham dadas pelo
simples fato de nascer ali. Esta riquíssima herança ainda não foi
verdadeiramente posta de relevo pela literatura, a cultura erudita. Foi na
criação folclórica.

—Crê chegado o momento de falar de Zalmoxis à Gengis Khan?

—Trata-se de um livro muito pessoal e ao mesmo tempo é uma experiência


quanto ao método. O problema era este: dispunhamo-nos de uma tradição
folclórica e de uma tradição histórica, também importante, mas cujos
documentos são vagos e se acham dispersos; como reconstruir, a partir destes
elementos, as crenças dos dacios? Ao mesmo tempo, fascinavam-me certos
problemas. Na lenda de Manole fala-se de um sacrifício humano. Para
terminar o monastério, Manole teve que emparedar a sua mulher. Esta lenda
circula por todos os Balcãs. Lingüistas, balcanólogos, romanistas, todos estão
de acordo em preferir a versão romena. Por que esta balada precisamente se
converteu em uma obra mestra da literatura popular romena? Por que se
expressam em A cordeira vidente a Weltanschauung, a nostalgia do pastor? Ante
estes problemas, o historiador das religiões está em condições de ver coisas
que o puro folclorista não pode advertir.

—Consideraria o Brancusi uma figura exemplar desse «ser romeno»?

—Sim, no sentido de que, em Paris, Brancusi vivia na atmosfera da vanguarda


artística, mas sem abandonar, apesar disso, a forma de existência de um
camponês dos Cárpatos. Expressou seu pensamento artístico seguindo os
modelos que encontrou em Cárpatos, mas sem repetir esses modelos na linha
de um folclorismo barato. Recriou-os, conseguiu inventar suas formas
arquetípicas, que assombraram ao mundo pelo fato de que Brancusi
aprofundou na tradição neolítica, em que encontrou suas raízes, suas fontes...
Em lugar de inspirar-se na arte popular romena moderna, soube remontar-se
até as fontes dessa mesma arte popular.

—Poderíamos dizer que recuperou não as formas, a não ser as forças que nutrem essas
mesmas formas?

—Exatamente. E se conseguiu recuperar foi precisamente porque se


empenhou em viver a vida mesma que levavam seus pais, seus parentes em
Cárpatos.

—Em seu Diário lamenta que o acanhamento lhe impedisse de estabelecer contato
com o Brancusi. Também nós o lamentamos. Mas ao menos temos um encontro no
terreno literário, poderíamos dizer, entre o Brancusi e Mircea Eliade. Em um de seus
textos, admirável e pouco conhecido, capta, como acaba de dizer, as raízes profundas
da inspiração de Brancusi, mas além disso, faz uma leitura absolutamente pessoal e
nutrida de quanto aprendeu na lenta tarefa de decifrar os mitos primitivos. Faz uma
leitura das imagens centrais de Brancusi —a ascensão, a árvore, o pássaro— e chega
a esta conclusão: Brancusi fez voar a matéria como o alquimista. E o obteve em
virtude do casal dos contrários, pois o que dá a imagem e o signo da maior ligeireza é
precisamente o que, por outro lado, constitui o signo da opacidade, da queda, da
pesantez: a pedra. Este muito belo texto ocupa um lugar eminente em sua obra.

PELA PÁTRIA, O MUNDO


—Às vezes, pergunto-me: Como será possível que um homem como Mircea Eliade seja
capaz de viver sua diversidade de línguas, de culturas, de pátrias, de casas, de países?
Agora começo a entendê-lo, mas de qualquer maneira eu gostaria de lhe perguntar
como se estabelece, em seu caso, este diálogo entre a pátria e o mundo.

—Para todo exilado, a pátria é a língua materna que continua falando.


Felizmente, minha mulher é romena, e ela joga o papel da pátria, posto que
entre nós falamos em romeno. A pátria é para mim, por conseguinte, a língua
que falo com ela e com meus amigos, mas sobretudo com ela; a língua em que
sonho e escrevo meu jornal. Não se trata, portanto, de uma pátria unicamente
interior, onírica. Mas não há contradição alguma, nem tão sequer tensão,
entre o mundo e a pátria. Em qualquer parte há um centro do mundo. Uma vez
situado no centro, o homem se encontra em seu local, autenticamente no
verdadeiro eu e no centro do cosmos. O exílio ajuda a compreender que o
mundo jamais nos é estranho do momento em que nele temos um centro.
Esse «simbolismo do centro», não só o entendo, mas também além disso o
vivo.

—Sei que viajou muito, mas pressinto que não é viajante por vocação.

—É possível que, para mim, as viagens mais importantes tenham sido as que
fiz a pé, entre os doze e os dezenove anos, no verão, durante semanas e
semanas, vivendo nas aldeias ou nos monastérios, empurrado pelo desejo de
deixar a planície de Bucareste, de conhecer os Cárpatos, o Danúbio, as aldeias
de pescadores do delta, o mar Negro... Conheço muito bem meu país.

—A última página dos Fragmentos de um jornal está dedicada às viagens. Ali diz:
«A fascinação da viagem não depende unicamente dos espaços, das formas e as cores
—os lugares aos que vamos ou percorremos—, mas também dos distintos "tempos"
pessoais que reatualizamos. Quanto mais avanço na vida, mais tenho a impressão de
que os viajantes têm lugar, concomitantemente, no tempo e no espaço».

—Sim, e aí está o fato de que ao visitar Veneza, por exemplo, revivo os


tempos de minhas primeiras viagens à Veneza... É possível recuperar todo o
passado no espaço: uma rua, uma igreja, uma árvore... Então, recupera-se de
repente todo o tempo. Essa é uma das coisas que tão enriquecedores fazem às
viagens para a gente mesmo, dialoga com a pessoa que era faz quinze ou
vinte anos. Recupera-se essa pessoa, recupera-se o próprio tempo, o
momento histórico de vinte anos atrás.

—Poderíamos lhe caracterizar como um nostálgico, mas de nostalgias felizes?


—Sim, é óbvio! É uma bela fórmula, tem razão. Mediante a nostalgia recupero
as coisas valiosas. Por isso sinto que não perdi nada, que nada se perde.

—Acredito que estamos tocando coisas que têm uma grande importância em sua vida:
nada se perdeu; nunca se deixou morder pelo ressentimento.

—Sim, é certo.

—Tem escrito muito pouco para o teatro —uma peça sobre o Brancusi, A coluna
infinita, e uma Ifigenia moderna...— A julgar por algumas passagens de O bosque
proibido e de seu Diário (sobre o Artaud), entretanto, prestou uma atenção especial
à representação do tempo no teatro: representação de um tempo imaginarío —
mítico— na duração real de um espetáculo.

—Sim, quão mesmo o tempo litúrgico difere do tempo profano, do tempo da


cronologia e de nossos horários de trabalho, o tempo teatral é uma «saída» do
tempo ordinário. O mesmo ocorre com a música, com certa classe de música
ao menos, penso especialmente em Bach, que nos faz sair às vezes do tempo
cotidiano. É uma experiência que todos tivemos, que por conseguinte, pode
ajudar ao espírito mais «profano» a entender o que é o tempo sagrado, o
tempo litúrgico... Mas não me fascina menos a condição do ator que esta
qualidade do tempo teatral. O ator sabe de uma espécie de «transmigração».
Encarnar tantos personagens, não equivale acaso a reencarnar-se outras
tantas vezes? Ao término de sua vida, estou seguro de que o comediante
possui uma experiência humana de uma qualidade distinta que a nossa.
Acredito que não é possível entregar-se a este jogo de encarnações tão
numerosas impunemente, a menos que se adote uma determinada ascese.

—É o ator uma espécie de xamã?

—Em todo caso, o xamã é um ator na medida em que algumas de suas


práticas são teatrais. Em um sentido mais geral, o xamanismo pode ser
considerado como uma raiz comum tanto da filosofia como das artes
representativas. Os relatos das viagens xamânicas aos céus ou aos infernos
estão na origem de certos poemas épicos e de alguns contos. O xamã, para ser
guia espiritual da comunidade, para edificá-la e dar-lhe segurança, deve ao
mesmo tempo representar as coisas invisíveis e manifestar —sequer mediante
seus truques— o poder que detém. O espetáculo que oferece a tal fim, assim
como as máscaras que fica para esta ocasião, tudo isso constitui uma das
fontes do teatro. O modelo xamânico reaparece até na Divina comédia. A
viagem de Dante, quão mesmo a do xamã, recorda-nos quais são as coisas
exemplares e dignas de fé.

Chicago

—Faz já quase vinte anos que ensina na Universidade de Chicago. Por que Chicago?

—Fui convidado a dar as célebres «Haskell lectures» que também tinham


ditado Rudolf Otto e Massignon... Estas seis conferências foram publicadas
sob o título de Naissances mystiques. Quando Joachim Wach, que me
convidara, morreu, o decano insistiu em que me nomeasse professor titular e
chefe do departamento de história das religiões. Duvidei muito em aceitar e
ao fim o fiz para quatro anos. Mas logo fiquei, pois o trabalho que ali
desenvolvia era muito importante para mim, para nossa disciplina e também
para a cultura americana. Em 1957 havia três cadeiras de história das religiões
nos Estados Unidos; hoje há quase trinta, a metade delas ocupadas por
antigos alunos de nosso departamento. Mas não foi unicamente o interesse
do trabalho o que me reteve, a não ser a atmosfera da universidade, sua
enorme liberdade, sua tolerância. Não sou o único que encontra admirável,
quase paradisíaca aquela atmosfera. Georges Dumézil, que aconteceu por ali
como convidado, Paúl Ricoeur, que é atualmente nosso colega, sentem o
mesmo. Esta imensa liberdade de ensino, de opinião, o diálogo com os
estudantes, aos quais temos tempo de conhecer nos seminários, em seus
alojamentos ou em nossa casa... tem-se ali a certeza de que não se está
perdendo o tempo.

—Tem a sensação de estar na origem de uma «escola» de história das religiões, de uma
corrente de interpretação e de trabalho estendida pelos Estados Unidos?

—É certo que (Chicago se situa na origem do êxito alcançado por nossa


disciplina. Mas esse êxito viu-se favorecido no momento histórico. Alguns
americanos compreenderam que, para iniciar um diálogo com um africano
ou um indonésio, não bastam os conhecimentos de economia política e de
sociologia, mas sim é preciso conhecer também a cultura. Não é possível
compreender uma cultura exótica ou arcaica a menos que se acerte a captar
sua fonte que é sempre de caráter religioso. Por outro lado, já sabe que a
Constituição proíbe o ensino da religião nas universidades estatais; durante o
século passado temia-se que uma cadeira de «religião» não fosse outra coisa
que uma cadeira de teologia cristã ou de história da Igreja. Pois bem, quando
as demais universidades, depois do êxito das dez ou doze primeiras cadeiras,
caíram em conta de que se tratava de uma história geral das religiões, que se
estudava o hinduísmo, o Islã e os primitivos, aceitaram este tipo de ensino.
Em princípio camuflava-se como «religiões da Ásia» ou como «estudos
hindus», por exemplo; hoje estas cadeiras intitulam-se de «história e
fenomenologia das religiões».

—Não poderia ocorrer que o historiador das religiões, ao que se acreditaria muito
afastado dos problemas atuais, encontrasse-se mais cedo ou mais tarde na mesma
situação de seus colegas geógrafos ou físicos, posto que a universidade americana,
como sabe melhor que muitos, viu-se sacudida por uma crise de consciência que a
levou a perguntar-se se se pode colaborar no armamento nuclear ou no bombardeio
dos diques do Vietnam...? Porque poderia pensar-se que em uma «guerra psicológica»
não deixaria de ser útil a fabricação de «bombas messiânicas». Aí está o uso que fazem
da psicanálise os homens da publicidade. Caberia imaginar que os homens de guerra
também podem utilizar em um momento dado os mitos religiosos.

—Sim... Escrevi um artigo sobre o messianismo antes da independência do


Congo. Conheço bem os mitos messiânicos bantúes; ali anunciei coisas que
logo, com a independência, ocorreram: aquela gente se desfez de seus gados
porque estava a ponto de retornar o antepassado mítico. Os livros sobre
messianismo dos povos arcaicos anunciavam certos crimes, certos excessos...
Mas não acredito que os generais se decidam a procurar suas armas no
estudo da história das religiões. Em troca, atribuo uma «função social» a esta
disciplina agora em desenvolvimento até o ponto de fazer-se popular. Com
efeito, serviu para abrir o caminho a um certo ecumenismo religioso, não
somente cristão. Favoreceu o encontro entre representantes das diversas
religiões.

—Como se desenvolve sua vida em Chicago?

—A Universidade acha-se situada em um parque imenso, junto a um lago, a


dez quilômetros do centro. Tudo está ali reunido: a enorme biblioteca;
também o Instituto oriental, com seus arquivos admiráveis, um museu,
pequeno mas muito belo, e os grandes especialistas em orientalismo. Enfim,
tudo. Isto facilita não só a informação, mas também a verificação da
informação. Sempre tenho a possibilidade de consultar a um hititólogo, a um
assiriólogo, ou alguém que acaba de retornar da Índia, onde realizou estudos
sobre a vida de uma aldeia. Tudo isto, para um investigador, resulta muito
valioso, se se comparar com a dispersão em que se acham lugares e
professores em uma universidade européia. Cambridge e Oxford são um
pouco os modelos das universidades americanas. Eu gosto muito do campus
de Chicago.

—E a cidade?

—Chicago é considerada a cidade mais avançada do ponto de vista da


arquitetura, com seus edifícios de cento e dez andares. Eu não gosto porque é
negra. Agora está em moda construir tudo de cor negra. Certo, esses cristais
escuros permitem a quem está dentro ver o que passa fora sem ser vistos.
Mas eu gostaria mais umas cores que harmonizassem com a paisagem.

—Como é sua casa?

—Vivemos no segundo piso de uma casa pequena, com jardim e terraço de


madeira, em uma grande avenida plantada de árvores, muito belo. Está a
vinte passos do despacho em que guardo uma parte de minha biblioteca,
onde trabalho muitas vezes durante o dia e recebo aos estudantes. A
biblioteca se acha a quatrocentos metros dali, e a sala-de-aula a menos de um
quilômetro. Todo mundo vive ali mesmo, coisa que me agrada. É um lugar
muito belo, e nos sentimos muito felizes, porque sempre há esquilos que vêm
em busca de amêndoas. Durante o inverno há um cardeal, esse pássaro
vermelho que infelizmente não vive na Europa e que expõe um problema.
Assombra-me que os teólogos não tenham insistido neste exemplo para
explicar a Providência. Como explicar que, sem ela, pudesse sobreviver este
pássaro de um vermelho flamígero? Não se pode camuflar em nenhum sítio,
nem sequer em uma árvore, pois lhe vê de todas as partes... Falo de
brincadeira, mas de qualquer maneira aí fica a pergunta.

—Considera importante o lugar em que vive?

—Sim, não posso viver em uma casa ou em uma habitação que eu não goste.
Em Londres, em Oxford passei mal neste sentido. Não posso viver em
qualquer lugar. Faz falta que algo me agrade, atraia-me, que me faça sentir
prazer. Procurei uma casa em que pudesse viver a meu modo.
Eu não gosto do «espaço americano». Eu gosto do campus e algumas
coisas de Chicago, como o poder enorme do centro. Há outras cidades que
me resultam mais agradáveis, como São Francisco, Boston ou uma parte de
Nova Iorque e de Washington. Eu gosto de algumas paragens como Santa
Bárbara, a baía de São Francisco. Mas não é aquele um país como a Itália,
como a França, em que a paisagem é de uma imensa beleza, onde há história
e variedade. Chicago acha-se em uma planície estendida ao longo de mil
quilômetros; de vez em quando se vêem cidades e esses bairros do grande
subúrbio aos quais se dá o nome de «paraísos artificiais», porque são lugares
para retirados, que vivem em formosas casas e chalés, mas tudo, com efeito,
muito artificial. Inclusive nas mais belas cidades americanas há bairros de
uma fealdade exasperante... Não é que mantenha uma atitude negativa ante
este espaço americano que eu não gosto, ou ante o estilo de vida americano,
alguns de cujos aspectos me parecem interessantes. O que eu gosto da vida
americana, por exemplo, é a importância que se atribui à esposa, e não só do
ponto de vista social, mas também cultural e espiritual. Os convites incluem
sempre à esposa. Quando me pediu que ficasse na América, o primeiro que me
perguntaram foi se a idéia agradava à minha mulher. Esta atenção para a
esposa, para a família, eu gosto. Acusa-se com razão aos americanos de
muitas coisas, mas há outras admiráveis das quais se fala muito pouco, por
exemplo, sua grande tolerância religiosa e espiritual.

PROFESSOR OU GURU?
—Seu lugar de trabalho é, em definitivo, América. Eu gostaria de saber que classe de
professor é.

—Nunca fui um professor «sistemático». Já em Bucareste dava é óbvio que os


estudantes tinham lido alguma vida de Buda, alguns Upanishads, algo sobre o
problema do mal. Não começava de maneira didática, nem me preparava ou
escrevia minhas aulas. Tomava algumas notas e logo seguia as reações dos
estudantes. Hoje faço o mesmo. Risco-me um plano, medito durante algumas
horas antes de dar a aula, escolho as entrevistas, mas não levo nada escrito.
Não se corre nenhum perigo grave; se repetir algo, não tem importância, se
me esqueço de algo, falo disso no dia seguinte, ou no final da aula. O sistema
americano é excelente: depois dos cinqüenta minutos de exposição há sempre
dez minutos de discussão, para fazer perguntas. Em meus tempos era muito
distinto: chegava o professor, falava e logo partia. Não voltávamos a lhe ver
durante uma semana. Possivelmente, mudaram as coisas em todas as partes.
Em todo caso, ocorre muitas vezes durante os dez minutos de diálogo que,
com motivo de uma pergunta, dou-me conta de ter omitido um detalhe
importante, Paul Ricoeur está assombrado da relação que aqui mantemos
com os alunos. Em Nanterre ocorria, às vezes, que em um só curso havia mil
estudantes, aos quais era impossível conhecer. Tinha que ensinar filosofia a
toda uma massa. Aqui se mantém uma relação pessoal. Já durante a primeira
lição diz aos estudantes: «Escrevam seus nomes neste papel e venham para
ver-me». No início do curso reservo duas longas tardes por semana para me
entrevistar com todos eles, meia hora com cada um, inclusive com os do ano
anterior, para me refrescar a memória: o que fazem durante o verão, o que
pensam fazer? Ao cabo de um mês de curso, entrevisto todos eles durante
uma hora. Se tiver que dizer a verdade, cada vez, eu gosto menos, de dirigir
cursos à cem pessoas. Em outros tempos, sobretudo na Romênia, quando
falava de coisas quase desconhecidas, o ensino apaixonava-me. Falava em
minha própria língua, dirigia-me à juventude; eu mesmo era jovem ainda,
ainda ficavam por dizer e descobrir muitas coisas que agora já tenho
publicadas. Ao final desta atividade, que dura já quarenta anos,
evidentemente, sinto que tenho menos coisas a dizer em forma de
conferência. Mas, o que sempre gostei é o trabalho de seminário, em que
todos nos unimos em uma mesma tarefa. Meu último seminário, que dirigi
em 1976, tratava da alquimia e do hermetismo do Renascimento. Foi algo
apaixonante. Isto é o que mais gosto: aprofundar em certos detalhes com um
grupo bem preparado, aprofundar em alguns problemas pelos quais sinto
especial predileção. É deste modo como aprende a trabalhar o estudante,
como adquire um método. Ali prepara uma exposição, escutamo-lhe, convido
seus colegas a comentar sua conferência, intervenho, e o diálogo dura às
vezes horas e horas. Mas acredito que não é perder tempo, pois o que ali lhes
dou é algo que não poderiam encontrar nos livros. Do mesmo modo, as
entrevistas pessoais no início do curso são também insubstituíveis.

—Consegue preservar sua vida pessoal, sua vida de escritor e sua vida de
investigador?
—Sim, porque o curso prevê uma interrupção das aulas e um «período de
leitura» para o estudante. Além disso, durante o segundo trimestre de
inverno dou unicamente um seminário. Então posso me ocupar de seus
próprios trabalhos. Mas como sabe, quando me dou conta de que posso
ajudar alguém, renuncio de boa vontade a meu trabalho, ou dedico ao
trabalho algo mais de tempo de noite ou pela manhã. Faço um esforço. Penso
que isto é importante. Se vir que alguém escuta, mas não põe muito interesse,
proponho-lhe a leitura de alguns livros, meus ou de outros autores, é igual.

—Finalmente, o que se sente mais, professor ou guru?

—Sempre se corre o risco, sobretudo na América, e mais ainda na costa do


Pacífico, ao menos em alguns casos, de que tomem a um por um guru. Um
ano dava eu um curso na Universidade de Santa Bárbara sobre as religiões
indianas, do Rig-veda até Bhagavad-Gita. Terminado o curso, os estudantes
vinham para ver-me, consideravam-me um guru capaz de lhes dar a solução
para sua vida interior. Então dizia-lhes eu: «Não se confundam. Aqui sou o
professor, não um guru. Posso lhes ajudar, mas só como professor. Aqui
quero unicamente lhes apresentar as coisas tal como eu acredito que são».

JOVENS AMERICANOS
—Como vê e em que situação lhe parece que se encontra essa juventude americana a
que conhece tão de perto e para a qual a religião não é muitas vezes uma simples
matéria de estudo?

—O que vi em Chicago e em Santa Bárbara é apaixonante. Na América, a


história das religiões é uma disciplina que se pôs em moda, não só entre os
estudantes, que, como dizia Maritain, são «analfabetos do ponto de vista
religioso», mas também entre quem sente alguma curiosidade pela religião de
outros povos: o hinduísmo, o budismo, as religiões arcaicas e primitivas. O
xamanismo é objeto quase de uma verdadeira mania. Pintores, gente do
teatro se interessam por este tema, e também muitos jovens; pensam que suas
drogas preparam-lhes para compreender a experiência xamânica. Entre estes
estudantes, alguns encontraram o absoluto em uma seita efêmera como
Meher Baba, Hare Krishna, Jesus Freaks, algumas seitas zen... Não lhes
animo, mas tampouco critico sua eleição, pois dizem-me: «Antes eu me
drogava, vivia como uma larva, não acreditava em nada, estive a ponto de
suicidar-me duas vezes, por pouco me matam um dia que estava drogado,
mas agora encontrei o absoluto». Não lhes digo que esse «absoluto» não é da
melhor qualidade, já que, de momento, esse jovem que estava imerso no caos,
no puro niilismo, que respirava uma agressividade perigosa para a
coletividade encontrou algo. Ocorre às vezes que a partir desse «absoluto»,
que freqüentemente não passa de ser um pseudo absoluto, o jovem se
encontra a si mesmo e possivelmente mais tarde leia os Upanishads, o Mestre
Eckart, ou a Cabala, até encontrar uma verdade pessoal. Poucas vezes
encontrei um estudante que tenha passado do vazio religioso e de um
desequilíbrio quase neurótico a uma postura religiosa bem articulada:
cristianismo, judaísmo, budismo, Islã. Não, sempre tem que por meio de uma
pseudomorfosis, alguma coisa fácil, troca, pouco autêntica, ao menos para o
resto, posto que para eles mesmos é o absoluto, a salvação. A segunda etapa
os leva a uma forma mais equilibrada, mais rica de sentido.

—Outro dia me disse que a ruptura com o monoteísmo e com o ateísmo, que é a outra
cara da moeda, realizava-se nesta juventude por dois caminhos, um o da «religião
natural», a «religião cósmica», e o outro, o das «religiões orientais».

—Sim... Em princípio trata-se de uma reação quase instintiva contra o


establishment, contra seus pais por conseguinte. Seus pais freqüentam a
sinagoga, a catedral, ou a igreja Baptista; o que ocorre então é que se rechaça
totalmente esta religião, esta tradição religiosa. Já não lhes interessa.
Impossível convencer-lhes de que leiam a menor coisa. Um dia vem para ver-
me um estudante judeu: o judaísmo não tem sentido algum, diz-me, é um
fóssil. Entretanto, encontrou a revelação em um guru, em um iogue que
estava na cidade algumas semanas. Eu perguntei-lhe: «O que conhece do
judaísmo?» Não conhecia nada, não lera nem sequer um salmo, um profeta,
nada. Não digo nada da Cabala. Tratei então de convencer-lhe: «Leia algum
texto de sua própria tradição. Então poderá superá-la ou abandoná-la». Não,
não queria nada daquilo que para ele carecia de sentido. Já o vê, esta é a
atitude de uma geração de jovens que rechaça tudo em bloco: sistema,
comportamentos e valores de seus pais, tradição religiosa. Pois bem, para
uma parte desta juventude, contestaria, a gnosis extremo-orientais,
especialmente o ioga e o zen, têm um extraordinário poder de fascinação.
Estou seguro de que isso lhes serve de ajuda. Quando chega uma missão de
Rama-krishna, sempre há algum swami que lhes ajuda a ler alguns livros. Às
vezes, não se contentam lendo os livros que tratam do xamanismo americano,
mas sim passarão uma parte de suas férias em alguma tribo.
O que acontece a juventude americana? Não sou capaz de dizê-lo. Nos
centros de estudo todo mundo diz que a droga perdeu grande parte de sua
sedução. Hoje se vai à «meditação», a todo tipo de meditação; o maior êxito
corresponde à «meditação transcendental». Acredito que são instrumentos
capazes de prestar-lhes alguma ajuda em princípio; logo encontrarão os
professores e os meios de uma realização mais articulada. E inclusive se
abandonarem sua experiência «californiana» e se convertem em funcionários,
condutores, professores, acredito que se enriqueceram com ela.

—A imprensa sente prazer em falar de seitas e cismas. Ontem, Manson e Moon. Hoje,
na França, a questão dos integralistas. Eu gostaria de saber o que pensa desta
«atualidade religiosa» e também do «movimento hippy», que conheceu muito de
perto.

—Pelo que diz respeito à Igreja católica, é evidente que não se trata só de uma
crise de autoridade, mas também, de uma crise das velhas estruturas,
litúrgicas e teológicas. Não acredito que tenha chegado o fim da Igreja, a não
ser quiçá o de uma certa Igreja cristã. Acredito que será uma crise criadora e
que depois de provas e controvérsias aparecerão algumas coisas mais
interessantes, mais viva, mais significativas. Mas não é possível antecipar
nada.
Quanto às seitas, como sempre ocorre, estes movimentos estão em
condições excepcionais para revelar algo novo e positivo. Mas, no meu modo
de ver, o mais importante de tudo é o fenômeno hippy, pois nos permitiu ter a
prova de que uma geração jovem, descendente de dez gerações cristãs,
protestantes ou católicas, descobriu a dimensão religiosa da vida cósmica, da
nudez e da sexualidade. Protesto contra quem considera que a tendência à
sexualidade e à orgia dos hippies forma parte do movimento de liberação
sexual que estende no mundo inteiro. Em seu caso trata-se, sobretudo, do que
poderíamos chamar a «nudez paradisíaca» e da união sexual como rito.
Descobriram o sentido profundo, religioso, da vida, depois desta experiência,
liberaram-se de toda classe de superstições religiosas, filosóficas, sociológicas.
Agora são livres. Redescobriram a dimensão da sacralidade cósmica,
experiência anulada desde fazia muito tempo, dos tempos do Antigo
Testamento. Recordo com quanta indignação e com quanta dor se
pronunciavam os profetas contra o culto de Baal e de Belit, quando o certo é
que era aquela uma religião de estrutura cósmica que possuía uma imensa
grandeza. Era a manifestação da sacralidade do mundo, através de uma
deusa através da hierogamia, através da orgia. Aquelas experiências
religiosas foram desvalorizadas pelo monoteísmo mosaico, sobretudo pelos
profetas. Depois de Moisés e os profetas já não tinha sentido algum retornar a
uma religiosidade de tipo cósmico. Pois bem, na América assistimos ao
redescobrimento de uma experiência religiosa que já acreditávamos
completamente periclitante em seu aspecto coletivo, «religioso», apesar
inclusive de que mesmos os hippies não a chamavam assim. Trataram de
recuperar, com toda a força que dá o desespero, a sacralidade da vida total.
Foi uma reação contra a falta de sentido da vida urbana, contra esta
desacralização do mundo de que adoece a cidade americana. Não podiam
entender que uma Igreja estabelecida tivesse algum valor religioso; para eles
representava o establishment. Mas fizeram este descobrimento e se salvaram.
Descobriram as fontes sagradas da vida, a importância religiosa da vida.

—O que pressente para o futuro pelo que se refere à questão religiosa? Sente-se perto
de Malraux, que resumia assim seu pensamento: «Haverá um século XXI religioso ou
não o haverá absolutamente»?

—Não é possível fazer nenhuma predição. A liberdade do espírito é tal que


não é possível antecipá-la. Se falei do movimento hippy, foi porque é um
exemplo de nossa criatividade imprevisível e inesgotável. Possivelmente
desapareça um dia este movimento, se já não desapareceu. Possivelmente
chegue a politizar-se por completo ou, pelo contrário, perca toda sua
importância. O certo é, em todo caso, de vez em quando surgem experiências
inesperadas.
O que faz ainda mais difícil qualquer predição neste terreno é o fato de
que certas formas «religiosas» podem acontecer desapercebidas assim que
tais. Pode haver uma criação tão nova que ao princípio, e inclusive durante
séculos, ninguém a considere criação religiosa. Por exemplo, é possível que
determinados movimentos, aparentemente políticos preparem, ou inclusive
expressem já o desejo de uma certa liberdade profunda; tratar-se-ia de
movimentos transpolíticos, ou que poderiam converter-se em tais, mas sem
que ninguém chegasse a adverti-lo por causa de sua linguagem
absolutamente nova. Pense no cristianismo. Em Roma acusava-se aos cristãos
de serem ateus porque se negavam ir aos templos, ou render comemoração
aos deuses mediante o sacrifício. Não respeitavam o establishment! Os
romanos aceitavam o culto de qualquer deus: Sarapis o mesmo que Yahvé,
Attis igual a Júpiter. Mas teriam que venerar a tais deuses. Os cristãos não os
veneravam e, em conseqüência, eram considerados ateus, o ateísmo cristão!
Porque não se reconhecia o valor religioso de seu comportamento. Não é
possível fazer nenhuma predição. Mas não acredito que possam desaparecer
certas revelações primitivas. Inclusive na civilização mais tecnicista, há
sempre algo que não pode mudar, porque continua dia e noite, inverno e
verão, inclusive em uma cidade sem árvores, ficam o céu e os astros, sempre
se podem ver a lua e as estrelas. Enquanto haja dia e noite, verão e inverno,
acredito que não poderá mudar o homem. Estamos integrados, sem querer,
neste ritmo cósmico. Pode-se trocar de valores —os valores religiosos dos
agricultores, como o verão, a noite, a sementeira... já não são nossos valores—
mas sempre ficará o ritmo luz-trevas, noite-dia. Até o homem mais irreligioso
vive imerso nesse ritmo cósmico e o adverte em sua própria existência: a vida
diurna e o descanso com seus sonhos. Porque sempre se sonhará. Nós, é
óbvio, estamos condicionados pelas estruturas econômicas e sociais; também
as expressões da experiência religiosa estão condicionadas pela linguagem e a
sociedade, pelos interesses, mas nós assumimos esta condição humana aqui,
no cosmos em que há uns ritmos e uns ciclos que nos vêm dados. Assumimos
nossa condição humana a partir desta situação fundamental. E a este «homem
fundamental» pode chamar-lhe «homem religioso», sejam quais forem as
aparências, porque se trata do significado da vida. Pelo que estou seguro é de
que as formas futuras da experiência religiosa serão completamente distintas
das que já conhecemos no cristianismo, no judaismo, no Islã, que já estão
fossilizadas, desvirtuadas, vazias de sentido. Estou seguro de que haverá
outras expressões. Quais? Não posso dizê-lo. A grande surpresa é sempre a
liberdade do espírito, sua criatividade.

HISTÓRIA E HERMENÊUTICA
—«...Estes trinta anos, ou mais, que passei entre os deuses e as deusas exóticos,
bárbaros, irredutíveis; nutrindo-me de mitos, obcecado pelos símbolos, arrulhado e
enfeitiçado por tantas imagens que até mim chegavam desde aqueles mundos
inundados, parecem-me hoje como as etapas de uma longa iniciação. A cada uma
dessas figuras divinas, a cada um desses símbolos, ou mitos vai unido um perigo que
confrontei ou superei. Quantas vezes estive a ponto de "me perder", de extraviar-me
naquele labirinto em que corria o perigo de ser morto, esterilizado, "emasculado" (por
uma daquelas terríveis deusas mães, possivelmente). Uma série infinita de aventuras
intelectuais, e digo 'aventuras' em seu sentido primário de risco existencial. Não
foram unicamente os 'conhecimentos' lenta e tranqüilamente adquiridos nos livros, a
não ser ainda mais os encontros, as tensões e as tentações. Agora dou-me conta
perfeita de todos os perigos que esquivei durante aquela longa 'busca', e acima de
tudo do perigo que significava o esquecimento de que eu propusera um fim, que me
dirigia para algo, que aspirava a chegar a um 'centro'».
Esta confidência corresponde aos 10 de novembro de 1959, em seu Diário.
Tudo fica um tanto velado, enigmático. Poderia falar hoje com maior claridade?

—O espírito corre um risco quando trata de penetrar o sentido profundo de


uma dessas criações mitológicas ou religiosas que são outras tantas
expressões existenciais do homem no mundo. Do homem: de um caçador
primitivo, de um lavrador da Ásia oriental, de um pescador da Oceania. No
esforço hermenêutico que desenvolve o historiador das religiões, o
fenomenólogo, por entender de dentro a situação desse homem, há sempre um
risco: não só o de dispersar-se, mas também o de sentir-se fascinado pela
magia de um xamã, os poderes de um iogue, a exaltação de um membro de
qualquer sociedade orgiástica. Não me refiro a que possa sentir a tentação de
fazer-se iogue, xamã, guerreiro ou exaltado, mas sim a que se tem o
sentimento de achar-se imerso em umas situações existenciais estranhas ao
homem ocidental, que além lhe resultam perigosas. Este contato com umas
formas exóticas capazes de nos obcecar, de nos tentar, supõe um perigo de
ordem psíquica. Por isso comparei tal busca a uma longa viagem pelo
labirinto; é uma espécie de prova iniciática. O esforço necessário para
entender o canibalismo, por exemplo; com efeito, o homem não se volta
canibal por instinto, mas sim como conseqüência de uma teologia e de uma
mitologia. É algo que, junto com uma série infinita de situações do homem no
mundo, tem que reviver o historiador das religiões se é que aspira as
entender.
Quando o homem teve consciência de seu modo de ser no mundo,
assim como das responsabilidades vinculadas a esse ser no mundo, tomou
uma decisão que logo resultaria trágica. Penso na invenção da agricultura,
não a dos cereais no Próximo Oriente, a não ser a dos tubérculos na zona
tropical. A concepção daquelas populações é que a planta nutrícia é fruto de
um assassinato primitivo. Um ser divino foi morto, esquartejado, e os
fragmentos de seu corpo deram origem a umas plantas até então
desconhecidas, especialmente aos tubérculos, que após constituem o
principal alimento dos humanos. Entretanto, para assegurar a colheita
seguinte, terá que repetir ritualmente o primeiro assassinato. Daí o sacrifício
humano, o canibalismo e outros ritos às vezes cruéis. O homem aprendera
não só que sua condição lhe exige matar para viver, mas também além disso
assumiu a responsabilidade da vegetação, de sua perenidade, por isso mesmo
assumiu o sacrifício humano e o canibalismo. Esta concepção trágica que
durante milênios manteve uma parte da humanidade, segundo a qual a vida
fica assegurada mediante a morte, quando não se trata unicamente de
descrevê-la em um estudo antropológico, mas sim de compreendê-la além,
existencialmente, supõe comprometer-se em uma experiência que por sua vez
resulta trágica. O historiador e fenomenólogo das religiões não se situa ante
estes mitos e estes ritos como ante objetos externos, como seriam uma
inscrição que tem que decifrar, ou uma instituição que tem que analisar. Para
entender de dentro esse mundo terá que o viver. É como um ator que entra
em seus papéis, que os assume. Há às vezes tanta diferença entre nosso
mundo ordinário e esse outro mundo arcaico que até a própria personalidade
pode entrar em jogo.

—Trata-se ao mesmo tempo da própria Identidade e da afirmação das próprias razões


frente às potências terríveis do irracional?

—Sua fórmula é exata. É bem sabido, por exemplo —e até os freudianos o


dizem—, que o psiquiatra compromete sua própria razão por freqüentar a
enfermidade mental. O mesmo cabe dizer do historiador das religiões. O que
estuda-lhe afeta profundamente. Os fenômenos religiosos expressam
situações existenciais. Participa-se do fenômeno que trata de decifrar, como se
se tratasse de um palimpsesto, da própria genealogia, da própria história. É
minha história. E em tudo isso, efetivamente, vai envolta a potência do
irracional... O historiador das religiões, portanto, ambiciona conhecer e por
isso mesmo compreender as raízes de sua cultura, de seu mesmo ser. Ao
preço de um longo esforço de anamnesis deverá terminar por recordar sua
própria história, quer dizer, a história do espírito humano. Mediante a
anamnesis, o historiador das religiões refaz em certo modo a Fenomenologia do
espírito. Mas, Hegel ocupou-se unicamente de duas ou três culturas, enquanto
que o historiador das religiões se vê obrigado a estudar e entender a história
do espírito em sua totalidade, a partir do Paleolítico. Trata-se, por
conseguinte, de uma história verdadeiramente universal do espírito. Acredito
que o historiador das religiões vê melhor que outros investigadores a
continuidade das distintas etapas do espírito humano e, finalmente, a
unidade profunda e fundamental do espírito. Deste modo, revela-se a
condição mesma do homem Daí que me pareça decisiva a contribuição do
historiador das religiões, que descobre a unidade da condição humana, e isso
precisamente em um mundo moderno que está em transe de «planetarizar-
se».

—Falou de «tentações...» Mas, se recordarmos as «tentações» de Santo Antonio em


Bosch, por exemplo, trata-se de umas «tentações» estranhas, já que os objetos da
tentação não nos «tentam»; outras, em troca, são aparições espantosas... Em que
sentido quer dizer que se sentiu «tentado» durante sua anamnesis como historiador
das religiões?
—Quando se chega a compreender a coerência e até a nobreza, a beleza da
mitologia e diríamos inclusive da teologia que serve de apoio ao
canibalismo... Quando se chega a entender que não se trata de um
comportamento animal mas sim de um ato humano, que é o homem, como
ser livre capaz de tomar uma decisão no mundo, que decidiu matar e comer
a seu próximo, embora inconscientemente, o espírito sente a tentação dessa
enorme liberdade que acaba de descobrir: pode-se matar, ser canibal, sem
perder a «dignidade humana»... Do mesmo modo, quando se estudam os
ritos orgiásticos e chega-se a captar sua extraordinária coerência: inicia-se a
orgia, ficam suprimidas todas as regras, o incesto e a agressividade já são
lícitos, todos os valores ficam investidos... E o sentido deste rito é que
regenera o mundo. Ante este descobrimento sentem-se desejos de gritar de
gozo, como Nietzsche ante seu descobrimento do eterno retorno. Pois
também aí ressoa um convite à liberdade total. É inevitável pensar então: que
liberdade extraordinária, que criatividade se pode alcançar como fruto dessas
liberdades! Exatamente igual à tribo da Indonésia depois da grande orgia de
fim de ano que recreia um mundo regenerado cheio de força. Para mim, um
ocidental moderno, isto significa que sempre posso começar de novo minha
vida e, por conseguinte, assegurar minha criatividade... Neste sentido se pode
falar de tentações.
Mas, há além, perigos de ordem luciferino. Quando se chega a
compreender que um homem acredita possível mudar o mundo como
resultado de uma meditação e de certos ritos; quando se trata de saber por
que motivos se sente tão seguro de que poderá converter-se realmente em
dono do mundo ou ao menos de sua aldeia... Também nisto se experimenta a
tentação da liberdade absoluta, quer dizer a supressão da condição humana.
O homem é um ser limitado, condicionado, enquanto que a liberdade de um
deus, de um antepassado mítico ou do espírito carece de corpo mortal. Trata-
se de verdadeiras tentações. Porém, não quero dar a entender em modo algum
que um historiador das religiões possa sentir-se tentado pelo canibalismo,
pela orgia, ou pelo incesto.

—Acaba de falar de canibalismo e de incesto, mas insistiu sobretudo no canibalismo. É


esta, em seu julgamento, a chave trágica do homem?

—O incesto, a abolição temporária de todas as leis, é um fenômeno que


aparece em muitas culturas que desconhecem o canibalismo. O canibalismo e
a decisão de garantir mediante o sacrifício humano a fecundidade ou
inclusive a vida do mundo são, no meu entender, situações extremas.

—Escutando-lhe lembro-me de Pasolini, obcecado pelo festim canibal, em sua obra.


Festim que, no Porcherie, significa A Última Ceia...

—Pasolini sentia-se fascinado pelo problema de uma regressão não à


selvageria animal, a não ser em outro grau cultural. O canibalismo não tem
realmente importância a não ser quando é ritual, quando está integrado na
sociedade. Por outro lado, é natural que um cristão, ao refletir sobre o
significado dos sacramentos, termine por dizer-se: também eu sou canibal...
Outro italiano, Papini, acredito que em seu Diário, advertia que a missa não é
a comemoração, mas, a atualização de um sacrifício humano: estes homens
matam de novo ao homem-deus e logo comem sua carne e bebem seu
sangue.

—O descida aos infernos de que falam algumas religiões, não provoca às vezes no
historiador das religiões uma «tentação» inversa: o ódio a todos os deuses, o ódio à
religião? Penso agora em Lucrecio, em Epicuro, descobrindo a mentira dos deuses e o
horror de quão divino pesa sobre o homem...

—Ocorreu, com efeito, que alguns historiadores das religiões, cheios de


admiração ante os fatos religiosos, reagissem de maneira terrível. Mas acaba
de me falar de Lucrecio; em seu caso tratava-se de umas formas decadentes,
fossilizadas, de um universo religioso. Os deuses tinham perdido sua força
sagrada. Aquele admirável politeísmo ficou vazio de sentido. Tomavam os
deuses como alegorias ou como lembranças transfigurados dos antigos reis.
Era uma época exceptiva em que só se via o aspecto horrível dos deuses.
Quando se captam as coisas em conjunto e buscam-se as raízes desta decisão
de matar, revela-se uma verdade distinta: a condição trágica do homem.
Situadas no conjunto, estas coisas terríveis, grotescas, repugnantes,
encontram seu sentido original, que consistia em dar um significado à vida a
partir de uma evidência: toda vida implica a morte de outros seres; para viver
terá que matar. Tal é a condição do espírito em sua história, certamente
trágica, mas enormemente criadora! Situar-se frente ao vazio, a um nada, ao
demoníaco, ao desumano, à tentação de retornar ao mundo animal, todas
estas experiências, extremas e dramáticas são a fonte das grandes criações do
espírito. Com efeito, nessas condições terríveis, o homem acertou a dizer sim
à vida e encontrou um sentido à sua existência.

—Em seu Diário fala das «terríveis deusas mães». Isto não soa a coisa conhecida.

—Pensava sobre tudo em Durga, por exemplo, uma deusa sangrenta hindu,
ou em Kali. São deusas mães que, entre outras coisas, expressam o enigma da
vida e do universo quer dizer o fato de que nenhuma vida pode perpetuar-se
sem correr um risco mortal. Estas deusas terríveis exigem o sangue, ou a
virilidade, ou a vontade de seus fiéis. Mas, quem entende o que significam
estas deusas recebe, ao mesmo tempo, uma revelação de ordem filosófica.
Chega-se a compreender que esta união de virtudes e pecados, de crimes e
generosidade, de criatividade e de destruição é o grande enigma da vida. Ter-
se-á que viver como um homem, não como um autômato ou um animal, mas
tampouco como um anjo, não há mais remédio que enfrentar-se esta
realidade. Rodeando-nos a um mundo que nos é mais conhecido, em Yahvé
vemos o Deus criador e bom, mas também ao Deus terrível, ciumento,
destruidor; este aspecto negativo da divindade nos diz que Deus é tudo. Do
mesmo modo, para todos os povos que aceitam a Grande Mãe, o culto destas
deusas terríveis é uma introdução ao enigma da existência e da vida. A
mesma vida é essa «Grande Mãe terrível» cortadora de cabeças e parideira
que patrocina ao mesmo tempo a fertilidade e o crime, mas também a
inspiração, a generosidade, a riqueza. Esta totalização dos contrários se revela
mesmo nos mitos da Grande Deusa que no Antigo Testamento, com a ira de
Yahvé. Também nos perguntamos às vezes como é possível que um Deus se
comporte deste modo. Mas estes mitos e estes ritos das deusas terríveis ou do
deus terrível dão-nos a lição de que a realidade, a vida, o cosmos são como são.
Crime e generosidade, crime e fecundidade. A deusa mãe é a que pare e mata
ao mesmo tempo. Não vivemos em um mundo de anjos ou de espíritos, mas
tampouco em um mundo meramente animal. Estamos entre ambos os
extremos. Acredito que a revelação deste mistério segue-se sempre de um ato
criador. Acredito que o espírito cria algo sobretudo quando tem que
enfrentar-se estas grandes provas.

—Como se protege o espírito desses grandes perigos de que fala? Como é possível
seguir o caminho sem perder-se?

—Pode-se sobreviver se se toma cuidado de estudar não só o canibalismo,


mas também além disso, por exemplo, a experiência mística. Então cai em
conta de que o sentido de todos esses horrores é a intenção de revelar a
totalidade divina, a totalidade enigmática, quer dizer, a coincidência dos
opostos, dos contrários na vida. Compreende-se então o seriado desse
comportamento religioso e, ao mesmo tempo, cai em conta de que se trata de
uma das expressões do espírito humano. Em sua longa e dramática história, o
homem decidiu fazer também isto. Mas, conhecemos além outras muitas
decisões: a mística, o ioga, a contemplação... O que protege o espírito do
historiador das religiões, que em certo modo se vê condenado a trabalhar
com estes documentos, é a convicção de que essas coisas terríveis não
representam o summum ou a expressão perfeita da experiência religiosa, a não
ser unicamente um de seus aspectos, o lado negativo.

O «TERROR DA HISTÓRIA»
—Falamos das crueldades profundas do homem e das religiões tradicionais. Mas, o
que dizer dos movimentos históricos modernos que devem ser outros tantos trunfos
da morte? Como vê, assim que historiador das religiões, os mitos terríveis da
humanidade moderna?

—O historiador das religiões se encontra ante esse fenômeno terrível da


desacralização de um rito, de um mistério, ou de um mito, em que a morte
tinha um sentido religioso. É uma regressão a uma etapa superada há
milhares de anos, mas esta «regressão» não consegue recuperar sequer a
significação espiritual anterior. Já não há valores transcendentes. O horror se
multiplica e a matança coletiva resulta além «inútil», posto que carece de
sentido. Daí que este inferno seja realmente o inferno: a crueldade pura,
absurda. Quando os mitos cruentos ou demoníacos ficam desacralizados, sua
significação demoníaca aumenta, vertiginosamente e já só fica o puro
demonismo, a crueldade, o crime absoluto.
—Tudo isto me deixa confuso. Farei de advogado do diabo para entender. Não poderia
dizer-se que é precisamente o sacrifício o que constitui o sagrado e confere um
sentido? Não há justificação para a matança hitleriana, para a loucura do nazismo.
As hecatombes patrióticas, por outro lado, podem parecer uns anos mais tarde tristes
frutos de uma ilusão. Entretanto, os combatentes mataram e morreram com fé,
possivelmente com entusiasmo. Os «kamikazes» eram aliados dos nazistas e seu nome
significava «vento divino». Como afirmar que os astecas viviam uma ilusão
justificada e não os SS? Onde está a diferença entre o assassinato ordinário e o
assassinato sagrado?

—Para os astecas, o sacrifício humano tinha o sentido de que o sangue das


vítimas humanas alimentava e fortificava ao deus sol e aos deuses em geral.
Para os SS o aniquilamento de milhões de homens nos campos de
concentração tinha também um sentido, e até de ordem escatológica.
Acreditavam representar o bem contra o mal. E o mesmo pode dizer do
piloto japonês. Já sabemos o que era o bem para o nazismo: o homem loiro, o
homem nórdico, o ariano puro... Todo o resto eram encarnações do mal, do
diabo. Isso soa quase à maniqueísmo: a luta do bem contra o mal. No
dualismo iraniano, todo fiel que dá morte a um sapo, a uma serpente, a uma
besta demoníaca, contribui à purificação do mundo e ao triunfo do bem.
Podemos imaginar que estes doentes, estes passionais, estes fanáticos, estes
maniqueístas modernos viam o mal encarnado em certas raças, nos judeus,
nos ciganos. Sacrificá-los por milhões não era um crime, posto que
encarnavam o mal, o demônio. Exatamente igual ocorre com Gulag e a
escatologia apocalíptica da grande liberação comunista, que tem frente assim
a uns inimigos que reapresentam o mal e que se opõem ao triunfo do bem, ao
triunfo da liberdade, ao triunfo do homem, etc. Pode comparar-se tudo isto
com os astecas: uns e outros acreditavam ter uma justificação. Os astecas
acreditavam ajudar ao deus sol, os nazistas e os russos acreditavam realizar a
história.

—Freqüentemente falou que «terror da história»...

—O terror da história é para mim a experiência de um homem sem religião,


que não tem esperança alguma de encontrar sentido definitivo ao drama
histórico, que deve sofrer os crimes da história sem compreender seu sentido.
Um israelita cativo em Babilônia sofria enormemente, mas aquele sofrimento
tinha um sentido: Yahvé queria castigar a seu povo. E sabia que ao final
triunfaria Yahvé, o bem por conseguinte... Também para o Hegel, todo
acontecimento, toda prova era uma manifestação do Espírito universal, e por
conseguinte tinha sentido. Podia-se, quando não justificar, ao menos explicar
racionalmente o mal histórico... Quando os acontecimentos históricos se
esvaziam de toda significação trans-histórica, quando deixam de ser o que
eram para o homem tradicional —prova para um povo ou para um
indivíduo—estamos ante o que chamei o «terror da história».

HERMENÊUTICA
—Ao falar dos perigos que corre o historiador das religiões têm desembocado na
questão do sentido: sentido da religião para o crente e sentido que a experiência
religiosa pode ter aos olhos do historiador. Um dos pontos essenciais de seu
pensamento é que o historiador das religiões não pode deixar de ser um hermeneuta. E
diz além que essa hermenêutica tem que ser criadora...

—A hermenêutica é a busca do sentido, da significação ou das significações


que tal idéia, ou tal fenômeno religioso tiveram através da história. É possível
fazer a história das diversas expressões religiosas. Mas, a hermenêutica é o
descobrimento do sentido cada vez mais profundo dessas expressões
religiosas. E digo que tem que ser criadora por duas razões. Em primeiro
lugar, é criadora para o mesmo hermeneuta. O esforço por decifrar a
revelação presente em uma criação religiosa —rito, símbolo, mito, figura
divina...— e por compreender sua função, sua significação, seu fim é um
esforço que enriquece de maneira singular a consciência e a vida do
investigador. É uma experiência que não conhece o historiador das
literaturas, por exemplo. Captar o sentido da poesia sânscrita, ler Kalidasa é
um grande descobrimento para um investigador de formação ocidental, ao
qual se revela um horizonte distinto de valores estéticos. Mas tudo isto não é
tão profundo, tão existencialmente profundo como a tarefa de decifrar e
compreender um comportamento religioso oriental ou arcaico.
A hermenêutica é criadora em um segundo sentido, pois revela certos
valores que não eram evidentes no plano da experiência imediata.
Suponhamos o exemplo da árvore cósmica em Indonésia, Sibéria, na
Mesopotâmia; há traços comuns aos três simbolismos, mas, evidentemente,
este parentesco não era conhecido do homem mesopotâmico, indonésio ou
siberiano. O trabalho hermenêutico revela as significações latentes e o
suceder dos símbolos. Veja os valores que os teólogos cristãos acumularam
aos valores pré-cristãos da árvore cósmica, ou do axis mundi, ou da cruz, ou
também o simbolismo do batismo. A água teve sempre e em todas partes um
significado de «purificação», batismal. Com o cristianismo se acrescenta a
este simbolismo um novo valor, sem destruir a estrutura anterior, que, pelo
contrário, completa e enriquece. Com efeito, o batismo é para o cristão um
sacramento pelo fato de ser instituído por Cristo.
A hermenêutica é criadora até em outro sentido. O leitor que
compreende, por exemplo, o simbolismo da árvore cósmica —e acredito que
tal é o caso inclusive entre quem não se interessa de ordinário pela história
das religiões— experimenta algo mais que um prazer intelectual. Faz um
descobrimento importante para sua vida. Adiante, quando contemplar
determinadas árvores, verá neles a expressão do mistério do ritmo cósmico.
Verá o mistério da vida que se recupera e continua: o inverno, com a queda
das folhas; a primavera... Isto possui uma importância muito distinta da
decifração de uma inscrição grega ou romana. Um descobrimento de ordem
histórica nunca é desdenhável, certamente. Mas, neste caso descobre uma
certa posição do espírito no mundo, e embora não se trate de uma postura
própria, nunca deixará de nos afetar. O espírito é criador graças a estes
encontros. Recorde o encontro do século XIX com a pintura japonesa, ou o do
século XX com a escultura e as máscaras africanas. Não se trata já de simples
descobrimentos culturais, mas sim de encontros criadores.

—A tarefa hermenêutica é um trabalho de conhecimento, mas, qual é o critério da


verdade? Penso, ao escutar-lhe, que se vai preparado para um trabalho de ciência
«objetiva», a hermenêutica pede por si, não uns critérios «objetivos», o que nos
levaria a pensar que o sujeito está ausente do que considera, a não ser, em definitivo,
uns critérios de «verdade poética». Quanto conhecemos através do ato de
conhecimento, trocamo-lo, ao mesmo tempo, somos trocados nós mesmos por nosso
conhecimento. Hermenêutica infinita, já que, ao ler ao Eliade, interpretamo-lo, do
mesmo modo que ele interpreta este ou aquele símbolo iraniano...

—Sem dúvida... Mas quando se trata desses grandes símbolos que põem em
relação a vida cósmica e a existência humana, em seu ciclo de morte e
renascimento —a árvore cósmica, por exemplo— há algo fundamental, que
reaparecerá nas distintas culturas: um segredo do universo que é ao mesmo
tempo um segredo da condição humana. E não só se revelará a solidariedade
entre a condição humana e a condição cósmica, mas também o fato de que se
trata, em cada caso, de seu próprio destino. Esta revelação pode afetar a
minha própria vida. Um sentido fundamental, por conseguinte, um sentido
com o que se irão conectando outros. Quando a árvore cósmica recebe a
significação da cruz, isso não resulta evidente para um indonésio, mas se
alguém lhe explica que, para os cristãos, esse símbolo significa uma
regeneração, uma vida nova, o indonésio não se sentirá surpreso, mas sim
achará aí algo que lhe resulta familiar. Árvore ou cruz, trata-se do mesmo
mistério da vida e da ressurreição. O símbolo está sempre aberto. E quanto a
minha interpretação, nunca devo esquecer que é a de um investigador de
hoje. A interpretação jamais está acabada.

—Convida-nos a captar a universalidade do símbolo além da diversidade do


simbolismo. Mostra-nos a abertura indefinida do símbolo e da interpretação.
Entretanto, rechaça a via que quiçá conduzisse a uma espécie de relativismo, de
subjetivismo e, em seguida, de niilismo, essa via que consistiria em dizer: «Sim, as
coisas têm sentido, mas esse sentido não se apóia em nada que não seja quanto de mais
fortuito e fugitivo há em mim...». Minha pergunta agora é esta: enlaça a experiência
religiosa —e em que modo— com uma verdade trans-histórica? Que classe de
«transcendência» admite? Acredita que a verdade está do lado de um Claudel e de
sua atitude exegética ou do lado dos existencialistas, de um Sartre, que dizem: «O
homem não pode prescindir do sentido, mas esse sentido o inventa mesmo em um céu
deserto»?

—Estou certamente contra essa última interpretação: «no céu deserto»!


Parece-me que as mensagens emitidas pelos símbolos fundamentais revelam
um mundo de significações que não se reduz unicamente a nossa experiência
histórica e imanente. «O céu deserto...». É uma metáfora admirável para um
homem moderno cujos antepassados acreditavam em um céu povoado de
seres antropomórficos, os deuses. O céu, certamente, estava vazio de tais
seres. Por minha parte, acredito que as religiões e as filosofias nelas
inspiradas —penso nos Upanishads, em Dante, no taoísmo...— revelam-nos
algo essencial que somos capazes de assimilar. Entenda-se bem que se trata
de algo impossível de aprender de cor, como o último descobrimento
científico ou arqueológico. O que quero dizer, e digo em meu próprio nome,
não é que daí eu tire uma conseqüência filosófica a partir de meu trabalho
como historiador das religiões. Enfim, a resposta de Sartre e dos
existencialistas não me convence: um «céu vazio»... Mais me atrai a «gnosis
de Princeton», por exemplo. Chama a atenção o fato de que os maiores
matemáticos e astrônomos de nossos dias, que se formaram além em uma
sociedade totalmente desacralizada, cheguem à umas conclusões científicas e
até filosóficas muito próximas a certas filosofias religiosas. Chama a atenção
ver como os físicos, os astrofísicos e sobretudo os especialistas da física
teórica reconstróem um universo no qual Deus tem um lugar, assim como a
idéia de uma cosmogonia de uma criação. Há nisso algo semelhante ao
monoteísmo mosaico, mas sem antropomorfismo, algo que também nos leva
para certas filosofias hindus, que esses sábios desconheciam. É um fato muito
importante. A «gnosis de Princeton» parece-me muito além de significativa
pelo grande êxito e o público que atraiu o livro de Ruyer.

—Queria precisar agora mesmo minha pergunta. Como conciliar uma atitude
religiosa e uma atitude científica? Por uma parte, sentimo-nos impulsionados a
acreditar que, além do sensível, há, quando não um Deus ou uns deuses, ao menos
algo divino, um mundo espiritual. A hermenêutica, por sua vez, levar-nos-ia
apropriarmo-nos desse algo divino. Por outro lado, sabemos, por exemplo, que o
passado do Paleolítico ao Neolítico supõe a construção de todo um edifício de crenças,
de mitos, de ritos. Como acreditar, instruídos por esta ciência histórica,
«materialista», que essas crenças vinculadas às mudanças técnicas, econômicas,
sociais, possam encerrar um sentido trans-histórico, uma transcendência?

—Há algum tempo decidi adotar uma certa atitude discreta a respeito do que
acredito ou não acredito. Mas, meu esforço orientou-se sempre em
compreender a quem acredita em algo: o xamã, ou o iogue, ou o australiano
igual a um grande santo, um Mestre Eckart, um Francisco de Assis. Neste
ponto responder-lhe-ia como historiador das religiões. Sendo o que é o
homem, quer dizer, não um anjo, ou um espírito, é óbvio, que a experiência
do sagrado se produz em seu caso através de um corpo, de uma determinada
mentalidade, de um certo ambiente social. O caçador primitivo não podia
captar a santidade e o mistério da fecundidade da terra igual podia fazê-lo o
cultivador. Entre estes dois universos de valores religiosos há uma ruptura
evidente. Antes eram dois ossos da peça caçada os que tinham um significado
sagrado; logo, os valores religiosos referem-se, especialmente, ao homem e à
mulher, cuja união tem por modelo a hierogamia cósmica. Mas, o importante
para o historiador das religiões é que a invenção da agricultura permitirá ao
homem aprofundar no caráter cíclico da vida. Bem entendido, o caçador
primitivo sabia perfeitamente que a caça pára na primavera. Mas, é o
agricultor o que capta a relação causal entre semente e colheita, como a
analogia entre semente vegetal e semente humana. Ao mesmo tempo se
afirmará a importância econômica, social e religiosa da mulher. Já vê como,
através de um descobrimento técnico, a agricultura, revela à consciência
humana um mistério muito mais profundo que o que contemplava o caçador.
Descobre agora que o cosmos é um organismo vivo, regido por um ritmo, por
um ciclo em que a vida esta íntima e necessariamente ligada à morte, pois a
semente não pode renascer a não ser através de sua própria morte. E este
descobrimento técnico revelou-lhe seu próprio modo de existir. No Neolítico
nasceram as grandes metáforas que se mantêm do Antigo Testamento até
nós: «O homem é como a erva do campo», e outras muitas. Mas não terá que
entender este tema como uma lamentação sobre o caráter efêmero da planta,
mas sim, como uma mensagem otimista, como um reconhecimento do
circuito eterno da vegetação e da vida... Em resumo, para precisar minha
resposta, é certo que como conseqüência de uma mudança radical de
tecnologia, os antigos valores religiosos, se não se abolirem, ao menos ficam
diminuídos, enquanto que sobre outras condições econômicas se
fundamentam novos valores. Esta economia nova revelará uma significação
religiosa e criadora. A agricultura possui para a história do espírito uma
importância não menor que para a história da civilização material. Na
existência do caçador não era evidente a unidade da vida e da morte; o foi
partir do trabalho agrícola.
—Seu pensamento me dá a impressão de ser «hegeliano». Tudo ocorre como se a
produção dos fatos materiais, as mudanças que têm lugar na matéria, nas «infra-
estruturas», tivessem por objeto nos levar a uma profundidade do sentido. Terei que
considerar os acontecimentos da matéria, os acontecimentos da história, como as
condições sucessivas da revelação de um sentido espiritual. Por outro lado, uma nota
de seu Diário, de 2 de março de 1967, diz claramente: «A história das religiões, tal
como eu a entendo, é uma disciplina "liberadora" (saving discipline). A
hermenêutica poderia chegar a ser a única justificação válida da história. Um
acontecimento histórico justificará o produzir-se quando for entendido. Isto poderia
significar que as coisas acontecem, que a história existe unicamente para obrigar aos
homens entender».

—Sim, acredito que todos esses descobrimentos técnicos foram outras tantas
ocasiões para que o espírito humano captasse certas estruturas do ser que
antes resultavam mais difíceis de captar. O caçador, é óbvio, era consciente
do ritmo das estações. Mas esse ritmo não era o centro das construções
teóricas que davam significado à vida humana. A agricultura deu ocasião a
uma enorme síntese. Sentimo-nos fascinados quando descobrimos a causa
desta visão nova do mundo: o trabalho da terra. Esta visão do mundo, quer
dizer a identidade, a homologia entre a mulher, a terra, a lua, a fecundidade,
a vegetação, e também entre a noite, a fecundidade, a morte, a iniciação, a
ressurreição. Todo este sistema se fez possível graças à agricultura. Do
mesmo modo, pense nessa enorme e admirável construção da imago mundi
que veio acrescentar-se à representação do tempo cíclico e que foi possível só
com a criação das cidades. Certamente, o homem viveu sempre em um
espaço orientado, com um centro e os quatro pontos cardeais, dados todos de
sua experiência imediata no mundo. Mas, a cidade enriqueceu de sentido o
espaço até propô-lo como uma imagem do mundo. Todas as culturas urbanas
arrancam da herança do Neolítico. Os valores anteriores —a fertilidade da
terra, a importância da mulher, o valor sacramental da união sexual— foram
integrados no edifício de nossa cultura urbana. Hoje essa cultura está a ponto
não de desaparecer, mas sim, mudar quanto a sua estrutura. Não acredito,
entretanto, que possam desaparecer as revelações primitivas, pois não
deixamos que viver no ritmo cósmico fundamental: dia e noite, inverno e
verão, vida de vigília e vida de sono, luz e trevas. Conheceremos outras
formas religiosas, que possivelmente não serão reconhecidas como tais, e que
por sua vez, estarão condicionadas pela linguagem nova e pela sociedade do
futuro. É certo que, até hoje, não falo unicamente de «religião», o homem não
se enriqueceu espiritualmente com os novos descobrimentos técnicos do
mesmo modo que se enriqueceu com o descobrimento da metalurgia ou da
alquimia.
DESMITIFICAR A DESMITIFICAÇÃO
—Já estamos perfeitamente ilustrados a respeito do que entende por «atitude
hermenêutica» e, ao mesmo tempo, captamos a atitude oposta, a que aspira a
«desmitificar», em que coincidem Marx e os marxistas, Freud, Lévi-Strauss e os
«estruturalistas». A todos eles deve-os sem dúvida algo, mas preferiu situar-se na
outra vertente. Poderia precisar qual é sua postura?

—Efetivamente, tratei que tirar partido das três correntes que acaba de
mencionar. Um momento atrás falava eu da importância radical da
agricultura e da conseguinte mudança ocorrida nas estruturas econômicas.
Marx ajuda-nos a entender este ponto. Por sua vez, Freud revelou-nos a
«embriologia» do espírito. Trata-se de um algo muito importante, mas a
embriologia é unicamente um momento de nossos conhecimentos a respeito
de um ser. Também o «estruturalismo» é útil. Mas, acredito que a atitude
«desmitificadora» é uma postura fácil. Todos os homens arcaicos e primitivos
acreditam que sua aldeia é «o centro do mundo». Não é difícil afirmar que tal
crença é uma ilusão, mas isto não conduz a nada. Ao mesmo tempo, destrói-
se o fenômeno por não observá-lo no plano que lhe é próprio. O importante,
ao contrário, é perguntar-se por que esses homens acreditam viver no centro
do mundo. Se eu aspirar a entender a esta, ou àquela tribo, não é para
«desmitificar» sua mitologia, sua teologia, seus costumes, sua representação
do mundo. O que quero é entender sua cultura e, em conseqüência, por que
esses homens acreditam o que acreditam. E se chegar a entender por que sua
aldeia é o centro do mundo, é que começarei a compreender sua mitologia,
sua teologia e, em conseqüência, seu modo de existir no mundo.

—Mas, resulta tão difícil de compreender tudo isso? Lembro-me uma página em que
Merleau-Ponty, depois de falar do acampamento primitivo, acrescenta: «Chego a um
povo para passar as férias, feliz ao poder deixar atrás minhas tarefas e meu ambiente
habitual. Instalo-me naquele povo. Converte-se no centro de minha vida (...) Nosso
corpo e nossa percepção pedem-nos sempre para tomarmos por centro do mundo a
paisagem que nos oferecem».

—Sim, essa experiência que chamamos religiosa ou sagrada, é de ordem


existencial. O homem mesmo, pelo fato de que tem um corpo situado no
espaço, orienta-se por volta dos quatro horizontes, mantém-se entre o acima e
o abaixo. Ele é naturalmente o centro. Uma cultura se constrói sempre sobre
uma experiência existencial.

—Quando fala de religiões, de cultura, inclusive das mais primitivas, como é a da


Austrália, faz sempre com um infinito respeito. Não vê em tudo isso outros tantos
documentos etnológicos, a não ser verdadeiras realizações. Considera as religiões
como obras admiráveis, cheias de sentido e valor, igual à Odisséia, a Divina
Comédia ou a obra de Shakespeare.

—Sinto-me contemporâneo das grandes reformas, das revoluções políticas e


sociais. Todas as constituições falam da igualdade entre todos os homens.
Todo ser humano tem o mesmo valor que um gênio de Paris, de Boston ou de
Moscou. Mas logo vemos que não seja assim na realidade. Eu mesmo
comprovo este princípio quando me aproximo de um australiano. Não vou
para ele como tantos antropólogos, que unicamente sentem curiosidade por
conhecer as instituições e os fenômenos econômicos. Conhecer todas essas
coisas tem muito interesse, sem dúvida, mas, deter-se aí não é o melhor
método para captar a contribuição destes homens à história do espírito. O
que de verdade me interessa é saber como reage um ser humano quando se
vê forçado a viver em um deserto australiano ou na zona ártica. Como
conseguiu, não só sobreviver, assim como a espécie zoológica, como os
pingüins e as focas, além disso, como ser humano, criador de uma cultura, de
uma religião, de uma estética? Porque estes homens viveram ali como seres
humanos, quer dizer como criadores. Não aceitaram comportar-se como as
focas, ou como os cangurus. Por isso, sinto-me muito orgulhoso de ser um ser
humano, não pelo fato de ser herdeiro desta prodigiosa cultura mediterrânea,
mas sim porque me reconheço, como ser humano, na existência assumida
pelos australianos. Por isso, interessam-me sua cultura, sua religião, sua
mitologia. Isto explica minha atitude de simpatia. Não sou uma espécie de
nostálgico ao que gostaria de retornar a um passado, ao mundo dos
aborígenes australianos ou dos esquimós. O que quero é me reconhecer —no
sentido filosófico do termo— em meu irmão. Assim que romeno, fui como ele
há milhares de anos. Este pensamento faz sentir-me homem totalmente de
minha época; com efeito, se existir um descobrimento original e importante
que caracterize a nosso século, é este: A unidade da história e do espírito
humano. Por isso eu não «desmitifico». Um dia reprovar-nos-iam nossa
«desmitificação» os descendentes dos antigos colonizados. Dir-nos-ão:
«Vocês exaltam a criatividade de seu Dante e de seu Virgilio, mas desmitificam
nossa mitologia e nossa religião. Seus antropólogos insistem constantemente
nos orçamentos socio-econômicos de nossa religião ou de nossos movimentos
messiânicos e milenaristas, subentendendo que nossas criações espirituais, ao
contrário das suas, nunca se elevam acima das determinações materiais ou
políticas. Em outras palavras, nós, os primitivos, seríamos incapazes de
alcançar a liberdade criadora de um Dante ou um Virgilio...». A atitude
desmitificadora tem que se considerar suspeita de etnocentrismo, de
«provincialismo» ocidental, em resumidas contas, terá que ser
«desmitificada».
—O que acaba de dizer nos permite também compreender definitivamente por que a
história das religiões tende à hermenêutica. Se as religiões e as grandes realizações de
nossa cultura estão aparentadas, a atitude hermenêutica se impõe até a evidência.
Porque, em definitivo, está claro para todo mundo que a análise lingüística não esgota
nossa relação com Rilke ou Bellay. Todos sabemos que um poema não se reduz a sua
mecânica, nem às condições históricas que o fazem possível. E se nos empenhamos a
reduzi-lo a isso, pior para nós. Se assim o entendermos quando se trata de poesia,
quanto mais claro teríamos que ver à propósito da religião.

—Completamente de acordo! Daí que sempre comparo o universo imaginário


religioso com o universo imaginário poético. Mediante esta comparação,
quem tem poucos conhecimentos sobre o mundo religioso poderá aproximar-
se facilmente a ele.

—Diria que o âmbito da religião é uma parcela do imaginário e do simbólico?

—Certamente. Mas, terei que dizer também que ao princípio todo universo
imaginário era —para dizer com um termo pouco afortunado— um universo
religioso. E digo «pouco afortunado» porque, ao empregá-lo, só pensamos
ordinariamente no judeu-cristão, ou no politeísmo pagão. A autonomia da
dança, da poesia, das artes plásticas é um descobrimento recente. Nas
origens, todos estes mundos imaginários tinham uma função e um valor
religiosos.
—Em certo sentido, não os conservam ainda? Alguma vez falou que «desmitificação
contra a corrente» e afirma que é preciso recuperar nas obras profanas, nas obras
literárias, o argumento da iniciação, por exemplo.

- Já sabe que há uma geração, a crítica literária americana, especialmente nos


Estados Unidos, procura nas novelas contemporâneas os temas da iniciação,
do sacrifício, os arquétipos míticos. Acredito que o sagrado se esconde depois
do profano, do mesmo modo que para Freud ou Marx, o profano se
mascarava depois do sagrado. Acredito que é completamente legítimo
demarcar em certas novelas os esquemas de certos ritos iniciáticos. Mas aí
nos encontramos ante um problema importante. Espero que se alguém
pretender abordá-lo, decifre o oculto do sagrado no mundo desacralizado.

O TRABALHO DO HISTORIADOR

MÉTODO: COMEÇAR PELA ORIGEM


—Não penso lhe pedir agora que nos faça um repasse das etapas da história das
religiões, nem sequer desde o começo do século; já o fez em sua obra Nostalgie des
origines. Mas eu gostaria de saber em essência que deve a seus predecessores, a seus
maiores. Eu gostaria que me falasse de Georges Dumézil, que lhe recebeu em Paris no
ano 1945.

—Conhecia e admirava a obra de Georges Dumézil muito antes de conhecer-


lhe pessoalmente, em setembro de 1945, poucos dias depois de minha
chegada à Paris. A partir de então, minha admiração ante seu gênio não faz
mais que crescer, à medida que ele desenvolvia e precisava suas idéias sobre
as religiões e as mitologias indo-européias. Duvido que exista no mundo
inteiro outro investigador que possua sua prodigiosa erudição lingüística
(conhece mais de trinta línguas e dialetos!), seu imenso saber de historiador
das religiões e, ao mesmo tempo, dotado de semelhante talento literário.
Georges Dumézil renovou os estudos das religiões e das mitologias indo-
européias. Demonstrou a importância da concepção indo-européia
tripartidária da sociedade, quer dizer sua divisão em três zonas superpostas,
correspondentes à três funções: soberania, força e fecundidade. O exemplo de
Dumézil é capital para a história das religiões tanto como a disciplina
autônoma, posto que completou brilhantemente a minuciosa análise
filológica e histórica dos textos com conhecimentos obtidos da sociologia e da
filosofia. No que se refere à minha «carreira» científica na França, quase tudo
devo ao Georges Dumézil. Convidou-me a dar cursos na Escola de altos
estudos (onde expus alguns capítulos do Tratado de história das religiões e do
Mito do eterno retorno). Também apresentou ao Brice Parain o manuscrito de
meu primeiro livro publicado por Gallimard.
—Parece que aceita sem dificuldade o «estruturalismo» de Dumézil, ao passo que
rechaça o de Lévi-Strauss.

—Sim, aceito o «estruturalismo» de Dumézil, de Propp, e de Goethe. Já sabe


que Goethe, quando estudava a morfologia das plantas, pensou que era
possível reduzir todas as formas vegetais ao que ele chamava «a planta
original», e que terminou por assimilar esta Urpflanze à folha. Propp ficou
impressionado por esta idéia, até o extremo de que, na edição russa de
Morfologia do conto popular, cada capítulo leva como epígrafe uma extensa
passagem do livro de Goethe. De minha parte, ao menos no início, pensava
que para ver claramente neste oceano de fatos, de figuras, de ritos, o
historiador das religiões deveria procurar, em seu domínio, a «planta
original», a imagem primitiva, quer dizer, o resultado do encontro do homem
com o sagrado. Em definitivo, há estruturalismo que julgo fecundo, é o que
consiste em interrogar-se a respeito da essência de um conjunto de
fenômenos, da ordem primitiva que fundamenta seu sentido. Eu gosto muito
do escritor que há em Lévi-Strauss, considero-o um espírito notável, mas, na
medida em que exclui a hermenêutica, não posso tirar proveito algum de seu
método. Um historiador das religiões, independentemente de quais sejam
suas opiniões —do marxismo ao psicologismo—, pensa, efetivamente, que
sua primeira obrigação consiste em captar o significado original de um
fenômeno sagrado e interpretar sua história. Não vejo, por conseguinte, o que
possa fazer um historiador das religiões com o «estruturalismo» à maneira de
Lévi Strauss.

—E em sua própria caminhada, quais foram os maiores obstáculos? Quais suas


maiores incertezas, suas dúvidas?

—O fato de ser novelista e trabalhar, ao mesmo tempo, em uma obra científica


significou uma grande dificuldade. Em princípio, na Romênia, meus
professores e meus colegas olhavam-me com grande desconfiança. Diziam
uns aos outros: «Um homem que escreve novelas que alcançaram o êxito não
pode ser ao mesmo tempo um espírito objetivo». Até a publicação do Ioga em
francês e à vista das resenhas favoráveis de alguns indianistas eminentes não
se decidiram a reconhecer que meu trabalho era sério pelo menos. Logo tive
que atrasar a tradução de minhas novelas para não danificar minha reputação
como historiador das religiões e orientalista. É verdade que hoje,
paradoxalmente, é uma casa especializada em publicações universitárias a
que vai publicar na América a tradução do Bosque proibido.
Outra dificuldade consistia no muito que me custava limitar a um
trabalho científico quando estava possuído pelo tema de uma novela. Seguia
dando meus cursos, evidentemente, mas meu espírito não estava ali...

—Fala-me de suas dificuldades. Alguma vez experimentou dúvidas a respeito da


validez de suas proposições?

—Propriamente falando, nunca tive dúvidas, mas padeci sempre uma espécie
de «perfeccionismo». Para explicar uma parte de minha carreira terá que ter
em conta que pertenço a uma «cultura menor provincial». Temia não estar
tão bem informado como seria necessário. Então escrevia à meus professores,
à meus colegas; durante o verão ia às bibliotecas do estrangeiro. Se
encontrava uma interpretação diferente da minha, sentia-me feliz, ao
comprovar que era possível interpretar um determinado fenômeno desde
distintos pontos de vista. Muitas vezes corrigia algum detalhe de minha obra.
Mas, nunca senti dúvidas radicais que me obrigassem a abandonar minha
hipótese ou meu método. Quanto escrevia se apoiava em minha experiência
pessoal da Índia, uma experiência de três anos.

—Seu «método», diz. No que consiste?


—Primeiro de tudo é procurar as melhores fontes, as melhores traduções, os
melhores comentários. Para isso, pergunto pessoalmente à meus colegas e aos
especialistas. Com isso economizo a leitura de milhares de páginas de escasso
interesse. A preocupação para conhecer a fundo as fontes é, por outra parte,
uma das razões pelas quais dediquei sete ou oito anos ao estudo da Austrália;
com efeito, tinha a impressão de que me seria possível ler eu mesmo todos os
documentos necessários, coisa impossível em relação com a África, ou as
tribos americanas.
O segundo ponto é que, quando se aborda uma religião arcaica ou
tradicional, terá que começar pelo princípio, quer dizer pelo mito
cosmogônico. Como acessou o mundo ao ser? Quem o criou, Deus, um
demiurgo, ou um antepassado mítico? Ou já estava aí o mundo? Começou a
transformá-lo uma figura divina? Logo vêm todos os mitos da origem do
homem e de todas as instituições.

—Parafraseando um dito conhecido sobre o fantasma, diria que o mito das origens é a
origem dos mitos?

—Todos os mitos são outras tantas variantes do mito das origens, posto que a
criação do mundo é o modelo de toda criação. A origem do mundo é modelo
da origem do homem, das plantas; até da sexualidade e da morte ou,
também, das instituições... Toda mitologia tem um princípio e um fim; ao
princípio a cosmogonia, e ao final, a escatologia: retorno dos antepassados
míticos, ou vinda do messias. O historiador das religiões, por conseguinte,
não olhará a mitologia como um sentido incoerente de mitos, mas sim como
um corpo dotado de sentido. Em definitivo, como uma «história sagrada».

—A pergunta que responde o mito das origens é, sob outra forma, a mesma que expôs
Leibniz e que todos sabemos o lugar importante que ocupa em Heidegger: «por que
existe algo em vez de não existir nada?».

—Sim, é a mesma pergunta. Por que existe a realidade, quer dizer o mundo?
Como se realizou a realidade? Daí que, a propósito dos mitos do homem
primitivo, eu falei, freqüentemente, de uma «ontologia arcaica». Para o
primitivo, quão mesmo para o homem das sociedades tradicionais, os objetos
do mundo exterior não têm valor intrínseco autônomo. Um objeto, ou uma
ação adquirem um valor, só então se fazem reais, porque participam, de uma
ou de outra maneira, de uma realidade que os transcende. Poderia dizer-se,
portanto, e assim sugeri em O mito do eterno retorno, que a ontologia arcaica
tem uma estrutura platônica...
O INEXPLICADO
—África está ausente de sua obra, explica-se este fato pela dificuldade da informação?

—Faz uns quinze anos fiz o projeto de uma história das religiões primitivas.
Unicamente publiquei o pequeno livro dedicado às religiões australianas. A
enormidade da documentação faz-me vacilar ante a África. A partir de
Griaule e seus discípulos, o africanismo francês renovou, decididamente,
nossos conhecimentos sobre as religiões africanas.

—Conheceu o Marcel Griaule?

—Sim, e muito bem, até tive o sentimento de que seus descobrimentos e suas
interpretações confirmavam minha própria orientação. Com ele, sobretudo
com sua obra Dieu d'eau, acabou-se a imagem estúpida que fizéramos dos
«selvagens». Também acabou-se o tema da «mentalidade prelógica», que, por
sua parte, já tinha abandonado mesmo Lévy-Bruhl. Em vista que Griaule não
chegou a conhecer a extraordinária e rigorosa teologia dos dogones a não ser
ao cabo de várias e prolongadas estadias entre eles, ficou claro que os
viajantes anteriores careciam desse conhecimento. A partir do que agora
sabemos a respeito dos dogones, podemos supor, justificadamente, que em
outros povos e em todo «pensamento arcaico» se dá uma teologia, ao mesmo
tempo, perfeitamente travada e sutil. Daí a suma importância que possui a
obra de Griaule, não só para os etnólogos, mas também, para os historiadores
das religiões que, até então, inclinavam-se em excesso a repetir Frazer.

—Ouvi contar que depois da morte de Griaule, um dia reuniram-se alguns de seus
amigos, dogones e europeus, no país dogon, para celebrar sua memória. No curso do
banquete viram Griaule entre eles... Quando ouve contar coisas como esta, estima que
se trata de um relato de coisas possíveis?

—Estas coisas são possíveis quando os homens a quem ocorre pertencem a


um determinado universo espiritual. Se os dogones viram o Griaule depois
de morto, é sinal de que era espiritualmente um deles.

—Neste terreno dos fenômenos que nossa razão habitual e nossa ciência não
reconhecem —as aparições dos mortos, por exemplo—, haveria coisas que seriam ou
não possíveis em razão de nossa qualidade espiritual?

—É o que afirmava um etnólogo e historiador das religiões italiano, Ernesto


De Martino, que, em seu livro O mundo mágico, estudava certo número de
fenômenos «parapsicológicos», «espíritas», entre os «primitivos». Reconhecia
a realidade desses fenômenos nas culturas primitivas, mas não na nossa.
Acreditava na autenticidade das aparições provocadas por um xamã, porém,
negava no caso de aparições análogas no curso de nossas sessões de
espiritismo. Para este autor, a mesma natureza está culturalmente condicionada.
Certas leis «naturais» variam em função da idéia que as diversas culturas se
forjam da «natureza». Entre nós, a natureza obedece, por exemplo, à «lei da
gravitação», entretanto, esta lei não tem a mesma vigência nas sociedades
arcaicas, daí a possibilidade dos fenômenos «parapsicológicos»... Trata-se de
"uma teoria muito controvertida, evidentemente, todavia, julgo-a
interessante. De minha parte, não atreveria a pronunciar-me em matéria de
«parapsicologia». Cabe esperar, entretanto, que daqui a uma geração
estaremos melhor informados a respeito deste tema.

—Ouvi dizer que um geógrafo marxista, bem conhecido e especialista no tema da


África, afirmava, em privado, que os deuses locais eram forças reais...

—«Forças reais» eram já coisas sabidas... Entretanto, acreditar na manifestação


coerente e, por assim dizê-lo, «encarnada» dessas forças, já é outra coisa.
Quando um australiano, por exemplo, fala-nos de certas forças cósmicas, ou
inclusive, psicossomáticas encarnadas em um ser sobre-humano, resulta
muito difícil saber se representamos isso da mesma maneira que os
australianos. Em todo caso, o que me diz desse geógrafo marxista é muito
interessante. Indica que se trata de um espírito absolutamente científico, que
aceita a evidência.

—Como não se sentir sobressaltado quando espíritos como Nietzsche ou Heidegger


falam de «deuses», pensam nos «deuses»? A menos que tenhamos que acreditar que
se trata de uma ficção poética...

—Nietzsche, Heidegger e também Walter Otto, o grande especialista alemão


da mitologia e da religião grega que, em seu livro sobre os deuses homéricos,
afirmava a realidade daqueles deuses. Todavia, o que entendiam exatamente
estes investigadores e estes filósofos por «realidade» dos deuses?
Imaginavam a realidade dos deuses como fazia um grego antigo? O
estremecedor é, com efeito, que não se trata de uma brincadeira pueril ou
supersticiosa, mas sim de afirmações nascidas de um pensamento
amadurecido e profundo.

—A propósito de histórias que nos deixam absortos, ontem reli em seu Diário
algumas linhas em que uma de suas amigas conta como, em lugar do muro de um
celeiro, em certa ocasião viu um jardim cheio de luz, e logo nada absolutamente... Em
seu Diário o conta e logo, imediatamente, passa a outra coisa.
—Sim, para que fazer comentários? Há certas experiências trans-humanas que
não temos mais remédio que testemunhar. Porém, de que meios dispomos
para conhecer sua natureza?

—Ocorreram-lhe coisas parecidas? —Não saberia responder...

A ARCA DE NOÉ
—A história das religiões, em seu julgamento, não só transforma interior ou
espiritualmente a quem a ela se dedica, mas sim hoje renova além disso o mundo do
sagrado. Entre as notas mais esclarecedoras de seu Diário destaco esta, datada em 5
de dezembro de 1959: «Embora é verdade que Marx analisou e 'desmascarou' o
inconsciente social e Freud fez o mesmo com o inconsciente pessoal; se for verdade,
por conseguinte, que a psicanálise e o marxismo nos ensinam a romper as
'superestruturas' para chegar às causas e os motivos verdadeiros, a história das
religiões, tal como eu a entendo, teria a mesma finalidade: identificar a presença do
transcendente na experiência humana, isolar, na massa enorme do 'inconsciente', o
transconsciente (...), 'desmascarar' a presença do transcendente e o supra-histórico
no viver de todos os dias». Em outro lugar escreve que «o fenômeno capital do século
XX não é a revolução do proletariado, mas, o descobrimento do homem não europeu e
de seu universo espiritual». E acrescenta que o inconsciente, igualmente o «mundo
não ocidental», deixar-se-á «decifrar pela hermenêutica da história das religiões».
Terá que entender, por conseguinte, que a grande «revolução» intelectual, capaz
possivelmente, de mudar a história, não seria nem o marxismo, nem o freudismo, nem
o materialismo histórico, nem a análise do inconsciente, a não ser, a história das
religiões...
—Isso, com efeito, o que penso, e a razão é singela: a história das religiões
refere-se ao mais essencialmente humano, a relação do homem com o
sagrado. A história das religiões pode desempenhar um papel de extrema
importância na crise que conhecemos. As crises do homem moderno são em
grande parte religiosas na medida em que supõem a tomada de consciência de
uma carência de sentido. Quando alguém tem o sentimento de ter perdido a
chave de sua existência, quando já não se sabe o que significa a vida, trata-se
de um problema religioso, posto que a religião é justamente a resposta a uma
questão fundamental: que sentido tem a existência? Nesta crise, neste
desconcerto, a história das religiões deve ser ao menos como uma Arca de
Noé das tradições míticas e religiosas. Por isso, penso que esta «disciplina
total» pode exercer uma função régia. As «publicações científicas»
possivelmente, cheguem a constituir uma reserva em que se «camuflarão»
todos os valores e modelos religiosos tradicionais. Daí meu esforço constante
em pôr de relevo a significação dos fatos religiosos.

—Fala de tradição, de transmissão. Escreveria a palavra tradição com maiúscula?


sente-se perto, neste ponto, de um Guenon, de um Abellio?

—Li Rene Guenon muito tarde e alguns de seus livros interessaram-me muito,
concretamente L'Homme et son devenir selon le Vedanta, que me pareceu muito
belo, inteligente e profundo. Mas, havia ao mesmo tempo um aspecto de
Guenon que me desgostava, seu lado exageradamente polêmico, assim como
sua repulsa brutal de toda a cultura ocidental moderna, como se bastasse
ensinar em Sorbona para perder toda oportunidade de chegar a entender
algo. Tampouco eu gostava de seu desprezo obtuso para certas obras da
literatura e da arte modernas. Nem o complexo de superioridade que lhe
levava a acreditar, por exemplo, que não é possível entender Dante a não ser
na perspectiva da «tradição», mais exatamente a de Rene Guenon. Mas
resulta que Dante é um grande poeta, evidentemente, e para lhe entender terá
que amar a poesia e, sobretudo, conhecer a fundo seu imenso universo
poético. Quanto à tradição, ou à Tradição, o tema é ao mesmo tempo
complexo e delicado; nem sequer me atrevo a abordá-lo no marco de uma
conversação despreocupada e de caráter geral, como esta que mantemos. Na
linguagem corrente, o termo «tradição» emprega-se em contextos múltiplos e
heterogêneos; refere-se à umas estruturas sociais e uns sistemas econômicos,
uns comportamentos humanos e umas concepções morais; umas opções
teológicas, umas posturas filosóficas, umas orientações científicas e à outras
muitas coisas. «Objetivamente», quer dizer sobre a base dos documentos de
que dispõe o historiador das religiões, todas as culturas arcaicas e orientais,
igualmente todas as sociedades, urbanas ou rurais, estruturadas por uma das
religiões reveladas —judaísmo, cristianismo, Islã— são «tradicionais». Com
efeito, todas elas consideram-se depositária de uma traditio, de uma, «história
sagrada» que constitui uma explicação total do mundo e a justificação da
condição humana atual, e que, por outra parte, considera-se a soma dos
modelos exemplares das condutas e das atividades humanas. Todos estes
modelos consideram-se de origem trans-humano ou de inspiração divina.
Mas, na maior parte das sociedades tradicionais, certos ensinos são esotéricos
e, como tais, transmitem-se no curso de uma iniciação. Entretanto, em nossos
dias, o termo «tradição» designa com muita freqüência o «esoterismo», o
ensino secreto. Em conseqüência, quem se declare adepto da «tradição» dá a
entender que foi «iniciado», que é possuidor de um «ensino secreto». E isto é,
no melhor dos casos, uma ilusão.

—Um dos sentidos que, a seu julgamento, tem a história das religiões é salvar o que
merece ser salvo, os valores considerados essenciais. Embora o historiador das
religiões deve esforçar-se por compreender tudo, não pode em troca justificar tudo.
Não pode aspirar a perpetuar ou restaurar todas as crenças, todos os ritos. Como
todos nós, terá que escolher entre esses valores e hierarquizá-los. Como consegue
conciliar seu respeito para todo o humano e essa eleição moral inevitável? Por
exemplo, alguns movimentos humanitários pronunciaram-se ante à Unesco contra as
práticas de execução. Se a Unesco lhe consultasse a respeito deste tema, qual seria sua
resposta?

—Aconselharia sem duvidar um momento à Unesco, que condenasse à


execução. Este rito não tem grande importância, não é absolutamente
primitivo e começou a praticar-se muito tarde. Não constitui em modo algum
um centro das concepções religiosas, ou das iniciações entre os povos, que o
praticam e carece de todo valor fundamental para seu comportamento
religioso ou moral. É o resultado de uma evolução que não duvidaria em
qualificar de «cancerosa», algo, ao mesmo tempo, perigoso e monstruoso.
Impõe-se o abandono imediato desse costume.

—O terceiro tomo de sua História das crenças e das idéias religiosas abrange do
nascimento do Islã até as «teologias atéias» contemporâneas. Isso significa que, em
seu julgamento, o ateísmo forma parte da história das religiões. Por outro lado, ao ler
seu Diário, vê-se que teve ocasião, nos Estados Unidos, de conhecer Tillich e a certos
«teólogos da morte de Deus». Não será este tema da «morte de Deus» o conceito
limite da história das religiões?

—Tenho que fazer acima de tudo uma observação: o tema da «morte de


Deus» não é uma novidade radical, mas sim, em definitivo, deve renovar o
do deus otiosus, o deus inativo, o deus que se afasta do mundo depois de criá-
lo, um tema que aparece em numerosas religiões arcaicas. Porém, é certo que
a teologia da «morte de Deus» é de uma extrema importância por tratar-se da
única criação religiosa do mundo ocidental moderno. Achamo-nos com ele
ante o último grau da desacralização. Para o historiador das religiões possui
um interesse considerável, já que esta etapa ilustra a camuflagem perfeita do
«sagrado» ou, melhor dizendo, sua identificação com o «profano».
É sem dúvida muito cedo para captar o sentido desta «desacralização» e
das teologias da «morte de Deus» contemporâneas da mesma, muito cedo
para prever o futuro. Entretanto, fica exposta a pergunta: em que medida o
«profano» pode converter-se em «sagrado»; em que medida uma existência
radicalmente secularizada, sem Deus nem deuses, é suscetível de converter-
se em ponto de partida de um novo tipo de «religião»? Três grandes tipos de
respostas vejo para estas perguntas dos «teólogos da morte de Deus», acima
de tudo: além da ruína de todos os símbolos, ritos e conceitos das igrejas
cristãs, esperam que, graças a uma paradoxal e misteriosa coincidentia
oppositorum, esta tomada de consciência do caráter radicalmente profano do
mundo e da existência humana possa fundamentar um novo modo de
«experiência religiosa»; a morte da «religião», com efeito, não é para eles, a
não ser justamente o contrário, a morte da «fé»... Outra resposta consiste em
considerar secundárias as formas históricas da oposição sagrado/profano: o
desaparecimento das «religiões» não implicaria, em modo algum, o
desaparecimento da «religiosidade», enquanto que a transformação normal
dos valores «sagrados» em valores «profanos» significaria menos que o
encontro permanente do homem consigo mesmo, menos que a experiência da
própria condição... Finalmente, uma terceira resposta: cabe pensar que a
oposição entre o «sagrado» e o «profano» só tem sentido para as religiões, mas
o cristianismo não é uma religião. O cristianismo já não teria que viver, como o
homem arcaico, em um cosmos, a não ser na história. Mas, o que é a
«história»? Para que serve esta tentativa ou esta tentação de sacralizá-la? Que
mundo teria que salvar deste modo a «história»?

FIGURAS DO IMAGINÁRIO

A RELIGIÃO, O SAGRADO
- Sem dúvida que recorda estas palavras iniciais de O totemismo na atualidade de
Lévi-Strauss: «Com o totemismo acontece igual com a histeria. Quando se começa a
suspeitar que possivelmente se isolaram arbitrariamente certos fenômenos e se
agruparam entre si para tomá-los como sintomas diagnósticos de uma enfermidade ou
de uma instituição objetiva, ocorre que os sintomas desapareceram já, ou que
resultaram rebeldes às interpretações unificantes...». Não passará com a «religião»
quão mesmo com o «totemismo» ou com a «histeria»? Dito de outro modo, se a
história ou a ciência das religiões tem um objeto, qual é este?

—Esse objeto é o sagrado. Mas, como delimitar o sagrado? É algo muito difícil.
O que em todo caso me parece impossível é imaginar como poderia funcionar
o espírito humano sem a convicção de que existe algo irredutivelmente real
no mundo. É impossível imaginar como poderia aparecer a consciência sem
conferir uma significação aos impulsos e às experiências do homem. A
consciência de um mundo real e significativo vai estreitamente ligada ao
descobrimento do sagrado. Mediante a experiência do sagrado, o espírito
captou a diferença entre o que se revela como real, potente e significativo e o
que carece dessas qualidades, quer dizer o fluxo caótico e perigoso das coisas,
suas aparições e desaparecimentos fortuitos e carentes de sentido... Mas
ainda terei que insistir em um ponto: o sagrado não é uma etapa na história
da consciência, a não ser um elemento da estrutura dessa mesma consciência.
Nos graus mais arcaicos da cultura, viver como ser humano é já em si mesmo
um ato religioso, posto que a alimentação, a vida sexual e o trabalho possuem
um valor sacramental. A experiência do sagrado é inerente ao modo de ser do
homem no mundo. Sem a experiência da realidade —e do que não o é— não
poderia construir o ser humano. A partir dessa evidência precisamente, o
historiador das religiões começa a estudar as diversas formas religiosas.

—O sagrado é, por conseguinte, a pedra angular da experiência religiosa. Porém,


trata-se de algo distinto de um fenômeno físico ou de um fato histórico, por exemplo.
Não se pode descobrir o sagrado a não ser através de uma fenomenologia?

—Exatamente. E acima de tudo, quando se trata do sagrado, não terá que


limitar-se às figuras divinas. O sagrado não implica a fé em Deus, nos deuses
ou nos espíritos. É, repito-o, a experiência de uma realidade e a fonte da
consciência de existir no mundo. No que consiste essa consciência do
sagrado, dessa demarcação que se realiza entre o real e o irreal. Se a
experiência do sagrado pertence essencialmente à ordem da consciência, é
evidente que o sagrado não se reconhece «de fora». É precisamente através da
experiência interior como cada qual poderá reconhecer o sagrado nos atos
religiosos de um cristão ou de um «primitivo».

—O «sagrado» se opõe ao «profano» e ao mesmo tempo é em si mesmo ambivalente,


não só porque seus dois pólos são a vida e a morte, mas sim porque atrai e ao mesmo
tempo causa temor. Tais são as grandes linhas de seu livro O sagrado e o profano e
do Tratado de história das religiões, em que entrevista um pensamento muito
próximo ao dele, o do Roger Caillois, em L'Homme et le sacré. Tudo isto é já bem
conhecido. Entretanto, em uma introdução de 1964 a seu ensaio O sagrado e o
profano, escrevia: «Fica um problema ao que unicamente aludimos: em que medida
pode 'o profano' em si converter-se em 'sagrado'; em que medida uma existência
radicalmente secularizada, sem Deus nem deuses, pode converter-se em ponto de
partida para um novo tipo de 'religião'?». Suponhamos um exemplo singelo: pode
considerar-se «sagrado» o mausoléu de Lenin?

—O problema que se expõe ao historiador das religiões consiste,


efetivamente, em reconhecer a sobrevivência, mascarada ou desfigurada, do
sagrado, de suas expressões e de suas estruturas, em um mundo que se tem
resolutamente por profano.
Daí que em Marx e no marxismo possa advertir a presença de certos
grandes mitos bíblicos: a função redentora do Justo, a luta final, escatológica,
entre o Bem (o proletariado) e o Mal (a burguesia), seguida da instauração da
Idade de Ouro... Mas eu não diria que o mausoléu de Lenin é de caráter
religioso, apesar, inclusive, de que este símbolo revolucionário exerça a
função de um símbolo religioso.

—E a divinização do imperador romano? No caso de Roma, achamo-nos ante a


sobrevivência profana e laica de uma sacralidade, ou estamos ainda dentro da
sacralidade arcaica?
—Achamo-nos em plena sacralidade, ao mesmo tempo arcaica e moderna. A
apoteose do imperador procede em linha reta da ideologia monárquica do
Oriente. O soberano, o chefe, o imperator é responsável pela ordem e pela
fecundidade no Império. Assegura o ciclo cósmico, a ordem das estações e o
êxito, a fortuna.
Encarna o gênio protetor do Império, como ocorria antes com os reis da
Mesopotâmia e os faraós divinos.

—Acredito recordar que nas Antimemórias de Malraux, este pergunta ao Mao Tse-
tung se souber que ele é «o último imperador»; o «imperador de bronze» o admite...
Estima que o imperador romano é um homem sagrado igual ao antigo imperador
chinês: vínculo entre a terra e o céu, responsável pela ordem no mundo. Em Lenin
parece-lhe ver a sobrevivência do sagrado. O que opina de Mao Tse-tung?

—Mao podia considerar-se muito bem «o último imperador». Era guardião e


intérprete da nova doutrina e da vida cotidiana, responsável pela paz e o
bem-estar de seu povo. Certamente, era um imperador, quase mitológico,
arquetípico. Prolongava a tradição da China. Só o vocabulário mudara, mas a
função permanecia.

—Há algo que nos permita estabelecer uma diferença entre o último imperador, Mao,
e o último czar, Lenin? Parece-me que distingue implicitamente entre uma
«sacralidade verdadeira», que enlaçaria com a transcendência, e uma sacralidade
falsa»...
—É certo que as ideologias políticas contemporâneas carecem de relação com
a transcendência. Ficam, entretanto, como relíquias do sentimento sagrado, o
sentido da responsabilidade fundamental do chefe e a esperança messiânica.
Ignoro que idéia tinha de si mesmo Stalin. Mas basta ler aos poetas: olhavam-
lhe como um sol, como o Homem único. Não se trata, indubitavelmente, de
imagens «transcendentes», mas ao menos são «trans-humanas», sobre-
humanas. O mito de Stalin transluz a nostalgia do arquétipo. Não há
nenhuma «degradação» que não recorde um grau mais alto, perdido ou
confusamente desejado.

MITO, RITO, INICIAÇÃO...


—O sagrado, por conseguinte, é a essência do religioso. Mas indubitavelmente não
pode haver religião sem ritos, sem mitos, sem símbolos e, possivelmente, sem uma
iniciação acima de tudo, o rito mediante o qual nasce o indivíduo aos mitos e aos
símbolos da comunidade religiosa... Ritos, mitos, símbolos, como se vinculam entre
si?
—Acaba de resumir a história das religiões e fariam falta vários livros para
lhe responder! O mito narra uma história sagrada, quer dizer um
acontecimento primitivo que teve lugar no começo dos tempos e cujos
personagens são os deuses ou os heróis civilizadores. Daí que o mito
fundamente a verdade absoluta. E daí também que, ao revelar como uma
realidade acessou ao ser, o mito constitua o modelo exemplar não só dos
ritos, mas também de toda atividade humana significativa: alimentação,
sexualidade, trabalho, educação... Logo, em seus gestos cotidianos, o homem
imitará aos deuses, repetirá suas ações. Freqüentemente, pus o exemplo de
uma tribo de Nova Guiné, em que um só mito serve de modelo à todas as
atividades referentes à navegação, da construção de uma barco e os tabus
sexuais que leva consigo até os gestos da pesca e os itinerários dos
navegantes. O pescador, ao executar o gesto ritual, não implora a ajuda do
deus, mas sim imita-lhe, identifica-se com o deus... Mas ainda fica por ver e,
mais ainda, por entender o valor existencial do mito. O mito acalma a
ansiedade, faz o homem sentir-se seguro. O polinésio que se arrisca no mar o
faz sem temor algum, posto que se sente seguro, mas a condição de repetir
exatamente os gestos do antepassado ou do deus. Seu êxito está incluído na
ordem das coisas. Esta confiança é realmente uma das forças que permitiram
sobreviver o homem.

—Sim, do mesmo modo que «o símbolo faz pensar», o rito ajuda a viver e o mito é às
vezes o sustento de nosso destino. Lembro-me uma indicação de seu Diário em que
diz que gostaria de mostrar como a história das religiões pode ajudar a descobrir a
transcendência na vida cotidiana. Por outro lado, seu Diário faz que em ocasiões lhe
vejamos em uma situação mítica: o homem exilado de sua pátria, o homem que busca
seu caminho, mas não simplesmente esse homem perdido, nascido em mãos de 1907, a
não ser um Ulisses. E esta imagem, este pensamento sustenta-lhe.
Passando a outro plano, muitas vezes comparou entre si a antologia platônica e
a «antologia arcaica». Vê alguma relação entre a «idéia» e o «modelo mítico»?

—Em ambos os casos trata-se, efetivamente, de uma anamnesis. Segundo


Platão, o conhecimento consiste, para a alma, em recordar as idéias que
contemplou no céu. Entre os australianos, o neófito é levado a presença de
um objeto de pedra, o churunga, que representa a seu antepassado mítico.
Não só lhe ensina a história sagrada da tribo e narram-lhe as ações
institucionais dos antepassados, mas sim, é revelado além, que esse
antepassado é ele mesmo. Isso é pura anamnesis platônica.

—De ordinário imaginamos a iniciação como acesso ao sagrado. Não poderia


entender-se como uma desmitificação ao estilo de «Quando foi menino, puro... Agora,
entretanto, tem que saber...»?
—Sim, este tipo de iniciação aparece sobretudo em níveis culturais
elementares. Esta era sem dúvida a forma mais antiga dos ritos da puberdade
na Austrália do Sudeste. O menino é separado de sua mãe, quer dizer da
natureza, assustado mediante as bramadoras —os rombos— e circuncidado.
Logo mostra-lhe como se produz a voz terrorífica dos espíritos e convida-lhe
a que ele mesmo faça girar os rombos para fazê-la soar. Há, por conseguinte,
uma desmitificação, mas ao mesmo tempo se produz a passagem a um grau
superior de inteligência. Não se diz que não exista o ser sobrenatural; tudo
limita-se a demonstrar que uma de suas supostas manifestações não tem por
que aterrorizar a não ser aos não iniciados. O iniciado, por sua parte, uma vez
liberado da crença pueril, é convidado a descobrir sua identidade com o
churunga, corpo petrificado do antepassado que, depois de ter feito quanto
tinha que fazer na terra, retirou-se ao céu... Para não deixar nada, eu
acrescentaria que há outra iniciação reservada aos bruxos, aos xamãs.

—Alguma vez se preocupou pelo desaparecimento dos ritos iniciáticos tradicionais em


nossa sociedade e por seus substitutivos. Limitar-me-ei a fazer-lhe esta pergunta:
como dizer aos meninos que são seres sexuados e mortais?

—Hoje não só está desacralizada, desmitificada, a sexualidade, mas também o


mesmo ocorreu com a morte, que é ignorada, cuja imagem se rechaça, em que
não quer pensar. Em uma sociedade profana resulta muito difícil iniciar aos
meninos nestes dois grandes mistérios. Não tenho uma resposta. Pode um
menino entender sequer a sexualidade, a morte? Ignoro o que convenha fazer
e dizer.

—É indubitável que a nostalgia da iniciação «tradicional» explica, em parte, o êxito


dos livros de Castañeda. Que julgamento lhe merecem?

—Alguns antropólogos aceitam este testemunho, mas outros negam sua


autenticidade. O certo é que sua tese, Os ensinos de um bruxo yaqui, foi aceita
na universidade de Los Angeles. Enviou-me as provas para que lhe desse
minha opinião, a causa do xamanismo. Eu acabava de dar um curso na
Universidade de Santa Bárbara e detive-me alguns dias em Los Angeles.
Lamento não ter tido tempo para ler em seguida a tese de Castañeda. Não li o
livro até mais tarde. Castañeda já era célebre na época... O que me interessou
foi a descrição da sessão em que se «fuma». Ali demonstra que o importante
não é o fato de fumar, ou outra droga, a não ser fazê-lo em um espaço
consagrado, orientado, qualificado, em uma certa disposição de espírito, em
presença de um Mestre. Em uma postura determinada, o fumante terá uma
visão, mas não em outra postura. Castañeda, por conseguinte, pôs de relevo a
importância do rito, do contexto ritual, e inclusive filosófico, da droga. Vale a
pena advertir todos esses jovens que acreditam que o mero fato de fumar
drogas leva à felicidade.

HOMENS SAGRADOS
—Em sua obra dedicou uma atenção especial ao iogue, ao xamã, ao alquimista... O
que tem em comum estas três figuras?

—O mesmo se se tratar de uma iniciação ordinária que se esta tiver caráter


extraordinário, o argumento é sempre o mesmo: uma morte simbólica a que
segue um renascimento, uma ressurreição. Vejamos o caso do iogue: morre
ao mundo profano, abandona sua família, troca de nome e às vezes até de
linguagem... Em meu livro sobre o ioga pus em relevo a abundância de
termos para falar da morte e do renascimento no vocabulário dos iogues. Mas
este tema aparece também no ensino de Buda, que, entretanto, quebrara
muitas tradições. Sócrates falava de «maiêutica». Também Filon utiliza
abundantemente a metáfora do parto para designar o acesso à vida do
espírito. Paulo fala de engendrar na fé.

—Em Ferreiros e alquimistas diz que a alquimia projeta esta morte iniciática sobre
a matéria.

—O elemento iniciático da alquimia é a tortura e a morte dos metais para


«aperfeiçoá-los» e transformá-los em ouro. A obtenção da pedra filosofal ou
do ouro coincide com a nova personalidade do alquimista.
—Diríamos que a alquimia se situa a meio caminho entre a iniciação arcaica e a
iniciação filosófica?

—Em certo sentido... Mas este elemento iniciático não é o elemento


constitucional da alquimia. Para mim, a alquimia é a última etapa de um
trabalho que se iniciou com a metalurgia. O «fundidor» transforma o mineral
em metal, enquanto que o alquimista substitui à natureza e ao tempo para
obter a pedra filosofal e o ouro, equivalente da imortalidade.

—Não dedicou ao sacerdote nem ao profeta a mesma atenção que ao iogue, ao xamã,
ao alquimista...

—Já havia muitos estudos, e muito bons, sobre o sacerdote e o sacerdócio.


Preferi dedicar a atenção ao menos conhecido, ou inclusive desprezado, o
xamã, por exemplo, ao que se tinha por um doente, ou inclusive por um
simples bruxo. Por outro lado, para entender o profetismo pareceu-me
necessário começar pelo xamanismo .
—Não se sentirá mais atraído «pelo esotérico mais que pelo exotérico», pela mística
mais que pela instituição, pelo arcaísmo mais que pela modernidade?

—Sem dúvida... Interessei-me pelo que se chama o lado esotérico de certas


coisas —os ritos iniciáticos do xamanismo, do tantrismo e dos «primitivos»
em geral— porque em tudo isso havia algo que resultava difícil de captar e
que não se encontrava nos livros... No que se refere ao arcaico, via que as
sociedades tradicionais, os «primitivos», estavam a ponto de desaparecer, no
lapso de uma vida humana, e que os etnólogos e os antropólogos que os
estudavam não mostravam preocupação alguma por captar a coerência, a
nobreza e a beleza de seus sistemas mitológicos e de suas teologias.

—Além destas razões, mais à frente do professor de história das religiões e do autor de
muitos trabalhos de investigação, pergunto-me se não haverá um Rimbaud romeno:
«Desembarcam os brancos... O canhão... Terão que se submeter ao batismo, vestir-
se... Retornar ao sangue pagão...». Em nenhum momento vejo-lhe ressentido. Mas,
alguma vez se amotinou? Pergunto-me se seu amor aos selvagens não ocultará além
disso uma cólera calada contra os poderosos e os muito razoáveis, contra todos esses
pontífices, esses banqueiros, esses estrategistas, todos os mercenários e os benfeitores
da inteligência mecânica... Trato de imaginar quando tinha vinte anos, em Bucareste.
Imagino a um irmão romeno de Rimbaud na raiz desse interesse racional pelo xamã,
por todos os feiticeiros do mundo, por todos esses homens do desprendimento e da
visão.

—No mais profundo de meu ser pode que se dê essa sublevação contra certas
formas agressivas da posse, do domínio e do poder obtido com ajuda da
mecânica. Mas o que sentia sobretudo nos místicos, nos homens inspirados,
nos enlevados, era a presença das fontes primitivas da religião, da arte, da
metafísica. Sempre senti que compreender uma dessas dimensões ignoradas
ou inclusive desprezadas da história do espírito não supunha unicamente
enriquecer a ciência, mas sim além de contribuir a regenerar e fomentar a
criatividade do espírito em nosso mundo e em nossa época.

SONHO E RELIGIÃO
—Que relações há entre sonho e religião?

—O sonho possui indubitavelmente umas estruturas mitológicas, mas é algo


que se experimenta em solidão, de forma que o homem não se encontra de
todo presente nele, enquanto que a experiência religiosa é de caráter diurno e
a relação com a sagrado arrasta ao ser em sua totalidade. São evidentes as
semelhanças entre o sonho e o mito, mas há entre ambas as coisas uma
diferença essencial, a mesma distância que entre o adultério e Madame Bovary,
entre uma simples experiência e uma criação do espírito.

—Não é o sonho a matéria prima do religioso? No sonho retornam os mortos, fazem-se


verdadeiras as quimeras, aparece um mundo distinto... Não haverá alguma relação
entre a diferença que existe entre o sonho e a vigília; o intermédio entre o sagrado e o
profano?

—Para mim, o sagrado é sempre a revelação da realidade, o encontro com o


que nos salva ao dar sentido a nossa existência. Se este encontro e esta
revelação se produzem em sonhos, não somos conscientes disso... Quanto a
saber se o sonho está na origem da religião... diz-se, com efeito, que o
animismo era a primeira forma da religião e que a experiência do sonho
nutria esta crença. Mas já não se diz tal coisa. De minha parte, acredito que é
a contemplação do céu imenso o que revela ao homem a transcendência, o
sagrado.

—A aparição do divino situar-se-ia, então, melhor do lado do homem acordado que


experimenta um assombro, e não do lado do homem dormindo...

—O homem dormindo contribui com muitas coisas, mas acredito que a


experiência fundamental corresponde ao homem acordado.

—Evidentemente, ao lhe perguntar sobre o sonho e o mito, estava pensando em Jung.


Eu gostaria de saber o que devem as obras de um às do outro.
—Sinto uma grande admiração pelo Jung, pelo pensador e pelo homem que
foi. Conheci-lhe em 1950, com motivo das «Conferências Eranos» de Ascona.
depois de meia hora de conversação, parecia-me que estava escutando a um
sábio chinês ou a um velho aldeão da Europa oriental, ainda enraizado na
Terra Mãe, mas já muito perto do céu. Fascinava-me a admirável simpatia de
sua presença, sua espontaneidade, a erudição e o humor de sua conversação.
Na época tinha setenta e cinco anos.
Depois voltei a ver-lhe quase todos os anos, em Ascona, ou em Zurique;
a última vez, um ano antes de sua morte, em 1960. A cada encontro sentia
profundamente impressionado pela plenitude, a «sabedoria» atrevo-me a
dizer, de sua vida.
Quanto a sua obra, resulta-me difícil julgá-la. Não a li completa e
tampouco tenho experiência da psicanálise, freudiana ou jungiana. Jung
interessava-se pelo ioga e pelo xamanismo. Outro de nossos pontos comuns é
o interesse pela alquimia. Já sabe que ainda estava no liceu quando comecei a
me interessar pela alquimia e acredito que escrevi um livro sobre a alquimia
hindu muito antes de que Jung publicasse nada sobre este tema. Entretanto,
quando lhe conheci, já escrevera Psicologia e alquimia. Nossos caminhos, em
resumo, são paralelos. Para Jung, a alquimia é uma imagem ou um modelo
da «individuação». Para mim é o que lhe dizia um momento anterior, a
propósito de Ferreiros e alquimistas.
Não sei exatamente o que devo ao Jung. Leio muitos de seus livros, e
mais em concreto Psicologia da transferência. Mantive com ele longas
conversações em «Eranos». Jung acreditava em uma espécie de unidade
fundamental do inconsciente coletivo, enquanto que eu opino que há também
uma unidade fundamental das experiências religiosas.

—Ao ler seu Diário cheguei a pensar que Jung lhe deve o ter outorgado um lugar
essencial à imagem do «centro».

—É possível. Em «Eranos» dava uma conferência sobre este tema no ano 1950.
É possível, entretanto, que fora através de um de seus discípulos, Neumann,
como entendeu Jung todo o partido que podia tirar do «centro» na cura
psicoanalítica.

—Possivelmente os dois falaram muito de arquétipos...

—Mas não no mesmo sentido... Tive a má ocorrência de pôr o subtítulo


«Arquétipos e repetições» em O mito do eterno retorno. Havia nisso um perigo
de confusão com a terminologia de Jung. Para ele, os arquétipos são as
estruturas do inconsciente coletivo. Eu emprego esse termo aludindo ao
Platão e a Santo Agostinho, e dou-lhe o sentido de «modelo exemplar»,
revelado no mito e reatualizado no rito. Melhor fosse dizer «Paradigmas e
repetição».

O MITO E A ESCRITURA

MITO, LITERATURA, SABEDORIA


—Queneau pediu-lhe que escrevesse um capítulo sobre as literaturas orais para a
Encyclopédie de la Pléiade. Foi boa idéia, com efeito, dirigir-se, para este domínio,
a um historiador dos mitos e dos folclores. Com esse mesmo ânimo abordou a
literatura oral e o universo dos mitos. Em 21 de agosto de 1964 diz em seu Diário:
«Cada vez que intento falar das literaturas orais, deveria começar por recordar que
essas criações não refletem nem as realidades exteriores (geografia, costumes,
instituições, etc.) nem os acontecimentos históricos, a não ser os dramas, as tensões e
as esperanças do homem, seus valores e suas significações, em uma palavra, a vida
espiritual concreta, tal como se realiza na cultura».

—Penso, com efeito, que se quer compreender a literatura oral, o primeiro de


tudo é recuperar o universo de significações que lhe serve de fonte.
—Mito, literatura: em sua obra, estes termos não se relacionam unicamente do ponto
de vista da história. Pensando em seu trabalho como historiador das religiões, em 15
de dezembro de 1960 escreve: «No fundo, o que venho fazendo há mais de quinze anos
não é coisa totalmente alheia à literatura. Poderia ser que minhas investigações
fossem consideradas um dia como tentativas de recuperar as fontes esquecidas da
inspiração literária».

—É bem sabido que a literatura, oral ou escrita, é filha da mitologia e herdeira


de suas funções: narrar as aventuras, contar quanto de significativo ocorreu
no mundo. Mas, por que é tão importante saber o que acontece, o que ocorre
à marquesa que volta do chá às cinco? Penso que toda narração, inclusive de
um fato ordinário, prolonga as grandes histórias narradas pelos mitos que
explicam como acessou ao ser este mundo e por que nossa condição é tal
como hoje a conhecemos. Penso que o interesse pela narração forma parte de
nosso modo de ser no mundo. Responde à necessidade em que nos achamos
de entender o que ocorreu, o que fazem os homens, o que podem fazer: os
perigos, as aventuras, as provas de toda classe. Não somos como pedras,
imóveis, nem como flores ou insetos, cuja vida está traçada de antemão. Nós
somos seres para a aventura. O homem nunca poderá renunciar a que lhe
narrem histórias.

—Alguma vez comparou os mitos australianos com o Ulisses de Joyce. Em 7 de


março de 1963 escreve: «Surpreende-nos e admira-nos, igual aos australianos, que
Léopold Bloom se detenha e peça uma cerveja em um botequim» Quer dizer isto que,
para tomar consciência de si mesmo, o homem necessita um espelho, um rastro, uma
palavra e que, em definitivo, o mundo não é real para ele a não ser através da
imaginação?

—Sim... Chegamos a ser nós mesmos quando escutamos narrar nossa história.

—A literatura assume as funções do mito. Pode dizer-se que este morre e que aquela
nasce com a invenção da escritura?

—Digamos acima de tudo que com este nascimento da literatura aparecem as


religiões do Livro. Entretanto, para lhe responder, diria que com a literatura
quão único possivelmente desaparece é o universo evidente do mito. Pense
nos relatos novelescos da Idade Média, por exemplo, na busca do Graal. O
certo é que o mito se prolonga na escritura. A escritura não destrói a
criatividade mítica.

—Um momento atrás falava da importância do relato e, em seu Diário, mostra-se


extremamente severo com uma parte da literatura e da arte modernas. Coloca na
mesma categoria o niilismo filosófico, o anarquismo político ou moral e a arte
insignificante.

—O não significante me parece anti-humano por excelência.


Ser homem é o mesmo que procurar a significação, o valor; inventá-lo,
projetá-lo, reinventá-lo. Daí que o triunfo do não significante, em alguns
setores da arte moderna, parece-me uma rebelião contra o homem. Tudo é
secura, esterilização. E um tédio enorme. Aceito a esterilidade, o tédio, a
monotonia, mas só como exercício espiritual, como preparação para uma
contemplação mística. Neste caso, tudo isso adquire um sentido. Mas propor
o não significativo como objeto de «contemplação» e de fruição estética, é
coisa que não aceito, algo contra o que me revolto. Compreendo que muitas
vezes, trata-se de um grito de alarme arrojado por certos artistas contra a
insignificância da existência moderna. Mas, repetir até o infinito essa
mensagem e acrescentar o não significante é algo cujo interesse não alcanço a
ver.

—Também rechaça a fealdade na arte. Penso no que diz de Francis Bacon, por
exemplo.

—Entendo muito bem por que escolheu a fealdade como objeto de sua criação
plástica. Mas, ao mesmo tempo, resisto a essa fealdade justamente porque a
vemos em todas partes, em torno de nós, agora mais que nunca... por que
acrescentar fealdade a essa fealdade universal em que cada dia nos vemos
um pouco mais imersos?

—Se a literatura, ao apartar do relato, prescindiu muitas vezes de algo que lhe parece
essencial ao homem, o cinegrafista, pelo contrário, possivelmente tenha sido para o
homem moderno um dos lugares privilegiados do mito.

—Acredito, com efeito, que o cinegrafista encerra ainda essa enorme


possibilidade de narrar um mito e de camuflá-lo maravilhosamente, não só
no profano, mas também, inclusive, em coisas quase degradadas ou
degradantes. A arte do cinegrafista trabalha tão estupendamente com o
símbolo que inclusive este não chega a ver, mas, pressente-lhe em seguida.

—Em que se embriaga e em que realizadores pensa sobretudo?

—Vou muito pouco ao cinema há alguns anos e não poderia lhe responder
como seria preciso. Digamos, entretanto, Los Clowns, de Fellini. Em um filme
como este vejo as imensas possibilidades que tem o cinegrafista de reatualizar
os grandes temas míticos e de empregar certos símbolos maiores sob formas
pouco habituais.

—Não dá trabalho adivinhar que livros levaria para ler em uma ilha deserta.
Entretanto, diga-nos quais seriam.

—Algumas novelas de Balzac, algumas de Dostoievski... O segundo Fausto e a


autobiografia de Goethe... A biografia de Milarepa e seus poemas, em que há
algo mais que poesia: magia e fascinação... Shakespeare, é óbvio... Novalis e
alguns românticos alemães. Dante acima de tudo. Digo-lhe o que me vem de
repente à memória. Haveria além outros, é óbvio.

—Não cita a Bíblia. Lê-a unicamente como historiador das religiões?

—Eu gosto enormemente do Eclesiastes. E tenho também, como qualquer,


meus salmos preferidos. Eu gosto de todo o Novo Testamento. Nossos
contemporâneos preferem ordinariamente o Evangelho de São João; eu gosto
dos quatro evangelhos e algumas epístolas de São Paulo. O Apocalipse
interessa-me como documento, mas não é um de meus livros favoritos, já que
se conhecem outros apocalipses, iranianos, judeus, gregos... Bem entendido
que há diversas leituras possíveis da Bíblia. Está a de um cristão, a do crente,
ou melhor a de quem trata de recordar-se a si mesmo que tem que ser crente,
cristão, algo do que alguém se esquece todos os dias. Está também a leitura
que faz o historiador. E há outra leitura, a de quem reconhece na Bíblia um
grande e muito belo modelo de escritura.

—Uma nota de seu Diário mostra-nos isso como leitor assíduo de Bhagavad-Gita.

—É um dos grandes livros que me formaram. Nele encontro sempre uma


significação nova, profunda. É um livro muito consolador, porque, como
sabe, nele revela Krishna à Arjuna todas as possibilidades de salvar-se, quer
dizer de encontrar um sentido à sua existência... De minha parte, acredito que
é a chave de abóbada do hinduísmo, a síntese do espírito hindu e de todos os
seus caminhos, de todas suas filosofias, de todas suas técnicas de salvação. O
grande problema era este: para «salvar-se» —no sentido hindu— e liberar-se
deste mundo maligno, é preciso abandonar a vida, a sociedade, retirar-se aos
bosques como os rishis dos Upanishads, como os iogues? Terá que dedicar-se
exclusivamente à devoção mística? Não, Krishna revela que todos, a partir de
qualquer profissão, podem chegar até ele, encontrar o sentido da existência,
salvar-se deste nada de ilusões e de provas... Todas as vocações podem levar
a salvação. Não são tão somente os místicos, os iogues, ou os filósofos os que
conhecerão a libertação, mas também, o homem de ação, que permanece no
mundo, mas a condição de atuar nele conforme ao modelo revelado por
Krishna. Dizia que se trata de um livro consolador, mas é ao mesmo tempo a
justificação que se dá à existência da história. Repete-se constantemente que o
espírito hindu se desentende da história. É certo, mas não em Bhagavad-Gita.
Arjuna se achava disposto, a grande batalha estava a ponto de começar, e
Arjuna duvidava, pois sabia que mataria; a cometer, portanto, um pecado
mortal. Então, revela-lhe Krishna que tudo pode ser distinto como tal que não
persiga um objetivo pessoal, como tal que não mate por ódio, por desejo de
proveito, ou para se sentir um herói... Tudo pode ser distinto se aceitar a luta
como uma coisa impessoal, como algo que se faz em nome do deus, em nome
de Krishna e —segundo esta fórmula extraordinária— se «renuncia ao fruto
de seus atos». Na guerra, «renunciar ao fruto de seus atos» é renunciar ao
fruto do sacrifício que se realiza ao matar ou ao ser morto, como se se fizesse
uma oferenda em certo modo ritual ao deus. Deste modo é possível salvar do
ciclo infernal de Carma; nossos atos não são já a semente de outros atos. Já
conhece, com efeito, a doutrina do carma sobre a casualidade universal:
quanto fazemos terá mais tarde um efeito; todo gesto serve de preparação a
outro gesto... Pois bem, se em plena atividade, inclusive guerreira, não pensa
já em si o homem, se abandonar o «fruto de seu ato», fica suprimido esse ciclo
infernal de causa e efeito.

—«Renunciar ao fruto da ação»... Acaso faz sua esta regra?


—Acredito que sim, porque fui formado nesse comportamento e habituei a
ele, o encontro muito humano e muito enriquecedor. Acredito que é preciso
atuar, que cada qual deve seguir sua vocação, mas sem pensar na
recompensa.

—Lendo seu Diário chamou-me a atenção uma página em que fala de um gato que
desperta miando de uma maneira desagradável, e diz que o caminho consiste em...

—Em amar. Sim, é certo. E isso mesmo é o que dizia Cristo. Pode ser que esta
seja a regra fundamental de toda a ascese do mundo, mas é acima de tudo o
caminho que nos ensina Cristo. Só mediante este comportamento é possível
suportar de verdade o mal. Mas, bom, aquele pobre gato não era
precisamente o mal; de qualquer maneira, disso se trata, de responder com
amor a algo que nos exaspera ou nos aterra. Isto pode verificar-se...

—Diz que em seguida se imaginou àquele gato odioso como uma criatura miserável, e
então (e não é a primeira vez que tal coisa lhe ocorreu) sentiu-se completamente
mudado, e que isto é o que lhe ensinaram os mestres espirituais.
—Exatamente. Logo, senti-me feliz de que um gato me recordasse esta grande
lição que aprendera dos «mestres espirituais», de Jesus, o Cristo. Também um
gato obrigou-me a aprender isto mesmo.

—Quando vejo uns homens mais realizados que eu, isso me deixa sempre pensativo e
digo-me então: Como se chega a superar as reações de ódio, os ressentimentos, as
aversões? Em virtude de uma «graça» ou pelo próprio esforço?

—É difícil dar uma resposta. Sei que isto pode conseguir-se mediante o
trabalho, um esforço, digamos, de ordem espiritual, mediante um método, no
sentido ascético da palavra. Mas a «graça» desempenha, é óbvio, um encargo
importante.

—Sente-se dotado naturalmente nesse terreno, ou foi-lhe preciso lutar para conseguir
essa serenidade ante as agressões?

—Acredito que lutei, e muito! Isso, para mim, foi muito. Para outros, para um
santo, possivelmente não fosse nada. Mas o importante é que esse esforço dá
resultados. Enriquece-nos e, além disso, aí estão os frutos: alguém se sente
mudado.

—Por que razão se decidiu a lutar contra o instinto natural que nos exige devolver
golpe por golpe?
—A primeira, possivelmente, é que me sentia —conforme dizem os hindus—
um escravo ao seguir meu instinto. Sentia-me como o efeito de uma causa
fisiológica, psicológica, social... Daí essa rebeldia, possivelmente natural,
contra o condicionamento. Sentir-se condicionado, quando se toma
consciência disso, é algo que nos exaspera. Para «descondicionar-me» era
preciso fazer exatamente o contrário do que me exigia o carma. Teria que
romper o ciclo das concatenações.

ANIMUS E ANIMA
—Como homem de ciência, seu campo é o dos mitos, mas ao mesmo tempo é novelista,
quer dizer inventor de relatos, criador de mundos imaginários. Seu Diário evoca
freqüentemente o conflito entre estas duas personalidades. Algumas dificuldades são
de ordem externa, como lhe ocorreu na Romênia, ao princípio, quando sua fama de
escritor deixava cair uma sombra sobre sua atividade científica. Mas há outras
dificuldades interiores...

—Ninguém pode viver ao mesmo tempo nestes dois universos espirituais, o


diurno e o onírico. No momento em que me ponho a escrever uma novela,
entro em um mundo que possui sua própria estrutura temporária e no que as
relações com os personagens são de ordem imaginária, não crítica. Às vezes,
quando queria terminar, a qualquer custo, uma obra que me levara muito
tempo nas bibliotecas, aconteceu sentir-me obcecado pelo tema de uma
novela. Para me manter no universo diurno, não tinha mais remédio que
lutar. Pretendi dar testemunho de uma certa concepção do mundo —a do
homem religioso— para ajudar meus contemporâneos a recuperar seu
sentido e seu valor, e isso foi com detrimento de meu trabalho de escritor,
pois tive que me consagrar a minha tarefa de historiador e de hermeneuta.

—Mas, quando se conhecem intimamente os mitos, seu jogo e o sentido que lhes
atribui, é possível esquecer de repente tudo isso para abandonar-se à ignorância
criadora?

—Sobre isso contar-lhe-ei uma experiência extremamente reveladora. Foi em


1937. Ainda encontrava-me na Romênia, e necessitava dinheiro. Decidi
escrever uma pequena novela. Meu editor fez-me um adiantamento em troca
do envio do manuscrito em um prazo de quinze dias. Durante todo o dia
estava eu ocupado na universidade com diversos afazeres. Durante a noite
dedicava duas ou três horas a escrever A serpente. Como sempre ocorre em
meus relatos fantásticos, tudo começava em um universo cotidiano, banal.
Um personagem, um gesto, e pouco a pouco, esse universo transforma-se.
Desta vez era uma serpente que aparecia de repente em uma casa de campo
em que se achavam não sei quantos personagens... Cada noite punha-me a
escrever sem saber adiantado o que sairia. Primeiro via o começo e logo,
passo a passo, descobria a continuação. Evidentemente, eu sabia muitas
coisas sobre o simbolismo da serpente. Inclusive escrevera um artigo sobre
sua função ritual e tinha ao alcance da mão toda uma biblioteca referente ao
tema. Entretanto, nunca senti a tentação de recorrer a ela para tomar algum
detalhe. Quinze dias depois, a novela estava terminada. Ao ler as provas
fiquei surpreso pela continuidade e a coerência do relato. Todavia, dia após
dia, às três da madrugada, depositava ante a porta de minha casa o maço de
páginas escritas para que o mensageiro as levasse a imprensa. Mas, ainda
estranhava-me mais o fato de não descobrir em minha «serpente» nenhum
daqueles grandes símbolos que eu conhecia tão perfeitamente. Nenhuma
parcela de meu saber passara àquela obra de imaginação. Daí que seu
simbolismo, que não repete nada do conhecido, resulte muito obscuro e, ao
que parece, obtido muito do ponto de vista da ficção. Quando um se sente
possuído por um argumento, é indubitável que a visão interior se nutre de
quanto se leva dentro, mas essa visão não tem nada a ver com o saber
intelectual a respeito dos mitos, os ritos e os símbolos. Quando escrevo, me
esqueço de tudo o que sei. Ao reler O velho e o oficial, vi que alguns episódios
correspondem à determinados arquétipos. Mas não pensei nisso enquanto
escrevia a novela.

—Resulta-lhe fácil escrever?

—Quando estou «inspirado», como costuma dizer-se, ou melhor possuído,


trabalho depressa, quase sem intervalos, sem corrigir nada. Às vezes escrevo
durante doze ou treze horas ao dia, vinte e quatro páginas de um puxão, em
ocasiões até trinta ou quarenta. Mas, bruscamente, detenho-me. Deixo passar
então algumas semanas ou ainda mais. Mas também, ocorre-me não escrever
com tanta facilidade. Alguns capítulos de O bosque proibido deram-me muito
trabalho.

—Pertence à classe de escritores que escrevem de noite?

—Era dessa classe até aproximadamente os quarenta anos. Punha-me a


trabalhar por volta das nove da noite e não parava até as quatro da
madrugada. Agora é diferente. Ernst Jünge já me fez essa pergunta. Não
imaginava mais que o trabalho matinal e o serão. Acredito haver-lhe causado
um grande assombro ao lhe dizer que durante os dez ou quinze últimos anos
escrevo sempre à tarde. De noite, trabalho, mas não escrevo, salvo, bem
entendido, quando me sinto «possuído». Então o mesmo se dá de dia como a
noite.
—Preocupa-lhe, como norma geral, o «emprego do tempo»?

—Soube disciplinar-me durante minha juventude. Todas as manhãs


reconcentrava-me e estabelecia meu programa: tantas horas para estudar
uma nova língua, tantas para terminar este livro... Hoje é um pouco distinto.

—Quando se dispõe a escrever uma novela, como começa a coisa?

—Sou incapaz de traçar um plano. A obra germina sempre a partir de uma


visão, de uma paisagem ou de um diálogo. Vejo claramente o começo, às
vezes também o final, e pouco a pouco, trabalhando, descubro os
acontecimentos e a trama do relato ou da novela. Para O bosque proibido, a
primeira imagem foi o personagem principal. Passeava por um bosque perto
de Bucareste, uma hora antes da meia-noite de São João. Por aquele mesmo
bosque cruza uma carruagem e logo uma moça sem carruagem. Aquilo era
para mim um enigma. Quem era aquela moça? Por que o caminhante
buscava uma carruagem perto da moça? Pouco a pouco fui sabendo quem era
a moça e toda sua história. Mas tudo começou por uma espécie de visão. Vi
tudo aquilo como em sonhos.

—Mas, como soube que aquela visão tinha um futuro?

—Não podia fazer outra coisa que pensar nisso e tratar de ver a continuação.
Na época trabalhava em meu livro sobre o xamanismo; tive que abandoná-lo
e me pôr a escrever dia e noite. Apareceram outras imagens. A moça. A
história que o jovem arrastava consigo, que ainda não conhecia eu e que me
fascinava. Seu «quarto secreto» em um hotel. E a noite de São João...

—A noite de São João... Em 5 de julho de 1949, escreve: «De repente recordei que faz
exatamente vinte anos, sob o mormaço de Calcutá, escrevi o capítulo 'O sonho de
uma noite do verão' de Isabelle. O mesmo sonho solsticial, estruturado de outra
maneira e desenvolvido em níveis distintos, aparece também no centro de A noite de
São João. Será uma pura coincidência? O mito e o símbolo do solstício obcecam-me
há anos. Mas tinha esquecido que era precisamente desde Isabelle desde quando tinha
essa obsessão».

—Não me interessava unicamente o simbolismo religioso do solstício, a não


ser as imagens e os temas do folclore romeno e europeu. Nessa noite se
entreabre o céu pode ver-se mais à frente e um homem pode desaparecer... Se
alguém tiver essa visão milagrosa, sai do tempo, sai do espaço. Vive um
instante que dura uma eternidade... Entretanto, não era a significação deste
simbolismo o que me obcecava, a não ser a noite mesma essa noite que já
estava ali.

—A noite de São João parte em dois o ano. Os dias deixam de crescer e começam a
decrescer. É um ponto médio. Ao final do livro aparecem os primeiros versos da
Divina Comédia: «Nel mezzo del cammin di nostra vita / Mi ritrovai per una
selva oscura...». Que relação vê entre o solstício, a metade de nossa vida e esse
bosque inicial? E que relação entre este tema da metade e o do dobro: os dois
personagens gêmeos e as duas mulheres entre as que oscila ele protagonista?

—O bosque em que se perde Stéphane é o mesmo em que se perdeu Dante;


perde-se, mas melhor diríamos que encontra um mundo distinto de
significação, sem deixar de permanecer na história. É o ponto médio do
tempo: do tempo do ano, do tempo da vida. A linha que separa o mundo
histórico e o outro.
Quanto ao tema do duplo... Stéphane está obcecado por esta pergunta:
é possível amar, com um mesmo amor, à duas mulheres ao mesmo tempo?
Dá-se conta de que isso é impossível para o homem tal como lhe conhecemos.
Mas, por outra parte, obceca-lhe a existência de um mundo em que se
superariam nossas limitações. Sabe muito bem que não é um santo, nem
sequer um homem religioso, mas pensa muitas vezes na santidade: os santos
sim que são capazes de amar todo mundo ao mesmo tempo. Isto explica a
presença de duas mulheres. Quanto a de dois personagens masculinos, não
sei o que lhe dizer. Um psicanalista, o doutor Laforgue, atribuiu à morte do
«dobro», da que Stéphane se sente responsável, uma importante significação.
Tudo que posso dizer é que inventei o «dobro» para complicar a trama épica.
Era preciso que Stéphane existisse já no pensamento de sua mulher antes de
conhecê-la.

—Esta pergunta —é possível amar com verdadeiro amor duas ou mais pessoas ao
mesmo tempo?— tem em seu julgamento verdadeira importância?

—Não em sentido pessoal. O que me interessava era a superação dos limites


ordinários. Se essa experiência for possível, isso quer dizer que pode ser
transcendida a condição humana. Mas resulta que em nosso mundo,
moderno, profano, qualquer um pode sonhar que ama duas mulheres.
Escolhi, portanto, esta situação porque qualquer um pode imaginá-la.

—Esse é o sonho de uma parte da juventude americana: abandonar a monogamia...

—Trata-se, em um grau muito baixo, de uma certa nostalgia do paraíso. O


desejo de abolir as leis e as estruturas inerentes a toda sociedade, de abolir
para viver um estado paradisíaco. É verdade, entretanto, que também os
hippies pretenderam, como Stéphane, superar as condições da existência
ordinária.

—É realmente o caminho para o paraíso, para a felicidade, o amor plural ou o amor


único, «o amor louco»?

—Mais que o amor louco, o amor único. A paixão enriquecedora, patética,


isso é o amor único.

—Depois de percorrer tantos continentes do espírito e de ter observado tantos


costumes, parece-lhe que o homem e a mulher encontram seu caminho na
monogamia?

—É possível amar várias pessoas sucessivamente, mas não ao mesmo tempo.


Também se pode fazer amor, mas isso é outra coisa...

—Amar duas pessoas, amá-las ao mesmo tempo: tratar-se-ia ao mesmo tempo de


trocar o amor e de trocar o tempo. Sua novela termina com esta frase: «Soube que este
último instante, de uma duração infinita, seria suficiente», o que nos recorda o
instante milagroso da noite de São João. Além disso, sua novela nos repete, mais à
frente do tempo histórico, a um tempo cósmico, a um tempo que nas tradições se
chama o «Grande Ano».

—Com efeito, os doze mil anos que são aqui doze anos, de 1936 a 1948.
Ambicionava escrever um pequeno Guerra e Paz. Mas queria situar neste
tempo histórico a um homem ordinário —um funcionário, casado, que tem
um filho— obcecado ao mesmo tempo por uma estranha nostalgia: poder
amar duas mulheres de uma vez, ter um quarto secreto...Queria conciliar um
certo «realismo» histórico e, em um personagem que não era nem um filósofo
nem um poeta, nem tão sequer um homem religioso, esta aspiração a um
modo de ser fora do comum, coisa que me expõem problemas muito difíceis.
Mas isso era precisamente o que me apaixonava.

—Como se, sob a história ordinária, profana, de um jovem romeno dos anos trinta,
tivéssemos que decifrar um destino cheio de sentido e de figuras. Como se, além das
aparências, nossas vidas repousassem sobre uma ordem secreta...

—Em minhas novelas tratei sempre de camuflar o fantástico sob o cotidiano.


Nesta novela, que respeita todas as regras da novela «romântica», a do século
XIX, pretendi, em suma, camuflar uma certa significação simbólica da
condição humana. Essa camuflagem está bem obtida, acredito eu, posto que o
simbolismo não prejudica absolutamente à trama épica do relato. Acredito
que o trans-histórico está sempre camuflado no histórico, o extraordinário no
ordinário. Aldous Huxley falava da visão que proporciona o LSD como de
uma visio beatifica: ele via as formas e as cores como Van Gogh via sua célebre
cadeira. É certo que esta realidade cinza, esta cotidianidade oculta outra
coisa. Tal é minha convicção profunda. Terá que tratar de refletir esta idéia na
«novela-novela», e não só na novela ou no relato fantástico.

—Já sei que não gosta de ficção científica. Não acredita que forma parte da «fantasia»?
Em seu Diário diz que o futuro da literatura está do lado da fantasia, já que esta pode
devolver ao homem moderno o gosto do sentido. Qual é exatamente sua relação com o
mundo do «fantástico»?

—Em todos os meus relatos, a narração se desenvolve em distintos planos,


com intenção de desvelar o elemento «fantástico» dissimulado sob a
intranscendência cotidiana. Do mesmo modo que um novo axioma revela
uma estrutura da realidade desconhecida até o momento —dito de outro
modo, funda um mundo novo—, a literatura fantástica revela, ou melhor cria,
universos paralelos Não se trata de uma evasão, como pensam alguns
filósofos historicistas; com efeito, a criação —em todos os planos e em todos os
sentidos do termo— é o traço específico da condição humana.

ESCREVER A PRÓPRIA VIDA


—Em seu Diário nota-lhe profundamente atraído pelos diários íntimos, o de Green,
por exemplo, ou o de Charles du Bos...

—Eu gosto muito dos diários íntimos. Eu gosto de surpreender certos


momentos vividos por seus autores. Esta paixão por resgatar o tempo é
também o motivo de que eu mesmo leve um Diário. Resgatar, mediante
anotações breves ou mais extensas, os momentos efêmeros... Terá que possuir
além disso a «arte do Diário», como Jules Renard, Gide, Jünger, Green. Uns
simples «cadernos de apontamentos» não são um Diário.

—O que lhe impulsionou a publicar alguns fragmentos de seu Diário?

—Quis salvar uma parte deste Diário que está formado por cadernos que levo
sempre comigo e alguns dos quais já perdi. Havia além algumas observações
úteis, planos, projetos. Dava-me conta de que nem sequer teria tempo de
escrever um ensaio sobre esses temas. Publicar este Diário foi um meio de
comunicar algumas dessas observações e notas para iniciar o diálogo.

—Dá a impressão de ser um homem muito reservado, muito discreto, para não dizer
secreto. Alguma vez lhe causou problemas esta maneira de ser? Não se terá
submetido, com a publicação de seu Diário, a uma espécie de prova como a que
Francisco de Assis impunha à seus discípulos, obrigando-lhes atravessar nus a
cidade? Não haverá nisso um pouco de «sacrificial»? A preparação para um novo
«nascimento»?

—Foi, com efeito, uma ação «sacrificial», cujos riscos inclusive perigos tive em
conta. Mas sentia necessidade de não continuar ocultando meu lado onírico,
artístico. Queria além de me opor à superstição acadêmica, viva sempre nos
países anglo-saxões, e sobretudo na América, que tende a menosprezar o ato
da imaginação literária. Como se uma criação espontânea, livre, não tivesse
valor algum em comparação com uma obra puramente científica. Trata-se de
uma superstição muito daninha Lembro-me algumas linhas de um dos
maiores filósofos das ciências americanos, Bronowski, quem afirmava que a
operação mediante a que se chega a descobrir um novo axioma não pode ser
mecanizada. «Trata-se de um jogo livre do espírito, de uma invenção além
dos processos lógicos. Trata-se do ato central da imaginação na ciência,
semelhante desde todo ponto de vista a qualquer ato similar da literatura».
Bronowski escrevia estas palavras em «The American Scientist», The Logic of the
Mind, na primavera de 1966. A ciência moderna, portanto, descobriu já faz
tempo o valor que para o conhecimento possui o ato imaginativo. De minha
parte, revolto-me contra esse positivismo pretendidamente científico dos
eruditos para os que a criação literária não seria outra coisa que um jogo sem
relação alguma com o ato de conhecer. Acredito justamente o contrário.

—As reações ante seu Diário foram calorosas...

—Com efeito, recebi um número considerável de cartas de professores de


literatura inglesa, ou de literatura comparada. Algum dizia-me: «até agora,
seus livros sobre o simbolismo ajudaram-me em minha hermenêutica
literária. Lendo seu Diário surpreendeu-me descobrir ao homem que
produziu esses instrumentos de que eu me sirvo. Descobri que esse homem é
ao mesmo tempo um escritor que se interessa pelos fatos históricos...». Esta
publicação permitiu-me uma relação nova com meus leitores, que me encheu
de prazer. Não esperava tanto.

—Em algum lugar de seu Diário diz que «agora era preciso, a qualquer preço,
escrever, descartando todo outro trabalho, a autobiografia». Está inacabada esta
autobiografia?

—Sim, detém-se no momento da guerra. A primeira parte foi publicada em


romeno, mas não na Romênia. A segunda parte, com exceção de alguns
fragmentos, permanece inédita. Escrevo esta autobiografia para dar um
testemunho. Na Romênia vivi a época que agora se chama ali «pré-
revolucionária», «burguesa», e vi, lendo alguns artigos e inclusive certas
obras, que é desfigurada por não apresentar dela a não ser seus aspectos
negativos. Por isso, quis narrar minha própria história, minha experiência da
escola, do liceu. E com a maior objetividade possível.
Por outro lado, trata-se de um tempo passado, de personagens já
desaparecidos: Dasgupta, Tagore, Ortega... Escrevo esta autobiografia, em
conseqüência, como um dever pessoal. Para meus amigos futuros.

O VELHO E O OFICIAL
—Em seu Diário diz que O velho e o oficial é a obra mais livre que nunca tinha
escrito.

—Sim, porque ia à aventura, como me ocorreu com A serpente, mas desta vez
sem prazo fixo. Escrevi quase todo o livro em duas ou três semanas, mas
logo, durante doze anos, em vão tentei escrever as vinte e quatro últimas
páginas. Consegui-o em uns momentos em que estava muito ocupado com
meus cursos na Universidade de Chicago e pelos convidados de passagem.
Em quatro ou cinco noites.

—É uma obra pela que sente muito carinho.

—Todos estão de acordo em considerá-la a melhor rematada. Dizem-me que


nela dirijo um romeno mais sutil que o das restantes novelas. Entretanto,
escrevi essas páginas ao cabo de vinte anos de exílio durante os quais não
falei em romeno a não ser com minha mulher e com meus amigos... Todavia,
tenho-lhe carinho além de outras razões.

—Resumimos o argumento para começar?

—Faça-o por mim, já que acaba de reler o livro...

—Estamos, pois, na Romênia, quer dizer sob um regime policial. Um ancião, antigo
diretor de escola, quer ver de novo um de seus alunos de faz trinta anos. Mas o
homem com o qual se encontra não é outra coisa que um homônimo do antigo aluno.
O equívoco faz que resulte suspeito e a polícia lhe detém para saber mais dele.
Docilmente, mansamente, o velho começa a contar suas histórias, que resultam
fabulosas e muito longas, labirínticas. «É uma longa história —repete a cada
momento— e para que a possam entender tenho que lhes dizer primeiro...». O
admirável é que lhe escutam e até lhe pedirão que tome todo o tempo que queira e
ponha por escrito seus relatos. À medida que balança com seu manuscrito, este é lido,
analisado. E o velho vai conhecendo personagens cada vez mais importantes, até
chegar ao camarada ministro do Interior. Dizem-lhe que aquilo é «As mil e uma
noites do mundo stalinista». E enquanto que o relato maravilhoso prolifera, a
investigação provoca revoluções de palácio. Tal é a essência do argumento. Mas terá
que acrescentar que o leitor, igualmente à polícia, fica seduzido, fascinado. Há essa
cova sob a água em que desaparece o filho do rabino: seca-se a cova, mas ele não
aparece. E essa jovem gigante, bela como uma estátua condenada a uns amores
extraordinários, essa gigante que me faz pensar no protagonista de suas novelas, Le
Macranthrope, o homem que cresce e cresce até converter-se em um gigante, mas
que não muda tão somente de estatura, mas também de natureza, pois entende o que
dizem os deuses. E o que dizem os deuses? Nós, os que ficamos aqui embaixo, já não
entendemos os sons que brotam de sua boca... Há, pois, a gigante e há também
prestidigitadores capazes de encerrar toda uma banda de música e até uma aldeia
inteira em um cofre. Achamo-nos no universo inesgotável dos velhos contos, que
sempre nos encanta.

—Sim, é exato.

—Mas, o que significa tudo isso? Mais à frente do encantamento, nos convida a
procurar um sentido. Parece-nos acharmo-nos ante uma «parábola», no sentido em
que Claudel considerava Kafka o grande iventor de parábolas de nossos tempos.

—Pretendi opor duas mitologias. A mitologia popular, a mitologia do


folclore, viva e exuberante no velho, e a mitologia do mundo moderno, da
tecnocracia, algo que transborda à polícia de um Estado totalitário, que está
muito longe para as pessoas armadas de lógica e de toda classe de
instrumentos. Estas duas mitologias enfrentam-se. A polícia quer decifrar o
significado secreto de todas essas histórias. Em certo sentido, não se
equivoca, mas se limita a procurar um segredo político. Querem decifrar o
outro universo, a outra mitologia, à luz de sua própria mitologia. São
incapazes de imaginar que haja sentido fora do campo político.
A novela é também uma parábola do homem frágil. Farama, o nome do
velho, quer dizer em romeno «migalha», «fragmento». Mas é ele
precisamente o que sobreviverá, enquanto que caem os poderosos. Isto quer
dizer, ao menos, que quem sabe narrar histórias pode, em circunstâncias
difíceis, salvar-se. Assim ocorreu nos campos de concentração russos. Os que
tinham a sorte de contar com um narrador de histórias em seu barracão
sobreviveram em maior número. Escutar histórias ajudou-lhes a atravessar o
inferno do campo de concentração.

—Acredito que este personagem significa algo mais. Diz, quase ao pé da letra, «eu sou
a infância». Não é verdade que na alquimia, o velho e o menino solar significam por
igual a perfeição? Não é o mais velho o que recorda a origem? E Deus é ao mesmo
tempo o Ancião dos dias e o Menino Divino. Seu velho me parece a figura do tempo,
ou melhor, da memória.

—Sim, é o puer senex, menino e velho ao mesmo tempo. Puer-senex e puer


aeternus: o menino eterno, que renasce, o «renascido» eternamente. Encontro
muito exato sua decifração, sua exegese. Se, é a memória.

—«Recordem», diz Farama. E os homens se lembram de si mesmos. Pelos caminhos da


fábula, caminhos infantis, recuperam sua própria verdade. O velho recorda um tempo
que existiu, o tempo da escola primária, de trinta anos antes, mas basta recordar esse
tempo para que, do mais profundo, surja o tempo legendário. Em resumo, sob a
história, o mito. E sob o mito, a memória das origens.

—Estou completamente de acordo com sua interpretação, chegou ao fundo.

—Em Aspectos do mito, no capítulo «Mitologia da memória e do esquecimento»,


diz que também «a verdadeira anamnesis historiográfica desemboca em um tempo
primitivo, o tempo em que os homens instituíam seus comportamentos culturais e ao
mesmo tempo acreditavam que esses comportamentos lhes eram revelados pelos seres
sobrenaturais». Vejo em sua novela uma alegoria do historiador das religiões que
devolve a memória aos homens esquecidos e que, mediante essa memória, salva-os.
Toda memória seria, por conseguinte, memória das origens, e toda memória das
origens seria, a sua vez, luz e salvação. Nada, com efeito, perdeu-se, posto que, graças
ao tempo, ao tempo inextricavelmente destruidor e criador, as origens adquiriram
sentido... Daí que a história culmine em uma hermenêutica, e a hermenêutica em uma
criação, em poesia. Parece-me que Zaharia Farama é o gêmeo mítico e o duplo fraterno
de Mircea Eliade.

—Isso é muito belo. Não há nada que acrescentar.

—Muitas vezes comparou a vida, sua própria vida, com um labirinto. O que diria hoje
sobre o sentido desse labirinto?

—Um labirinto é muitas vezes a defesa mágica de um centro, de um tesouro,


de uma significação. Penetrar nele pode ser um rito iniciático, como vemos no
mito de Teseu. Este simbolismo é o modelo de toda existência que, através de
numerosas provas, avança para seu próprio centro, para si mesmo, para o
atman, para empregar o termo hindu... Muitas vezes tive consciência de sair
de um labirinto, de ter encontrado o fio. Quando me sentia desesperado,
oprimido, extraviado, certo que nunca me disse: «Estou perdido no
labirinto», mas, ao final, sempre tive a sensação de ter saído vitorioso de um
labirinto. Todos conhecemos essa experiência. Mas tenho que acrescentar que
a vida não é feita de um só labirinto. A prova se renova.

—Chegou já a seu centro?

—Tive muitas vezes a certeza de havê-lo alcançado, e ao fazê-lo, aprendi


muito, reconheci-me. Mas logo me perdi outra vez. Tal é nossa condição: não
somos nem anjos, nem puros heróis. Uma vez que se chega ao centro,
adquire-se uma riqueza, dilata-se a consciência e se faz mais profunda, tudo
se volta claro, significativo. Mas a vida continua: outro labirinto, outros
encontros, outros tipos de provas, em um nível distinto... Nossas
Conversações, por exemplo, projetaram-me em uma espécie de labirinto.

—Fala desses momentos em que se «reconheceu». Penso no que diz a tradição dos
sufis ou do zen: o homem convidado a contemplar o rosto que tinha antes de seu
nascimento ou o anjo que ele mesmo é secretamente... Que rosto era o seu quando se
reconheceu? Guardará silêncio sobre este ponto?

—Sim.
—Em seu Diário evoca o sentimento que, de repente, teve um dia a respeito da
duração de sua própria vida, em sua continuidade e em sua profundidade.

—É uma experiência que vivi muitas vezes; é muito importante para


encontrar-se a si mesmo e encontrar o sentido da própria existência. Em
geral, cada qual vive sua vida por segmentos. Um dia, em Chicago, ao passar
ante o Instituto oriental, senti a continuidade deste tempo que começa com
minha adolescência e que prossegue com a Índia, Londres e todo o resto. É
uma experiência reconfortante, pois se sente que não se perdeu o tempo, que
não se esbanjou a vida. Tudo está aí, inclusive os períodos que não pareciam
ter importância, como o serviço militar, por exemplo, inclusive os que se
esqueceram. Tudo está aí e se vê então que nos guiou um fim, um orientado.

—Nada, então, saiu mal?

—Vejo um número considerável de enganos, de insuficiências, de fracassos


possivelmente. Mas o mal, verdadeiramente não. Também é possível que eu
mesmo me impeça de vê-lo.

—Como olha hoje sua própria obra?

—Satisfaz-me estar ainda imerso no trabalho. Ainda me faltam muitas coisas


por terminar. Mas se se trata de julgar o que escrevo, terá que considerar
meus livros em sua totalidade. Se houver neles algum valor, alguma
significação, manifestar-se-ão na totalidade. Veja, por exemplo: Balzac não é
Le Pere Gariot nem Le Cousin Pons, por mais admiráveis que sejam estas obras,
a não ser La Comédie humaine. Também é a obra inteira de Goethe, não só
Fausto, a que nos revela a significação de Goethe. Do mesmo modo, se é que
tenho que me atrever a uma comparação com estes gigantes, será o conjunto
de meus escritos o que revelará a significação de minha obra. Invejo aos
escritores que se realizam em um só grande poema ou em uma grande
novela. Invejo não só o gênio de um Rimbaud ou de um Mallarmé, mas
também, por exemplo, ao Flaubert, que está todo inteiro em L'Education
sentimentale. De minha parte, desgraçadamente, não escrevo nenhum livro
que me represente inteiramente. Alguns de meus livros estão sem dúvida
melhor escritos, são mais densos, mais claros que outros; alguns outros
adoecem sem dúvida de repetições e pode ser que constituam fracassos pela
metade... Mas, direi-o uma vez mais, não poderá captar o sentido de minha
vida e de quanto fiz a não ser através do conjunto. Mas isso será muito difícil;
com efeito, uma parte de minha obra está escrita em romeno e por isso
resultará inacessível ao ocidente; a outra, escrita em francês, permanece
inacessível aos romenos.

—Acredita que estas Conversações servirão de ajuda a essa visão da totalidade?

—No curso destas Conversações tropecei com obstáculos não só de linguagem,


mas também de ordem interior. Revivi, de improviso, certos momentos
importantes de minha vida, de minha juventude. Suas perguntas obrigaram-
me às vezes a repensar certos problemas. Em certo modo me obrigou a
recordar uma grande parte de minha vida. Muito grande? Aí está o risco.
Não é possível aprofundar em tudo o que se diz. Em todo caso, tenho
curiosidade por ler o texto. Reconheço-me por antecipado em tudo que disse,
deixando à parte as questões de forma, mas a condição de insistir neste
ponto: não tenho o sentimento de haver-lhe respondido de maneira
perfeitamente clara e definitiva. Terá que valorar com justiça estes bate-papos
tal como são: circunstanciais, provisórios. Tudo fica aberto. Terei que refazê-
lo todo. As respostas dadas são justas, mas parciais. Ainda poderia sublinhar
algumas coisas, acrescentar outras. É algo que vai na natureza mesma destes
diálogos. Ionesco, conforme acredito, tinha este mesmo sentimento ao final
de umas Conversações análogas. Sim, tudo fica aberto. E, como ocorre com
toda experiência inesperada, encontro-me ante uma perspectiva mais longa
da que me era familiar. Agora vejo-me pensando coisas muito interessantes
que não imaginava há umas poucas semanas. Ao iniciar estas Conversações,
sabia que tinha que dizer certas coisas, mas não são precisamente as que
agora me vêm à imaginação. Esta abertura por volta do futuro é a imagem
que agora me possui.

—Necessitou muita energia para levar a termo a obra que realizou. De onde lhe vem
essa energia? Sabe o que lhe impulsionou no fundo a levantar todo este edifício?

—Não sei o que responder... Digamos que o destino.

—Em todo momento evitei lhe fazer perguntas a respeito do divino, suspeitando por
antecipado sua reserva...

—Há questões, com efeito, de tal importância para minha existência mesma e
para o leitor ao que possivelmente preocupam que não acertaria às abordar
convenientemente em uma conversação. A questão do divino, que é capital,
não queria tratar às pressas. Espero, entretanto, abordá-la um dia de maneira
absolutamente pessoal e coerente, por escrito.

—Não se explicará seu silêncio também por um desejo de não fazer o papel de mestre
espiritual?
—É certo que não me vejo no papel de mestre do pensamento ou guru. Não
me sinto como um guia, mas sim como um companheiro —um companheiro
um pouco mais adiantado—, um companheiro de outros. E daí também que
resista a tocar certos problemas essenciais de maneira improvisada. Sei muito
bem o que acredito, mas não se pode dizer em umas poucas frases.

—Muitas vezes falou que a realidade. —Sim.

—O que é que considera real? O que é a realidade?

—Acaso é algo que se possa definir de qualquer jeito? Não posso definir.
Parece-me que se trata de algo evidente, e se não for evidente, faria falta sem
dúvida uma longa demonstração.

—Não poderia nos ajudar neste ponto Santo Agostinho? «Se me pergunta o que é o
ser, não sei; se não me pergunta...».

—«Sei». Sim, verdadeiramente, esta é a melhor resposta.

ANEXOS E DOCUMENTOS

BRANCUSI E AS MITOLOGIAS*

*Petru Comarnesco, Mircea Eliade, Ionel Jianou, Témoignages sur Brancusi (Paris
1967).
Recentemente relia eu algumas peças da apaixonante controvérsia
suscitada em torno de Brancusi. Soube manter-se como um camponês dos
Cárpatos, apesar do meio século que viveu em Paris, centro de todas as
inovações e revoluções artísticas modernas? Ou melhor, como opina, por
exemplo, o crítico americano Sidney Geist, chegou a ser Brancusi o que foi
graças aos influxos da Escola de Paris e ao descobrimento das artes exóticas,
especialmente das esculturas e das máscaras africanas? Ao mesmo tempo que
lia as peças desta controvérsia, contemplava as fotografias reproduzidas pelo
Ionel Jianou em sua monografia (Paris 1963): Brancusi em sua oficina do beco
Ronsin, sua cama, sua estufa. Seria difícil não reconhecer o «estilo» de uma
moradia camponesa, mas há ali algo mais; trata-se da moradia de Brancusi,
de seu «mundo» peculiar, criado por ele mesmo, com suas próprias mãos,
poderíamos dizer. Não é a reprodução de um modelo pré-existente, «casa de
camponês romeno» ou «oficina de um artista parisiense de vanguarda».
Mas não há mais que se fixar na estufa. Não só pelo fato de que a
necessidade de ter uma estufa camponesa nos diz já muito sobre o estilo de
vida que Brancusi decidiu conservar em Paris, mas também porque o
simbolismo da estufa ou do lar poderia ilustrar algo secreto do gênio de
Brancusi.
Dá-se, com efeito, o fato —paradoxal para muitos críticos— de que
Brancusi parece ter recuperado a fonte de inspiração «romena» depois de seu
encontro com certas criações artísticas «primitivas» e arcaicas.
Resulta, entretanto, que este «paradoxo» constitui um dos temas
favoritos da sabedoria popular. Recordarei agora um só exemplo, a história
do rabino Eisik de Cracóvia, que o indianista Heinrich Zimmer extraiu dos
Khassidischen Bücher de Martín Buber. Este piedoso rabino, Eisik de Cracóvia,
teve um sonho que lhe exigia transladar-se à Praga, onde, sob a grande ponte
que conduz ao castelo real, encontraria um tesouro oculto. O sonho se repetiu
três vezes e o rabino se decidiu por fim a partir. Uma vez chegado à Praga,
encontrou a ponte, mas este se achava vigiado dia e noite por sentinelas. Eisik
não se atreveu a cavar. Enquanto rondava pelos arredores, terminou por
chamar a atenção do capitão dos guardas, que lhe perguntou amavelmente se
perdera algo. Com toda simplicidade, o rabino lhe contou seu sonho. O
oficial estalou em gargalhadas: «Pobre homem! De verdade que gastou suas
sandálias percorrendo tão longo caminho só por causa de um sonho? Que
homem razoável acreditaria em um sonho?». Também o oficial tinha
escutado em sonhos uma voz. «Uma voz que me falava de Cracóvia e que me
ordenava partir lá e procurar um grande tesouro em casa de um rabino
chamado Eisik, Eisik filho de Jekel. O tesouro seria descoberto em um rincão
poeirento em que se achava enterrado detrás da estufa». Mas o oficial não
dava nenhum crédito às vozes ouvidas em sonhos. O oficial era uma pessoa
razoável. O rabino se inclinou profundamente, agradeceu-lhe e voltou
apressadamente à Cracóvia. Cavou no rincão abandonado de sua casa e
descobriu o tesouro que pôs fim a sua miséria.
«Por conseguinte —comenta Heinrich Zimmer—, o verdadeiro tesouro,
que põe fim a nossas provas e misérias, nunca está longe, mas sim jaz
sepultado nos rincões mais separados de nossa própria casa, quer dizer de
nosso próprio ser. Está detrás da estufa, o centro doador de vida e de calor
que rege nossa existência, o coração de nosso coração, e o único que temos
que fazer é saber cavar. Mas fica também o fato de que unicamente depois de
uma viagem piedosa por uma região longínqua, por um país estrangeiro, por
uma terra nova, poderá revelar-nos a significação desta voz interior que guia
nossa busca. E a este fato estranho e constante vem acrescentar-se outro, e é
que o sentido de nossa misteriosa viagem interior tem que nos ser revelado
por um estrangeiro, um homem de outras crenças ou de outra raça.»
Voltando para nosso tema, ainda aceitando o ponto de vista de Sidney
Geist, concretamente que a influência exercida pela Escola de Paris foi
decisiva na formação de Brancusi, enquanto que «a influência da arte popular
romena é inexistente», fica o fato de que as obras mestras de Brancusi
encaixam no universo das formas plásticas e da mitologia popular romena,
até o ponto de que inclusive levam nomes romenos (a Maiastra, por exemplo).
Dito de outro modo, as influências teriam provocado uma espécie de
anamnesis que lhe teria levado por necessidade a um autodescobrimento. O
encontro com as criações da vanguarda parisiense, ou com o mundo arcaico
(África) teria posto em marcha um processo de «interiorização», de retorno
para um mundo secreto e inesquecível, um mundo ao mesmo tempo da
infância e da imaginação. Pôde ocorrer que depois de ter compreendido a
importância de certas criações modernas redescobrisse Brancusi a riqueza
artística de sua própria tradição e que pressentisse, em última instância, as
possibilidades criadoras dessa mesma tradição. Em todo caso, isso não quer
dizer que Brancusi, depois desse descobrimento, ficasse a fazer «arte popular
romena». Não imitou as formas já existentes, não copiou o folclore. Pelo
contrário, entendeu que a fonte de todas estas formas arcaicas —mesmo na
arte popular de seu país que as da proto-história balcânica e mediterrânea, da
arte «primitiva» africana e oceânica— afundava-se, profundamente, no
passado; entendeu também, que esta fonte primitiva nada tinha a ver com a
história «clássica» da escultura, em que esteve situado, como todos os seus
contemporâneos, durante sua juventude em Bucareste, em Munique ou em
Paris.
A genialidade de Brancusi está no fato de que acertou em encontrar a
verdadeira «fonte» das formas que logo seria capaz de criar. Em lugar de
reproduzir os universos plásticos da arte popular romena, ou africana,
aplicou-se, por assim dizê-lo, a «interiorizar» sua própria experiência vital.
Por isso conseguiu recuperar a «presença ante o mundo» específica do
homem arcaico, fora este um caçador do Paleolítico inferior, ou um agricultor
do Neolítico mediterrâneo, cárpato-danubiano, ou africano. Se na arte de
Brancusi se puderam advertir não só uma solidariedade estrutural e
morfológica com a arte popular romena, a não ser além certas analogias com
a arte negra, ou a estatuária da pré-história mediterrânea e balcânicas, isso é
assim, porque todos estes universos plásticos são culturalmente
homologáveis, porque suas fontes estão no Paleolítico inferior e no Neolítico.
Dito de outro modo, graças ao processo de «interiorização» ao que aludimos
e a anamnesis que foi seu resultado, Brancusi conseguiu «ver o mundo» como
os autores das obras mestras pré-históricas, etnológicas e folclóricas. Em certo
sentido recuperou a «presença ante o mundo» que permitiria àqueles artistas
desconhecidos criar seu próprio universo plástico em um espaço que nada
tinha a ver, por exemplo, com o espaço da arte grega «clássica».
Certo que tudo isto não basta para explicar o gênio de Brancusi nem sua
obra. Com efeito, não é suficiente recuperar a «presença ante o mundo» de
um camponês do Neolítico para poder criar como um artista do mesmo
período. Mas chamar a atenção sobre o processo de «interiorização» nos
ajuda a compreender, por uma parte, a extraordinária novidade de Brancusi
e, por outra, o fato de que algumas de suas obras nos pareçam
estruturalmente solidárias das criações artísticas pré-históricas, camponesas
ou etnográficas.
A atitude de Brancusi ante os materiais e sobretudo ante a pedra
possivelmente nos ajude um dia a entender algo da mentalidade dos homens
pré-históricos. Com efeito, Brancusi se aproximava de certas pedras com a
reverência exaltada e, ao mesmo tempo, angustiada de alguém que se via
manifestar nesse elemento uma potência sagrada, uma hierofania.
Nunca saberemos em que universo imaginário se movia Brancusi
durante seu longo trabalho de polimento. Pelo que não cabe dúvida é de que
essa prolongada intimidade com a pedra inspiraria as «alucinações da
matéria» brilhantemente analisadas pelo G. Bachelard. Era como sumir em
um mundo das profundidades no qual a pedra, a «matéria» por excelência, se
manifestava como uma realidade misteriosa, pois incorporava a sacralidade,
a força, a obra obtida. Ao descobrir a «matéria» como fonte e lugar de
epifanias e de significações religiosas, Brancusi pôde recuperar ou adivinhar
as emoções e a inspiração de um artista dos tempos arcaicos.
A «interiorização» e a «imersão» nas profundidades formavam parte
pelo resto de Zeitgeist do início do século XX. Freud acabava de pôr a ponto a
técnica da exploração que permitia chegar às profundidades do inconsciente;
Jung acreditava estar em condições de inundar-se ainda mais profundamente
no qual ele chamava o inconsciente coletivo; o espeleólogo Emile Racovitza
estava a ponto de identificar na fauna das cavernas os «fósseis viventes»,
formas orgânicas tão mais preciosas quanto as que não são fossilizáveis;
Lévy-Bruhl isolava na «mentalidade primitiva» uma fase arcaica, prelógica,
do pensamento humano.
Todas estas investigações e estes descobrimentos tinham um ponto em
comum, é que deviam revelar valores, estados, comportamentos ignorados
até então pela ciência, algumas vezes, porque tinham permanecido
inacessíveis à investigação e outras, especialmente, porque não ofereciam
interesse algum à mentalidade racionalista da segunda metade do século XIX.
Todas estas investigações implicavam em certo modo um descensus ad inferos
e, em conseqüência, o descobrimento de umas etapas de vida, de experiência
e de pensamento que precederam à formação de sistemas de significação
conhecidos e estudados até então, sistemas que poderíamos chamar
«clássicos», posto que de uma ou de outra maneira vinculavam-se à
instauração da razão como único princípio capaz de captar a realidade.
Brancusi era contemporâneo, por excelência, desta tendência a
«interiorização» e a busca das «profundidades», contemporâneo do interesse
apaixonado pelas etapas primitivas, pré-históricas e pré-racionais da
criatividade humana. Depois de compreender o «secreto» central —
concretamente que não são as criações folclóricas ou etnográficas as mais
adequadas para renovar ou enriquecer a arte moderna, a não ser o
descobrimento de suas «fontes»—, Brancusi se inundou em uma série de
buscas sem fim, interrompidas unicamente, por sua morte. Voltou
incansavelmente, uma e outra vez, sobre certos temas como se estivesse
obcecado pelo mistério de suas possibilidades artísticas, que nunca conseguia
realizar. Trabalhou, por exemplo, dezenove anos na Coluna sem fim, e vinte e
oito no ciclo dos Pássaros. Em seu Catálogo raciocinado, Ionel Jianou registra
cinco versões em madeira de carvalho da Coluna sem fim, além de outras em
gesso e em aço, executadas entre 1918 e 1937. Quanto ao ciclo dos Pássaros, de
1912 a 1940, Brancusi terminou vinte e nove versões, em bronze brunido, em
mármore de distintas cores e em gesso. Certamente, em outros artistas
antigos e modernos se dá esta mesma volta constante a determinados temas
centrais. Mas este método é peculiar sobretudo dos artistas populares e
etnográficos, para quem os modelos exemplares têm que ser tomados e
«imitados» indefinidamente por razões que nada têm a ver com a «falta de
imaginação» ou de «personalidade» por parte do artista.
É significativo que em Coluna sem fim recuperasse Brancusi um motivo
folclórico romeno, a «coluna do céu» (columna cerului), que prolonga um tema
mitológico testemunhado já na pré-história e que, por outra parte, está muito
difundido em todo mundo. A «coluna do céu» sustenta a abóbada celeste;
dito de outro modo, é um axis mundi, do que se conhecem numerosas
variantes: a coluna Irminsul dos antigos germanos, os pilares cósmicos das
populações nordasiáticas, a montanha central, a árvore cósmica, etc. O
simbolismo do axis mundi é complexo: o eixo sustenta o céu e ao mesmo
tempo assegura a comunicação entre o céu e a terra. Quando o homem se
aproxima de um axis mundi, que se supõe situado no centro do mundo, pode
estabelecer comunicação com as potências celestes. A concepção do axis
mundi como coluna de pedra que sustenta o mundo reflete com toda
probabilidade as crenças características das culturas megalíticas (IV-III
milênios A. C.). Mas o simbolismo e a mitologia da coluna celeste se
difundiram além das fronteiras da cultura megalítica.
Ao menos, pelo que se refere ao folclore romeno, a «coluna do céu»
representa uma crença arcaica, pré-cristã, mas que foi rapidamente
cristianizada, posto que aparece nas canções rituais de Natal (colinde).
Brancusi ouvira sem dúvida falar da «coluna do céu» em sua aldeia natal ou
no curral dos Cárpatos em que aprendeu seu ofício de pastor. Esta imagem
obcecava-lhe sem dúvida, pois, como veremos, integrava-se no simbolismo
da ascensão, do vôo, da transcendência. É de notar que Brancusi não escolheu
a «forma pura» da coluna —que só podia significar o «suporte», a «escora»
do céu—, a não ser uma forma romboidal imensamente repetida que a
assemelha a uma árvore ou a um pilar provido de entalhes. Dito de outro
modo, Brancusi pôs em evidência o simbolismo da ascensão, pois,
imaginariamente, experimenta-se o desejo de subir ao longo desta «árvore
celeste». Ionel Jianou recorda que as formas quadriláteras «representam um
motivo decorativo tirado dos pilares da arquitetura rural». Mas o simbolismo
do pilar das moradias rurais depende também do «campo simbólico» do axis
mundi. Em numerosas moradias arcaicas, o pilar central serve efetivamente
de meio de comunicação com o céu.
Não é a ascensão para o céu das cosmologias arcaicas o que obceca ao
Brancusi, a não ser o vôo para um espaço infinito. Diz de sua coluna que é
«sem fim». Não só pelo fato de que jamais poderia acabar-se semelhante
coluna, a não ser sobretudo porque esta se lança para um espaço que não
poderia ter limites, já que se funda na experiência enlevada da liberdade
absoluta. É o mesmo espaço para o que se lançam seus Pássaros. Do antigo
simbolismo da «coluna do céu», Brancusi reteve unicamente o elemento
central: a ascensão tanto como a transcendência da condição humana. Mas
conseguiu revelar a seus contemporâneos que se trata de uma ascensão
enlevada, carente de todo caráter «místico». Basta deixar-se «levar» pela força
da obra para recuperar a bem-aventurança esquecida de uma existência livre
de todo sistema de condicionamentos, iniciado em 1912 com a primeira
versão de Maiastra, o tema dos Pássaros resulta ainda mais revelador.
Brancusi, com efeito, partiu de um célebre motivo folclórico romeno para
desembocar, ao longo de um dilatado processo de «interiorização», em um
tema exemplar, ao mesmo tempo arcaico e universal. Em Maiastra, mais
exatamente Paserea maiastra (literalmente «o pássaro maravilhoso»), é uma
ave fabulosa dos contos populares romenos que assiste ao Príncipe encantado
(Fat-Frumos) em seus combates e em suas provas. Em outro ciclo narrativo,
Maiastra consegue roubar as três maçãs de ouro que dá cada ano uma
macieira maravilhosa. Só um filho de rei pode lhe ferir ou lhe capturar. Em
algumas variantes, uma vez ferido ou capturado, o «pássaro maravilhoso»
resulta ser uma fada. Dir-se-ia que Brancusi quis insistir neste mistério da
dupla natureza sublinhando, nas primeiras variantes (1912-1917), a
feminilidade de Maiastra. Mas seu interesse centrou-se muito em breve no
mistério do vôo.
Ionel Jianou recolheu estas declarações do mesmo Brancusi: «quis que
Maiastra levantasse a cabeça sem que esse movimento significasse ferocidade,
orgulho ou desafio. Foi o problema mais difícil e só através de um longo
esforço obtive que esse movimento se integrasse no arranque do vôo». A
Maiastra, que no folclore é quase invulnerável (só o Príncipe consegue feri-la),
converte-se em Pássaro no espaço; dito de outro modo, o que agora se trata de
expressar na pedra é o «vôo mágico». A primeira versão de Maiastra como
Pássaro no espaço data de 1919, e a última de 1940. Finalmente, como escreve
Jianou, Brancusi consegue «transformar o material amorfo em uma elipse de
superfícies translúcidas de uma pureza assombrosa que irradia a luz e
encarna, em seu impulso irresistível, a essência do vôo».
Também dizia Brancusi: «Não procurei durante toda minha vida outra
coisa que a essência do vôo... O vôo, que felicidade!». Não tinha necessidade
de ler os livros para saber que o vôo é um equivalente da felicidade, já que
simboliza a ascensão, a transcendência, a superação da condição humana. O
vôo proclama que a pesantez fica abolida, que se produziu uma mutação
ontológica no mesmo ser humano. Os mitos, contos e lendas relativos aos
heróis ou aos magos que se movem livremente entre a terra e o céu se acham
universalmente difundidos. Com as imagens da ave, as asas e o vôo se
relacionam numerosos símbolos alusivos à vida espiritual sobretudo às
experiências enlevadas e aos poderes da inteligência. O simbolismo do vôo
traduz uma ruptura levada a cabo no universo da experiência cotidiana. É
evidente a dupla intencionalidade desta ruptura: trata-se ao mesmo tempo da
transcendência e da liberdade que se conseguem mediante o «vôo».
Não é este o momento de reatar as análises que oferecemos em outros
lugares. O certo é, entretanto, que se chegou a demonstrar que nos níveis
distintos, mas relacionados entre si, do sonho, da imaginação ativa, da criação
mitológica e do folclore, dos ritos, da especulação metafísica e da experiência
enlevada, o simbolismo da ascensão significa sempre a ruptura, de uma
situação «petrificada», «bloqueada», a ruptura de níveis que faz possível o
trânsito para outro modo de ser, a liberdade, em resumidas contas, de mover-
se, quer dizer, mudar de situação, de abolir um sistema de condicionamentos.
É significativo que Brancusi se sentisse obcecado durante toda sua vida pelo
que ele chamava a «essência do vôo». Mas, é extraordinário o fato de que
conseguisse expressar o arranque ascensional utilizando o arquétipo mesmo
da pesantez, a «matéria» por excelência, a pedra. Poderia quase dizer-se que
operou uma transmutação da «matéria», mais exatamente que levou a cabo
uma coincidentia oppositorum, pois no mesmo objeto coincidem a «matéria» e o
«vôo», a pesantez e sua negação.
Mircea Eliade
junho de 1967

Universidade de Chicago
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