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A PROVA DO
L A B I R I N TO
C o n v e r s a ç ões com
CLAUDE-HENRIROCQUET
EDICIONESCRISTIANDAD
L i b e r a l o s L i b r o s
Este livro foi publicado por Pierre Belfond, Paris 1979, com o título L'EPREUVE DU
LABYRINTHE
EDIÇÕES CRISTANDADE, S. L.
Madrid 1980
PREFÁCIO
O título deste livro enquadra perfeitamente a sua natureza: A prova do
labirinto. O costume sugere que o confidente escreva o prefácio do diálogo
suscitado pelo jogo de suas perguntas. Posso expor, ao menos, as razões que
me levaram, para lhe fazer perguntas, em torno deste mundo um pouco
legendário: Eliade. Quando tinha vinte anos li na biblioteca do Instituto de
Estudos Políticos, no que por certo não me encontrava encaixado, um
primeiro livro de Mircea Eliade (acredito que era Imagens e símbolos). Os
arquétipos, a magia das ligaduras, os mitos da pérola e da concha, os
batismos e os dilúvios, tudo aquilo me chegou mais a quão fundo a ciência de
meus professores de economia política: ali estavam o sabor e o sentido das
coisas. Anos mais tarde, quando me dedicava a inculcar aos futuros
arquitetos que o espaço do homem só pode medir-se de verdade quando está
orientado conforme os pontos cardeais do coração, não tive melhores aliados
que Bachelard de La Poétique de l'espace e Eliade O sagrado e o profano.
Finalmente, lendo e relendo, como quem passeasse por Siena ou Veneza, os
Fragments d'un Journal —desdobramento de um mundo, presença de um
homem, caminho de uma vida— vi como brilhava, repentina e próxima,
através do edifício dos livros, a labareda de uma personalidade. Agora penso
que me cumpriu um desejo: encontrei ao antepassado mítico, posso dizer que
nos tornamos amigos e que à força de insistência consegui que surgisse no
centro do território da escritura e das idéias —a obra de Eliade— este
microcosmos e este ponto de entrevista que são estas Conversações.
Para entrar neste labirinto e descobrir a unidade de uma obra e uma
vida é boa qualquer porta. A aprendizagem na Índia aos vinte anos e a
proximidade de Jung em «Eranos» vinte anos depois; as profundas raízes
romenas reconhecíveis inclusive nessa maneira de ter o mundo por pátria; o
inventário dos mitos corroborado por sua compreensão; a tarefa do
historiador e a primitiva paixão para inventar a fábula; Nicolás de Cusa e o
Himalaya. Assim se entende por que em Mircea Eliade ressoa com tanta força
e freqüência o tema da coincidentia oppositorum. Teremos que dizer que ao
final todas as coisas convergem em um ponto? Mas bem é que tudo brota da
alma original que, como o grão ou a árvore, atrai para si todos os rostos do
mundo para lhe responder ao lhe interrogar, para enriquecê-lo com sua
presença. Em definitivo, a origem se manifesta por tudo aquilo que se
realizou e se juntou.
Fui ao encontro de um homem cuja obra tinha iluminado minha
adolescência e me encontrei com um pensador atual. Eliade jamais incorreu
no engano de pretender que as ciências do homem tomem como modelo as
da natureza. Jamais esqueceu que, tratando-se das coisas humanas, é preciso
as compreender primeiro para as entender, e que quem expõe interrogantes
não pode sentir-se alheio ao que é interrogado. Jamais experimentou a
sedução do freudismo, do marxismo, do estruturalismo ou, melhor diríamos,
dessa mixórdia de dogma e moda que designamos com tais termos. Em uma
palavra, nunca esqueceu o lugar irredutível da interpretação, o desejo
inextinguível de sentido, a palavra filosófica. Mas precisemos: esta atualidade
de Eliade não é a das revistas. Ninguém sonhou sequer ver nele a um
precursor dos peregrinos californianos ao Katmandú, ninguém pretenderia
descobrir nele um «novo filósofo» inesperado. Se Mircea Eliade for moderno, o
é por ter compreendido já faz meio século que a «crise do homem» é em
realidade uma «crise do homem ocidental», que é preciso entendê-la e
superá-la admitindo as raízes —arcaicas, selvagens, familiares— da humana
condição.
Mircea Eliade, «historiador das religiões»... Esta maneira tão oficial de
lhe definir entranha o risco de lhe desconhecer. Ao menos, entendamos que
história é memória e recordemos também que toda memória é um presente. E
que para Mircea Eliade, a pedra de toque da religiosidade é o sagrado, que
quer dizer encontro ou pressentimento da realidade. Tanto a arte como a
religião se deixam imantar por essa realidade. Mas, no que
fundamentaríamos a diferença entre um e outro? Acredito que captaremos
perfeitamente o pensamento de Eliade se cairmos em conta do muito que
responde ao de Malraux. Se Malraux vir na arte a moeda do absoluto, quer
dizer, uma forma do espírito religioso, Eliade considera os mitos e os ritos do
homem arcaico —sua religião— como outras tantas obras de arte, umas obras
de arte verdadeiramente Mestras. Mas, estas duas almas têm em comum o ter
descoberto o valor imprescritível da imaginação e o fato de que não há outro
meio para reconhecer os conteúdos da imaginação hoje abandonados ou
estranhos, a não ser propondo aos homens, sempre imprevisíveis, sua
recreação. Nem o desejo de saber nem a atenção do filósofo parecem ser o
âmbito essencial de Eliade, mas sim, melhor, a fonte do poema que
transfigura a vida mortal e nos enche de esperança.
Claude-Henri Rocquet
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O SENTIDO DAS ORIGENS
O NOME E A ORIGEM
Claude-Henri Rocquet: —Mircea Eliade é um nome muito belo...
Mircea Eliade: —Por que? Eliade: hélio; e Mircea: Mir, raiz eslava que quer
dizer paz...
—... e mundo.
—Família da pequena burguesia, mas que demonstrava um certo gosto pelas coisas do
espírito. Não diríamos melhor família de «pessoas cultivadas»?
—Somos três irmãos. Meu irmão nasceu dois anos antes que eu e minha irmã
quatro anos mais tarde. Foi uma grande sorte vir entre um e outra. Porque,
bem entendido, o preferido durante anos foi meu irmão, o filho maior e logo,
foi minha irmã, a pequena. Não poderia dizer que vivesse com escassez de
carinho, mas nunca me senti arrasado por um excesso de carinho paterno ou
materno. Foi uma grande sorte. E além disso tive a vantagem de contar com
um amigo e mais tarde com uma amiga: minha irmã e meu irmão.
O DRAGÃO E O PARAÍSO
—Que imagens lhe vêm à memória de sua primeira infância?
—Havia ali muitas prateleiras repletas de objetos curiosos. Além disso, minha
mãe, junto com outras senhoras da cidade, organizava festas infantis com
tômbola. À espera da festa, depositavam-se naquele salão os prêmios da
tômbola. Minha mãe, com toda razão, não queria que seus filhos vissem
aquela enorme quantidade de brinquedos.
—Sim, mas já os conhecia, tinha visto minha mãe levando-os ali. Não foi
aquilo o que me interessou, a não ser a cor. Era, verdadeiramente, como estar
dentro de um grão de uva. Fazia muito calor, a luz era extraordinária, mas
filtrada através das persianas. Uma luz verde... De verdade, tive a impressão
de achar-me dentro de um grão de uva. Leu O bosque proibido? Nessa novela,
Stéphane recorda uma habitação misteriosa de quando era menino, a
habitação «Sambo». Se perguntar o que poderia significar aquilo... Era a
nostalgia de um espaço que tinha conhecido, um espaço que não se parecia
com nenhuma outra habitação. Ao evocar aquela habitação «Sambo»,
evidentemente, pensava em minha própria experiência extraordinária de
penetrar em um espaço completamente distinto.
—Maravilhado.
—Não sentia nenhum temor? Não experimentava a sensação de cometer uma falta
deliciosa?
—Não... O que me atraiu foi a cor, a calma e logo a beleza: aquilo era o salão,
com suas estantes, seus quadros, porém, submerso na cor verde, banhado de
uma luz verde.
—Agora falo com o conhecedor dos mitos, com o hermeneuta, com o amigo de Jung. O
que pensa destes dois acontecimentos?
—Aquele dragão...
—Apesar de seu medo, teve entretanto presença de ânimo suficiente para captar o
medo do outro.
—É que o via! Via o medo de seus olhos, via-lhe cheio de medo ante o
menino. Aquele enorme e muito belo monstro, aquele sáurio tinha medo de
um menino. Fiquei estupefato.
—Diz que o dragão era de uma grande beleza por ser «fêmea, andrógino». Significa
isto que, em seu sentir, a beleza está essencialmente ligada ao feminino?
—Não, entendo que há uma beleza andrógina e uma beleza masculina. Não
posso reduzir a beleza, nem sequer a do corpo humano, à beleza feminina.
—Porque era perfeita. Ali estava tudo: graça e terror, ferocidade e sorriso,
tudo.
—Em seu caso, a palavra «andrógino» não carece de importância. Falou muito do
tema do andrógino.
—Mas, insistindo sempre em que andrógino e hermafrodita não são uma mesma
coisa. No hermafrodita coexistem os dois sexos. Aí estão as estátuas de
homens com seios... O andrógino, por sua parte, representa o ideal da
perfeição: a fusão dos dois sexos. É outra espécie humana, uma espécie
distinta... E acredito que isto é importante. Certamente, os dois, o
hermafrodita e o andrógino existem na cultura não só européia, mas também
universal. Por minha parte, sinto-me atraído pelo tipo do andrógino no que
vejo uma perfeição dificilmente realizável, ou possivelmente, inexeqüível nos
dois sexos separados.
—Penso agora em certa oposição que descobre a análise «estrutural» entre o bestial e o
divino na Grécia arcaica: Admitiria que o hermafrodita se situa do lado do
monstruoso e o andrógino do lado do divino?
—Sim, assim é.
—Em O jardim das delícias de Bosch há seres que vivem no interior de umas
frutas...
—O descobrimento da leitura acima de tudo. Por volta dos dez anos comecei
a ler novelas —novelas policiais—, contos, em resumo, tudo o que se costuma
a ler aos dez anos e um pouco mais. Alexandre Dumas traduzido ao romeno,
por exemplo.
—Sim, publiquei meu primeiro artigo quando tinha treze anos. Uma espécie
de conto científico que apresentei em um concurso aberto a todos os alunos
de liceu romenos pela «Revista de ciências populares». Meu pequeno texto
intitulava-se: Como descobri a pedra filosofal. Obtive o primeiro prêmio.
—Acredito que fala desse texto em seu Diário, e diz: «Perdi-o, já não o poderei
encontrar, mas como eu gostaria de relê-lo de novo!» Não pôde encontrá-lo?
—Para que um menino escreva um conto como esse, é preciso que se interesse não só
pelos insetos, mas também além pela química e a alquimia, não é assim?
—Não sei... Para mim, a importância desse conto está em que, já dos doze aos
treze anos, via-me trabalhando de maneira, científica, com a matéria. E ao
mesmo tempo, sentia-me atraído pela imaginação literária.
-Há em sua personalidade, por um lado, o homem de ciência e, pelo outro, o escritor.
Mas ambos se encontram no terreno do mito...
—Em certo sentido, sim, porque não só publicara uma centena de pequenos
artigos na «Revista de ciências populares», mas também, além de alguns
relatos, impressões de viagem pelos Cárpatos, o relato de um périplo pelo
Danúbio e no Mar Negro; finalmente, alguns fragmentos de uma novela, A
novela de um adolescente míope... Novela absolutamente autobiográfica. Igual a
meu personagem, quando sofria alguma crise de melancolia —minha herança
moldávia...— lutava contra essa crise com todo tipo de «técnicas espirituais».
Lera o livro de Payot, L'Education de la volonté, tratava de pô-lo em prática no
liceu, começara o que eu mesmo chamaria mais tarde a «luta contra o sonho».
Queria ganhar tempo. Com efeito, interessava-me não só pelas ciências, mas
também, por outras muitas coisas; descobrira, progressivamente, o
orientalismo, a alquimia, a história das religiões. Li por acaso ao Frazer e Max
Müller; e como aprendera italiano (para ler Papini), descobri aos orientalistas
e historiadores das religiões italianos: Pettazzoni, Buonaiuti, Tucci e outros...
E escrevia artigos sobre seus livros, ou sobre os problemas que tratavam.
Evidentemente, tive uma grande oportunidade para tudo isso: na casa
materna de Bucareste vivia eu em uma água-furtada, mas aquela água-
furtada era completamente independente. Por isso, aos quinze anos podia
receber meus amigos e podia ficar ali durante toda a tarde, ou toda a noite
bebendo café e discutindo. A água-furtada estava isolada, o ruído não
incomodava a ninguém. Quando tomei posse daquela água-furtada, tinha
dezesseis anos. Em princípio tive que compartilhar com meu irmão, mas meu
irmão entrou no liceu militar e eu fiquei como dono único da água-furtada,
duas pequenas habitações maravilhosas. Podia ler impunemente durante
toda a noite... dá-se conta?
Quando se têm dezessete anos, descobre a poesia moderna e tantas
outras coisas, o que mais gosta é de ter uma habitação própria que alguém
possa arrumar, transformar a seu gosto, que deixa de ser algo, simplesmente,
recebido dos pais. Aquele era verdadeiramente meu local. Ali vivia eu, tinha
minha cama, com uma determinado cor. Tinha figuras que recortava e colava
aos muros. Mas, tinha sobretudo meus livros. Mais que um quarto de
trabalho, era um lugar para viver.
—Acredito que sim, pois o certo é que tive todas as oportunidades possíveis
até o momento de partir de minha casa.
—Quando entrou na Universidade, como era a atmosfera intelectual, a atmosfera
cultural da Romênia daquela época, quer dizer, de 1920 à 1925?
—Uma abertura para o universal, a Índia presente nos espíritos, Milarepa, ao que lerá
Brancusi...
—Evocou o surrealismo, mas não disse nada do dadaismo, nem de Tzara, seu
compatriota...
—Conhecíamo-os, lêramos nas revistas de vanguarda, que nos apaixonavam.
Mas, pessoalmente, não me deixei influenciar pelo dadaismo, nem pelo
surrealismo. Assombrava-me e digamos que admirava sua coragem...
Todavia, eu sentia-me ainda sob o impacto do futurismo, que acabávamos de
descobrir. Estava muito interessado, como sabe, por Papini, o primeiro
Papini, o de antes da conversão, o grande panfletário e autor de Maschilitá, de
Uomo finito, sua autobiografia... Aquilo era para nós a vanguarda. Também
descobri ao Lautréamont, coisa curiosa, através de León Bloy. Lera uma
recopilação de artigos, de panfletos, Belluaires et Porchers, possivelmente...
Havia naquele livro um artigo extraordinário sobre Les Chants de Maldoror,
com extensas entrevistas. Deste modo, descobri Lautréamont, antes que ao
Mallarmé, ou inclusive Rimbaud. Mallarmé e Rimbaud não os li até mais
tarde, na universidade.
—Certo, mas a coisa ocorre um pouco mais tarde, pelos anos de 1933 à 1936.
Entretanto, já da universidade, lera algumas obra menores do Kierkegaard,
em tradução italiana; descobri logo a tradução alemã, quase completa.
Lembro-me escrever em um jornal, «Cuvántul», um artigo intitulado
Panfletista, enamorado e ermitão. Acredito que é o primeiro artigo sobre o
Kierkegaard publicado na Romênia; foi em 1925 ou 1926. Kierkegaard
significou muito para mim, sobretudo como exemplo. E não só por sua vida,
mas também pelo que anunciava, por isso antecipava. Desgraçadamente, é de
uma prolixidade exasperante, por isso, penso que Etudes kierkegaardiennes de
Jean Wahl é possivelmente... o melhor livro de Kierkegaard, pois há nele
muitas entrevistas acertadamente escolhidas, o essencial.
—Antes de nos ocupar de sua tese, eu gostaria de lhe perguntar pelas razões pessoais
que o levavam a estudo das religiões. As que acaba de expor são de ordem intelectual.
Mas, qual era sua relação interior com a religião?
—Conhecia mal minha própria tradição, a do cristianismo oriental. Minha
família era «religiosa», mas, como sabe, no cristianismo oriental, a religião é
acima de tudo algo que se aprende por costume, que se acostuma pouco, pois
não há catecismo. O que importa é sobretudo a liturgia, a vida litúrgica, os
ritos, os coros, os sacramentos. Eu participava daquela vida religiosa como
todo mundo. Mas aquilo não tinha nenhum valor essencial. Meu interesse ia
por outro lado. Na época, eu estudava filosofia, ao estudar os filósofos, os
grandes filósofos, sentia que algo me faltava. Sentia que não é possível
compreender o destino humano e o modo específico de ser do homem no
universo, sem conhecer as fases arcaicas da experiência religiosa. Ao mesmo
tempo, sentia que me resultaria difícil descobrir essas raízes através de minha
própria tradição religiosa, quer dizer, através da realidade atual de uma
determinada Igreja que, como todas as demais, estava «condicionada» por
uma longa história; por umas instituições cujo significado e formas sucessivas
eu ignorava. Pensava que seria muito difícil descobrir o verdadeiro sentido e
a mensagem do cristianismo através de uma só tradição. Por isso, queria
aprofundar ainda mais.
Primeiro, o Antigo Testamento, logo Mesopotâmia, Egito, o mundo
mediterrâneo e a Índia.
—Mas a tudo isto, nada de inquietação metafísica, nada de crise mística, nada de
dúvidas, nem tampouco uma fé muito viva? Parece liberado de algo que tantos
adolescentes conhecem, a tortura religiosa ou metafísica.
—Certo, não conheci essa grande crise religiosa. É curioso... Não estava
satisfeito, mas não sentia nenhuma dúvida, pois não acreditava muito. Sentia
que, verdadeiramente, o essencial, o que de verdade devia encontrar e
compreender era algo que devia procurar por outro lado e não só em minha
própria tradição. Para me entender, para entender...
—Era a filosofia italiana desde Marsilio Ficino até Giordano Bruno. Todavia,
interessou-me em especial Ficino, e também Pico de la Mirandola. Fascinava-
me o fato de que através desta filosofia do Renascimento fora redescoberta a
filosofia grega, mas também o fato de que Ficino traduzira ao latim os
manuscritos herméticos, o Corpus hermeticum, comprovados por Cosme de
Médicis. Apaixonava-me igualmente o fato de que Pico conhecia esta tradição
hermética e que estudara o hebreu, não só para melhor entender o Antigo
Testamento, mas também, sobretudo para compreender a Cabala. Via,
portanto, que não se tratava, unicamente, de um descobrimento do
neoplatonismo, mas sim, de um transbordamento da filosofia grega clássica.
O descobrimento do hermetismo implicava uma abertura para o Oriente,
para o Egito e Pérsia.
—Quer isso dizer que era sensível, no Renascimento, a tudo o que este implica de
abertura ao não especificamente grego ou clássico?
—Uma tradição... não digamos «não européia», a não ser «não clássica», quer
dizer, mais profunda que a herança clássica recebida de nossos antepassados
tracios, dos gregos e os romanos. Mais tarde compreendi que se trata desse
fundo neolítico que é a matriz de todas as culturas urbanas do Próximo
Oriente antigo e do Mediterrâneo.
O RENASCIMENTO E A ÍNDIA
—Mircea Eliade, em 10 de fevereiro de 1949 recebe uma carta de seu «velho Mestre
Pettazzoni», que elogia calorosamente o Tratado de história das religiões, recém
publicado; em sua resposta escreve: «Lembro-me aquelas manhãs de 1925, quando
acabava de descobrir I misteri, e lancei-me à história das religiões com a paixão e a
segurança de um moço de dezoito anos. Lembro-me do verão de 1926, quando, depois
de iniciada minha correspondência com Pettazzoni, recebi como presente Dio, que li
sublinhando, quase uma por uma, todas suas linhas. Recordo-me...».
—Não é comum que um homem tão jovem vá visitar os Mestres e que seja recebido
por eles. Todavia, penso que lhe animava a paixão de saber e, em conseqüência, de ir
às fontes mesmas. Daí o bom acolhimento que tinha... O que esperava, por exemplo,
de Macchioro?
—Foi sua tese o que acima de tudo me interessou. Acreditava ter descoberto
as etapas de uma iniciação órfica nas pinturas da Villa dei Misteri de Pompeya.
Acreditava além, que a filosofia de Heráclito se explicava pelo orfismo.
Pensava também, que São Paulo não era tão somente um representante do
judaismo tradicional, mas sim, fora iniciado além nos mistérios órficos e que,
em conseqüência, a cristologia de São Paulo introduzira o orfismo no
cristianismo. Esta hipótese tivera má acolhida, mas, eu tinha vinte anos e
parecia-me apaixonante. Por isso, fui ver Macchioro.
Enquanto isso, eu preparava minha tese, algumas vezes em Bucareste e
outras em Roma. Mais em Roma, é verdade, porém, em Bucareste tinha a
maior parte de minha documentação e de minhas notas. Ao mesmo tempo,
que trabalhava em minha tese de licenciatura sobre a filosofia do
Renascimento, nutria meus pensamentos com os historiadores das religiões e
os orientalistas italianos: descobri o orfismo com Macchioro, o Joaquín de
Fiore com Buonaiuti. E lia Dante, ao que Papini (e outros) relacionavam com I
fedeli d'amore. No fundo, estudar aos filósofos do Renascimento e a história
das religiões devia ser a mesma coisa.
—Imagino que não era unicamente a leitura de Dante o que lhe interessava em
Papini, mas o homem, o escritor tumultuoso.
—Conheceu Papini em Florência, mas será em Roma onde se decidirá uma grande
parte de seu destino...
—Uma formosa história, que viria muito bem para terminar um capítulo. Entretanto,
para não deixar nada no tinteiro, a bordo daquele navio, ou às vésperas de sua
partida, quais eram seus sentimentos?
INTERMÉDIO
—Logo que entrei me falou que a idéia do título que lhe acaba de ocorrer para nossas
Conversações.
—Sim, ocorreu-me esse título como fruto de minha experiência, não do
diálogo, mas sim da gravação, que impõe entre nós, em todo momento, a
presença da «máquina», coisa que para mim deve ser uma prova, uma
verdadeira «prova iniciática» e a qual não estou habituado a tal coisa. Daí o
título de A Prova do Labirinto. Com efeito, por uma parte supõe a prova,
para mim, de ver-me na necessidade de recordar coisas quase esquecidas. E
logo está o fato deste ir e vir; deste começar constantemente de novo, que é
como caminhar por um labirinto. Mas penso que o labirinto é a imagem por
excelência de uma iniciação... Por outro lado, considero que toda existência
humana está constituída por uma série de provas iniciáticas; o homem vai-se
fazendo ao fio de uma série de iniciações conscientes, ou inconscientes. Sim,
acredito que este título expressa perfeitamente o que sinto ante o aparelho.
Mas, ao mesmo tempo, agrada-me porque é uma expressão muito justa,
acredito eu, da condição humana.
— Acho este título excelente... Ao subir pela rue d'Orsel, também vinha pensando no
título para estas Conversações. Acabava de ler algumas páginas de seu Diário e
pensava em Ulisses, no labirinto. Ulisses no labirinto? Possivelmente, um pouco
recarregada esta mitologia. Porém ao tocar a campainha de sua porta e ao receber-me
diz de supetão...
—Será uma casualidade?... Em todo caso, prefiro seu título, parece-me definitivo.
Quanto à prova do gravador, já sei que lhe custa muito superar a repugnância que lhe
inspira.
—E me pergunto por que será. Possivelmente, seja a idéia de que quanto digo,
a espontaneidade mesma, fica imediatamente registrada... ou, possivelmente,
melhor, o fato de que haja entre nós um controle ou, melhor dizendo, um
objeto. Um objeto que resulta muito importante no diálogo. É isto, sem
dúvida, é este objeto que se mistura no diálogo e que me paralisa um tanto.
—Como chegou a converter-se em inquilino deste piso, nesta praça? Deve-se a uma
eleição premeditada?
—Gosta deste bairro unicamente pela atmosfera que reina nele? Não influiria o fato de
que Charles Dullin...?
—Sei muito bem, pessoalmente, eu não gosto nem de sua arquitetura, nem a
cor de seus muros. Todavia, sua localização é admirável: a perspectiva, o
espaço... É uma montanha, certamente. E está além disso, a história da colina
de Montmartre, que não se pode ignorar. Aí está, e aqui mudou pouco a vida,
felizmente. Estes dias relia os últimos volumes do Journal de Julien Green e
chamou-me atenção a insistência com que Green fala da fealdade progressiva
que está caindo sobre Paris. Cortam-se as árvores, são demolidas certas
mansões magníficas do século XVIII ou o XIX, levantam-se edifícios
modernos, mais cômodos, sem dúvida, mas desprovidos de todo encanto. É
verdade, Paris possuía uma beleza peculiar que está a ponto de desaparecer.
Mas, trata-se de um tema tristemente banal. Não falemos mais disso.
—Quando poderemos ler esse livro ao que se refere em seu Diário em 14 de junho de
1967 e no qual se propõe falar da estrutura dos espaços sagrados; do simbolismo das
moradias, das aldeias e das cidades; dos templos e dos palácios?
—Em algum lugar disse antes que o sagrado se caracteriza pelo sentido: orientação e
significação...
—Sim, e não é unicamente a casa a que se considera «sagrada», nem o templo, mas
também o território, a terra da pátria, a terra natal...
—Todo país natal constitui uma geografia sagrada. Para quem teve que
abandonar, a cidade da infância e da adolescência converte-se para sempre
em uma cidade mítica. Para mim, Bucareste é o centro de uma mitologia
inesgotável. Através dessa mitologia cheguei a conhecer sua verdadeira
história. E a minha, possivelmente.
A ÍNDIA ESSENCIAL
O APRENDIZ DE SANSCRITISTA
—Em 18 de novembro de 1948 escreve em seu Diário: «Faz vinte anos, por volta das
quinze e trinta horas, conforme acredito, saí da estação do Norte de Bucareste em
direção à Índia. Ainda vejo-me no momento de partir; vejo o Ionel Jianu com o livro
de Jacques Riviére e o pacote de cigarros, seus últimos presentes. Eu levava duas
pequenas malas. O que terá influenciado em mim aquela viagem antes de cumprir os
vinte e dois anos! Como seria minha vida sem a experiência da Índia no começo de
minha juventude? E a segurança que após me acompanha: aconteça o que acontecer,
sempre haverá no Himalaya uma gruta que me espera...». Poderia responder agora a
essa pergunta que então se fez a propósito da influência da Índia em sua vida e em sua
obra? Em que sentido lhe formou a Índia? Este será, se lhe parecer bem, o tema
essencial de nossa conversação de hoje.
Paramos em que Dasgupta lhe esperava em Madras.
—Suas relações com Dasgupta, foram as que revistam dar-se entre professor e aluno;
as de discípulo e mestre; ou guru?
—Por sua parte, sentia desejos de levar a vida cotidiana dos bengaleses, de adotar seus
costumes quanto à alimentação e a vestimenta?
—Sim, mas não em princípio, pois não conhecia ainda nada de tudo aquilo. Ia
ao menos duas vezes por semana à casa de Dasgupta para trabalhar ali.
Pouco a pouco, o ar misterioso daquelas casas enormes com terraços,
rodeadas de palmeiras e de jardins, terminaram por fazer seu efeito.
—Vi essa formosa fotografia que aparecerá nas capas dos «Cahiers de l'Herne». É a
indumentária que levava em Calcutá?
—Acredita que a experiência de viver na Índia pode ser distinta vestindo como as
pessoas do país?
—Sua relação com a vida hindu não era tão somente a de um intelectual, a não ser a
de toda sua pessoa...
—Do mesmo modo, que não foi a tortura metafísica o que o levou para o estudo das
religiões, tampouco foi o gosto do exótico, ou o desejo de perder sua identidade o que
lhe conduziu a vestir a túnica amarela dos ascetas. Conservou sua identidade, sua
formação ocidental, em um desejo de aproximar-se da Índia através dessa perspectiva,
para fundir finalmente dois pontos de vista, ou melhor ainda, para organizá-los e
conjuntá-los.
—Seu propósito não era unicamente estudar a língua e a cultura indiana, mas
também, o de praticar o ioga. Quer dizer, experimentar em seu próprio corpo e
pessoalmente aquilo de que se falava nos livros.
—Como trabalhava com Dasgupta? Como aprendeu o sânscrito, primeiro com ele e
logo com o pandit?
—Mas, com esse método, possivelmente, corra-se o risco de não obter a exatidão e a
vivência próprias da língua falada.
—Aprendeu o italiano para ler ao Papini, o inglês para ler ao Frazer, o sânscrito para
ler os textos tântricos. Trata-se sempre, ao que parece, de abrir uma porta a algo que
lhe interessa. A língua é o caminho, jamais o fim. Não lhe expõe tudo isto uma
questão? Poderia converter-se não em um historiador das religiões, dos mitos, do
mundo da imaginação, a não ser em um sanscritista, em um lingüista. Cabia dentro
do possível uma obra totalmente distinta, um Eliade diferente. Ingressasse no grêmio
dos Jacobson, dos Benveniste, contribuindo seu estilo peculiar a este campo. Poder-se-
ia sonhar nessa obra imaginária... Não lhe tentou alguma vez esse caminho?
—Sempre que tratei de aprender uma nova língua foi para possuir um novo
instrumento de trabalho. Uma língua foi sempre para mim uma
possibilidade de comunicação: ler, falar se fosse possível, mas sobretudo ler.
Entretanto, houve um momento enquanto permaneci na Índia, em Calcutá,
quando contemplava os esforços de um comparativismo mais amplo —por
exemplo, as culturas indo-européias com as culturas pre-hindus, as culturas
oceânicas, as culturas da Ásia central—, quando contemplava aqueles sábios
extraordinários como Paul Pelliot, Przylusky, Sylvain Lévy, conhecedores
não só do sânscrito e o pali, mas também do chinês, tibetano, japonês e, além
disso, das línguas chamadas austroasiáticas, sentia-me fascinado por aquele
universo enorme que se abria à investigação. Já não se tratava unicamente da
Índia ária, mas, além da Índia aborígine, da abertura para o Sudeste asiático e
Oceania. Eu mesmo tentei iniciar esse caminho. Dasgupta dissuadiu-me. E
tinha razão. Sabia adivinhar. Todavia, empreendi o estudo do tibetano com
uma gramática elementar. Pude observar que, ao tratar-se de algo que não
desejara, verdadeiramente, do mesmo modo, que desejara o sânscrito, ou o
inglês, ou mais tarde o russo, ou o português, a coisa não saía muito bem.
Então, fiquei furioso e abandonei. Disse-me que jamais alcançaria a
competência de um Pelliot, de um Sylvain Lévy, que jamais seria um
lingüista, nem sequer um sanscritista. A língua em si mesmo, suas estruturas,
sua evolução, sua história, seus mistérios não me atraíam como...
—Como a imagem, como os símbolos?
IOGUE NO HIMALAYA
—Em setembro de 1930 sai de Calcutá em direção ao Himalaya. Separa-se de
Dasgupta...
—Sim, por causa de uma desavença, que lamento muito. Também ele a
lamentou. O certo é que já não me interessava permanecer naquela cidade em
que, sem Dasgupta, nada tinha que fazer. Parti para o Himalaya. Fui detendo
em numerosas cidades, mas ao final decidi ficar algum tempo em Hardwar e
Rishikesh, pois ali é onde começam os verdadeiros eremitérios. Tive a sorte
de conhecer Swami Shivanananda, que falou com mohant, o superior,
conseguiu-me uma pequena choça no bosque... As condições eram muito
singelas: levar um regime vegetariano e prescindir da indumentária européia;
entregava-se ao aspirante uma túnica branca. Cada manhã tinha que
«mendigar» leite, mel e queijo. Fiquei ali, em Rishikesh, seis ou sete meses,
possivelmente até abril.
—Enquanto que Darjeeling está a não sei quantos metros de altura, em uma
paisagem alpina, Rishikesh se acha à beira do Ganges, mas o Ganges é ali um
pequeno rio: cinqüenta metros em alguns sítios e logo, de repente, duzentos
metros; às vezes, estreita-se muito: vinte metros, dez metros. Ali há selva, a
selva. Em meus tempos não se via por ali outra coisa que umas quantas
choças e um pequeno templo hindu. Não havia gente. No bosque, as choças
estavam escalonadas ao longo de dois ou três quilômetros, a duzentos metros
umas das outras, às vezes, só a cento e cinqüenta ou cinqüenta. Dali subia à
Lakshmanjula, primeira etapa de minha peregrinação, por assim dizê-lo. Ali
resulta muito elevada a montanha. Havia uma série de grutas nas quais
viviam os religiosos, contemplativos, ascetas, iogues. Conheci muitos deles.
—Era Swami Shivanananda, mas, naquela época ninguém lhe conhecia, não
publicara nada (logo publicaria uns trezentos volumes...). antes de converter-
se em Swami Shivanananda fora médico, tinha uma família e conhecia muito
bem a medicina européia, que praticara, conforme acredito, em Rangun.
Depois, um belo dia, abandonou tudo. Despojou-se de seu traje europeu e
veio a pé desde Madras ao Rishikesh. Demorou quase um ano percorrendo o
caminho. É um homem que me interessou pelo fato de que possuía uma
formação ocidental. Igual Dasgupta. Era um bom conhecedor da cultura
indiana e estava em condições de comunicá-la a um ocidental. Não se tratava
de um erudito, mas tinha uma longa experiência de Himalaya; conhecia os
exercícios do ioga, as técnicas de meditação. Era médico e, em conseqüência,
entendia perfeitamente nossos problemas. Foi ele quem me orientou um
pouco nas práticas da respiração, da meditação, da contemplação. Coisas que
eu conhecia de cor, pois não só as estudara nos textos, em comentários, mas
sim, além disso, ouvira falar delas outros saddhu e contemplativos em
Calcutá, em casa de Dasgupta, e em Santiniketan, onde conheci Tagore.
Sempre havia ocasião de conhecer alguém que já praticara algum método de
meditação. Sabia de tudo isto, por conseguinte, algo mais do que há nos
livros, mas nunca tentara pô-lo em prática.
—Acaba de falar da selva. Teremos que pensar em tigres, em serpentes?
—Não recordo ouvir falar nunca de tigres, todavia, havia muitas serpentes, e
também macacos, uns macacos extraordinários. Acredito que foi ao terceiro
dia de minha instalação na choça quando vi uma serpente. Tive um pouco de
medo, tinha a impressão de que era uma cobra; lancei-lhe uma pedra para
espantá-la. Um monge viu-me e disse-me (falava muito bem o inglês; era um
antigo magistrado): «Por que? Embora seja uma cobra, nada terá que temer.
Neste eremitério não me recordo que se produziu nenhuma só mordida de
serpente». Fiquei perplexo, entretanto, perguntei-lhe: «E mais abaixo, na
planície?» Respondeu ele: «Sim, ali é verdade, mas não aqui». Coincidência
ou não... Em qualquer caso, a partir de então, quando via uma serpente,
deixava-a passar tranqüilamente. Isto era tudo. Nunca voltei a espantar uma
serpente lançando-lhe uma pedra.
—Passaram quase cinqüenta anos entre aqueles tempos do iogue noviço e o dia de hoje
em que já se converteu em autor célebre de três obras sobre o ioga. Um deles leva
como subtítulo Imortalidade e liberdade. Outro intitula-se Técnicas de ioga... O
que é o ioga? Um caminho místico, uma doutrina filosófica, uma arte de viver? Qual
é seu objetivo, dar a salvação, ou dar a saúde?
—Não haverá alguma relação entre esse desejo e a «luta contra o sonho» de sua
adolescência?
—Em minha adolescência tinha muito que ler e me dava conta de que não se
obtém grande coisa se dormir durante sete horas, sete horas e meia. Comecei
então um exercício que acredito ter inventado. Cada manhã fazia soar o
despertador dois minutos antes que a anterior. Em uma semana ganhei,
portanto, um quarto de hora. Com seis horas e meia de sonho por noite,
deixei de adiantar o despertador durante três meses, a fim de me habituar
perfeitamente a esta duração. Logo comecei de novo, sempre ao ritmo de dois
minutos. Deste modo cheguei às quatro horas e meia de sonho. Logo, um dia
tive vertigens e parei. Eu chamava àquilo, com a grandiloqüência dos
adolescentes, «a luta contra o sono». Depois li L'Education de la volonté, do
doutor Payot. Lembro-me uma página em que dizia: «por que, mediante a
simples intervenção da vontade, não teria que nos ser possível comer coisas
que unicamente nossos hábitos culturais nos fazem ter por não comestíveis?
Mariposas, por exemplo, ou abelhas, vermes, besouros. Ou também, um
bocado de sabão». Eu perguntava-me: «Por que não?». E comecei a «educar
minha vontade», mas acredito que entendi mal o livro. Em qualquer caso,
desejava dominar certas aversões e certas tendências naturais em um
europeu.
O ioga, efetivamente, está aparentado com esse esforço. O corpo pede
movimento, então, imobiliza-lhe em uma só posição, um asana; já não se
comporta um como um corpo humano, mas sim, como uma pedra, ou uma
planta. A respiração é naturalmente arrítmica; o pranayama impõe-lhe um
ritmo. Nossa vida psicomental está sempre agitada —Patañjali define-a como
chittavritti, «torvelinhos de consciência—, mas a concentração permite
dominar essa corrente... O ioga significa em certo modo uma oposição ao
instinto, à vida.
Todavia, não me atraiu o ioga unicamente por estas razões. A verdade é
que se me senti interessado por estas técnicas do ioga foi, acima de tudo,
porque me resultava impossível entender à Índia unicamente através da
leitura dos grandes indianistas e de seus livros sobre a filosofia vedanta, para
a qual o mundo é pura ilusão —maya— ou através do sistema monumental
dos ritos. Não podia entender que a Índia tivesse grandes poetas e uma arte
admirável. Dava-me conta de que em algum lugar existia uma terceira via,
não menos importante, e que esta via implicava a prática do ioga. Mais tarde
em Calcutá, ouvi dizer que, com efeito, um professor de matemática
trabalhava em posição asana impondo um ritmo a sua respiração, e com
vantagem. Por outro lado, já sabe que quando Nehru se sentia fatigado,
adotava durante alguns minutos a «posição da árvore». São exemplos,
aparentemente anedóticos, mas, o certo é que essa ciência, essa arte do
domínio do corpo e os pensamentos, são muito importantes para a história da
cultura e da filosofia indianas, da criatividade hindu em uma palavra.
—Não lhe vou fazer novas perguntas sobre os aspectos teóricos do ioga; umas poucas
palavras não serviriam para substituir os livros que já escreveu. Prefiro perguntar-lhe
por sua experiência pessoal e pelo que esta lhe contribuiu para o resto de sua vida.
—O que tem essas histórias que se contam de panos molhados e gelados que se
colocam sobre a pessoa entregue à meditação e que se secam várias vezes ao longo da
noite?
—Nesse relato aparece um jovem romeno que atravessa Ceilão, Madras e detém-se em
Calcutá, onde se encontra com o diabo.
—São duas novelas escritas dez anos mais tarde. Entre Isabel e estas duas
novelas há outra, mais ou menos, autobiográfica, A noite
—Eu acredito na realidade das experiências que nos fazem «sair do tempo» e
«evadir-nos do espaço». Durante estes últimos anos escrevo várias novelas
em que se expõe esta possibilidade de sair-se de um determinado momento
histórico... de situar-se em um espaço distinto, como ocorre ao Zerlendi. Ao
descrever os exercícios yóguicos de Zerlendi em O segredo do doutor
Honigberger, contribuí com certos indícios apoiados em minhas próprias
experiências, que silenciei em meus livros sobre o ioga. Entretanto, ao mesmo
tempo, acrescentei algumas inexatidões, justamente para mascarar os dados
reais. Por exemplo, fala-se de um bosque de Serampore, porém, em
Serampore não há nenhum bosque. Portanto, se alguém pretendesse verificar
em concreto a trama da novela, dar-se-ia conta de que o autor não se limita a
fazer uma reportagem, posto que inventou a paisagem. Isto levaria a
conclusão de que também o resto inventara, coisa que não é verdade.
—Sim, no sentido de que alguém pode ter uma experiência tão «convincente»
que se veja obrigado a considerá-la real.
-Para alguns leitores pode resultar evidente. Como o personagem que narra
essa história afirma ser Mircea Eliade, um homem que passou alguns anos na
Índia, que escreveu um livro sobre o ioga...
—Não estou seguro de que esta conversação seja clara para quem não lera o livro.
Melhor assim, pois espero que essa mesma escuridão anime-lhes a descobri-lo... Por
minha parte, já não sei o que pensar. Sinto-me na mesma situação que os personagens
de seu último livro que escutam ao «velho». A sua é uma arte diabólica na hora de
desconcertar seus ouvintes através de umas histórias nas quais já não é possível
distinguir o verdadeiro do falso, a esquerda da direita.
—Não haverá um tanto de malícia no prazer que lhe produz a idéia de confundir um
tanto a seu interlocutor?
—Isso,possivelmente, forma parte de uma espécie de pedagogia; não se deve
entregar ao leitor uma «história» perfeitamente transparente.
—O que agora me diz enlaça diretamente com uma nota de seu Diário de 5 de abril de
1947 a propósito dos afrescos de A Última Ceia: «A sensualidade destas imagens
fabulosas, a importância inesperada do elemento feminino! Como é possível que um
monge budista pudesse "liberar-se" das tentações da carne, rodeado de tanta, nudez
soberba; triunfantes em sua plenitude e em sua beleza? Só uma versão tântrica do
budismo podia aceitar semelhante elogio da mulher e da sensualidade. Algum dia se
compreenderá a função importante do tantrismo, que revelou e impôs à consciência
hindu o valor das "formas" e dos "volumes" (o triunfo do antropomorfismo mais
lânguido sobre o aniconismo original)». O componente erótico da noite bengalesa,
seu interesse pelo tantrismo e sua visão da arte indiana: esta nota permite envolvê-los
no mesmo olhar.
—E a literatura hindu?
—Sim, tive a grande sorte de ser recebido várias vezes por Tagore em
Santiniketan. Eu tomava muitas notas depois de nossas conversações e
também sobre quanto se dizia dele, como homem e como poeta, em
Santiniketan. Ali era muito admirado, porém, alguns criticavam-lhe, e eu
tomava nota de tudo isso. Espero que esse «caderno Tagore» exista ainda, em
Bucareste, em minha biblioteca tantas vezes mudada de lugar. Admirava ao
Tagore pelo esforço que desenvolvia para condensar em si as qualidades, as
virtudes, as possibilidades do ser humano. Não era tão somente um poeta
excelente, um compositor excelente —escreveu umas três mil canções, das
quais algumas centenas, estou seguro disso, converteram-se hoje em «canções
populares» em Bengala—, um grande músico, um bom novelista, um
professor da conversação... Sua mesma vida possuía uma qualidade
específica. Todavia, não era uma «vida de artista», como a que levavam um
D'Annunzio, um Swinburne, ou um Oscar Wilde. Era uma vida rica e
completa, aberta à Índia e ao mundo. Tagore interessava-se além, por coisas
que ninguém imaginaria, que pudessem interessar a um grande poeta.
Ocupava-se dos assuntos comuns, sentia uma grande paixão pela escola que
fundara em Santiniketan. Jamais se distanciou da cultura popular de Bengala.
Em sua obra adverte-se em seguida, a importância da tradição rural, apesar
de que esteja claro que também se inspirava em Maeterlinck, por exemplo.
Além disso era formoso. Tinha um grande êxito, murmurava-se que era um
dom Juan... Ao mesmo tempo, irradiava uma espiritualidade que se
expressava através de todo seu corpo, de seus gestos, de sua voz. Um corpo,
uma imagem de patriarca.
—Vi o Gandhi e até ouvi, mas de longe e muito mal: o alto-falante não
funcionava, se é que havia algum aquele dia. Foi em Calcutá, em um parque,
durante uma manifestação não violenta... Admirava-lhe, como todo mundo.
Eu preocupava-me com outros problemas, mas o êxito de sua campanha da
não violência chegou a interessar-me enormemente. Entenda-se bem que, por
então, eu era cem por cento antibritish. A repressão inglesa contra os
militantes do swaraj exasperava-me, revoltava-me.
—Isso significa que se deixou ganhar em coração e alma pela causa da não violência...
—Sim, em resumidas contas, deve ser o mesmo. Trata-se de ver que através
desta técnica, e também através de outras vias ou métodos, é possível
santificar de novo a vida, santificar de novo a natureza...
O segundo descobrimento, o segundo ensino é o sentido do símbolo.
Na Romênia não me senti atraído pela vida religiosa, as igrejas me pareciam
abarrotadas de ícones. Entenda-se bem que aqueles ícones não me pareciam
ídolos, mas... Na Índia, enquanto vivia em uma aldeia bengalês, pude ver
como as mulheres e as moças tocavam e engalanavam um lingam, um
símbolo fálico, ou mais exatamente, um falo de pedra anatomicamente muito
exato. Ao menos as mulheres casadas não podiam ignorar sua natureza, sua
função fisiológica. Assim entrevi a possibilidade de «ver» o símbolo no
lingam. O lingam era o mistério da vida, da criatividade da fecundidade que
se manifesta em todos os níveis cósmicos. Esta epifania da vida era Shiva, não
o membro que conhecemos. Aquela possibilidade de sentir-se religiosamente
movido pela imagem, o símbolo revelou-me todo um mundo de valores
espirituais. Então disse: é verdade que ao contemplar um Ícone, o crente não
percebe tão somente a figura de uma mulher que sustenta nos braços um
menino, mas sim, vê à Virgem Maria, à Mãe de Deus, a Sophia.,.. Este
descobrimento da importância do simbolismo religioso nas culturas
tradicionais, pode imaginar a importância que teve em minha formação como
historiador das religiões.
Quanto ao terceiro descobrimento, poderíamos caracterizá-lo como «o
descobrimento do homem neolítico». Pouco antes de minha partida tive a
sorte de passar algumas semanas na Índia central, com ocasião de... uma
espécie de caçada de crocodilos, entre os aborígenes, os santali, que são pré-
ários. Fiquei impressionado ao comprovar que a Índia tem ainda umas raízes
muito profundas que se afundam, não só na herança ária, ou dravídica, mas
também, no chão asiático, na cultura aborígine. Era aquela uma civilização
neolítica, apoiada na agricultura, quer dizer, na religião e na cultura que
acompanharam ao descobrimento da agricultura, concretamente, a visão do
mundo e da natureza, assim como o círculo ininterrupto da vida, da morte e
da ressurreição, ciclo específico da vegetação, mas que rege também a vida
humana e constitui, ao mesmo tempo, um modelo para a vida espiritual...
Deste modo cheguei a entender a importância da cultura popular romena e
balcânica. Igualmente à cultura da Índia, também trata-se de uma cultura
folclórica, apoiada no mistério da agricultura. Evidentemente, na Europa
oriental há umas expressões cristãs; por exemplo, supõe-se que o trigo nasceu
das gotas do sangue de Cristo. Todavia, todos estes símbolos, têm um fundo
muito arcaico, neolítico. Com efeito, ainda há trinta anos existia da China à
Portugal uma unidade de base, a unidade solidária da agricultura, que tinha
na agricultura seu respaldo seguro e que se apoiava, por conseguinte, no
legado do Neolítico. Esta unidade de cultura foi para mim uma revelação.
Descobri que aqui, mesmo na Europa, as raízes são mais profundas do que
nós acreditávamos, mais profundas que o mundo grego, ou romano, ou
inclusive mediterrâneo, mais profundas que o mundo do Próximo Oriente
antigo. E estas raízes nos revelam a unidade fundamental não só da Europa,
mas também de toda a ekumene que se estende de Portugal até a China, desde
a Escandinávia até o Ceilão.
—Quando se lêem, por exemplo, os primeiros capítulos de sua História das crenças
e das idéias religiosas, pode-se entrever a importância que para seu pensamento,
para sua obra, teve esta revelação, o encontro, mais à frente do homem hindu, com o
homem neolítico, o homem «primitivo». Poderia precisar mais, em que grau foi isso
importante?
—Também chama a atenção o fato de que nos dois casos —a visão do homem-planta e
a instituição da morte sagrada— seja o mais importante a relação com a morte, uma
relação determinada com a morte. Fica igualmente claro que estes dois grandes eixos
simbólicos podem dar-se também no mundo cristão: grão que deve morrer para
renascer, morte do cordeiro, pão e vinho como corpo e sangue da vítima sagrada. Sua
perspectiva do «homem neolítico» dá muito que pensar... Entretanto, como já disse,
este descobrimento não serve unicamente para esclarecer o problema do «homem
religioso», mas sim, além disso, permitiu, mediante um longo rodeio, recuperar o
mais próximo, o familiar, a tradição romena, por exemplo. Não fosse por tudo isto,
seria possível escrever esse texto que tanto eu gosto sobre o Brancusi? Brancusi,
artista romeno, homem moderno e pai de uma determinada modernidade, ao mesmo
tempo, pastor em Cárpatos. Seria-lhe possível compreender ao Brancusi da mesma
maneira, senão estivesse em contato, durante sua estadia na Índia, com a civilização
original?
—Possivelmente não, com efeito. Acaba de resumir muito bem o que penso
sobre este ponto. Ao captar a unidade profunda que existe entre a cultura
aborígine hindu, a cultura dos Balcãs e a cultura rural da Europa ocidental,
encontrava-me como em meu ambiente. Ao estudar certas técnicas e certos
mitos, encontrava-me tão a gosto na Europa como na Ásia. Nunca me senti
ante coisas «exóticas». Ante as tradições populares da Índia, via aparecer as
mesmas estruturas que nas tradições populares da Europa. Acredito que isto
me ajudou muito a entender que Brancusi não copiou as tradições da arte
popular romena. Pelo contrário, remontou-se até as mesmas fontes da
inspiração dos camponeses romenos, ou gregos; e redescobriu essa visão
extraordinária de um homem para quem a pedra existe, existe de um modo,
digamos, «hierofânico». Recuperou, de dentro, o universo dos valores do
homem arcaico. Sim, a Índia ajudou-me muito a compreender a importância,
a autoctonia; e, ao mesmo tempo, a universalidade da criação de Brancusi.
Quem aprofunda de verdade até as fontes, até as raízes que se afundam no
Neolítico, será muito romeno, muito francês e, ao mesmo tempo, um homem
universal. Sempre fascinou-me esta questão: como recuperar a unidade
fundamental, quando não do gênero humano, ao menos de uma determinada
civilização indivisa no passado da Europa? Brancusi conseguiu recuperá-la...
Já vê, com este descobrimento e com este interrogante se fecha o círculo de
minha formação na Índia.
A ÍNDIA ETERNA
—Esse interesse cada dia mais vivo que sentem os ocidentais, ao que parece, pela
Índia, pelo ioga, não lhe parece muitas vezes um falso sucedâneo do absoluto?
—Já sei que nestes momentos não pensa em homens como Allan Watts, a quem
também conheceu...
—Sim, e eu diria que muito bem. Era um gênio da adivinhação pelo que se
refere à certas tradições orientais. E conhecia perfeitamente, de primeira mão,
sua própria religião. Já sabe que foi sacerdote episcopaliano (Igreja da
Inglaterra). Conhecia bem o cristianismo ocidental e o zen, também podia
entender outras muitas coisas. Eu o admirava muito. Além disso possuía um
dom muito raro: expressava-se em uma linguagem que não era pretensioso,
que não correspondia a uma vulgarização superficial e que, ao mesmo tempo,
resultava acessível. Acredito que Watts não abandonou de verdade o
sacerdócio, mas sim procurou outro caminho para comunicar ao homem
moderno o que os homens de outras épocas chamavam «Deus». Converteu-se
em um professor, em um verdadeiro guru para a geração dos hippies. Não
tive com ele amizade íntima, mas acredito que era honrado, e além disso
admirava muito sua potência de adivinhação. A partir de alguns elementos,
de alguns bons livros, era capaz de apresentar a essência de uma doutrina.
—O que pensava Watts, por sua parte, dos livros de Mircea Eliade?
—Lia-me e citava-me. Nunca me reprovou o não ser mais «pessoal» em meus
livros. Com efeito, entendeu perfeitamente que meu objetivo consistia,
unicamente, em fazer inteligível ao mundo moderno —mesmo o ocidental
que oriental, à Índia quão mesmo Tóquio, ou Paris— umas criações religiosas
e filosóficas pouco conhecidas, ou mal comentadas. Para mim, o
conhecimento dos valores religiosos tradicionais é o primeiro passo para uma
restauração religiosa. Enquanto que um homem como Watts, e outros como
ele, acreditavam —possivelmente com razão— que é possível dirigir-se às
massas com algo que se pareça com uma «mensagem» e fazer que despertem,
eu pensava que nós —produto de um mundo moderno — estávamos
«condenados» a receber toda revelação através da cultura. Teremos que
recuperar as fontes através das formas e das estruturas culturais. Estamos
«condenados» a aprender e a reviver à vida do espírito mediante os livros.
Na Europa moderna já não há ensino oral nem criatividade folclórica. Por
isso penso que o livro tem uma enorme importância, não só cultural, mas
também religiosa, espiritual.
—Isso quer dizer, que não é um desses professores que queimam os livros, ou que
afetam fazê-lo.
—Não, certamente!
—Esta conversação sobre a Índia acaba justamente com a palavra liberdade, que
acaba de pronunciar. Isto faz recordar-me uma nota de seu Diário, a de 26 de janeiro
de 1961, que me chamou a atenção: «Acredito que meu interesse pela filosofia e a
ascese hindu explica-se assim: a Índia esteve obcecada pela liberdade, a autonomia
absoluta. Mas não de uma maneira ingênua, caprichosa, a não ser tendo em conta os
inumeráveis condicionamentos do homem, estudando-os objetivamente,
experimentalmente (Ioga) e esforçando-se para achar o instrumento que permitisse
aboli-los ou transcendê-los. Ainda mais que o cristianismo, o espiritualismo hindu
tem o mérito de introduzir a liberdade no cosmos. O modo de ser de um jivanmukta
não está dado no cosmos; pelo contrário, em um mundo dominado pelas leis, a
liberdade absoluta é inimaginável. A Índia tem o mérito de ter acrescentado uma nova
dimensão ao universo: a da existência livre».
—Acredita acaso, que todo aquele que pretenda conhecer-se e aperfeiçoar-se deve
anotar seus sonhos?
—Não quero julgar. Mas, acredito que sempre resulta útil anotar, um sonho.
Lembro-me que depois de reler por acaso um caderno de meu Jornal em que
anotara um sonho dez anos atrás, entendi que este sonho anunciava algo com
toda precisão, e que aquilo se cumpriu. Acredito, portanto, que é coisa boa
anotar os sonhos, não só para verificar certas coisas, mas também e sem
dúvida para conhecer-se melhor.
—Acredito que nesses sonhos, que me lembro muito bem com freqüência,
temos a auto-revelação do próprio destino. É o destino que se revela, no
sentido de uma existência que se dirige para um fim preciso, uma empresa,
uma obra que é necessário realizar... Trata-se do destino profundo de cada
qual, e também dos obstáculos com que cada qual tropeçará. Trata-se de
decisões graves, irreversíveis, que é preciso tomar...
—Em dois dos sonhos recolhidos entre os fragmentos publicados em seu Diário, o
tema é a memória. Em um escolhera e esquecera uns objetos preciosos, sentiu a
ameaça de perder a memória e ajoelhava-se ante sua mulher, a única capaz de lhe
salvar... Citarei as palavras em que relata o outro: «Dois anciões que morrem cada
qual por seu lado sozinhos. Com eles desaparecia para sempre e sem deixar rastro,
sem testemunhas, uma história admirável (que eu conhecia). Terrível tristeza.
Desespero. Retirei a uma habitação contigüa e rezei. Dizia-me: se Deus não existir,
tudo terminou, tudo é absurdo».
—Ao evocar a herança européia perdida, desprezada em uma palavra, leva-nos a olhar
nossa cultura como uma mais das quais a Europa saqueou, quebrando, cuja memória
tratou de conservar em sua obra. Em seu Diário escreveu páginas estremecedoras
sobre este tema: vê nossos países ocupados por uns povos que nada sabem do que
foram nossas culturas, nossos livros.
EUROPA
RETORNO À BUCARESTE
—Entre seu retorno à Romênia e sua chegada à Paris, transcorreram quase quinze
anos. Hoje ocupar-nos-emos dessa etapa, rica em acontecimentos. Mas, acima de
tudo, por que abandonou à Índia ao cabo tão somente de três anos?
—No sorteio iria à artilharia anti-aérea, mas por causa de sua miopia destinaram-lhe
como intérprete de inglês nos escritórios... Sua tese publicou em 1936 sob o título: Le
ioga, essai sur les origines de la mystique indienne... Muito em breve converter-
se-ia em escritor célebre, ao mesmo tempo, que brilhante universitário.
A GLÓRIA SUPERADA
—Por onde começamos? Pela fama?
—Sim, «pela fama», pois, ensinou-me muitas coisas. Apresentei Maitreyi («A
noite bengalesa») em um concurso de novelas inéditas. Obtive o primeiro
prêmio. Era, ao mesmo tempo, um romance de amor e uma novela exótica; o
livro teve um enorme êxito inesperado que surpreendeu ao editor e a mim
mesmo. Fizeram-se numerosas reedições. Aos vinte e seis anos já era
«célebre»; os jornais falavam de mim, as pessoas reconheciam-me na rua, etc.
Foi uma experiência muito importante, pois conheci muito jovem o que quer
dizer «ser famoso», «ser admirado». Trata-se de algo agradável, mas nada
extraordinário. Deste modo deixei de sentir aquela tentação para o resto de
minha vida. Acredito, entretanto, que se trata de uma tentação natural em
todos os artistas, em todos os escritores. Todo autor espera obter algum dia
um grande êxito, ser conhecido e admirado pela massa de seus leitores. Eu o
tive muito jovem e sentia-me feliz daquele êxito. Aquilo me ajudou a escrever
novelas que não tinham por fim alcançar o êxito.
Em 1934 publiquei Le Retour du Paradis, primeiro volume de uma
trilogia que compreendia além: Les Houligans e Vita nova. Queria ser o
representante de minha geração. Aquele primeiro volume teve um certo
êxito. Pensava que aqueles jovens eram verdadeiros huliganes, que
preparavam uma revolução espiritual; cultural, se não política, ao menos real,
concreta. Os personagens eram, por conseguinte, jovens escritores,
professores, atores. Gente que além disso falava muito. Em resumo, um
quadro de intelectuais e pseudo-intelectuais que, no meu entender, parece-se
um pouco à Contraponto de Huxley. Era um livro muito difícil. Elogiado pela
crítica, mas não teve o mesmo êxito de público que Maitreyi.
Naquele mesmo ano publiquei uma novela quase joyciana, La lumiere
qui s'éteint.
- Em certo sentido, sim... Mas devo dizer que o que mais me interessava era
descrever, graças ao «monólogo interior», o que ocorre na consciência de um
homem que perde a vista durante alguns meses. Precisamente, nesse
«monólogo», no que pensa, vê, imagina em meio dessas trevas, tratei de jogar
com a linguagem e isso com a maior liberdade. Daí que o livro resulte quase
incompreensível. Entretanto, o argumento é muito singelo e muito belo. Um
bibliotecário trabalha de noite, na biblioteca da cidade, para corrigir as provas
de um texto grego sobre astronomia, conforme acredito, enfim, um texto
misterioso. Em um determinado momento nota odor de fumaça e inquieta-se,
vê correr alguns ratos; quando na sala penetra a fumaça; abre a janela, a porta
e na sala de leitura, sobre uma grande mesa, vê uma jovem, completamente,
nua e, junto dela, o professor de línguas eslavas, que tinha fama de ser um
personagem diabólico, um mago. À vista do fogo, o professor desaparece. O
bibliotecário agarra a jovem, que se desvaneceu e salva-a. Mas, enquanto
desce a escada de mármore, do teto desprende-se um adorno que cai sobre
ele e deixa-lhe cego durante seis meses. Enquanto permanece no hospital
tratará de entender o ocorrido, porém, tudo parece-lhe absurdo. À meia-
noite, na biblioteca de uma cidade universitária, um professor vestido e uma
mulher nua, uma mulher a qual conhece bem, pois, trata-se da ajudante do
professor de línguas eslavas... O bibliotecário ouça dizer que o professor se
dispunha a realizar um rito tântrico e que esse rito é, precisamente, a causa
do incêndio. Logo recupera a visão, em sua alegria por ver de novo —ver,
não ler— empreende uma viagem. Não recordo exatamente o final, pois,
como lhe disse, nunca consegui reler esta novela. Lembro-me que em um
determinado momento começa o bibliotecário a falar em latim, mas a pessoas
que não são, como ele, investigadores e, portanto, não lhe podem entender.
Possivelmente, uma lembrança de Stephen Dedalus? Tudo torna-se
misterioso, enigmático... Em qualquer caso, a novela, ilegível, não teve
nenhum êxito. Depois deste terceiro livro senti-me livre. Não esqueceram
meu nome, mas, conheciam-me como autor de A noite bengalesa. Sentia-me
dispensado da obrigação de agradar.
—Basta ler seu Diário, com data 21 de abril de 1963, para compreender que se trata
de uma história muito pessoal. Não lhe farei perguntas sobre essa anotação, por razões
evidentes. Que o curioso leitor se ocupe de ir a essa passagem para ver e entrever por
si mesmo. Quanto a mim, sinto-me feliz por ver surgir estas imagens fascinantes.
Não poderiam dar lugar a uma nova criação fantástica, uma das quais agora se dispõe
a escrever? Mas, voltemos para sua experiência da fama: sente-se igualmente
insensível à lembrança dos homens? É-lhe indiferente a idéia de deixar ou não uma
obra atrás de si?
—De vez em quando digo que me lerão em romeno, que o farão meus
compatriotas, mas, não por meus méritos de escritor, mas sim porque, em
definitivo, fui professor em Chicago, publiquei em Paris, e são poucos quão
romenos tiveram estas oportunidades. Também ficarão, certamente, o grande
Ionesco e Cioran...
—Entretanto, agora você é um homem ilustre... Como reage ante o desejo que, sem
dúvida, sentirão muitos de seus leitores em lhe conhecer? Como acerta para viver com
essa fama, ou essa notoriedade que adquiriu?
—Felizmente, ignoro todas essas coisas, pois, vivo oito meses do ano em
Chicago e alguns meses em Paris. Geralmente rejeito convites, conferências,
inclusive, velórios e reuniões sociais. Ignoro, portanto, essa carga pesadíssima
da celebridade, ou notoriedade. Admiro quem tem a força necessária para
suportar as conseqüências dessa glória: televisão, entrevistas, jornalistas.
Tudo isso, resultar-me-ia muito penoso. Não se trata da perda de tempo —
falar uma hora com um jornalista, ou assistir à inauguração de uma exposição
não é tão grave—, a não ser o compromisso que se adquire, o encadeamento e
a posição em marcha de uma engrenagem. Além disso, ver-me-ia obrigado a
dizer e repetir na rádio, ou na televisão coisas que não gosto em modo algum
repetir. Não tenho essa vocação, entretanto, admiro quem é verdadeiramente
capaz de lutar também nessa frente.
—Com efeito, acreditava então, e acredito agora, que não há contradição entre
a investigação científica e a atividade cultural. Comecei a preparar
«Zalmoxis» pelo ano 1936, mas até 1938 não apareceu o primeiro número,
que tinha quase trezentas páginas. Eu queria fomentar o estudo científico das
religiões na Romênia. Nos meios acadêmicos, esta disciplina não tinha ainda
existência autônoma. Por exemplo, como já lhe disse, eu ensinava história das
religiões no marco da cadeira de história da metafísica. Um de meus colegas
falava de mitos e lendas em uma cadeira de etnologia e folclore. Então, para
convencer aos ambientes universitários de que se tratava de uma disciplina
muito importante, a qual era possível fazer contribuições significativas; e
como na Romênia contávamos com alguns investigadores interessados pela
história das religiões gregas, por exemplo, decidi publicar «Zalmoxis». Dirigi
a todos os investigadores, muito numerosos, que conhecia no estrangeiro.
Uma revista internacional, por conseguinte, publicada em francês, inglês e
alemão com a colaboração de vários investigadores franceses. Apareceram
três volumes. Esta foi, possivelmente, a primeira contribuição em nível,
digamos, europeu da Romênia à história das religiões.
—Organizamos este grupo, «Criterion», com pessoas que não são conhecidas
no estrangeiro, salvo Cioran; acredito que também assistia Ionesco. Dávamos
conferências. Era uma espécie de simpósio no qual participavam cinco
conferencistas. Abordávamos problemas muito importantes para aquela
época —nos anos 1933, 1934 e 1935— na Romênia: não só Gandhi, Gide,
Chaplin, mas também, Lenin, Freud. Como vê, temas muito controvertidos. E
além disso, a arte moderna, a música contemporânea, o jazz inclusive...
Convidávamos representantes de toda classe de movimentos. Para Lenin
houve cinco conferencistas, como de costume; o presidente era um célebre
professor universitário; um dos conferencistas era Lucretiu Patrascanu
secretário, por então, do partido comunista; outro era o engenheiro Belu
Silber, ideólogo comunista, mas, havia também um representante do Guarda
de Ferro, Poliproniade, e um representante, diríamos, da política centro-
liberal, que era conhecido deste modo como economista, filósofo e teólogo,
Mircea Vulcanescu. Estabeleceu-se um debate contraditório, acredito que este
tipo de diálogo era muito importante. Quando escrevi Le Retour du Paradis,
disse-me que era precisamente um pouco parecido ao paraíso o que
estávamos a ponto de perder, pois, nos anos 1933-1934 ainda se podia falar.
Mais tarde não houve possivelmente censura em sentido estrito, mas foi
necessário escolher temas mais culturais. «Criterion» teve uma enorme
repercussão em Bucareste. Foi ali onde pela primeira vez se falou, em 1933,
do existencialismo, de Kierkegaard e de Heidegger. Sentíamo-nos
comprometidos numa campanha contra os fósseis. Queríamos recordar à
nosso auditório que existiam Picasso e Freud. Bem entendido, que Freud era
conhecido já naquele ambiente, mas ainda ficava muito por dizer dele, quão
mesmo de Picasso. Era preciso discutir a respeito de Heidegger e Jaspers.
Falar de Schönberg... Sentíamos que precisávamos integrar a cultura na
cidade. Todos estávamos convencidos de que não era suficiente falar na
universidade. Teríamos que baixar de verdade à arena. Pensávamos que,
como na Espanha, graças ao Unamuno e Ortega, o periódico converteu-se em
instrumento de trabalho para o intelectual. Não tínhamos o complexo de
inferioridade que afligia à nossos professores, que se negavam a publicar
artigos em um jornal e só aceitavam fazê-lo em uma revista acadêmica. Nós
queríamos nos dirigir a um público mais amplo e animar a cultura romena
que, sem isso, corria perigo de sumir-se no provincialismo. Não era eu o
único que pensava assim, evidentemente, tampouco era o adiantado daquele
grupo. Todos sentiam a necessidade daquilo e dávamo-nos conta de que
éramos os únicos capazes de fazê-lo, pois, éramos jovens e não tínhamos
medo às possíveis conseqüências ingratas (quanto à «carreira» universitária,
por exemplo).
LONDRES, LISBOA
—Em 1940 sai da Romênia e marcha à Londres como agregado cultural...
A FORÇA DO ESPÍRITO
—Este período que passou fora da Romênia, mas na Europa, em Londres, em Lisboa e
finalmente em Paris, é um período trágico para a Romênia e para uma grande parte
do mundo: a ascensão do fascismo, os anos negros da guerra, a queda do nazismo e,
na Romênia, a instauração de um regime comunista. Como viveu esses
acontecimentos dos quais foi testemunha na realidade, ou através do pensamento?
—Para mim, a vitória dos aliados era uma evidência. Ao mesmo tempo,
quando a Rússia entrou em guerra, soube que aquela vitória seria também da
Rússia. E sabia também, o que isso significaria para os povos da Europa
oriental. Eu saíra da Romênia na primavera de 1940 e, por conseguinte, só
tinha informações de segunda mão do que ali estava ocorrendo. Todavia,
temia uma ocupação russa, sequer passageira. Sempre inspira medo um
vizinho gigante. Os gigantes são para admirar de longe. Tinha medo.
Entretanto, era preciso escolher entre a esperança e o desespero; de minha
parte sempre estou contra um desespero dessa natureza, política e histórica.
Então escolhi a esperança. Disse-me que aquilo era uma prova mais. Nós
conhecemos muito bem as provas da história, na Romênia, igualmente, na
Iogoslávia, ou na Bulgária, porque estivemos situados entre os impérios. Mas,
seria inútil resumir a história universal, que todos conhecem. Somos algo
assim como os judeus, que se achavam situados entre os grandes impérios
militares de Assíria, Egito, Pérsia e o Império Romano. Os pequenos
terminam sempre por ser esmagados. Então, escolhi o modelo dos profetas.
Politicamente, não havia solução alguma, ao menos no momento.
Possivelmente, houvesse mais tarde. Para mim e para outros emigrados
romenos, o importante era achar o modo de salvar nossa herança cultural, ver
a maneira de seguir criando em meio àquela crise histórica. O povo romeno
sobreviverá, é óbvio, mas, o que se pode fazer do estrangeiro para lhe ajudar
a sobreviver? Sempre acreditei que há uma possibilidade de sobreviver
através da cultura. A cultura não é uma «superestrutura», como acreditam os
marxistas, mas sim, é a condição específica do homem. Não é possível ser
homem sem ser, ao mesmo tempo, um ser cultural. Então disse: é necessário
continuar, terei que proteger àqueles valores romenos que correm o risco de
ser afogados no país; acima de tudo a liberdade de investigação, por
exemplo, o estudo científico da religião, da história, da cultura. Quando
cheguei à Paris, em 1945, fui para prosseguir minhas investigações, para pôr
em dia alguns livros em que tinha grande interesse, sobretudo o Tratado de
história das religiões e O mito do eterno retorno.
Perguntou-me como vivi aquele período trágico. Disse-me que se
tratava de uma grande crise, mas que o povo romeno já tinha conhecido
outras ao longo de sua história, três ou quatro crises por século. Os que
ficaram ali fariam o que o destino lhes permitisse fazer. Mas aqui, no
estrangeiro, não teria que perder tempo em nostalgias políticas, com a
esperança de uma intervenção iminente da América e estas coisas. Estávamos
em 1946, 1947, 1948: naqueles anos eu estava realmente convencido de que
uma resistência não pode ser, verdadeiramente, importante senão se fizer
algo. Porém, a única coisa que era possível fazer era a cultura. Eu mesmo,
Cioran e muitos outros escolhemos trabalhar, cada qual conforme a sua
vocação. O qual não quer dizer que nos desentendêssemos do país. Ao
contrário, aquela era a única maneira de contribuir alguma ajuda. Certo que
sempre é possível assinar um manifesto, protestar na imprensa. Mas isso
poucas vezes é o essencial. Aqui, em Paris, organizamos um círculo literário e
cultural, a Estrela da manhã (Luceafarul), adotando o título de um poema
célebre de M. Eminescu, um centro de investigações romenas. Já vê:
tentávamos manter a cultura da Romênia livre e, sobretudo, publicar textos
que não fosse possível dar a conhecer na Romênia. Literatura em primeiro
lugar, mas também, estudos históricos e filosóficos.
—Em 25 de agosto de 1947 escreve em seu Diário: «Alguns dizem-me que é preciso
solidarizar-se com o momento histórico. Hoje estamos dominados pelo problema
social, mais exatamente pelo problema social tal como o expõem os marxistas.
Teremos que responder, por conseguinte, através da própria obra, de uma ou de outra
maneira, ao momento histórico em que vivemos. Certo, mas eu trataria de responder
como o fizeram Buda e Sócrates: superando seu momento histórico e criando outros,
ou preparando-os». Estas palavras estão escritas em 1947.
—Em seu Diário adverte-se que levava muito mal a exigência tantas vezes exposta ao
intelectual de que consuma suas energias na agitação política.
—Sim, quando conheço antecipadamente que essa agitação não pode dar
nenhum resultado. Se alguém me dissesse: manifestará na rua todos os dias,
publicará artigos durante três meses, assinará todos os manifestos, e depois
disso não digo que a Romênia será livre, mas sim, ao menos, os escritores
romenos serão livres para publicar seus poemas e suas novelas, faria-o, faria
tudo isso. Mas sei que, de momento, semelhante atividade não pode ter
conseqüências imediatas. Terá que administrar prudentemente as próprias
energias e atacar ali onde cabe a esperança de obter alguma repercussão, um
eco ao menos. Isso é o que alguns exilados romenos fazem nesta primavera, a
propósito do movimento arrojado na Romênia pelo Paul Goma. Organizaram
uma campanha de imprensa que obteve resultados positivos.
—Em seu caso imaginava que se trataria de uma certa indiferença para a coisa
política. Mas, agora caio em conta de que se trata melhor de lucidez e de uma
negativa à ação ilusória e à distração. Não se pode falar de indiferença.
—Sobre as relações do intelectual com a política, em seu Diário escreve esta nota em
16 de fevereiro de 1946: «Reunião em minha habitação do hotel com uma quinzena de
intelectuais e estudantes romenos. Convidei-os a discutir o problema seguinte:
Estamos ou não de acordo em que hoje, e sobre tudo amanhã, o 'intelectual', pelo
fato de ter acesso aos conceitos, será considerado cada vez mais como o inimigo
número um, e que a história lhe confia (como tantas vezes no passado) uma missão
política? Nesta guerra de religiões em que nos achamos comprometidos, ao
adversário só lhe preocupam as "minorias", que, por outra parte, são muito fáceis de
suprimir com ajuda de uma polícia bem organizada. Em conseqüência, "fazer
cultura" é no momento a única política eficaz que têm a seu alcance os exilados.
Inverteram-se as posições tradicionais; já não são os políticos os que estão no centro
concreto da história, a não ser os sábios, as 'minorias intelectuais'. (Prolongada
discussão que será preciso resumir algum dia)».
—Sim, acredito que essa passagem resume perfeitamente o que eu queria
dizer. Penso, com efeito, que a presença do intelectual, no verdadeiro sentido
da palavra —os grandes poetas, os grandes novelistas, os grandes filósofos—
acredito que essa presença triunfa enormemente a qualquer regime policial,
ou ditatorial de direita, ou de esquerda. Sei muito bem, porque li muito
atentamente quanto possa ler-se a respeito dele o que Thomas Mann
representava para a Gestapo, a polícia alemã. Sei o que um escritor como
Soljenitsin representa, ou o que representa um poeta romeno; sua mesma
presença física saca de gonzo aos ditadores, e por isso digo que é preciso
prosseguir a criação cultural. Um grande matemático afirmava que se um dia
os cinco matemáticos mais importantes tomassem o mesmo avião para ir a
um congresso e esse avião explodisse, no dia seguinte ninguém seria capaz
de entender a teoria de Einstein... Possivelmente, seja um pouco exagerado,
mas esses «cinco» ou «seis» são muito importantes.
ENCONTROS
—Durante aqueles anos conheceu homens eminentes, Ortega e Gasset e Eugenio
d'Ors, por exemplo.
—E d'Ors?
—Em 3 de outubro de 1949 anota em seu Diário: «Eugenio d'Ors envia-me um novo
artigo sobre O mito do eterno retorno, que leva por título Trata-se de um livro
muito importante. Mais que qualquer outro crítico cujas resenhas lera eu, Eugenio
d'Ors sente-se entusiasmado pelo fato de que tenha posto de relevo a estrutura
platônica das antologias arcaicas e tradições (''populares")». É certo que acrescenta:
«Espero, entretanto, que se entenda também o outro aspecto de minha interpretação,
relativo à abolição ritual do tempo e, em conseqüência, a necessidade da "repetição".
As conversações que a respeito deste tema mantive até agora foram decepcionantes...»
Ademais, também agradara d'Ors o Tratado...
—Sim, foi minha última obra que pôde ler. Morreu no ano seguinte, conforme
acredito.
—Estas Conversações serão, entre outras coisas, uma incitação a reler uns autores
tão pouco lidos e que são três grandes escritores: Ortega, d'Ors, Unamuno...
—Em Londres entrou em contato com um romeno que foi muito conhecido, logo um
pouco esquecido e ao que hoje se volta a editar, Matila Ghyka...
PARIS, 1945
Paris
—Em 1945 decide não retornar à Romênia e viver em Paris. Por que esta eleição?
—Sei que Georges Dumézil lhe admirava muito por realizar um trabalho tão
documentado em condições tão pouco favoráveis.
—Sim, estranhava que fosse possível pôr a ponto, quando não escrever, um
livro como o Tratado em uma habitação de hotel. Mas, era assim. É óbvio,
freqüentava as bibliotecas, embora passava muitas horas em minha mesa de
trabalho, sobretudo de noite, porque de dia soavam por toda parte os ruídos
da vizinhança.
—Acredito que seu trabalho científico se via turbado por um demônio, o demônio da
leitura —a de Balzac— e da obra literária.
—Sim, Balzac gostara sempre, mas de repente, por me achar em Paris, senti-
me conquistado de verdade. Inundei-me em Balzac. Até comecei a escrever
uma vida de Balzac em romeno, que pensava publicar na Romênia por
ocasião do centenário de sua morte. Perdi muito tempo naquela aventura,
mas não o lamento. Como pode ver, tenho sempre Balzac em minha estante,
muito à mão.
—Mais tarde, em 1949. Mas antes escrevi algumas novelas. Sentia de vez em
quando a necessidade de voltar às minhas fontes, à minha terra natal. No
exílio, a terra natal é a língua, o sonho. Então, punha-me a escrever novelas.
—Em suas palavras de hoje não se transluz o despojo que sofreu então. Com efeito,
não é unicamente que vivesse em condições muito ingratas, mas sim produzindo uma
ruptura com seu passado. Entretanto, ao reler seu Diário, tem-se a impressão de que
aquela perda e aquela ruptura pareciam-lhe cheias de sentido. Não seria aquilo, em
seu caso, como a experiência de uma morte iniciática e de um renascer?
—Efetivamente, senti aquela perda. Mais tarde soube que uma grande parte
dos manuscritos e da correspondência se perdeu. Logo o aceitei. Reconciliei-
me com aquela perda. Comecei de novo e continuei.
— Em Paris de 1945 não estabeleceu contato com os existencialistas, a não ser com
Bataille, Breton, Véra DaumaI, Teilhard de Chardin e, é óbvio, os orientalistas e os
indianistas. Em seu Diário não aparece menção alguma de Sartre, de Camus, de
Simone de Beauvoir, de Merleau-Ponty...
—Lia-os e acredito contei muitas coisas, mas quando preparei esta seleção —
uma terceira, possivelmente uma quinta parte do manuscrito original— não
retive as passagens em que, por exemplo, falo da célebre conferência de
Sartre «O existencialismo é um humanismo»; assisti-a, mas são coisas que
formam parte até certo ponto de nossa atmosfera cultural... Preferi outros
fragmentos. Por outro lado, minhas relações com Bataille, Aimé Patri,
possivelmente inclusive com Breton, alguns orientalistas, Filliozat, Paul Mus
e Renou, eram muito mais contínuas que com os filósofos existencialistas.
Bataille mostrou vivos desejos de conhecer-me porque lhe interessara muito
meu livro de 1936 sobre o ioga. Descobri nele um homem muito interessado
pela história das religiões. Tratava de construir uma história do espírito, e a
história das religiões formava parte daquela obra enorme. Estava fascinado, e
interessava-me muito conhecer a causa, pelo fenômeno erótico. Discutíamos
longamente sobre o tantrismo. Pediu-me que publicasse um livro sobre o
tema em sua coleção das Editions de Minuit. Não tive tempo de escrevê-lo.
—Ao Leiris, não. Mas conheci muito bem ao Caillois. Utilizei muito seus
livros e os citei, quão mesmo seus artigos. O que nele me atraía era seu
universalismo, seu enciclopedismo. É um homem do Renascimento que se
interessa tanto pelo romantismo alemão, como pelos mitos da Amazônia,
pela novela policial, ou pela arte poética.
—E Breton?
—Em seu Diário se fala de outros encontros, de Teilhard de Chardin, por exemplo.
—Vi-lhe duas ou três vezes, em sua cela da rue Monsieur, na casa dos padres
jesuítas. Naquela época era totalmente desconhecido como filósofo. Seus
livros não podiam ser publicados, como sabe. Só publicava artigos
científicos. Tivemos longas conversações; eu sentia-me fascinado por sua
teoria da evolução e do ponto Ômega, que até me parecia estar em
contradição com a teologia católica: levar Cristo até a última galáxia parecia-
me mais ao tom com o budismo mahayanista que com o cristianismo. Mas
era um homem que me fascinava, que me interessava enormemente. Mais
tarde senti-me feliz ao ler seus livros. Então compreendi até que ponto era
cristão seu pensamento, sua originalidade e sua coragem. Teilhard reage
contra certas tendências maniqueístas que se infiltraram no cristianismo
ocidental. Mostra o valor religioso da matéria e da vida. Tudo isto me recorda
o «cristianismo cósmico» dos camponeses da Europa oriental, que
consideram «santo» o mundo, pois foi santificado pela encarnação, a morte e
a ressurreição de Jesus Cristo.
SER ROMENO
—É óbvio, mantinha contato com os romenos residentes em Paris. Em seu Diário fala
da «diáspora romena». Mas acredito advertir uma contradição em seus sentimentos
sobre o exílio. Quer e ao mesmo tempo não quer ser um exilado, «levar uma vida de
estudante pobre, mas não necessariamente de emigrado», diz. Toma a decisão de
escrever em francês, e diz também: «Não imitar ao Ovidio, a não ser a Dante». E
inclusive encontra na emigração algo especificamente romeno; parece-lhe que
«prolonga a transumância dos pastores romenos ». Diz também que este «mito da
diáspora romena dá um sentido a minha existência de exilado», e a seguir: «Para
mim, o exílio formava parte do destino romeno». Poderia esclarecer-nos quais eram
seus sentimentos naquela época?
—Para dizer com uma expressão de Nietzsche, alguma vez foi um homem de
ressentimentos?
—Ficávamos de que mantinha contatos freqüentes com seus amigos romenos, Ionesco,
Cioran e também Voronca, Lupasco.
—Lupasco recorda ao Bachelard, do que agora não falamos, mas ao que também
conheceu.
—Poderíamos dizer que recuperou não as formas, a não ser as forças que nutrem essas
mesmas formas?
—Em seu Diário lamenta que o acanhamento lhe impedisse de estabelecer contato
com o Brancusi. Também nós o lamentamos. Mas ao menos temos um encontro no
terreno literário, poderíamos dizer, entre o Brancusi e Mircea Eliade. Em um de seus
textos, admirável e pouco conhecido, capta, como acaba de dizer, as raízes profundas
da inspiração de Brancusi, mas além disso, faz uma leitura absolutamente pessoal e
nutrida de quanto aprendeu na lenta tarefa de decifrar os mitos primitivos. Faz uma
leitura das imagens centrais de Brancusi —a ascensão, a árvore, o pássaro— e chega
a esta conclusão: Brancusi fez voar a matéria como o alquimista. E o obteve em
virtude do casal dos contrários, pois o que dá a imagem e o signo da maior ligeireza é
precisamente o que, por outro lado, constitui o signo da opacidade, da queda, da
pesantez: a pedra. Este muito belo texto ocupa um lugar eminente em sua obra.
—Sei que viajou muito, mas pressinto que não é viajante por vocação.
—É possível que, para mim, as viagens mais importantes tenham sido as que
fiz a pé, entre os doze e os dezenove anos, no verão, durante semanas e
semanas, vivendo nas aldeias ou nos monastérios, empurrado pelo desejo de
deixar a planície de Bucareste, de conhecer os Cárpatos, o Danúbio, as aldeias
de pescadores do delta, o mar Negro... Conheço muito bem meu país.
—A última página dos Fragmentos de um jornal está dedicada às viagens. Ali diz:
«A fascinação da viagem não depende unicamente dos espaços, das formas e as cores
—os lugares aos que vamos ou percorremos—, mas também dos distintos "tempos"
pessoais que reatualizamos. Quanto mais avanço na vida, mais tenho a impressão de
que os viajantes têm lugar, concomitantemente, no tempo e no espaço».
—Acredito que estamos tocando coisas que têm uma grande importância em sua vida:
nada se perdeu; nunca se deixou morder pelo ressentimento.
—Sim, é certo.
—Tem escrito muito pouco para o teatro —uma peça sobre o Brancusi, A coluna
infinita, e uma Ifigenia moderna...— A julgar por algumas passagens de O bosque
proibido e de seu Diário (sobre o Artaud), entretanto, prestou uma atenção especial
à representação do tempo no teatro: representação de um tempo imaginarío —
mítico— na duração real de um espetáculo.
Chicago
—Faz já quase vinte anos que ensina na Universidade de Chicago. Por que Chicago?
—Tem a sensação de estar na origem de uma «escola» de história das religiões, de uma
corrente de interpretação e de trabalho estendida pelos Estados Unidos?
—Não poderia ocorrer que o historiador das religiões, ao que se acreditaria muito
afastado dos problemas atuais, encontrasse-se mais cedo ou mais tarde na mesma
situação de seus colegas geógrafos ou físicos, posto que a universidade americana,
como sabe melhor que muitos, viu-se sacudida por uma crise de consciência que a
levou a perguntar-se se se pode colaborar no armamento nuclear ou no bombardeio
dos diques do Vietnam...? Porque poderia pensar-se que em uma «guerra psicológica»
não deixaria de ser útil a fabricação de «bombas messiânicas». Aí está o uso que fazem
da psicanálise os homens da publicidade. Caberia imaginar que os homens de guerra
também podem utilizar em um momento dado os mitos religiosos.
—E a cidade?
—Sim, não posso viver em uma casa ou em uma habitação que eu não goste.
Em Londres, em Oxford passei mal neste sentido. Não posso viver em
qualquer lugar. Faz falta que algo me agrade, atraia-me, que me faça sentir
prazer. Procurei uma casa em que pudesse viver a meu modo.
Eu não gosto do «espaço americano». Eu gosto do campus e algumas
coisas de Chicago, como o poder enorme do centro. Há outras cidades que
me resultam mais agradáveis, como São Francisco, Boston ou uma parte de
Nova Iorque e de Washington. Eu gosto de algumas paragens como Santa
Bárbara, a baía de São Francisco. Mas não é aquele um país como a Itália,
como a França, em que a paisagem é de uma imensa beleza, onde há história
e variedade. Chicago acha-se em uma planície estendida ao longo de mil
quilômetros; de vez em quando se vêem cidades e esses bairros do grande
subúrbio aos quais se dá o nome de «paraísos artificiais», porque são lugares
para retirados, que vivem em formosas casas e chalés, mas tudo, com efeito,
muito artificial. Inclusive nas mais belas cidades americanas há bairros de
uma fealdade exasperante... Não é que mantenha uma atitude negativa ante
este espaço americano que eu não gosto, ou ante o estilo de vida americano,
alguns de cujos aspectos me parecem interessantes. O que eu gosto da vida
americana, por exemplo, é a importância que se atribui à esposa, e não só do
ponto de vista social, mas também cultural e espiritual. Os convites incluem
sempre à esposa. Quando me pediu que ficasse na América, o primeiro que me
perguntaram foi se a idéia agradava à minha mulher. Esta atenção para a
esposa, para a família, eu gosto. Acusa-se com razão aos americanos de
muitas coisas, mas há outras admiráveis das quais se fala muito pouco, por
exemplo, sua grande tolerância religiosa e espiritual.
PROFESSOR OU GURU?
—Seu lugar de trabalho é, em definitivo, América. Eu gostaria de saber que classe de
professor é.
—Consegue preservar sua vida pessoal, sua vida de escritor e sua vida de
investigador?
—Sim, porque o curso prevê uma interrupção das aulas e um «período de
leitura» para o estudante. Além disso, durante o segundo trimestre de
inverno dou unicamente um seminário. Então posso me ocupar de seus
próprios trabalhos. Mas como sabe, quando me dou conta de que posso
ajudar alguém, renuncio de boa vontade a meu trabalho, ou dedico ao
trabalho algo mais de tempo de noite ou pela manhã. Faço um esforço. Penso
que isto é importante. Se vir que alguém escuta, mas não põe muito interesse,
proponho-lhe a leitura de alguns livros, meus ou de outros autores, é igual.
JOVENS AMERICANOS
—Como vê e em que situação lhe parece que se encontra essa juventude americana a
que conhece tão de perto e para a qual a religião não é muitas vezes uma simples
matéria de estudo?
—Outro dia me disse que a ruptura com o monoteísmo e com o ateísmo, que é a outra
cara da moeda, realizava-se nesta juventude por dois caminhos, um o da «religião
natural», a «religião cósmica», e o outro, o das «religiões orientais».
—A imprensa sente prazer em falar de seitas e cismas. Ontem, Manson e Moon. Hoje,
na França, a questão dos integralistas. Eu gostaria de saber o que pensa desta
«atualidade religiosa» e também do «movimento hippy», que conheceu muito de
perto.
—Pelo que diz respeito à Igreja católica, é evidente que não se trata só de uma
crise de autoridade, mas também, de uma crise das velhas estruturas,
litúrgicas e teológicas. Não acredito que tenha chegado o fim da Igreja, a não
ser quiçá o de uma certa Igreja cristã. Acredito que será uma crise criadora e
que depois de provas e controvérsias aparecerão algumas coisas mais
interessantes, mais viva, mais significativas. Mas não é possível antecipar
nada.
Quanto às seitas, como sempre ocorre, estes movimentos estão em
condições excepcionais para revelar algo novo e positivo. Mas, no meu modo
de ver, o mais importante de tudo é o fenômeno hippy, pois nos permitiu ter a
prova de que uma geração jovem, descendente de dez gerações cristãs,
protestantes ou católicas, descobriu a dimensão religiosa da vida cósmica, da
nudez e da sexualidade. Protesto contra quem considera que a tendência à
sexualidade e à orgia dos hippies forma parte do movimento de liberação
sexual que estende no mundo inteiro. Em seu caso trata-se, sobretudo, do que
poderíamos chamar a «nudez paradisíaca» e da união sexual como rito.
Descobriram o sentido profundo, religioso, da vida, depois desta experiência,
liberaram-se de toda classe de superstições religiosas, filosóficas, sociológicas.
Agora são livres. Redescobriram a dimensão da sacralidade cósmica,
experiência anulada desde fazia muito tempo, dos tempos do Antigo
Testamento. Recordo com quanta indignação e com quanta dor se
pronunciavam os profetas contra o culto de Baal e de Belit, quando o certo é
que era aquela uma religião de estrutura cósmica que possuía uma imensa
grandeza. Era a manifestação da sacralidade do mundo, através de uma
deusa através da hierogamia, através da orgia. Aquelas experiências
religiosas foram desvalorizadas pelo monoteísmo mosaico, sobretudo pelos
profetas. Depois de Moisés e os profetas já não tinha sentido algum retornar a
uma religiosidade de tipo cósmico. Pois bem, na América assistimos ao
redescobrimento de uma experiência religiosa que já acreditávamos
completamente periclitante em seu aspecto coletivo, «religioso», apesar
inclusive de que mesmos os hippies não a chamavam assim. Trataram de
recuperar, com toda a força que dá o desespero, a sacralidade da vida total.
Foi uma reação contra a falta de sentido da vida urbana, contra esta
desacralização do mundo de que adoece a cidade americana. Não podiam
entender que uma Igreja estabelecida tivesse algum valor religioso; para eles
representava o establishment. Mas fizeram este descobrimento e se salvaram.
Descobriram as fontes sagradas da vida, a importância religiosa da vida.
—O que pressente para o futuro pelo que se refere à questão religiosa? Sente-se perto
de Malraux, que resumia assim seu pensamento: «Haverá um século XXI religioso ou
não o haverá absolutamente»?
HISTÓRIA E HERMENÊUTICA
—«...Estes trinta anos, ou mais, que passei entre os deuses e as deusas exóticos,
bárbaros, irredutíveis; nutrindo-me de mitos, obcecado pelos símbolos, arrulhado e
enfeitiçado por tantas imagens que até mim chegavam desde aqueles mundos
inundados, parecem-me hoje como as etapas de uma longa iniciação. A cada uma
dessas figuras divinas, a cada um desses símbolos, ou mitos vai unido um perigo que
confrontei ou superei. Quantas vezes estive a ponto de "me perder", de extraviar-me
naquele labirinto em que corria o perigo de ser morto, esterilizado, "emasculado" (por
uma daquelas terríveis deusas mães, possivelmente). Uma série infinita de aventuras
intelectuais, e digo 'aventuras' em seu sentido primário de risco existencial. Não
foram unicamente os 'conhecimentos' lenta e tranqüilamente adquiridos nos livros, a
não ser ainda mais os encontros, as tensões e as tentações. Agora dou-me conta
perfeita de todos os perigos que esquivei durante aquela longa 'busca', e acima de
tudo do perigo que significava o esquecimento de que eu propusera um fim, que me
dirigia para algo, que aspirava a chegar a um 'centro'».
Esta confidência corresponde aos 10 de novembro de 1959, em seu Diário.
Tudo fica um tanto velado, enigmático. Poderia falar hoje com maior claridade?
—O descida aos infernos de que falam algumas religiões, não provoca às vezes no
historiador das religiões uma «tentação» inversa: o ódio a todos os deuses, o ódio à
religião? Penso agora em Lucrecio, em Epicuro, descobrindo a mentira dos deuses e o
horror de quão divino pesa sobre o homem...
—Em seu Diário fala das «terríveis deusas mães». Isto não soa a coisa conhecida.
—Pensava sobre tudo em Durga, por exemplo, uma deusa sangrenta hindu,
ou em Kali. São deusas mães que, entre outras coisas, expressam o enigma da
vida e do universo quer dizer o fato de que nenhuma vida pode perpetuar-se
sem correr um risco mortal. Estas deusas terríveis exigem o sangue, ou a
virilidade, ou a vontade de seus fiéis. Mas, quem entende o que significam
estas deusas recebe, ao mesmo tempo, uma revelação de ordem filosófica.
Chega-se a compreender que esta união de virtudes e pecados, de crimes e
generosidade, de criatividade e de destruição é o grande enigma da vida. Ter-
se-á que viver como um homem, não como um autômato ou um animal, mas
tampouco como um anjo, não há mais remédio que enfrentar-se esta
realidade. Rodeando-nos a um mundo que nos é mais conhecido, em Yahvé
vemos o Deus criador e bom, mas também ao Deus terrível, ciumento,
destruidor; este aspecto negativo da divindade nos diz que Deus é tudo. Do
mesmo modo, para todos os povos que aceitam a Grande Mãe, o culto destas
deusas terríveis é uma introdução ao enigma da existência e da vida. A
mesma vida é essa «Grande Mãe terrível» cortadora de cabeças e parideira
que patrocina ao mesmo tempo a fertilidade e o crime, mas também a
inspiração, a generosidade, a riqueza. Esta totalização dos contrários se revela
mesmo nos mitos da Grande Deusa que no Antigo Testamento, com a ira de
Yahvé. Também nos perguntamos às vezes como é possível que um Deus se
comporte deste modo. Mas estes mitos e estes ritos das deusas terríveis ou do
deus terrível dão-nos a lição de que a realidade, a vida, o cosmos são como são.
Crime e generosidade, crime e fecundidade. A deusa mãe é a que pare e mata
ao mesmo tempo. Não vivemos em um mundo de anjos ou de espíritos, mas
tampouco em um mundo meramente animal. Estamos entre ambos os
extremos. Acredito que a revelação deste mistério segue-se sempre de um ato
criador. Acredito que o espírito cria algo sobretudo quando tem que
enfrentar-se estas grandes provas.
—Como se protege o espírito desses grandes perigos de que fala? Como é possível
seguir o caminho sem perder-se?
O «TERROR DA HISTÓRIA»
—Falamos das crueldades profundas do homem e das religiões tradicionais. Mas, o
que dizer dos movimentos históricos modernos que devem ser outros tantos trunfos
da morte? Como vê, assim que historiador das religiões, os mitos terríveis da
humanidade moderna?
HERMENÊUTICA
—Ao falar dos perigos que corre o historiador das religiões têm desembocado na
questão do sentido: sentido da religião para o crente e sentido que a experiência
religiosa pode ter aos olhos do historiador. Um dos pontos essenciais de seu
pensamento é que o historiador das religiões não pode deixar de ser um hermeneuta. E
diz além que essa hermenêutica tem que ser criadora...
—Sem dúvida... Mas quando se trata desses grandes símbolos que põem em
relação a vida cósmica e a existência humana, em seu ciclo de morte e
renascimento —a árvore cósmica, por exemplo— há algo fundamental, que
reaparecerá nas distintas culturas: um segredo do universo que é ao mesmo
tempo um segredo da condição humana. E não só se revelará a solidariedade
entre a condição humana e a condição cósmica, mas também o fato de que se
trata, em cada caso, de seu próprio destino. Esta revelação pode afetar a
minha própria vida. Um sentido fundamental, por conseguinte, um sentido
com o que se irão conectando outros. Quando a árvore cósmica recebe a
significação da cruz, isso não resulta evidente para um indonésio, mas se
alguém lhe explica que, para os cristãos, esse símbolo significa uma
regeneração, uma vida nova, o indonésio não se sentirá surpreso, mas sim
achará aí algo que lhe resulta familiar. Árvore ou cruz, trata-se do mesmo
mistério da vida e da ressurreição. O símbolo está sempre aberto. E quanto a
minha interpretação, nunca devo esquecer que é a de um investigador de
hoje. A interpretação jamais está acabada.
—Queria precisar agora mesmo minha pergunta. Como conciliar uma atitude
religiosa e uma atitude científica? Por uma parte, sentimo-nos impulsionados a
acreditar que, além do sensível, há, quando não um Deus ou uns deuses, ao menos
algo divino, um mundo espiritual. A hermenêutica, por sua vez, levar-nos-ia
apropriarmo-nos desse algo divino. Por outro lado, sabemos, por exemplo, que o
passado do Paleolítico ao Neolítico supõe a construção de todo um edifício de crenças,
de mitos, de ritos. Como acreditar, instruídos por esta ciência histórica,
«materialista», que essas crenças vinculadas às mudanças técnicas, econômicas,
sociais, possam encerrar um sentido trans-histórico, uma transcendência?
—Há algum tempo decidi adotar uma certa atitude discreta a respeito do que
acredito ou não acredito. Mas, meu esforço orientou-se sempre em
compreender a quem acredita em algo: o xamã, ou o iogue, ou o australiano
igual a um grande santo, um Mestre Eckart, um Francisco de Assis. Neste
ponto responder-lhe-ia como historiador das religiões. Sendo o que é o
homem, quer dizer, não um anjo, ou um espírito, é óbvio, que a experiência
do sagrado se produz em seu caso através de um corpo, de uma determinada
mentalidade, de um certo ambiente social. O caçador primitivo não podia
captar a santidade e o mistério da fecundidade da terra igual podia fazê-lo o
cultivador. Entre estes dois universos de valores religiosos há uma ruptura
evidente. Antes eram dois ossos da peça caçada os que tinham um significado
sagrado; logo, os valores religiosos referem-se, especialmente, ao homem e à
mulher, cuja união tem por modelo a hierogamia cósmica. Mas, o importante
para o historiador das religiões é que a invenção da agricultura permitirá ao
homem aprofundar no caráter cíclico da vida. Bem entendido, o caçador
primitivo sabia perfeitamente que a caça pára na primavera. Mas, é o
agricultor o que capta a relação causal entre semente e colheita, como a
analogia entre semente vegetal e semente humana. Ao mesmo tempo se
afirmará a importância econômica, social e religiosa da mulher. Já vê como,
através de um descobrimento técnico, a agricultura, revela à consciência
humana um mistério muito mais profundo que o que contemplava o caçador.
Descobre agora que o cosmos é um organismo vivo, regido por um ritmo, por
um ciclo em que a vida esta íntima e necessariamente ligada à morte, pois a
semente não pode renascer a não ser através de sua própria morte. E este
descobrimento técnico revelou-lhe seu próprio modo de existir. No Neolítico
nasceram as grandes metáforas que se mantêm do Antigo Testamento até
nós: «O homem é como a erva do campo», e outras muitas. Mas não terá que
entender este tema como uma lamentação sobre o caráter efêmero da planta,
mas sim, como uma mensagem otimista, como um reconhecimento do
circuito eterno da vegetação e da vida... Em resumo, para precisar minha
resposta, é certo que como conseqüência de uma mudança radical de
tecnologia, os antigos valores religiosos, se não se abolirem, ao menos ficam
diminuídos, enquanto que sobre outras condições econômicas se
fundamentam novos valores. Esta economia nova revelará uma significação
religiosa e criadora. A agricultura possui para a história do espírito uma
importância não menor que para a história da civilização material. Na
existência do caçador não era evidente a unidade da vida e da morte; o foi
partir do trabalho agrícola.
—Seu pensamento me dá a impressão de ser «hegeliano». Tudo ocorre como se a
produção dos fatos materiais, as mudanças que têm lugar na matéria, nas «infra-
estruturas», tivessem por objeto nos levar a uma profundidade do sentido. Terei que
considerar os acontecimentos da matéria, os acontecimentos da história, como as
condições sucessivas da revelação de um sentido espiritual. Por outro lado, uma nota
de seu Diário, de 2 de março de 1967, diz claramente: «A história das religiões, tal
como eu a entendo, é uma disciplina "liberadora" (saving discipline). A
hermenêutica poderia chegar a ser a única justificação válida da história. Um
acontecimento histórico justificará o produzir-se quando for entendido. Isto poderia
significar que as coisas acontecem, que a história existe unicamente para obrigar aos
homens entender».
—Sim, acredito que todos esses descobrimentos técnicos foram outras tantas
ocasiões para que o espírito humano captasse certas estruturas do ser que
antes resultavam mais difíceis de captar. O caçador, é óbvio, era consciente
do ritmo das estações. Mas esse ritmo não era o centro das construções
teóricas que davam significado à vida humana. A agricultura deu ocasião a
uma enorme síntese. Sentimo-nos fascinados quando descobrimos a causa
desta visão nova do mundo: o trabalho da terra. Esta visão do mundo, quer
dizer a identidade, a homologia entre a mulher, a terra, a lua, a fecundidade,
a vegetação, e também entre a noite, a fecundidade, a morte, a iniciação, a
ressurreição. Todo este sistema se fez possível graças à agricultura. Do
mesmo modo, pense nessa enorme e admirável construção da imago mundi
que veio acrescentar-se à representação do tempo cíclico e que foi possível só
com a criação das cidades. Certamente, o homem viveu sempre em um
espaço orientado, com um centro e os quatro pontos cardeais, dados todos de
sua experiência imediata no mundo. Mas, a cidade enriqueceu de sentido o
espaço até propô-lo como uma imagem do mundo. Todas as culturas urbanas
arrancam da herança do Neolítico. Os valores anteriores —a fertilidade da
terra, a importância da mulher, o valor sacramental da união sexual— foram
integrados no edifício de nossa cultura urbana. Hoje essa cultura está a ponto
não de desaparecer, mas sim, mudar quanto a sua estrutura. Não acredito,
entretanto, que possam desaparecer as revelações primitivas, pois não
deixamos que viver no ritmo cósmico fundamental: dia e noite, inverno e
verão, vida de vigília e vida de sono, luz e trevas. Conheceremos outras
formas religiosas, que possivelmente não serão reconhecidas como tais, e que
por sua vez, estarão condicionadas pela linguagem nova e pela sociedade do
futuro. É certo que, até hoje, não falo unicamente de «religião», o homem não
se enriqueceu espiritualmente com os novos descobrimentos técnicos do
mesmo modo que se enriqueceu com o descobrimento da metalurgia ou da
alquimia.
DESMITIFICAR A DESMITIFICAÇÃO
—Já estamos perfeitamente ilustrados a respeito do que entende por «atitude
hermenêutica» e, ao mesmo tempo, captamos a atitude oposta, a que aspira a
«desmitificar», em que coincidem Marx e os marxistas, Freud, Lévi-Strauss e os
«estruturalistas». A todos eles deve-os sem dúvida algo, mas preferiu situar-se na
outra vertente. Poderia precisar qual é sua postura?
—Efetivamente, tratei que tirar partido das três correntes que acaba de
mencionar. Um momento atrás falava eu da importância radical da
agricultura e da conseguinte mudança ocorrida nas estruturas econômicas.
Marx ajuda-nos a entender este ponto. Por sua vez, Freud revelou-nos a
«embriologia» do espírito. Trata-se de um algo muito importante, mas a
embriologia é unicamente um momento de nossos conhecimentos a respeito
de um ser. Também o «estruturalismo» é útil. Mas, acredito que a atitude
«desmitificadora» é uma postura fácil. Todos os homens arcaicos e primitivos
acreditam que sua aldeia é «o centro do mundo». Não é difícil afirmar que tal
crença é uma ilusão, mas isto não conduz a nada. Ao mesmo tempo, destrói-
se o fenômeno por não observá-lo no plano que lhe é próprio. O importante,
ao contrário, é perguntar-se por que esses homens acreditam viver no centro
do mundo. Se eu aspirar a entender a esta, ou àquela tribo, não é para
«desmitificar» sua mitologia, sua teologia, seus costumes, sua representação
do mundo. O que quero é entender sua cultura e, em conseqüência, por que
esses homens acreditam o que acreditam. E se chegar a entender por que sua
aldeia é o centro do mundo, é que começarei a compreender sua mitologia,
sua teologia e, em conseqüência, seu modo de existir no mundo.
—Mas, resulta tão difícil de compreender tudo isso? Lembro-me uma página em que
Merleau-Ponty, depois de falar do acampamento primitivo, acrescenta: «Chego a um
povo para passar as férias, feliz ao poder deixar atrás minhas tarefas e meu ambiente
habitual. Instalo-me naquele povo. Converte-se no centro de minha vida (...) Nosso
corpo e nossa percepção pedem-nos sempre para tomarmos por centro do mundo a
paisagem que nos oferecem».
—Certamente. Mas, terei que dizer também que ao princípio todo universo
imaginário era —para dizer com um termo pouco afortunado— um universo
religioso. E digo «pouco afortunado» porque, ao empregá-lo, só pensamos
ordinariamente no judeu-cristão, ou no politeísmo pagão. A autonomia da
dança, da poesia, das artes plásticas é um descobrimento recente. Nas
origens, todos estes mundos imaginários tinham uma função e um valor
religiosos.
—Em certo sentido, não os conservam ainda? Alguma vez falou que «desmitificação
contra a corrente» e afirma que é preciso recuperar nas obras profanas, nas obras
literárias, o argumento da iniciação, por exemplo.
O TRABALHO DO HISTORIADOR
—Propriamente falando, nunca tive dúvidas, mas padeci sempre uma espécie
de «perfeccionismo». Para explicar uma parte de minha carreira terá que ter
em conta que pertenço a uma «cultura menor provincial». Temia não estar
tão bem informado como seria necessário. Então escrevia à meus professores,
à meus colegas; durante o verão ia às bibliotecas do estrangeiro. Se
encontrava uma interpretação diferente da minha, sentia-me feliz, ao
comprovar que era possível interpretar um determinado fenômeno desde
distintos pontos de vista. Muitas vezes corrigia algum detalhe de minha obra.
Mas, nunca senti dúvidas radicais que me obrigassem a abandonar minha
hipótese ou meu método. Quanto escrevia se apoiava em minha experiência
pessoal da Índia, uma experiência de três anos.
—Parafraseando um dito conhecido sobre o fantasma, diria que o mito das origens é a
origem dos mitos?
—Todos os mitos são outras tantas variantes do mito das origens, posto que a
criação do mundo é o modelo de toda criação. A origem do mundo é modelo
da origem do homem, das plantas; até da sexualidade e da morte ou,
também, das instituições... Toda mitologia tem um princípio e um fim; ao
princípio a cosmogonia, e ao final, a escatologia: retorno dos antepassados
míticos, ou vinda do messias. O historiador das religiões, por conseguinte,
não olhará a mitologia como um sentido incoerente de mitos, mas sim como
um corpo dotado de sentido. Em definitivo, como uma «história sagrada».
—A pergunta que responde o mito das origens é, sob outra forma, a mesma que expôs
Leibniz e que todos sabemos o lugar importante que ocupa em Heidegger: «por que
existe algo em vez de não existir nada?».
—Sim, é a mesma pergunta. Por que existe a realidade, quer dizer o mundo?
Como se realizou a realidade? Daí que, a propósito dos mitos do homem
primitivo, eu falei, freqüentemente, de uma «ontologia arcaica». Para o
primitivo, quão mesmo para o homem das sociedades tradicionais, os objetos
do mundo exterior não têm valor intrínseco autônomo. Um objeto, ou uma
ação adquirem um valor, só então se fazem reais, porque participam, de uma
ou de outra maneira, de uma realidade que os transcende. Poderia dizer-se,
portanto, e assim sugeri em O mito do eterno retorno, que a ontologia arcaica
tem uma estrutura platônica...
O INEXPLICADO
—África está ausente de sua obra, explica-se este fato pela dificuldade da informação?
—Faz uns quinze anos fiz o projeto de uma história das religiões primitivas.
Unicamente publiquei o pequeno livro dedicado às religiões australianas. A
enormidade da documentação faz-me vacilar ante a África. A partir de
Griaule e seus discípulos, o africanismo francês renovou, decididamente,
nossos conhecimentos sobre as religiões africanas.
—Sim, e muito bem, até tive o sentimento de que seus descobrimentos e suas
interpretações confirmavam minha própria orientação. Com ele, sobretudo
com sua obra Dieu d'eau, acabou-se a imagem estúpida que fizéramos dos
«selvagens». Também acabou-se o tema da «mentalidade prelógica», que, por
sua parte, já tinha abandonado mesmo Lévy-Bruhl. Em vista que Griaule não
chegou a conhecer a extraordinária e rigorosa teologia dos dogones a não ser
ao cabo de várias e prolongadas estadias entre eles, ficou claro que os
viajantes anteriores careciam desse conhecimento. A partir do que agora
sabemos a respeito dos dogones, podemos supor, justificadamente, que em
outros povos e em todo «pensamento arcaico» se dá uma teologia, ao mesmo
tempo, perfeitamente travada e sutil. Daí a suma importância que possui a
obra de Griaule, não só para os etnólogos, mas também, para os historiadores
das religiões que, até então, inclinavam-se em excesso a repetir Frazer.
—Ouvi contar que depois da morte de Griaule, um dia reuniram-se alguns de seus
amigos, dogones e europeus, no país dogon, para celebrar sua memória. No curso do
banquete viram Griaule entre eles... Quando ouve contar coisas como esta, estima que
se trata de um relato de coisas possíveis?
—Neste terreno dos fenômenos que nossa razão habitual e nossa ciência não
reconhecem —as aparições dos mortos, por exemplo—, haveria coisas que seriam ou
não possíveis em razão de nossa qualidade espiritual?
—A propósito de histórias que nos deixam absortos, ontem reli em seu Diário
algumas linhas em que uma de suas amigas conta como, em lugar do muro de um
celeiro, em certa ocasião viu um jardim cheio de luz, e logo nada absolutamente... Em
seu Diário o conta e logo, imediatamente, passa a outra coisa.
—Sim, para que fazer comentários? Há certas experiências trans-humanas que
não temos mais remédio que testemunhar. Porém, de que meios dispomos
para conhecer sua natureza?
A ARCA DE NOÉ
—A história das religiões, em seu julgamento, não só transforma interior ou
espiritualmente a quem a ela se dedica, mas sim hoje renova além disso o mundo do
sagrado. Entre as notas mais esclarecedoras de seu Diário destaco esta, datada em 5
de dezembro de 1959: «Embora é verdade que Marx analisou e 'desmascarou' o
inconsciente social e Freud fez o mesmo com o inconsciente pessoal; se for verdade,
por conseguinte, que a psicanálise e o marxismo nos ensinam a romper as
'superestruturas' para chegar às causas e os motivos verdadeiros, a história das
religiões, tal como eu a entendo, teria a mesma finalidade: identificar a presença do
transcendente na experiência humana, isolar, na massa enorme do 'inconsciente', o
transconsciente (...), 'desmascarar' a presença do transcendente e o supra-histórico
no viver de todos os dias». Em outro lugar escreve que «o fenômeno capital do século
XX não é a revolução do proletariado, mas, o descobrimento do homem não europeu e
de seu universo espiritual». E acrescenta que o inconsciente, igualmente o «mundo
não ocidental», deixar-se-á «decifrar pela hermenêutica da história das religiões».
Terá que entender, por conseguinte, que a grande «revolução» intelectual, capaz
possivelmente, de mudar a história, não seria nem o marxismo, nem o freudismo, nem
o materialismo histórico, nem a análise do inconsciente, a não ser, a história das
religiões...
—Isso, com efeito, o que penso, e a razão é singela: a história das religiões
refere-se ao mais essencialmente humano, a relação do homem com o
sagrado. A história das religiões pode desempenhar um papel de extrema
importância na crise que conhecemos. As crises do homem moderno são em
grande parte religiosas na medida em que supõem a tomada de consciência de
uma carência de sentido. Quando alguém tem o sentimento de ter perdido a
chave de sua existência, quando já não se sabe o que significa a vida, trata-se
de um problema religioso, posto que a religião é justamente a resposta a uma
questão fundamental: que sentido tem a existência? Nesta crise, neste
desconcerto, a história das religiões deve ser ao menos como uma Arca de
Noé das tradições míticas e religiosas. Por isso, penso que esta «disciplina
total» pode exercer uma função régia. As «publicações científicas»
possivelmente, cheguem a constituir uma reserva em que se «camuflarão»
todos os valores e modelos religiosos tradicionais. Daí meu esforço constante
em pôr de relevo a significação dos fatos religiosos.
—Li Rene Guenon muito tarde e alguns de seus livros interessaram-me muito,
concretamente L'Homme et son devenir selon le Vedanta, que me pareceu muito
belo, inteligente e profundo. Mas, havia ao mesmo tempo um aspecto de
Guenon que me desgostava, seu lado exageradamente polêmico, assim como
sua repulsa brutal de toda a cultura ocidental moderna, como se bastasse
ensinar em Sorbona para perder toda oportunidade de chegar a entender
algo. Tampouco eu gostava de seu desprezo obtuso para certas obras da
literatura e da arte modernas. Nem o complexo de superioridade que lhe
levava a acreditar, por exemplo, que não é possível entender Dante a não ser
na perspectiva da «tradição», mais exatamente a de Rene Guenon. Mas
resulta que Dante é um grande poeta, evidentemente, e para lhe entender terá
que amar a poesia e, sobretudo, conhecer a fundo seu imenso universo
poético. Quanto à tradição, ou à Tradição, o tema é ao mesmo tempo
complexo e delicado; nem sequer me atrevo a abordá-lo no marco de uma
conversação despreocupada e de caráter geral, como esta que mantemos. Na
linguagem corrente, o termo «tradição» emprega-se em contextos múltiplos e
heterogêneos; refere-se à umas estruturas sociais e uns sistemas econômicos,
uns comportamentos humanos e umas concepções morais; umas opções
teológicas, umas posturas filosóficas, umas orientações científicas e à outras
muitas coisas. «Objetivamente», quer dizer sobre a base dos documentos de
que dispõe o historiador das religiões, todas as culturas arcaicas e orientais,
igualmente todas as sociedades, urbanas ou rurais, estruturadas por uma das
religiões reveladas —judaísmo, cristianismo, Islã— são «tradicionais». Com
efeito, todas elas consideram-se depositária de uma traditio, de uma, «história
sagrada» que constitui uma explicação total do mundo e a justificação da
condição humana atual, e que, por outra parte, considera-se a soma dos
modelos exemplares das condutas e das atividades humanas. Todos estes
modelos consideram-se de origem trans-humano ou de inspiração divina.
Mas, na maior parte das sociedades tradicionais, certos ensinos são esotéricos
e, como tais, transmitem-se no curso de uma iniciação. Entretanto, em nossos
dias, o termo «tradição» designa com muita freqüência o «esoterismo», o
ensino secreto. Em conseqüência, quem se declare adepto da «tradição» dá a
entender que foi «iniciado», que é possuidor de um «ensino secreto». E isto é,
no melhor dos casos, uma ilusão.
—Um dos sentidos que, a seu julgamento, tem a história das religiões é salvar o que
merece ser salvo, os valores considerados essenciais. Embora o historiador das
religiões deve esforçar-se por compreender tudo, não pode em troca justificar tudo.
Não pode aspirar a perpetuar ou restaurar todas as crenças, todos os ritos. Como
todos nós, terá que escolher entre esses valores e hierarquizá-los. Como consegue
conciliar seu respeito para todo o humano e essa eleição moral inevitável? Por
exemplo, alguns movimentos humanitários pronunciaram-se ante à Unesco contra as
práticas de execução. Se a Unesco lhe consultasse a respeito deste tema, qual seria sua
resposta?
—O terceiro tomo de sua História das crenças e das idéias religiosas abrange do
nascimento do Islã até as «teologias atéias» contemporâneas. Isso significa que, em
seu julgamento, o ateísmo forma parte da história das religiões. Por outro lado, ao ler
seu Diário, vê-se que teve ocasião, nos Estados Unidos, de conhecer Tillich e a certos
«teólogos da morte de Deus». Não será este tema da «morte de Deus» o conceito
limite da história das religiões?
FIGURAS DO IMAGINÁRIO
A RELIGIÃO, O SAGRADO
- Sem dúvida que recorda estas palavras iniciais de O totemismo na atualidade de
Lévi-Strauss: «Com o totemismo acontece igual com a histeria. Quando se começa a
suspeitar que possivelmente se isolaram arbitrariamente certos fenômenos e se
agruparam entre si para tomá-los como sintomas diagnósticos de uma enfermidade ou
de uma instituição objetiva, ocorre que os sintomas desapareceram já, ou que
resultaram rebeldes às interpretações unificantes...». Não passará com a «religião»
quão mesmo com o «totemismo» ou com a «histeria»? Dito de outro modo, se a
história ou a ciência das religiões tem um objeto, qual é este?
—Esse objeto é o sagrado. Mas, como delimitar o sagrado? É algo muito difícil.
O que em todo caso me parece impossível é imaginar como poderia funcionar
o espírito humano sem a convicção de que existe algo irredutivelmente real
no mundo. É impossível imaginar como poderia aparecer a consciência sem
conferir uma significação aos impulsos e às experiências do homem. A
consciência de um mundo real e significativo vai estreitamente ligada ao
descobrimento do sagrado. Mediante a experiência do sagrado, o espírito
captou a diferença entre o que se revela como real, potente e significativo e o
que carece dessas qualidades, quer dizer o fluxo caótico e perigoso das coisas,
suas aparições e desaparecimentos fortuitos e carentes de sentido... Mas
ainda terei que insistir em um ponto: o sagrado não é uma etapa na história
da consciência, a não ser um elemento da estrutura dessa mesma consciência.
Nos graus mais arcaicos da cultura, viver como ser humano é já em si mesmo
um ato religioso, posto que a alimentação, a vida sexual e o trabalho possuem
um valor sacramental. A experiência do sagrado é inerente ao modo de ser do
homem no mundo. Sem a experiência da realidade —e do que não o é— não
poderia construir o ser humano. A partir dessa evidência precisamente, o
historiador das religiões começa a estudar as diversas formas religiosas.
—Acredito recordar que nas Antimemórias de Malraux, este pergunta ao Mao Tse-
tung se souber que ele é «o último imperador»; o «imperador de bronze» o admite...
Estima que o imperador romano é um homem sagrado igual ao antigo imperador
chinês: vínculo entre a terra e o céu, responsável pela ordem no mundo. Em Lenin
parece-lhe ver a sobrevivência do sagrado. O que opina de Mao Tse-tung?
—Há algo que nos permita estabelecer uma diferença entre o último imperador, Mao,
e o último czar, Lenin? Parece-me que distingue implicitamente entre uma
«sacralidade verdadeira», que enlaçaria com a transcendência, e uma sacralidade
falsa»...
—É certo que as ideologias políticas contemporâneas carecem de relação com
a transcendência. Ficam, entretanto, como relíquias do sentimento sagrado, o
sentido da responsabilidade fundamental do chefe e a esperança messiânica.
Ignoro que idéia tinha de si mesmo Stalin. Mas basta ler aos poetas: olhavam-
lhe como um sol, como o Homem único. Não se trata, indubitavelmente, de
imagens «transcendentes», mas ao menos são «trans-humanas», sobre-
humanas. O mito de Stalin transluz a nostalgia do arquétipo. Não há
nenhuma «degradação» que não recorde um grau mais alto, perdido ou
confusamente desejado.
—Sim, do mesmo modo que «o símbolo faz pensar», o rito ajuda a viver e o mito é às
vezes o sustento de nosso destino. Lembro-me uma indicação de seu Diário em que
diz que gostaria de mostrar como a história das religiões pode ajudar a descobrir a
transcendência na vida cotidiana. Por outro lado, seu Diário faz que em ocasiões lhe
vejamos em uma situação mítica: o homem exilado de sua pátria, o homem que busca
seu caminho, mas não simplesmente esse homem perdido, nascido em mãos de 1907, a
não ser um Ulisses. E esta imagem, este pensamento sustenta-lhe.
Passando a outro plano, muitas vezes comparou entre si a antologia platônica e
a «antologia arcaica». Vê alguma relação entre a «idéia» e o «modelo mítico»?
HOMENS SAGRADOS
—Em sua obra dedicou uma atenção especial ao iogue, ao xamã, ao alquimista... O
que tem em comum estas três figuras?
—Em Ferreiros e alquimistas diz que a alquimia projeta esta morte iniciática sobre
a matéria.
—Não dedicou ao sacerdote nem ao profeta a mesma atenção que ao iogue, ao xamã,
ao alquimista...
—Além destas razões, mais à frente do professor de história das religiões e do autor de
muitos trabalhos de investigação, pergunto-me se não haverá um Rimbaud romeno:
«Desembarcam os brancos... O canhão... Terão que se submeter ao batismo, vestir-
se... Retornar ao sangue pagão...». Em nenhum momento vejo-lhe ressentido. Mas,
alguma vez se amotinou? Pergunto-me se seu amor aos selvagens não ocultará além
disso uma cólera calada contra os poderosos e os muito razoáveis, contra todos esses
pontífices, esses banqueiros, esses estrategistas, todos os mercenários e os benfeitores
da inteligência mecânica... Trato de imaginar quando tinha vinte anos, em Bucareste.
Imagino a um irmão romeno de Rimbaud na raiz desse interesse racional pelo xamã,
por todos os feiticeiros do mundo, por todos esses homens do desprendimento e da
visão.
—No mais profundo de meu ser pode que se dê essa sublevação contra certas
formas agressivas da posse, do domínio e do poder obtido com ajuda da
mecânica. Mas o que sentia sobretudo nos místicos, nos homens inspirados,
nos enlevados, era a presença das fontes primitivas da religião, da arte, da
metafísica. Sempre senti que compreender uma dessas dimensões ignoradas
ou inclusive desprezadas da história do espírito não supunha unicamente
enriquecer a ciência, mas sim além de contribuir a regenerar e fomentar a
criatividade do espírito em nosso mundo e em nossa época.
SONHO E RELIGIÃO
—Que relações há entre sonho e religião?
—Ao ler seu Diário cheguei a pensar que Jung lhe deve o ter outorgado um lugar
essencial à imagem do «centro».
—É possível. Em «Eranos» dava uma conferência sobre este tema no ano 1950.
É possível, entretanto, que fora através de um de seus discípulos, Neumann,
como entendeu Jung todo o partido que podia tirar do «centro» na cura
psicoanalítica.
O MITO E A ESCRITURA
—Sim... Chegamos a ser nós mesmos quando escutamos narrar nossa história.
—A literatura assume as funções do mito. Pode dizer-se que este morre e que aquela
nasce com a invenção da escritura?
—Também rechaça a fealdade na arte. Penso no que diz de Francis Bacon, por
exemplo.
—Entendo muito bem por que escolheu a fealdade como objeto de sua criação
plástica. Mas, ao mesmo tempo, resisto a essa fealdade justamente porque a
vemos em todas partes, em torno de nós, agora mais que nunca... por que
acrescentar fealdade a essa fealdade universal em que cada dia nos vemos
um pouco mais imersos?
—Se a literatura, ao apartar do relato, prescindiu muitas vezes de algo que lhe parece
essencial ao homem, o cinegrafista, pelo contrário, possivelmente tenha sido para o
homem moderno um dos lugares privilegiados do mito.
—Vou muito pouco ao cinema há alguns anos e não poderia lhe responder
como seria preciso. Digamos, entretanto, Los Clowns, de Fellini. Em um filme
como este vejo as imensas possibilidades que tem o cinegrafista de reatualizar
os grandes temas míticos e de empregar certos símbolos maiores sob formas
pouco habituais.
—Não dá trabalho adivinhar que livros levaria para ler em uma ilha deserta.
Entretanto, diga-nos quais seriam.
—Uma nota de seu Diário mostra-nos isso como leitor assíduo de Bhagavad-Gita.
—Lendo seu Diário chamou-me a atenção uma página em que fala de um gato que
desperta miando de uma maneira desagradável, e diz que o caminho consiste em...
—Em amar. Sim, é certo. E isso mesmo é o que dizia Cristo. Pode ser que esta
seja a regra fundamental de toda a ascese do mundo, mas é acima de tudo o
caminho que nos ensina Cristo. Só mediante este comportamento é possível
suportar de verdade o mal. Mas, bom, aquele pobre gato não era
precisamente o mal; de qualquer maneira, disso se trata, de responder com
amor a algo que nos exaspera ou nos aterra. Isto pode verificar-se...
—Diz que em seguida se imaginou àquele gato odioso como uma criatura miserável, e
então (e não é a primeira vez que tal coisa lhe ocorreu) sentiu-se completamente
mudado, e que isto é o que lhe ensinaram os mestres espirituais.
—Exatamente. Logo, senti-me feliz de que um gato me recordasse esta grande
lição que aprendera dos «mestres espirituais», de Jesus, o Cristo. Também um
gato obrigou-me a aprender isto mesmo.
—Quando vejo uns homens mais realizados que eu, isso me deixa sempre pensativo e
digo-me então: Como se chega a superar as reações de ódio, os ressentimentos, as
aversões? Em virtude de uma «graça» ou pelo próprio esforço?
—É difícil dar uma resposta. Sei que isto pode conseguir-se mediante o
trabalho, um esforço, digamos, de ordem espiritual, mediante um método, no
sentido ascético da palavra. Mas a «graça» desempenha, é óbvio, um encargo
importante.
—Sente-se dotado naturalmente nesse terreno, ou foi-lhe preciso lutar para conseguir
essa serenidade ante as agressões?
—Acredito que lutei, e muito! Isso, para mim, foi muito. Para outros, para um
santo, possivelmente não fosse nada. Mas o importante é que esse esforço dá
resultados. Enriquece-nos e, além disso, aí estão os frutos: alguém se sente
mudado.
—Por que razão se decidiu a lutar contra o instinto natural que nos exige devolver
golpe por golpe?
—A primeira, possivelmente, é que me sentia —conforme dizem os hindus—
um escravo ao seguir meu instinto. Sentia-me como o efeito de uma causa
fisiológica, psicológica, social... Daí essa rebeldia, possivelmente natural,
contra o condicionamento. Sentir-se condicionado, quando se toma
consciência disso, é algo que nos exaspera. Para «descondicionar-me» era
preciso fazer exatamente o contrário do que me exigia o carma. Teria que
romper o ciclo das concatenações.
ANIMUS E ANIMA
—Como homem de ciência, seu campo é o dos mitos, mas ao mesmo tempo é novelista,
quer dizer inventor de relatos, criador de mundos imaginários. Seu Diário evoca
freqüentemente o conflito entre estas duas personalidades. Algumas dificuldades são
de ordem externa, como lhe ocorreu na Romênia, ao princípio, quando sua fama de
escritor deixava cair uma sombra sobre sua atividade científica. Mas há outras
dificuldades interiores...
—Mas, quando se conhecem intimamente os mitos, seu jogo e o sentido que lhes
atribui, é possível esquecer de repente tudo isso para abandonar-se à ignorância
criadora?
—Não podia fazer outra coisa que pensar nisso e tratar de ver a continuação.
Na época trabalhava em meu livro sobre o xamanismo; tive que abandoná-lo
e me pôr a escrever dia e noite. Apareceram outras imagens. A moça. A
história que o jovem arrastava consigo, que ainda não conhecia eu e que me
fascinava. Seu «quarto secreto» em um hotel. E a noite de São João...
—A noite de São João... Em 5 de julho de 1949, escreve: «De repente recordei que faz
exatamente vinte anos, sob o mormaço de Calcutá, escrevi o capítulo 'O sonho de
uma noite do verão' de Isabelle. O mesmo sonho solsticial, estruturado de outra
maneira e desenvolvido em níveis distintos, aparece também no centro de A noite de
São João. Será uma pura coincidência? O mito e o símbolo do solstício obcecam-me
há anos. Mas tinha esquecido que era precisamente desde Isabelle desde quando tinha
essa obsessão».
—A noite de São João parte em dois o ano. Os dias deixam de crescer e começam a
decrescer. É um ponto médio. Ao final do livro aparecem os primeiros versos da
Divina Comédia: «Nel mezzo del cammin di nostra vita / Mi ritrovai per una
selva oscura...». Que relação vê entre o solstício, a metade de nossa vida e esse
bosque inicial? E que relação entre este tema da metade e o do dobro: os dois
personagens gêmeos e as duas mulheres entre as que oscila ele protagonista?
—Esta pergunta —é possível amar com verdadeiro amor duas ou mais pessoas ao
mesmo tempo?— tem em seu julgamento verdadeira importância?
—Com efeito, os doze mil anos que são aqui doze anos, de 1936 a 1948.
Ambicionava escrever um pequeno Guerra e Paz. Mas queria situar neste
tempo histórico a um homem ordinário —um funcionário, casado, que tem
um filho— obcecado ao mesmo tempo por uma estranha nostalgia: poder
amar duas mulheres de uma vez, ter um quarto secreto...Queria conciliar um
certo «realismo» histórico e, em um personagem que não era nem um filósofo
nem um poeta, nem tão sequer um homem religioso, esta aspiração a um
modo de ser fora do comum, coisa que me expõem problemas muito difíceis.
Mas isso era precisamente o que me apaixonava.
—Como se, sob a história ordinária, profana, de um jovem romeno dos anos trinta,
tivéssemos que decifrar um destino cheio de sentido e de figuras. Como se, além das
aparências, nossas vidas repousassem sobre uma ordem secreta...
—Já sei que não gosta de ficção científica. Não acredita que forma parte da «fantasia»?
Em seu Diário diz que o futuro da literatura está do lado da fantasia, já que esta pode
devolver ao homem moderno o gosto do sentido. Qual é exatamente sua relação com o
mundo do «fantástico»?
—Quis salvar uma parte deste Diário que está formado por cadernos que levo
sempre comigo e alguns dos quais já perdi. Havia além algumas observações
úteis, planos, projetos. Dava-me conta de que nem sequer teria tempo de
escrever um ensaio sobre esses temas. Publicar este Diário foi um meio de
comunicar algumas dessas observações e notas para iniciar o diálogo.
—Dá a impressão de ser um homem muito reservado, muito discreto, para não dizer
secreto. Alguma vez lhe causou problemas esta maneira de ser? Não se terá
submetido, com a publicação de seu Diário, a uma espécie de prova como a que
Francisco de Assis impunha à seus discípulos, obrigando-lhes atravessar nus a
cidade? Não haverá nisso um pouco de «sacrificial»? A preparação para um novo
«nascimento»?
—Foi, com efeito, uma ação «sacrificial», cujos riscos inclusive perigos tive em
conta. Mas sentia necessidade de não continuar ocultando meu lado onírico,
artístico. Queria além de me opor à superstição acadêmica, viva sempre nos
países anglo-saxões, e sobretudo na América, que tende a menosprezar o ato
da imaginação literária. Como se uma criação espontânea, livre, não tivesse
valor algum em comparação com uma obra puramente científica. Trata-se de
uma superstição muito daninha Lembro-me algumas linhas de um dos
maiores filósofos das ciências americanos, Bronowski, quem afirmava que a
operação mediante a que se chega a descobrir um novo axioma não pode ser
mecanizada. «Trata-se de um jogo livre do espírito, de uma invenção além
dos processos lógicos. Trata-se do ato central da imaginação na ciência,
semelhante desde todo ponto de vista a qualquer ato similar da literatura».
Bronowski escrevia estas palavras em «The American Scientist», The Logic of the
Mind, na primavera de 1966. A ciência moderna, portanto, descobriu já faz
tempo o valor que para o conhecimento possui o ato imaginativo. De minha
parte, revolto-me contra esse positivismo pretendidamente científico dos
eruditos para os que a criação literária não seria outra coisa que um jogo sem
relação alguma com o ato de conhecer. Acredito justamente o contrário.
—Em algum lugar de seu Diário diz que «agora era preciso, a qualquer preço,
escrever, descartando todo outro trabalho, a autobiografia». Está inacabada esta
autobiografia?
O VELHO E O OFICIAL
—Em seu Diário diz que O velho e o oficial é a obra mais livre que nunca tinha
escrito.
—Sim, porque ia à aventura, como me ocorreu com A serpente, mas desta vez
sem prazo fixo. Escrevi quase todo o livro em duas ou três semanas, mas
logo, durante doze anos, em vão tentei escrever as vinte e quatro últimas
páginas. Consegui-o em uns momentos em que estava muito ocupado com
meus cursos na Universidade de Chicago e pelos convidados de passagem.
Em quatro ou cinco noites.
—Estamos, pois, na Romênia, quer dizer sob um regime policial. Um ancião, antigo
diretor de escola, quer ver de novo um de seus alunos de faz trinta anos. Mas o
homem com o qual se encontra não é outra coisa que um homônimo do antigo aluno.
O equívoco faz que resulte suspeito e a polícia lhe detém para saber mais dele.
Docilmente, mansamente, o velho começa a contar suas histórias, que resultam
fabulosas e muito longas, labirínticas. «É uma longa história —repete a cada
momento— e para que a possam entender tenho que lhes dizer primeiro...». O
admirável é que lhe escutam e até lhe pedirão que tome todo o tempo que queira e
ponha por escrito seus relatos. À medida que balança com seu manuscrito, este é lido,
analisado. E o velho vai conhecendo personagens cada vez mais importantes, até
chegar ao camarada ministro do Interior. Dizem-lhe que aquilo é «As mil e uma
noites do mundo stalinista». E enquanto que o relato maravilhoso prolifera, a
investigação provoca revoluções de palácio. Tal é a essência do argumento. Mas terá
que acrescentar que o leitor, igualmente à polícia, fica seduzido, fascinado. Há essa
cova sob a água em que desaparece o filho do rabino: seca-se a cova, mas ele não
aparece. E essa jovem gigante, bela como uma estátua condenada a uns amores
extraordinários, essa gigante que me faz pensar no protagonista de suas novelas, Le
Macranthrope, o homem que cresce e cresce até converter-se em um gigante, mas
que não muda tão somente de estatura, mas também de natureza, pois entende o que
dizem os deuses. E o que dizem os deuses? Nós, os que ficamos aqui embaixo, já não
entendemos os sons que brotam de sua boca... Há, pois, a gigante e há também
prestidigitadores capazes de encerrar toda uma banda de música e até uma aldeia
inteira em um cofre. Achamo-nos no universo inesgotável dos velhos contos, que
sempre nos encanta.
—Sim, é exato.
—Mas, o que significa tudo isso? Mais à frente do encantamento, nos convida a
procurar um sentido. Parece-nos acharmo-nos ante uma «parábola», no sentido em
que Claudel considerava Kafka o grande iventor de parábolas de nossos tempos.
—Acredito que este personagem significa algo mais. Diz, quase ao pé da letra, «eu sou
a infância». Não é verdade que na alquimia, o velho e o menino solar significam por
igual a perfeição? Não é o mais velho o que recorda a origem? E Deus é ao mesmo
tempo o Ancião dos dias e o Menino Divino. Seu velho me parece a figura do tempo,
ou melhor, da memória.
—Muitas vezes comparou a vida, sua própria vida, com um labirinto. O que diria hoje
sobre o sentido desse labirinto?
—Fala desses momentos em que se «reconheceu». Penso no que diz a tradição dos
sufis ou do zen: o homem convidado a contemplar o rosto que tinha antes de seu
nascimento ou o anjo que ele mesmo é secretamente... Que rosto era o seu quando se
reconheceu? Guardará silêncio sobre este ponto?
—Sim.
—Em seu Diário evoca o sentimento que, de repente, teve um dia a respeito da
duração de sua própria vida, em sua continuidade e em sua profundidade.
—Necessitou muita energia para levar a termo a obra que realizou. De onde lhe vem
essa energia? Sabe o que lhe impulsionou no fundo a levantar todo este edifício?
—Em todo momento evitei lhe fazer perguntas a respeito do divino, suspeitando por
antecipado sua reserva...
—Há questões, com efeito, de tal importância para minha existência mesma e
para o leitor ao que possivelmente preocupam que não acertaria às abordar
convenientemente em uma conversação. A questão do divino, que é capital,
não queria tratar às pressas. Espero, entretanto, abordá-la um dia de maneira
absolutamente pessoal e coerente, por escrito.
—Não se explicará seu silêncio também por um desejo de não fazer o papel de mestre
espiritual?
—É certo que não me vejo no papel de mestre do pensamento ou guru. Não
me sinto como um guia, mas sim como um companheiro —um companheiro
um pouco mais adiantado—, um companheiro de outros. E daí também que
resista a tocar certos problemas essenciais de maneira improvisada. Sei muito
bem o que acredito, mas não se pode dizer em umas poucas frases.
—Acaso é algo que se possa definir de qualquer jeito? Não posso definir.
Parece-me que se trata de algo evidente, e se não for evidente, faria falta sem
dúvida uma longa demonstração.
—Não poderia nos ajudar neste ponto Santo Agostinho? «Se me pergunta o que é o
ser, não sei; se não me pergunta...».
ANEXOS E DOCUMENTOS
BRANCUSI E AS MITOLOGIAS*
*Petru Comarnesco, Mircea Eliade, Ionel Jianou, Témoignages sur Brancusi (Paris
1967).
Recentemente relia eu algumas peças da apaixonante controvérsia
suscitada em torno de Brancusi. Soube manter-se como um camponês dos
Cárpatos, apesar do meio século que viveu em Paris, centro de todas as
inovações e revoluções artísticas modernas? Ou melhor, como opina, por
exemplo, o crítico americano Sidney Geist, chegou a ser Brancusi o que foi
graças aos influxos da Escola de Paris e ao descobrimento das artes exóticas,
especialmente das esculturas e das máscaras africanas? Ao mesmo tempo que
lia as peças desta controvérsia, contemplava as fotografias reproduzidas pelo
Ionel Jianou em sua monografia (Paris 1963): Brancusi em sua oficina do beco
Ronsin, sua cama, sua estufa. Seria difícil não reconhecer o «estilo» de uma
moradia camponesa, mas há ali algo mais; trata-se da moradia de Brancusi,
de seu «mundo» peculiar, criado por ele mesmo, com suas próprias mãos,
poderíamos dizer. Não é a reprodução de um modelo pré-existente, «casa de
camponês romeno» ou «oficina de um artista parisiense de vanguarda».
Mas não há mais que se fixar na estufa. Não só pelo fato de que a
necessidade de ter uma estufa camponesa nos diz já muito sobre o estilo de
vida que Brancusi decidiu conservar em Paris, mas também porque o
simbolismo da estufa ou do lar poderia ilustrar algo secreto do gênio de
Brancusi.
Dá-se, com efeito, o fato —paradoxal para muitos críticos— de que
Brancusi parece ter recuperado a fonte de inspiração «romena» depois de seu
encontro com certas criações artísticas «primitivas» e arcaicas.
Resulta, entretanto, que este «paradoxo» constitui um dos temas
favoritos da sabedoria popular. Recordarei agora um só exemplo, a história
do rabino Eisik de Cracóvia, que o indianista Heinrich Zimmer extraiu dos
Khassidischen Bücher de Martín Buber. Este piedoso rabino, Eisik de Cracóvia,
teve um sonho que lhe exigia transladar-se à Praga, onde, sob a grande ponte
que conduz ao castelo real, encontraria um tesouro oculto. O sonho se repetiu
três vezes e o rabino se decidiu por fim a partir. Uma vez chegado à Praga,
encontrou a ponte, mas este se achava vigiado dia e noite por sentinelas. Eisik
não se atreveu a cavar. Enquanto rondava pelos arredores, terminou por
chamar a atenção do capitão dos guardas, que lhe perguntou amavelmente se
perdera algo. Com toda simplicidade, o rabino lhe contou seu sonho. O
oficial estalou em gargalhadas: «Pobre homem! De verdade que gastou suas
sandálias percorrendo tão longo caminho só por causa de um sonho? Que
homem razoável acreditaria em um sonho?». Também o oficial tinha
escutado em sonhos uma voz. «Uma voz que me falava de Cracóvia e que me
ordenava partir lá e procurar um grande tesouro em casa de um rabino
chamado Eisik, Eisik filho de Jekel. O tesouro seria descoberto em um rincão
poeirento em que se achava enterrado detrás da estufa». Mas o oficial não
dava nenhum crédito às vozes ouvidas em sonhos. O oficial era uma pessoa
razoável. O rabino se inclinou profundamente, agradeceu-lhe e voltou
apressadamente à Cracóvia. Cavou no rincão abandonado de sua casa e
descobriu o tesouro que pôs fim a sua miséria.
«Por conseguinte —comenta Heinrich Zimmer—, o verdadeiro tesouro,
que põe fim a nossas provas e misérias, nunca está longe, mas sim jaz
sepultado nos rincões mais separados de nossa própria casa, quer dizer de
nosso próprio ser. Está detrás da estufa, o centro doador de vida e de calor
que rege nossa existência, o coração de nosso coração, e o único que temos
que fazer é saber cavar. Mas fica também o fato de que unicamente depois de
uma viagem piedosa por uma região longínqua, por um país estrangeiro, por
uma terra nova, poderá revelar-nos a significação desta voz interior que guia
nossa busca. E a este fato estranho e constante vem acrescentar-se outro, e é
que o sentido de nossa misteriosa viagem interior tem que nos ser revelado
por um estrangeiro, um homem de outras crenças ou de outra raça.»
Voltando para nosso tema, ainda aceitando o ponto de vista de Sidney
Geist, concretamente que a influência exercida pela Escola de Paris foi
decisiva na formação de Brancusi, enquanto que «a influência da arte popular
romena é inexistente», fica o fato de que as obras mestras de Brancusi
encaixam no universo das formas plásticas e da mitologia popular romena,
até o ponto de que inclusive levam nomes romenos (a Maiastra, por exemplo).
Dito de outro modo, as influências teriam provocado uma espécie de
anamnesis que lhe teria levado por necessidade a um autodescobrimento. O
encontro com as criações da vanguarda parisiense, ou com o mundo arcaico
(África) teria posto em marcha um processo de «interiorização», de retorno
para um mundo secreto e inesquecível, um mundo ao mesmo tempo da
infância e da imaginação. Pôde ocorrer que depois de ter compreendido a
importância de certas criações modernas redescobrisse Brancusi a riqueza
artística de sua própria tradição e que pressentisse, em última instância, as
possibilidades criadoras dessa mesma tradição. Em todo caso, isso não quer
dizer que Brancusi, depois desse descobrimento, ficasse a fazer «arte popular
romena». Não imitou as formas já existentes, não copiou o folclore. Pelo
contrário, entendeu que a fonte de todas estas formas arcaicas —mesmo na
arte popular de seu país que as da proto-história balcânica e mediterrânea, da
arte «primitiva» africana e oceânica— afundava-se, profundamente, no
passado; entendeu também, que esta fonte primitiva nada tinha a ver com a
história «clássica» da escultura, em que esteve situado, como todos os seus
contemporâneos, durante sua juventude em Bucareste, em Munique ou em
Paris.
A genialidade de Brancusi está no fato de que acertou em encontrar a
verdadeira «fonte» das formas que logo seria capaz de criar. Em lugar de
reproduzir os universos plásticos da arte popular romena, ou africana,
aplicou-se, por assim dizê-lo, a «interiorizar» sua própria experiência vital.
Por isso conseguiu recuperar a «presença ante o mundo» específica do
homem arcaico, fora este um caçador do Paleolítico inferior, ou um agricultor
do Neolítico mediterrâneo, cárpato-danubiano, ou africano. Se na arte de
Brancusi se puderam advertir não só uma solidariedade estrutural e
morfológica com a arte popular romena, a não ser além certas analogias com
a arte negra, ou a estatuária da pré-história mediterrânea e balcânicas, isso é
assim, porque todos estes universos plásticos são culturalmente
homologáveis, porque suas fontes estão no Paleolítico inferior e no Neolítico.
Dito de outro modo, graças ao processo de «interiorização» ao que aludimos
e a anamnesis que foi seu resultado, Brancusi conseguiu «ver o mundo» como
os autores das obras mestras pré-históricas, etnológicas e folclóricas. Em certo
sentido recuperou a «presença ante o mundo» que permitiria àqueles artistas
desconhecidos criar seu próprio universo plástico em um espaço que nada
tinha a ver, por exemplo, com o espaço da arte grega «clássica».
Certo que tudo isto não basta para explicar o gênio de Brancusi nem sua
obra. Com efeito, não é suficiente recuperar a «presença ante o mundo» de
um camponês do Neolítico para poder criar como um artista do mesmo
período. Mas chamar a atenção sobre o processo de «interiorização» nos
ajuda a compreender, por uma parte, a extraordinária novidade de Brancusi
e, por outra, o fato de que algumas de suas obras nos pareçam
estruturalmente solidárias das criações artísticas pré-históricas, camponesas
ou etnográficas.
A atitude de Brancusi ante os materiais e sobretudo ante a pedra
possivelmente nos ajude um dia a entender algo da mentalidade dos homens
pré-históricos. Com efeito, Brancusi se aproximava de certas pedras com a
reverência exaltada e, ao mesmo tempo, angustiada de alguém que se via
manifestar nesse elemento uma potência sagrada, uma hierofania.
Nunca saberemos em que universo imaginário se movia Brancusi
durante seu longo trabalho de polimento. Pelo que não cabe dúvida é de que
essa prolongada intimidade com a pedra inspiraria as «alucinações da
matéria» brilhantemente analisadas pelo G. Bachelard. Era como sumir em
um mundo das profundidades no qual a pedra, a «matéria» por excelência, se
manifestava como uma realidade misteriosa, pois incorporava a sacralidade,
a força, a obra obtida. Ao descobrir a «matéria» como fonte e lugar de
epifanias e de significações religiosas, Brancusi pôde recuperar ou adivinhar
as emoções e a inspiração de um artista dos tempos arcaicos.
A «interiorização» e a «imersão» nas profundidades formavam parte
pelo resto de Zeitgeist do início do século XX. Freud acabava de pôr a ponto a
técnica da exploração que permitia chegar às profundidades do inconsciente;
Jung acreditava estar em condições de inundar-se ainda mais profundamente
no qual ele chamava o inconsciente coletivo; o espeleólogo Emile Racovitza
estava a ponto de identificar na fauna das cavernas os «fósseis viventes»,
formas orgânicas tão mais preciosas quanto as que não são fossilizáveis;
Lévy-Bruhl isolava na «mentalidade primitiva» uma fase arcaica, prelógica,
do pensamento humano.
Todas estas investigações e estes descobrimentos tinham um ponto em
comum, é que deviam revelar valores, estados, comportamentos ignorados
até então pela ciência, algumas vezes, porque tinham permanecido
inacessíveis à investigação e outras, especialmente, porque não ofereciam
interesse algum à mentalidade racionalista da segunda metade do século XIX.
Todas estas investigações implicavam em certo modo um descensus ad inferos
e, em conseqüência, o descobrimento de umas etapas de vida, de experiência
e de pensamento que precederam à formação de sistemas de significação
conhecidos e estudados até então, sistemas que poderíamos chamar
«clássicos», posto que de uma ou de outra maneira vinculavam-se à
instauração da razão como único princípio capaz de captar a realidade.
Brancusi era contemporâneo, por excelência, desta tendência a
«interiorização» e a busca das «profundidades», contemporâneo do interesse
apaixonado pelas etapas primitivas, pré-históricas e pré-racionais da
criatividade humana. Depois de compreender o «secreto» central —
concretamente que não são as criações folclóricas ou etnográficas as mais
adequadas para renovar ou enriquecer a arte moderna, a não ser o
descobrimento de suas «fontes»—, Brancusi se inundou em uma série de
buscas sem fim, interrompidas unicamente, por sua morte. Voltou
incansavelmente, uma e outra vez, sobre certos temas como se estivesse
obcecado pelo mistério de suas possibilidades artísticas, que nunca conseguia
realizar. Trabalhou, por exemplo, dezenove anos na Coluna sem fim, e vinte e
oito no ciclo dos Pássaros. Em seu Catálogo raciocinado, Ionel Jianou registra
cinco versões em madeira de carvalho da Coluna sem fim, além de outras em
gesso e em aço, executadas entre 1918 e 1937. Quanto ao ciclo dos Pássaros, de
1912 a 1940, Brancusi terminou vinte e nove versões, em bronze brunido, em
mármore de distintas cores e em gesso. Certamente, em outros artistas
antigos e modernos se dá esta mesma volta constante a determinados temas
centrais. Mas este método é peculiar sobretudo dos artistas populares e
etnográficos, para quem os modelos exemplares têm que ser tomados e
«imitados» indefinidamente por razões que nada têm a ver com a «falta de
imaginação» ou de «personalidade» por parte do artista.
É significativo que em Coluna sem fim recuperasse Brancusi um motivo
folclórico romeno, a «coluna do céu» (columna cerului), que prolonga um tema
mitológico testemunhado já na pré-história e que, por outra parte, está muito
difundido em todo mundo. A «coluna do céu» sustenta a abóbada celeste;
dito de outro modo, é um axis mundi, do que se conhecem numerosas
variantes: a coluna Irminsul dos antigos germanos, os pilares cósmicos das
populações nordasiáticas, a montanha central, a árvore cósmica, etc. O
simbolismo do axis mundi é complexo: o eixo sustenta o céu e ao mesmo
tempo assegura a comunicação entre o céu e a terra. Quando o homem se
aproxima de um axis mundi, que se supõe situado no centro do mundo, pode
estabelecer comunicação com as potências celestes. A concepção do axis
mundi como coluna de pedra que sustenta o mundo reflete com toda
probabilidade as crenças características das culturas megalíticas (IV-III
milênios A. C.). Mas o simbolismo e a mitologia da coluna celeste se
difundiram além das fronteiras da cultura megalítica.
Ao menos, pelo que se refere ao folclore romeno, a «coluna do céu»
representa uma crença arcaica, pré-cristã, mas que foi rapidamente
cristianizada, posto que aparece nas canções rituais de Natal (colinde).
Brancusi ouvira sem dúvida falar da «coluna do céu» em sua aldeia natal ou
no curral dos Cárpatos em que aprendeu seu ofício de pastor. Esta imagem
obcecava-lhe sem dúvida, pois, como veremos, integrava-se no simbolismo
da ascensão, do vôo, da transcendência. É de notar que Brancusi não escolheu
a «forma pura» da coluna —que só podia significar o «suporte», a «escora»
do céu—, a não ser uma forma romboidal imensamente repetida que a
assemelha a uma árvore ou a um pilar provido de entalhes. Dito de outro
modo, Brancusi pôs em evidência o simbolismo da ascensão, pois,
imaginariamente, experimenta-se o desejo de subir ao longo desta «árvore
celeste». Ionel Jianou recorda que as formas quadriláteras «representam um
motivo decorativo tirado dos pilares da arquitetura rural». Mas o simbolismo
do pilar das moradias rurais depende também do «campo simbólico» do axis
mundi. Em numerosas moradias arcaicas, o pilar central serve efetivamente
de meio de comunicação com o céu.
Não é a ascensão para o céu das cosmologias arcaicas o que obceca ao
Brancusi, a não ser o vôo para um espaço infinito. Diz de sua coluna que é
«sem fim». Não só pelo fato de que jamais poderia acabar-se semelhante
coluna, a não ser sobretudo porque esta se lança para um espaço que não
poderia ter limites, já que se funda na experiência enlevada da liberdade
absoluta. É o mesmo espaço para o que se lançam seus Pássaros. Do antigo
simbolismo da «coluna do céu», Brancusi reteve unicamente o elemento
central: a ascensão tanto como a transcendência da condição humana. Mas
conseguiu revelar a seus contemporâneos que se trata de uma ascensão
enlevada, carente de todo caráter «místico». Basta deixar-se «levar» pela força
da obra para recuperar a bem-aventurança esquecida de uma existência livre
de todo sistema de condicionamentos, iniciado em 1912 com a primeira
versão de Maiastra, o tema dos Pássaros resulta ainda mais revelador.
Brancusi, com efeito, partiu de um célebre motivo folclórico romeno para
desembocar, ao longo de um dilatado processo de «interiorização», em um
tema exemplar, ao mesmo tempo arcaico e universal. Em Maiastra, mais
exatamente Paserea maiastra (literalmente «o pássaro maravilhoso»), é uma
ave fabulosa dos contos populares romenos que assiste ao Príncipe encantado
(Fat-Frumos) em seus combates e em suas provas. Em outro ciclo narrativo,
Maiastra consegue roubar as três maçãs de ouro que dá cada ano uma
macieira maravilhosa. Só um filho de rei pode lhe ferir ou lhe capturar. Em
algumas variantes, uma vez ferido ou capturado, o «pássaro maravilhoso»
resulta ser uma fada. Dir-se-ia que Brancusi quis insistir neste mistério da
dupla natureza sublinhando, nas primeiras variantes (1912-1917), a
feminilidade de Maiastra. Mas seu interesse centrou-se muito em breve no
mistério do vôo.
Ionel Jianou recolheu estas declarações do mesmo Brancusi: «quis que
Maiastra levantasse a cabeça sem que esse movimento significasse ferocidade,
orgulho ou desafio. Foi o problema mais difícil e só através de um longo
esforço obtive que esse movimento se integrasse no arranque do vôo». A
Maiastra, que no folclore é quase invulnerável (só o Príncipe consegue feri-la),
converte-se em Pássaro no espaço; dito de outro modo, o que agora se trata de
expressar na pedra é o «vôo mágico». A primeira versão de Maiastra como
Pássaro no espaço data de 1919, e a última de 1940. Finalmente, como escreve
Jianou, Brancusi consegue «transformar o material amorfo em uma elipse de
superfícies translúcidas de uma pureza assombrosa que irradia a luz e
encarna, em seu impulso irresistível, a essência do vôo».
Também dizia Brancusi: «Não procurei durante toda minha vida outra
coisa que a essência do vôo... O vôo, que felicidade!». Não tinha necessidade
de ler os livros para saber que o vôo é um equivalente da felicidade, já que
simboliza a ascensão, a transcendência, a superação da condição humana. O
vôo proclama que a pesantez fica abolida, que se produziu uma mutação
ontológica no mesmo ser humano. Os mitos, contos e lendas relativos aos
heróis ou aos magos que se movem livremente entre a terra e o céu se acham
universalmente difundidos. Com as imagens da ave, as asas e o vôo se
relacionam numerosos símbolos alusivos à vida espiritual sobretudo às
experiências enlevadas e aos poderes da inteligência. O simbolismo do vôo
traduz uma ruptura levada a cabo no universo da experiência cotidiana. É
evidente a dupla intencionalidade desta ruptura: trata-se ao mesmo tempo da
transcendência e da liberdade que se conseguem mediante o «vôo».
Não é este o momento de reatar as análises que oferecemos em outros
lugares. O certo é, entretanto, que se chegou a demonstrar que nos níveis
distintos, mas relacionados entre si, do sonho, da imaginação ativa, da criação
mitológica e do folclore, dos ritos, da especulação metafísica e da experiência
enlevada, o simbolismo da ascensão significa sempre a ruptura, de uma
situação «petrificada», «bloqueada», a ruptura de níveis que faz possível o
trânsito para outro modo de ser, a liberdade, em resumidas contas, de mover-
se, quer dizer, mudar de situação, de abolir um sistema de condicionamentos.
É significativo que Brancusi se sentisse obcecado durante toda sua vida pelo
que ele chamava a «essência do vôo». Mas, é extraordinário o fato de que
conseguisse expressar o arranque ascensional utilizando o arquétipo mesmo
da pesantez, a «matéria» por excelência, a pedra. Poderia quase dizer-se que
operou uma transmutação da «matéria», mais exatamente que levou a cabo
uma coincidentia oppositorum, pois no mesmo objeto coincidem a «matéria» e o
«vôo», a pesantez e sua negação.
Mircea Eliade
junho de 1967
Universidade de Chicago
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