Você está na página 1de 3

A PAIXÃO DA FEMINISTA

Rebecca se dizia feminista. Era uma negra bonita de 23 anos,


cabelos cacheados, olhos castanhos escuros, porte altivo e esguio.
Suas roupas, feitas pela avó, realçavam seu corpo escultural. Ela
estava decidida a contribuir como mulher e cidadã para um mundo
mais justo. Desde que fora aprovada no vestibular e ingressara no
Curso de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ,
uma proeza para uma moça pobre daquela época, ela sonhava com
o dia em que homens e mulheres seriam iguais. Eram os anos 90 e
o “politicamente correto” ensaiava seus primeiros passos. A família,
gente simples e honesta, apoiava Rebecca e ajudava na compra
dos livros caros. O curso de direito era diurno e ela não tinha como
trabalhar.

Apesar de ser o centro das atenções em casa, Rebecca


desenvolveu uma atitude prepotente e arrogante que começou a
criar problemas no ambiente doméstico. Para ela, os pais estavam
errados e eram ignorantes e os irmãos, que eram três, dois deles
mais velhos que ela, eram completamente alienados. “Não é culpa
de vocês, é o sistema que precisa mudar” afirmava ela ao destratar
os pais, algumas vezes até em público. Se alguém a contrariasse
na faculdade ou qualquer outro ambiente ela simplesmente
afirmava para si e para os outros “esse racismo vai acabar, nós,
negros, ainda vamos sair da senzala e estaremos juntos na casa
grande”.

Mas por trás de suas atitudes “politicamente corretas”, seu


ativismo e feminismo, Rebecca tinha um segredo que não
combinava com a negritude que gritava nem como o feminismo que
defendia. Ela não conseguia esconder de si mesma a paixão que
Ricardo, o vizinho – caminhoneiro, 32 anos, alto, cabelos quase
louros, divorciado, branco, de família italiana, que voltara a viver
com os pais depois do divórcio - despertava nela. Para uma
feminista, Ricardo representaria a escória dos homens: estúpido,
grosso, mal educado, machista e por aí vai. Ricardo tinha todos os
defeitos dos homens, contra os quais as mulheres vinham lutando
por décadas.
Ricardo jamais trocara uma palavra com ela. Mas isso não a
impedia de alimentar essa paixão doentia. Ela poderia começar o
diálogo, mas no fundo achava que ele poderia ser racista, humilhar
a condição dela de negra e Rebecca não iria suportar isso. Todos
na família eram brancos, ela não via nenhum negro agregado, nem
nos círculos de amizade dos vizinhos. “Eles são racistas” concluiu.
“Ele nunca vai se relacionar com uma negra” ela se desesperou.
Teve raiva de si mesma. Meu Deus, como isso aconteceu comigo.
“Tenho certeza que são racistas” – dizia para si mesma quase
chorando. Se sentiu a pior das negras e a pior das mulheres. Que
destino!

Mas ela não conseguia resistir ao seu próprio coração.


Gostava de tudo nele. Gostava da voz. Gostava do jeito, do falar
errado e arrastado. Uma ocasião, sempre de longe, conseguiu vê-lo
rindo. Uma risada larga, máscula e viril. Rebecca sentiu quase uma
gostosa dor física. Ficou feliz o dia inteiro. Não era mais feminista
nem ativista. Era uma mulher apaixonada. Só isso.

Quando o caminhão chegava na rua, depois de muitos dias na


estrada, era mais forte que ela ficar no quarto. Abandonava os livros
e corria para o portão só para vê-lo descer do caminhão e entrar em
casa. Ele abria o portão da casa dos pais, e apesar da presença
dela tão visível – eram vizinhos de porta- não falava com ela.
Quando ele estava em casa, ela sabia que Ricardo iria lavar o
caminhão, beber cerveja, brincar com o Thor,o cachorro pitbull. À
noite ele sempre ficava em casa. Ela no quarto, pela janela, olhava
o homem amado com o qual jamais trocara palavra alguma apesar
de vizinhos de muitos anos. Os pais atribuíam essa reclusão da
filha ao fato dela ser caseira e estudiosa.

Uma noite de sábado, ela ouviu uma voz de mulher diferente


na casa ao lado, espontânea e agradável. Pela fresta da janela ela
não conseguiu ver a dona da risada. Alguém chamou o Ricardo:
“vem cá, meu amor”. Rebecca ficou arrasada e triste. Odiou aquela
mulher da voz bonita. Odiou sua condição de negra, de pobre.
Mundo injusto. Por que logo com ela acontecia aquilo?
Quinze dias depois tocaram a campainha. Era D. Leila, mãe
Ricardo. Os pais tinham saído e Rebecca foi atender a porta:

- Bom dia, vizinha. Tudo bem?

- Tudo bem e com a senhora?

- Tudo. Seus pais não estão; já vi. Olha,vim trazer um convite para
o noivado do meu filho Ricardo. Vai ser algo simples, bem família,
Vocês são nossos vizinhos de muitos anos.

- Ricardo vai ficar noivo? Ela perguntou quase sufocada, inundada


por uma tristeza infinita.

- Vai sim, com uma moça maravilhosa. Você sabe como ele é
tímido. Aliás, ele me disse que nunca falou com você porque
achava você tão culta, tão bonita e ele é um simples caminhoneiro.
Aliás, ela esta lá em casa, Vou chamar para você conhecer. E
gritou para a futura nora: - Solange,vem aqui!

Uma moça apareceu no portão e fez um sinal amistoso para D.


Leila e Rebecca. Era jovem, linda e negra.

HISTÓRIAS DA ILHA

Dionildo Dantas

Você também pode gostar