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O buraco negro do pemedebismo

Joana Salém Vasconcelos I

U Imobilismo em movimento
m dos grandesméritos do livro conservador da transição. José Sarney é
de Mar- a figura mais representativa desse pro-
cos Nobre, filósofo e professor da Uni- pósito: um quadro do PFL, derivado da
camp, é a criação da categoria pemedebis- Arena, aliado e depois filiado ao PMDB.
mo. Por meio dela, o autor reconstitui a Para garantir a blindagem do sistema po-
lógica conservadora do sistema político lítico, seria necessário atrair para dentro
brasileiro na transição democrática, de do partido a maior quantidade possível
1979 até hoje, que teria resultado em de agrupamentos que resguardassem a
uma blindagem das instituições à parti- ordem. Foi criada, então, a forma orga-
cipação popular. O tema vem a calhar: nizativa do pemedebismo: um sistema
com as revoltas de junho de 2013, as de vetos, pelo qual cada fração que fosse
contradições entre sistema político e suficientemente forte para chantagear as
forças sociais simplesmente adquiriram outras exerceria seu poder de obstrução
carne e osso. Os protestos deram vasão das iniciativas indesejáveis. O sistema de
a um sentimento antipemedebista, que vetos se externalizou com a bancada co-
eclodiu de modo relativamente espontâ- nhecida como Centrão na Constituinte
neo e desorganizado. Mas em que con- de 1988, que ocupou o espaço de me-
siste, afinal, o pemedebismo? diador inescapável de quase todos os
Origens do pemedebismo partidos que disputavam os rumos da
redemocratização. O preço de não ne-
Segundo Marcos Nobre, o pemede-
gociar com o Centrão era um considerá-
bismo é o modus operandi de uma cultu-
vel isolamento.
ra política essencialmente conservadora,
de baixo teor democrático, formada e O autor recorda que uma das con-
estabelecida nas instituições brasileiras quistas do Centrão foi atrelar as de-
desde os anos 1980. Não se refere ape- mandas sociais incorporadas no texto
nas ao PMDB, ainda que a legenda tenha constitucional às leis complementares
sido protagonista de seu surgimento. que dependiam de regulamentação pos-
terior. Dessa forma, garantias sociais fo-
A história começa em 1979, quan-
ram aprovadas, porém postergadas. Só
do a abertura ao pluripartidarismo en-
seriam efetivas caso o pemedebismo as
gendrou o temor, entre líderes do en-
tolerasse. O resultado, já conhecemos:
tão MDB, da perda do monopólio da
uma Constituição largamente mais so-
oposição. Para evitar a fragmentação e a
cial-democrática do que a realidade bra-
consequente pulverização de seu papel
sileira.
histórico, o PMDB estabeleceu um prin-
cípio norteador e uma forma organizati- Condomínio pemedebista
va que, posteriormente, encarnaram nos Quando essa lógica se consolidou,
três poderes da República. O princípio após o impeachment de Collor, o sistema
norteador era o bloqueio da participação político brasileiro já estaria então consti-
popular direta e a garantia do controle tuído como um “condomínio pemede-

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bista”. Novos loteamentos puderam sur- O mote da governabilidade, combi-
gir na particular correlação de forças dos nado a um refluxo geral das lutas sociais
partidos políticos dominantes, desde que de massas depois de 1992, consolidou
houvessem incorporado o princípio da o pemedebismo como lógica essencial
blindagem conservadora. Com a noção do sistema político. A partir de então,
de “condomínio pemedebista”, o filósofo aqueles que pretendessem dirigir o país
demarca o autoritarismo inerente da de- teriam, antes, que dirigir o pemedebismo.
mocracia brasileira, rejeitando a ideia de Segundo Nobre, foi esse o mesmo
“presidencialismo de coalizão” que, se- caminho que permitiu que Fernando
gundo ele, aparenta descrever um sistema Henrique Cardoso implementasse o
muito mais democrático do que aquele bem-sucedido Plano Real em 1994 e que
realmente existente (2013, p.15-16). Lula pudesse lançar mão de seus progra-
A particularidade do pemedebismo mas de transferência de renda a partir de
em relação a outras “democracias blin- 2005 (marcadamente o Bolsa Família, o
dadas” do mundo contemporâneo se aumento do salário mínimo e o crédito
concentraria em cinco procedimentos tí- consignado). O PT, que nos anos 1990
picos. Em primeiro lugar, o governismo: demarcou o espaço de força antipeme-
estar sempre no governo, independente- debista, teria também sucumbido à atra-
mente de qual força política o dirige. Foi ção do buraco negro após o escândalo
assim que o pemedebismo gestou parti- do mensalão. A tática petista teria sido,
dos políticos anódinos e amorfos, cuja então, a “ocupação pela esquerda do pe-
única finalidade é ampliar seu próprio medebismo” (2013, p.103) − se é que
lote no condomínio, independentemen- isso é possível.
te de quem seja o síndico. Em segundo Associar-se ao condomínio exige pa-
lugar, a criação de supermaiorias legisla- gamento de altos dividendos. Como
tivas como instrumento estratégico de destacou o autor, o pemedebismo nunca
ameaça e, afinal, como arma principal do perdoa uma dívida. Sendo assim, após
sistema de vetos. Em terceiro lugar, uma atrair o PT, seu mais forte polo oposi-
hierarquia desses vetos, isto é, as frontei- tor dos anos 1990, o pemedebismo deu
ras móveis pelas quais seria possível con- origem a dois movimentos. Primeiro, a
torná-los. Em quarto lugar, a obstrução eliminação da oposição e consequente
da entrada de novos membros no condo- fim da polarização programática real na
mínio, que encontrou recente expressão democracia brasileira. Segundo, a con-
na proposta da cláusula de barreira. E em solidação da blindagem do sistema po-
quinto lugar, a prática de evitar, sempre lítico. Assim, garantiu sua essência con-
que possível, qualquer debate público, servadora com considerável estabilidade
realizando negociações preferencialmen- até junho de 2013, quando todos os
te nos bastidores e impedindo que dis- procedimentos típicos da cultura políti-
cussões ultrapassem os corredores dos ca autoritária que estruturou a redemo-
gabinetes. Esses cinco procedimentos cratização do Brasil foram irremediavel-
mente alvejados.
foram incorporados ao sistema político
com tal profundidade, que exercem a Ciclos históricos
atração de um buraco negro sobre todos O autor também tem o mérito de
os partidos que se aproximam. propor uma periodização interessante da

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transição democrática, na qual identifica
três ciclos históricos. O primeiro, entre
1979 e 1994, foi marcado pela criação
e consolidação do pemedebismo. Ape-
sar de a inflação figurar como principal
problema a ser resolvido pelo governo
brasileiro de então, o pemedebismo não
foi capaz de solucioná-lo, pois não esta-
va disposto a romper bruscamente com
o paradigma de regulação dos merca-
dos herdado da ditadura, uma vez que
seria próprio da sua natureza imobilista
procrastinar qualquer ordem de mudan-
ças significativas. Foi Collor quem teria
aberto o caminho do desmonte desse
Nobre, M. Imobilismo em movimento.
paradigma.
São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
No segundo período, entre 1994 e
2002, FHC logrou dirigir o pemedebis-
mo para executar as adiadas mudanças
econômicas. Os tucanos responderam
ao problema da inflação com o Plano cou a substituição do problema nacional
Real, com a forte centralização da polí- norteador da polarização. Com a infla-
tica fiscal sob a égide do governo federal ção controlada, emergiu no centro das
e com a adoção de um pacote neoliberal disputas a questão das desigualdades so-
(juros altos, privatizações de setores es- ciais, principal objeto do debate público.
tratégicos, abertura econômica, superá- Contudo, se por um lado o PT buscou
vit primário, política salarial restritiva). se diferenciar de seu antecessor com po-
Se o período anterior foi marcado por líticas mais amplas de compensação so-
uma luta do PMDB para comandar seu cial, não abandonou os cânones da orto-
condomínio, já aqui o centro da dispu- doxia neoliberal e tampouco conseguiu
ta se deslocou para a polarização entre se livrar do pemedebismo, imiscuindo-
PT e PSDB. Nos anos 1990, enquanto o -se em sua lógica. Obcecada com o pro-
PT estava disposto a garantir as conquis- blema já contornado da hiperinflação e
tas sociais da Constituição, o PSDB se adivinhando uma heresia econômica do
mostrou propenso a rifá-las em nome do petismo que simplesmente não ocorreu,
combate à inflação. A vitória dos tucanos a oposição tucana perdeu fôlego, dando
se explicaria porque, ao mesmo tempo origem ao que Nobre chama de “fim da
que conseguiram dirigir o pemedebis- polarização”. Ou, em outras palavras, a
mo, priorizaram a solução do problema vitória retumbante do pemedebismo.
mais emergencial do país. Ao solucioná- Canoa furada?
-lo, contudo, não souberam dar o próxi- Apesar dessas virtudes, o livro de
mo passo. Marcos Nobre apresenta um déficit con-
O terceiro período, iniciado com a ceitual que compromete relativamente
vitória eleitoral de Lula em 2002, mar- sua proposta: uma forte imprecisão a res-

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peito dos conceitos de desenvolvimento e uma mesma categoria, o projeto de João
desenvolvimentismo.1 O autor organiza Goulart e o dos militares. Mas o deba-
sua narrativa a partir das noções de “cul- te histórico sobre o desenvolvimento
tura política” e “modelo de sociedade”, nacional dos anos 1930 aos 1970 con-
que expressariam “processos sociais mais frontou intelectuais e lideranças brasilei-
profundos” do que as convencionais es- ras com visões de mundo radicalmente
feras da política e da economia (2013, opostas. Ao desconsiderar as profundas
p.22). A trajetória do pemedebismo faz clivagens internas presentes no paradig-
parte da dimensão da cultura política e ma desenvolvimentista, empacotando-as
constitui o fio condutor forte do ensaio. em um mesmo “modelo de sociedade”,
Porém, no que diz respeito à dimensão Nobre cria uma teleologia na qual o gol-
nomeada como “modelo de sociedade”, pe militar de 1964 perde o sentido. Em
a análise fica aquém do esperado. Sendo outras palavras, dentro do paradigma
essa uma espécie de fio condutor auxi- desenvolvimentista, se chocaram ten-
liar, alguns problemas se disseminam ao dências ideológicas de extrema esquerda
longo do livro. (socialistas) e extrema direita (fascistas),
Para Nobre, um “modelo de socie- passando por reformistas de tipo social-
dade não é apenas um programa econô- democrata, trabalhista ou elitista. Assim,
mico, nem somente uma maneira deter- tanto o debate ideológico quanto o debate
minada de entender a política, mas um distributivista no interior desse paradig-
padrão de regulação social mais amplo” ma foram e são centrais para qualquer
(2013, p.22). Em seu esquema, as no- consideração histórica do tema. Como
ções de “nacional-desenvolvimentismo” decorrência, Nobre criou uma tábula
e “social-desenvolvimentismo” seriam rasa do período anterior a 1980.
modelos de sociedade específicos, ado- É por isso que seu ensaio sucumbe à
tados durante ciclos históricos deter- tese do “milagre econômico”, repetindo
minados. O problema é que sua análise a ideia de que durante a ditadura militar
econômica traz indefinição e incoerência teria ocorrido uma “melhora geral” dos
sobre o significado de desenvolvimento. padrões de vida brasileiros sobre a qual
Com isso, sua interpretação corre o risco se apoiou a “desigualdade sustentável”
de se converter em uma espécie de canoa do modelo de sociedade adotado (2013,
furada. Limito-me a elencar uma fonte e p.29-31). Desconsidera-se, assim, o lar-
duas propagações desse problema. gamente investigado arrocho salarial
Nacional-desenvolvimentismo do período, componente estratégico
antes de 1980 do projeto militar, que se localizava no
Em primeiro lugar, a fonte da im- polo conservador do paradigma desen-
precisão está no uso genérico do termo volvimentista (por exemplo, ver Costa,
“nacional-desenvolvimentismo”. Ao de- 1997). Muito diferente, portanto, do
-finir o modelo de sociedade do perío- projeto de capitalismo social-democrá-
do anterior à crise da hiperinflação dos tico de João Goulart e Leonel Brizola,
anos 1980 a partir do amplo guarda- para não mencionar a revolução brasi-
-chuva conceitual de um indetermina- leira de Caio Prado Jr. Ao desconsiderar
do “nacional-desenvolvimentismo”, o os debates ideológicos e distributivis-
autor comete o deslize de abarcar, em tas no interior do modelo de socieda-

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de nacional-desenvolvimentista, Nobre o enquadraria em um determinado lu-
desresponsabiliza-se de identificar os gar programático, ainda que flexível.
pressupostos conflitantes que sustentam Entretanto, ao elencar os procedimen-
esse termo, o que explica seu emprego tos típicos dessa cultura política, Nobre
errático. enfatiza justamente seu caráter pouco
Nacional-desenvolvimentismo programático e amórfico. Disso surge
e pemedebismo o seguinte impasse: ou o pemedebismo
era representante desse nacional-desen-
A tábula rasa do “nacional-desenvol-
volvimentismo tradicional, ou era sufi-
vimentismo” dá origem a um problema
cientemente versátil para se adaptar ao
mais grave quando essa noção indeter-
mais feroz neoliberalismo, sem nunca
minada se projeta para o período privile-
sair do centro da vida política brasileira.
giado do ensaio: a transição democrática.
De acordo com elementos do próprio
A formação do pemedebismo coincidi-
ensaio, a segunda hipótese guarda mais
ria com a crise do modelo de sociedade
semelhança com a realidade.
nacional-desenvolvimentista, em plena
turbulência depois de dois choques do O que nos leva ao terceiro ponto: se-
petróleo e do “choque Volcker” (2013, ria esse desmonte do modelo de socie-
p.32). Nobre sustenta que “como repre- dade um “limitador” do pemedebismo?
sentante de setores nacional-desenvolvi- De acordo com o próprio autor, a crise
mentistas tradicionais, o pemedebismo do modelo de sociedade coincidiu preci-
se viu confrontado com a inevitabili- samente com a gestação da cultura polí-
dade do desmonte do modelo e teve tica pemedebista. Foi a lógica do peme-
de se adaptar à nova situação. A partir debismo que passou a ditar os ritmos e
daí, o pemedebismo estava limitado ao sentidos das mudanças que se seguiram,
balcão das compensações caso a caso, tirando proveito do desmonte nacional-
aos acertos de bastidores” (2013, p.88, -desenvolvimentista e dele se desemba-
grifos nossos). Três questionamentos raçando com relativa agilidade rumo às
direcionados a essa afirmação parecem privatizações. O neoliberalismo e seu
pertinentes para uma percepção crítica vórtice fragmentário, enfim, parecem ter
do nexo entre nacional-desenvolvimen- catalisado o pemedebismo e não lhe im-
tismo e pemedebismo. posto qualquer tipo de limite.
Em primeiro lugar, quem seriam, Em suma, não parece haver uma
afinal, os “setores nacional-desenvolvi- identificação suficientemente nítida en-
mentistas tradicionais”? Nobre não dei- tre a cultura política pemedebista e o
xa claro, uma vez que não estabeleceu modelo de sociedade nacional-desen-
os parâmetros de diferenciação interna volvimentista, como pretende Nobre, o
do nacional-desenvolvimentismo. Ainda que se soma à indefinição do significado
que seja fácil supor que se trata dos se- de desenvolvimento.
tores conservadores, permanecemos sem Social-desenvolvimentismo
saber com quais pressupostos o autor Outro problema, derivado da mes-
trabalha para defini-los. ma indeterminação, está no uso do ró-
Em segundo lugar, se o pemedebis- tulo “social-desenvolvimentismo” para
mo era representante desses setores, isso o projeto impulsionado pelos governos

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do PT. Não são indicados, novamente, um “novo padrão de desenvolvimento”,
quais parâmetros sustentam o emprego que teria realizado “uma rápida adapta-
do termo. Sobre isso, o autor entra em ção do país ao boom de commodities e a
contradição. uma economia global movida pela gan-
Por um lado, Nobre afirma a conti- gorra EUA-China” (2013, p.118). Ora,
nuidade da ortodoxia “tipicamente neo- não há nada mais velho no Brasil do que
liberal” de FHC, destacando inclusive a exportação de matérias-primas. Em
que “o governo Lula manteve e até mes- outras palavras, a despeito da ampliação
mo aprofundou a política econômica das políticas compensatórias, a ortodo-
implantada em 1999” (2013, p.106). xia neoliberal constituiu um pacote de
Essa política consistiria em um pacote desestímulo ao investimento produtivo
composto por aumento de taxas de ju- dos setores voltados para o mercado in-
ros, câmbio flutuante, abertura desregu- terno e um hiperestímulo ao segmento
lada ao capital estrangeiro, metas de in- primário-exportador, que carregou o
flação, superávit primário, desvinculação crescimento econômico da década de
de receitas da União, privatizações/con- 2000. Definitivamente, não se trata de
cessões de setores estratégicos e infraes- um “novo padrão”. Para discuti-lo, há
trutura, Lei de Responsabilidade Fiscal, uma pergunta estratégica: quais setores
Reforma da Previdência, entre outros. sociais brasileiros foram imediatamente
Some-se a isso o período em que o câm- favorecidos pelo boom de commodities e
bio esteve artificialmente elevado, como pelos juros altos?
consequência irrefletida da política mo- Poder-se-ia, enfim, alegar que os go-
netária estadunidense após a eclosão da vernos petistas adotaram uma “política
crise de 2008, o que logicamente dificul- anticíclica” de incentivo ao consumo
tou a atividade da indústria nacional. Em após a eclosão da crise, o que amorte-
síntese, postula-se que “o governo Lula ceu seus impactos durante um período
prosseguiu o trabalho do anterior de determinado. Entretanto, seria o incen-
desmonte do amálgama de pemedebismo tivo ao consumo item suficiente para o
e nacional-desenvolvimentismo” (2013, emprego do termo desenvolvimentismo,
p.117-8, grifos nossos). quando quase todos os outros sinais
Por outro lado, Nobre escreve que apontam para outro lado?
a tática petista a partir de 2005 “signifi- De fato, houve uma pequena infle-
cou nada menos do que a consolidação xão no governo Dilma entre maio de
da primeira imagem do social-desenvol- 2011 e agosto de 2012, que o cientis-
vimentismo, um modelo de sociedade ta político André Singer definiu como
internamente vinculado à democracia “ensaio desenvolvimentista”. Além de
e marcado pelo combate às diferentes baixar os juros e experimentar algumas
formas de desigualdade” (2013, p.103, medidas macroprudenciais, o governo
grifos nossos). Mas, afinal, os governos desonerou o investimento privado e li-
petistas foram desenvolvimentistas ou berou financiamentos do BNDES. Con-
prosseguiram o trabalho de desmonte tudo, as expectativas foram rapidamente
desse modelo de sociedade? frustradas. Não podemos nos surpreen-
Ainda caracterizando os governos der com o fato de que uma burguesia
petistas, Nobre alega o surgimento de convertida ao rentismo e habituada a

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juros estratosféricos há mais de vinte Conclusão
anos não tenha respondido com investi- Ao contrário do lulismo de André
mentos produtivos quando esses foram Singer, que ao fim e ao cabo legitima os
momentaneamente facilitados pelo go- limites do chamado “reformismo fraco”
verno. Isso reduziria seu padrão de lu- dos governos petistas por meio da hi-
cratividade e a obrigaria a trabalhar com pótese do “conservadorismo popular”,
desagradáveis ciclos de médio e longo o pemedebismo é um conceito crítico,
prazo. Atualmente, o ensaio acabou: as por dois motivos. Em primeiro lugar,
taxas de juros já retomaram a trajetória porque identifica, em perspectiva histó-
de alta e estão no caminho para atingir rica, os obstáculos autoritários que blin-
antigos recordes. dam o sistema político brasileiro contra
Por tudo isso, se tomarmos elemen- as demandas sociais. Ao caracterizar os
tos trazidos pelo próprio autor, o “mo- procedimentos típicos do condomínio
delo de sociedade” do ciclo petista seria pemedebista, miram-se alguns alvos im-
mais precisamente definido como social- portantes de uma reforma política que
-liberal, o que alteraria o sentido históri- “democratizasse a democracia” no Bra-
co apresentado no ensaio. sil. Em segundo lugar, porque aponta
Em suma, ao tentar coordenar a “cul- para a necessidade de superação estru-
tura política” pemedebista com o con- tural desses entraves, considerando que
flito entre diferentes “modelos de socie- a única postura capaz de executar o de-
dade”, Nobre acaba enfraquecendo sua safio é o antipemedebismo. Justamente
interpretação, uma vez que não apresen- por isso, o ensaio está bem posicionado
ta parâmetros conceituais mínimos para para compreender a natureza política das
que os termos do debate econômico so- revoltas de junho de 2013, identifican-
bre desenvolvimento ganhem coerência do os limites estruturais do sistema par-
histórica e teórica.2 tidário brasileiro em geral, e do PT em
Por último, mas não menos impor- particular, para qualquer superação ou
tante: ao privilegiar uma terminologia ruptura da cultura política pemedebista.
genérica, o autor se esquivou de um O ensaio, contudo, não foi capaz de
nexo concreto entre o pemedebismo realizar o nexo entre “cultura política” e
e os modelos de sociedade: o financia- “modelo de sociedade”. Primeiro, pela
mento empresarial dos partidos políti- indeterminação com que emprega os
cos. Em outras palavras, quem compra termos desenvolvimento e desenvolvimen-
o condomínio leva um lote maior, seja tismo. Segundo, por não abordar com a
por meio do desmonte do nacional-de- devida importância o financiamento em-
senvolvimentismo (a exemplo da venda presarial do sistema partidário como ver-
da Vale do Rio Doce por FHC), seja dadeira base material do pemedebismo.
por meio de sua reinvenção como farsa De que maneira, por exemplo, as várias
(das construtoras brasileiras em tempos frações da classe dominante, escondidas
de Copa do Mundo ou das bolhas es- por trás do condomínio, operam e se
peculativas de Eike Batista financiadas beneficiam com o “fim da polarização”?
pelo BNDES). Ao abster-se de qualquer Afinal, não seria o capital que compra os
menção ao tema, seu esquema analítico partidos políticos a verdadeira torrente de
se enfraquece mais uma vez. água suja que movimenta o imobilismo?

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Notas Nobre, M. Depois da “formação”.
Piauí, n.74, p.74-77, nov. 2012.
1 É possível que essa imprecisão tenha
origem na hipótese de Nobre sobre a _______. Imobilismo em movimento. São
obsolescência do paradigma da forma- Paulo: Companhia das Letras, 2013.
ção nacional, expressa no artigo “De-
pois da ‘formação’” publicado na re-
vista Piauí em novembro de 2012. Ao
considerar que o problema da formação
está historicamente suplantado desde a
crise dos anos 1980, Nobre pretere as
teorias do desenvolvimento, do subde-
senvolvimento e da dependência como
perspectivas não mais válidas para com-
preender e transformar o que chama
de “nova realidade brasileira”. Como
alternativa, acredita na necessidade de
“deixar para trás velhos fantasmas teóri-
cos e práticos” e criar uma nova agenda,
adequada à chamada “lógica das redes”
e a um “novo padrão de moderniza-
ção” do Brasil, caracterizado por uma
“margem de manobra inédita” (Nobre,
2012, p.77). Talvez por isso empregue
os termos desenvolvimento e desenvolvi-
mentismo de maneira indeterminada, já
que caracterizá-los implicaria tomar uma
posição clara dentro de um paradigma
que ele mesmo considera obsoleto. Dis-
cutir os pressupostos teóricos desta im-
precisão, contudo, está muito além do
objetivo desta resenha.
2 Outra imprecisão foi cometida no terri-
tório da sociologia: em seu debate com
Singer anexado ao livro, Nobre afirma
ter “muitas dúvidas em relação ao poder
explicativo da noção de ‘subproletaria-
do’” (2013, p.175). Ele mesmo, con- Joana Salém Vasconcelos é formada em
tudo, emprega a estereotipada categoria História pela USP (2010) e é mestre em
de “povão” (2013, p.132) para identi- Desenvolvimento Econômico pelo Insti-
ficar a base social lulista. Mas esse seria tuto de Economia da Unicamp (2013).
É professora do curso de Licenciatura em
outro debate.
Geografia das Faculdades Integradas de
Ciências Humanas, Saúde e Educação de
Referências
Guarulhos. @ – joana.salem@gmail.com
COSTA, E. A política salarial no Brasil.
1964-1985: 21 anos de arrocho salarial e I
Faculdades Integradas de Ciências Hu-
acumulação predatória. São Paulo: Boi- manas, Saúde e Educação de Guarulhos,
tempo, 1997. Guarulhos/SP, Brasil.

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