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O CONTRATO DE FORNECIMENTO NO SECTOR DA GRANDE

DISTRIBUIÇÃO A RETALHO: PERSPECTIVAS ACTUAIS

CAROLINA CUNHA(*)

1 - O contrato de fornecimento e a distribuição comercial; 2 -


Caracterização do contrato de fornecimento e emergência do
fenómeno da cooperação comercial; 3 - Os descontos ligados ao
produto; 4 - Os descontos ligados à prestação de utilidades ao
fornecedor; 5 - Construção jurídica dos diversos descontos; 6 -
Lançamento dos descontos em conta corrente; 7 - Qualificação da
nova figura como contrato misto; 8 - Obstáculos de direito positivo:
a desadequação do regime da venda com prejuízo à nova fattispecie;
9 - A concorrência no comércio a retalho generalista e a técnica do
loss leader pricing.

1 - O contrato de fornecimento constitui, porventura, um dos instrumentos


jurídicos mais antigos daquilo a que se convencionou chamar distribuição comercial1.
É, todavia, habitualmente descurado pela doutrina em prol de figuras mais
recentes – com destaque para a agência, a concessão e a franquia –, que integram
a moderna categoria dos contratos de distribuição2.
Este relativo alheamento doutrinal não traduz um declínio do recurso ao
contrato de fornecimento na prática jurídica. Pelo contrário, em determinados

(*) Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.


1 M. BEHAR-TOUCHAIS/ G. VIRASSAMY, Les contrats de la distribution, L.G.J.D., Paris, 1999,
pp. 1-2, salientam o papel pioneiro desempenhado pelo contrato de fornecimento nos alvores do
desenvolvimento da moderna distribuição.
Note-se que, na esteira de ROBERTO PARDOLESI, I contratti di distribuzione, Editore Jovene
Napoli, 1979, pp. 6-11, nos referimos à distribuição comercial em sentido lato, como processo de criação
de utilidades de espaço e de tempo entre produtor e utilizador final, subsequente ao advento da
revolução industrial e da produção em massa. O Autor (p. 11) chama igualmente a atenção para a
crescente complexidade do fenómeno, no contexto dos actuais mercados caracterizados, de um lado,
por “uma irreversível especialização da oferta” e, de outro, por “uma pulverização sobre áreas
cada vez mais extensas de uma procura frequentemente sujeita a repentinas mutações”.
2 Sobre os contornos desta categoria jurídica, ver, por todos, A. PINTO MONTEIRO, Direito

comercial - Contratos de distribuição comercial. Relatório, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 69, ss. O Autor
identifica como nota fundamental a presença da obrigação de o distribuidor promover os negócios da
outra parte, zelando pelos respectivos interesses. Conservando a independência jurídica, todos os
distribuidores recebem instruções da contraparte, “aceitam as suas orientações de política comercial,
sujeitam-se ao seu controlo e fiscalização, em ordem à sua (maior ou menor) integração em determinada
rede comercial”, com o que se gera “uma relação de colaboração (mais ou menos) intensa e duradoura”
(pp. 71-72, sublinhados conforme o original).
Sobre a génese do contrato de agência, enquanto mecanismo jurídico de articulação de
interesses no contexto da estruturação do circuito de distribuição, pode ver-se o nosso A
indemnização de clientela do agente comercial, Coimbra Editora, 2003, pp. 412, ss.

1
sectores de actividade, aparece como instrumento de eleição na tarefa de estruturar as
ligações económicas entre produtores e distribuidores.
É o que sucede no domínio das relações entre os produtores (em sentido
amplo, incluindo, portanto, grossistas e importadores)3 e a denominada grande
distribuição (de que surgem como expoentes máximos os hipermercados)4.
Com efeito, dando razão a quem profetiza que, no contexto da distribuição
comercial, a figura do contrato em geral parece destinada a conservar a sua
“poderosa vitalidade”5, o contrato de fornecimento não só continua bem vivo,
como ainda apresenta uma saúde renovada.
Queremos com isto referir-nos à progressiva penetração, na base jurídica do
fornecimento, de um conjunto de tendências que, de modo diverso, também se
manifestam nos modernos contratos de distribuição.
O que não deve surpreender-nos: quaisquer que sejam as opções jurídico-
negociais que concretamente acabem por ser tomadas, as necessidades sentidas
pelos produtores na configuração do canal distributivo convergem no mesmo
sentido: reduzir a distância que os separa do consumidor e possibilitar-lhes
determinado acompanhamento do iter distributivo do produto comercializado6.
Pretendemos, com este breve apontamento, dar conta da nova feição que a
praxis comercial tem vindo a imprimir ao vetusto contrato de fornecimento, ao
mesmo tempo que analisamos as implicações estruturais e funcionais de
semelhante evolução.

2 - A relação negocial entre os produtores e os grandes retalhistas tem


vulgarmente por base um contrato de fornecimento. Trata-se, no caso, de um negócio
de execução reiterada7, em que uma das partes (o fornecedor) se obriga, contra o

3 Utilizando igualmente um abrangente conceito de “produtor”, neste domínio, A. PINTO

MONTEIRO, op. cit., p. 34, nota 61.


4 Para uma caracterização do mercado da grande distribuição retalhista, veja-se o estudo de

GERARDO SANTINI, Il commercio. Saggio do economia del diritto, Il Mulino, 1979, pp.55, ss. Como
aspectos principais, destaca o Autor a existência de amplas superfícies, exibindo para venda
milhares de produtos, dotadas de pessoal reduzido e onde predomina um conceito de livre
escolha/livre serviço por parte do cliente, de modo a multiplicar as transacções reduzindo ao
mínimo a actividade de negociação.
5 ROBERTO PARDOLESI, op. cit., p. 24.

6 Novamente ROBERTO PARDOLESI, op. cit., pp. 26 27. Para mais desenvolvimentos, ver o

que dizemos infra, na nota 21.


7 Embora, em outras hipóteses (v.g., fornecimento de água ou de energia eléctrica), possa

ser de execução continuada. Sobre a diferença entre prestações de execução fraccionada,


continuada e repartida, todas ingressando na categoria ampla das prestações duradouras, cfr. M. J.
ALMEIDA E COSTA, Direito das Obrigações, 9ª ed., Almedina, 2001, pp. 645-646.

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pagamento de um preço, a realizar fornecimentos periódicos ao outro contraente
(o fornecido).
O contrato de fornecimento qualifica-se como um contrato duradouro: a
satisfação do interesse do fornecido exige que as prestações do fornecedor se
realizem de forma repetida dentro de cada arco temporal. Na sugestiva ilustração
de um autor italiano8, “o dono de um bar necessita de dez quilos de café por dia
durante todo o ano, não de trinta e seis quintais de café no dia 1 de Janeiro”.
Já o objecto dos concretos fornecimentos tanto pode estar previamente
fixado como corresponder à satisfação das necessidades normais do fornecido – o
qual pode gozar da faculdade de determinar o “se”, o “quando” e o “quanto” de
cada abastecimento.
O contrato de fornecimento não dispõe de disciplina própria no nosso
ordenamento jurídico. Todavia, a sua tipicidade social é indiscutível9, além de ser
normativamente contemplado pelo art. 230º, 2º, do Código Comercial, o que lhe
confere, em nosso entender, o estatuto de contrato (legalmente) nominado10.
Em termos de estrutura, o contrato de fornecimento celebrado entre os
produtores (ou grossistas, ou importadores) e os retalhistas apresenta-se como um
contrato-quadro.
Trata-se, pois, de um esquema negocial flexível, que oferece resposta
adequada a situações contratuais complexas: “a sua originalidade deriva da
circunstância de deixar a outros contratos [os contratos de execução] a tarefa de
realizar concretamente o objectivo das partes”. 11
O contrato-quadro é fonte de uma relação obrigacional complexa cuja
execução requer, designadamente, a celebração de múltiplos contratos, de acordo

8 MASSIMO MONTANARI, Diritto Commerciale, vol. I, Giuffrè, 2001, p. 166. A tipicidade legal
do contrato de fornecimento em Itália (está previsto e disciplinado pelos arts. 1559º, ss., do
Codice Civile) explica a atenção especial que lhe dedica a doutrina daquele país – ver, além do já
citado MASSIMO MONTANARI, GIAN FRANCO CAMPOBASSO, Diritto Commerciale, vol. 3, 3ª ed.,
UTET, 2001, pp. 28-31; ou G. AULETTA/ N. SALANITRO, Diritto Commerciale, 30ª ed., Giuffrè,
2001, pp. 395-397.
9 Sobre a noção de tipicidade social, com as características da pluralidade de situações

traduzidas numa prática socialmente reconhecível como modelo de referência, P. PAIS DE


VASCONCELOS, Contratos atípicos , Almedina, Coimbra, 1995, pp. 59, ss.
10 O art. 230º, n.º 2, do Código Comercial consagra a comercialidade dos contratos de

fornecimento, entendidos – segundo a melhor doutrina – como “conjuntos ou séries de actos


(actividades) organizatoriamente enquadrados” (J. COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial,
vol. I, Introdução, Actos de comércio, Comerciantes, Empresas, Sinais Distintivos, 4.ª ed., Almedina,
Coimbra, 2004, p. 56).
11 JEAN GATSI, Le contrat cadre, L.G.D.J., 1996, p. 3.

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com os parâmetros inicialmente pactuados. Estes contratos de execução, isoladamente
considerados, configuram compras e vendas mercantis12.
Mas esta relação obrigacional complexa, ou seja, este “quadro, estrutura ou
sistema de vínculos emergentes do contrato, numa posição recíproca de
instrumentalidade e interdependência, coordenados pela sua procedência do
mesmo contrato e pela sua colocação ao serviço do fim contratual amplamente
entendido”13, não se esgota na periódica celebração de negócios de compra e venda.
A dinâmica sempre renovada das relações comerciais deu azo ao aparecimento,
no seio do contrato de fornecimento, de um conjunto de vínculos jurídicos actualmente
conhecidos por “cooperação comercial”.

3 - O fenómeno da cooperação comercial analisa-se, prima facie, na


concessão, pelo fornecedor ao distribuidor, de uma pletora de bónus ou descontos.
Analisemos os mais frequentes.
Comecemos pelo rappel, geralmente qualificado como desconto de quantidade e
que tanto pode ser fixo como baseado num certo volume de aquisições periódico
(em euros, quilos, litros, etc., comportando, eventualmente, escalões).
O desconto de quantidade constitui um abatimento na prestação pecuniária
do distribuidor estruturalmente ligado ao volume de mercadoria por ele adquirida. A mesma
qualificação merece, portanto, o chamado desconto de investimento mínimo, concedido
em virtude de se encontrar assegurada a compra de um mínimo de produtos – em lugar
de os fornecimentos se fazerem à exacta medida das necessidades do
distribuidor14.
A compreensão global do fenómeno jurídico-económico exige, porém, que
avancemos para o plano funcional: por que motivo concede o fornecedor ao
distribuidor descontos em função das quantidades adquiridas? A resposta é
simples: porque é do seu interesse criar incentivos ao escoamento dos seus produtos. Num
mercado onde existe concorrência (como acontece, em maior ou menor grau,

12 A comercialidade da venda decorre do supracitado art. 230º, n.º 2º, do Código Comercial

(ou, até, do 463º, n.º 3º, no caso de o fornecedor ser um grossista ou importador); a
comercialidade da compra resulta do art. 463º, n.º 1, do mesmo Código.
Sobre a interdependência entre o contrato quadro e os contratos de execução – estes
executam o objecto daquele; aquele é inútil sem a superveniência destes – ver, novamente, JEAN
GATSI, Le contrat cadre, cit., pp. 282, ss.
13 C. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed. por A. PINTO MONTEIRO/ P. MOTA

PINTO, Coimbra Editora, 2005, p. 186.


14 Note-se que estes últimos descontos são certos - tão certos, pelo menos, quanto o

cumprimento da obrigação de aquisição mínima que lhes está associada –, enquanto que o rappel,
seja ou não fixo, é sempre eventual – depende da aquisição de um certo volume, que poderá ou não
ocorrer consoante convenha ou não ao distribuidor.

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com os mercados a montante do comércio retalhista), vender mais implica
encorajar as compras por parte dos clientes-distribuidores. Retenhamos esta ideia.
Atentemos, também, no desconto relacionado com o lançamento de novos produtos.
Aí existe um nexo automático entre a aquisição do produto e a concessão do
desconto. Porquê ? Porque se pretende implantar um artigo novo, logo há que
estimular a sua aquisição pelos revendedores, para que se sintam predispostos a começar
a incluí-lo no seu sortido. O desconto, imediatamente associado uma qualidade
do específico produto, aparece-nos, afinal, ao serviço do fomento do volume de vendas
do fornecedor.

4 - A cooperação comercial compreende, ainda, muitos outros bónus ou


descontos. Utilizando as designações correntes na gíria, podemos mencionar o
bónus por garantia de tronco comum nacional; o bónus facing mínimo do linear; o
bónus de não devolução; ou, ainda, o bónus de organização de operações comuns
especiais.
O bónus por garantia de tronco comum nacional é um desconto que surge como
contrapartida da obrigação de manter nas prateleiras de todos os pontos de venda
pertencentes ao distribuidor os produtos constantes de uma lista-base.
Já o bónus facing mínimo do linear é a contrapartida de se assegurar ao
fornecedor, dentro dos pontos de venda do distribuidor, uma determinada área de
exposição para os seus produtos.
O bónus de não devolução é um abatimento que representa a contrapartida de o
revendedor prescindir do direito de devolução de certos produtos (v.g., os
deteriorados).
Finalmente, o bónus de organização de operações comuns especiais é um desconto
relacionado com acções de promoção aos produtos do fornecedor levadas a cabo
pelo distribuidor.
Todos estes bónus ou descontos têm em comum a circunstância de se
apresentarem como contrapartidas de certas utilidades proporcionadas pelo revendedor ao
fornecedor.
Já não existe aqui ligação estrutural ao volume de mercadoria adquirida pelo
revendedor ou à novidade do produto. O desconto aparece, pelo contrário,
estruturalmente ligado a uma utilidade ou serviço que o revendedor se obriga a prestar ao
fornecedor – seja essa utilidade a manutenção de um sortido mínimo, a concessão de
vantagens na exposição ou a promoção dos produtos, ou, mesmo, a renúncia ao
direito de devolução.

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Devido a este carácter de correspectivo de uma utilidade, a resposta
imediata à pergunta que temos vindo a colocar para todos os descontos – por que
razão são concedidos – surge, num primeiro momento, como óbvia: são concedidos para
remunerar aquelas utilidades.
Mas com semelhante resposta, ainda que exacta, não saímos do plano da
estrutura. Se queremos chegar, verdadeiramente, à função deste expediente
comercial, a pergunta a colocar é outra: qual o interesse do fornecedor na prestação
daquelas utilidades? Que benefício daí retira? Novamente: criar incentivos ao escoamento
dos seus produtos e incrementar o seu volume de vendas. Se não, vejamos.
No estado actual do mercado, é comum dizer-se que a área de exposição
dos produtos no comércio a retalho – o linear – é um bem escasso, sobretudo no que
respeita à grande distribuição. Por conseguinte, existe uma vigorosa competição entre
os fornecedores pelo acesso às prateleiras. Esta circunstância explica a concessão de
vantagens financeiras, sob a forma de descontos, aos retalhistas que possuam os
lineares mais apetecidos (porque susceptíveis de atrair um maior número de
clientes), em troca da atribuição de um espaço privilegiado nesses lineares.
Surgem, assim, figuras como o bónus por garantia de tronco comum
nacional – que garante a presença no linear de um determinado sortido de produtos do
fornecedor –, ou o bónus de facing mínimo do linear – através do qual se assegura
a visibilidade dos produtos, abonando-lhes uma determinada área de exposição.
Por outro lado, uma das estratégias de base do fornecedor para aumentar as
suas vendas passa pela actuação directa sobre o consumidor, estimulando a sua procura.
Na verdade, a procura do intermediário-revendedor é uma procura hetero-induzida:
estará disposto a adquirir os bens que tiver maiores possibilidades de revender –
ou seja, aqueles que, a jusante, forem mais demandados15.
Podemos encontrar exemplo clássico desta estratégia comercial dos
fornecedores na publicidade, a qual pretende criar directamente nos consumidores
o impulso aquisitivo. Mas as acções de promoção levadas a cabo no ponto de venda,
actuando sobre o consumidor no momento da própria aquisição (ou até o
posicionamento específico dos produtos no linear) constituem outro exemplo deste tipo de
expediente.
Claro que a realização de semelhantes acções de promoção implica a anuência
e colaboração (mais ou menos activa) do revendedor; e a própria publicidade pode ser

15 Acentuando o carácter derivado da procura dos retalhistas, bem como as dificuldades

que isso coloca ao produtor, compelido a procurar meios de actuação eficaz sobre o utilizador
final – com o qual não tem, geralmente, qualquer contacto directo, dada a (omni)presença de
intermediários no canal de distribuição, ROBERTO PARDOLESI, op. cit., pp. 26-27.

6
feita de forma concertada – por exemplo, através de folhetos promocionais que
simultaneamente divulguem o produto e o ponto de venda.
Ora os distribuidores, naturalmente, só estarão dispostos a cooperar deste
modo com os fornecedores mediante a concessão de vantagens – vantagens financeiras
consubstanciadas em figuras como o bónus de organização de operações comuns
especiais.
Finalmente, a gestão eficaz do sistema de vendas dos fornecedores pode exigir que
seja alijado o risco correspondente às devoluções de produtos, feitas ao abrigo do
regime geral dos contratos – no caso, nomeadamente, de produtos deteriorados.
Pode, assim, o fornecedor ter por firmes e acabadas as transacções que celebra
com o revendedor, o qual se compromete a não realizar qualquer devolução –
suportando, nomeadamente, o risco de deterioração dos produtos. A vantagem
financeira consubstanciada no bónus de não devolução representa a contrapartida
da assunção deste risco – ou, se quisermos, da renúncia ao comummente
reconhecido direito de devolução.

5 - Para terminar este confronto entre a pluralidade de estrutura dos


diversos bónus ou descontos e a unidade que revelam no plano da sua função,
atentemos nos diversos mecanismos técnico-jurídicos que mobilizam na sua construção.
Assim, no que respeita ao rappel, o desconto constitui o efeito do
preenchimento de uma condição: a consecução (imediata ou num dado arco
temporal) de um certo volume de aquisições. Trata-se, mais precisamente, de uma
condição suspensiva subsumível à categoria das condições potestativas a parte debitoris,
dado que o evento condicionante é um acto do devedor, cuja verificação
desencadeia a produção do efeito (a obtenção do desconto)16.
Já os descontos para o lançamento de um novo produto têm uma estrutura
diferente. Na verdade, o preço inicialmente estipulado – i.e., o preço incluindo o
desconto de lançamento – destina-se a vigorar durante certo período de tempo,
findo o qual deixa o desconto de ser aplicável. Correspondem, portanto, a

16 As condições potestativas caracterizam-se pelo facto de o evento condicionante consistir


num acto de uma das partes – MANUEL DE ANDRADE, Teoria geral da relação jurídica, vol. II,
Almedina, 1972 (7ª reimp., 1987), pp. 367, ss.; ou L. CARVALHO FERNANDES, Teoria geral do direito
civil, vol. II, 3ª edição, Lex, 2001, pp. 384, ss.. E trata-se de uma condição potestativa não
arbitrária, já que o evento condicionante é um acto de certa seriedade, que põe em jogo interesses
idóneos – portanto, perfeitamente lícita (cfr., desde logo, K. LARENZ / M. WOLF, Allgemeiner Teil
des Bürgerlichen Rechts, 8ª ed., München, 1997, p. 947; H. KÖHLER, BGB Allgemeinene Teil, 25ª ed.,
München, 2001, pp. 231, ss.).

7
estipulações sujeitas a um termo final17: escoado o período de lançamento, cessa o
efeito do desconto.
Quanto aos restantes bónus, apresentam uma estrutura sinalagmática: o
desconto aparece, geneticamente, como correspectivo de uma utilidade prestada pelo
distribuidor – a manutenção de um sortido mínimo, a concessão de vantagens na
exposição e promoção dos produtos, a renúncia ao direito de devolução18 ou a
garantia de um limiar mínimo de aquisições.

6 - Além da unidade funcional, os bónus ou descontos que temos vindo a


analisar convergem num ponto nevrálgico: todos se traduzem numa vantagem
patrimonial para o revendedor, rectius, numa vantagem financeira consubstanciada
na diminuição das quantias que deve ao fornecedor a título de pagamento do preço das
mercadorias adquiridas.
Com efeito, acoplada aos contratos de fornecimento surge, na maioria dos
casos, uma conta corrente, na qual é lançado o “deve” e o “haver” das partes na
relação de fornecimento. Como é sabido, segundo o regime jurídico da conta
corrente (arts. 344º e ss. do Código Comercial) apenas é exigível o saldo dela
resultante.
Dito de outro modo19, na previsão de uma relação de negócios continuada,
as partes comprometem-se a diferir a exigibilidade dos créditos que daquela relação
venham a emergir. Pretendem, com isso, adiar para um momento futuro a
liquidação pela diferença.
Ora, a compensação entre os diversos créditos e correspectivos débitos há-
de produzir um saldo – e só este crédito líquido, de uma das partes sobre a outra,
virá a ser exigível.
Mas, no âmbito deste mecanismo de compensação, o “deve” do
revendedor, na medida em que tem por unidade de base o pagamento do preço
de factura correspondente à compra das mercadorias, há-de invariavelmente
consumir tudo aquilo que tenha “a haver” do fornecedor, a título de desconto de
qualquer tipo.

17 É sabido que, além do contrato, no seu conjunto, o termo pode respeitar a efeitos

contratuais singulares – ENZO ROPPO, O Contrato, trad., Almedina, Coimbra, 1988, p. 153.
18 Sobre as renúncias ditas translativas ou atributivas – no caso vertente, atribuição onerosa

em benefício de quem fica liberado (do correspondente dever) por efeito da renúncia – ver F. M.
BRITO PEREIRA COELHO, A renúncia abdicativa no direito civil (Algumas notas tendentes à definição do seu
regime), Coimbra Editora, 1995, pp. 33, ss.
19 Como faz ADRIANO FIORENTINO, “Conto corrente”, Novissimo Digesto Italiano, vol. IV,

pp. 408-414, p. 408.

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Por conseguinte, o saldo final resultante da liquidação da conta corrente
dará sistematicamente origem a uma prestação pecuniária a cargo do revendedor, grosso
modo identificável com (e identificada com) o preço das mercadorias adquiridas – na
medida em que este constitui a sua principal parcela.
Semelhante realidade jurídico-económica reflecte-se na assunção empírica, por
parte dos distribuidores, de que todos os descontos ou bónus que obtêm dos
fornecedores redundam em ou equivalem a uma diminuição do preço pago pelos
bens adquiridos para revenda.

7 - Completada a tarefa da sua caracterização, debrucemo-nos sobre a


qualificação dos contratos actualmente celebrados entre fornecedores e distribuidores.
Temo-nos vindo a referir a eles sob a designação simplificada de “contratos
de fornecimento”. E é certo que, no seu núcleo de base, encontramos um negócio
jurídico subsumível ao tipo (legalmente nominado e socialmente consagrado) do
fornecimento.
Mas a evolução dos tempos e das necessidades do comércio foi-lhes
alargando o conteúdo e a função. Já não se destinam, apenas e tão só, a satisfazer
essencialmente as necessidades de abastecimento do distribuidor20. São, em
simultâneo, utilizados pelo fornecedor como expediente para fomentar, de modo activo,
o escoamento dos seus produtos. Para o efeito, serve-se do mecanismo dos bónus
ou descontos.
Através destes mecanismos, alojados no interior do contrato, o fornecedor
consegue incrementar e diversificar as aquisições por parte dos retalhistas,
disputar o espaço de linear aos fornecedores seus concorrentes e estimular
directamente a procura do consumidor.
O alinhamento de interesses com o distribuidor é feito através da outorga de
vantagens financeiras21 que, por intermédio de um sistema de conta corrente, se

20 Como tradicionalmente sucedia – vejam-se as obras citadas supra, na nota 8.


21 Ilustrando claramente a situação típica descrita por ROBERTO PARDOLESI, op. cit., , pp.
24, ss.Os interesses do produtor articulam-se em torno da chamada “política de produto”; os
interesses do distribuidor, em torno da “política de sortido”; será através do contrato entre ambos
celebrado que o produtor (em maior ou menor grau) induz – mediante a oferta de vantagens
materiais ou de oportunidades de ganho – a potencial contraparte a conformar-se com a sua
política de distribuição. Dito de outro modo, a prestação, pelo distribuidor, de “um [qualquer]
serviço que vá além do simples escoamento dos produtos” (p. 30) pressupõe a oferta de uma
contrapartida. É esta fenomenologia básica que encontramos na base dos já referidos (cfr. supra nota
2) contratos de distribuição; mas é igualmente ela que explica a particular evolução do contrato de
fornecimento que temos vindo a analisar em texto.
Note-se, aliás, que, no quadro proposto por PARDOLESI (pp. 77, ss, em especial pp. 80-81)
para sistematizar os diversos tipos de vínculos susceptíveis de vir a ser assumidos pelo distribuidor no âmbito do
alinhamento de interesses com o produtor, encontramos categorias aptas a subsumir as diversas

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vêm a consubstanciar em abatimentos ao preço das mercadorias a pagar pelo
distribuidor.
Naturalmente, a concreta configuração dos contratos e o valor dos
abatimentos concedidos pelo fornecedor vão depender da relação de forças subjacente.
Queremos com isto dizer que, ao contrário do que sucede em outros sectores (ou
canais) da distribuição, aqui o (grande) distribuidor tem um peso negocial
considerável. Mas também não é menos verdade que, do lado dos fornecedores,
encontramos amiúde titulares de marcas poderosas
De todo o modo, sob o prisma da qualificação, não estamos já em presença
de um puro contrato de fornecimento, e sim de um contrato misto, que inclui, além
de estipulações acessórias (condição e termo, cláusulas de quota), elementos
característicos da prestação de serviços, quando não mesmo de outras espécies
contratuais22. A este negócio complexo surge geralmente coligado (embora a ligação
em si não seja propriamente recente) um contrato de conta corrente.
Em suma, as partes, sob o impulso das suas legítimas necessidades
comerciais, fizeram uso da faculdade conferida pelo art. 405º do Código Civil, que
lhes permite, dentro dos limites da lei, incluir nos seus contratos “as cláusulas que

refracções da cooperação comercial – as mesmas categorias que podem ser mobililizadas para
enquadrar vinculações assumidas no seio de contratos de distribuição. Estamos a pensar,
concretamente, na categoria dos “vínculos relativos à política de réclame” (v.g., acções conjuntas de
publicidade); dos “vínculos relativos à política de apresentação” (i.e., no modo como as
mercadorias são expostas ao público); dos “vínculos relativos à política de sortido” (v.g., aquisição
de toda uma linha de artigos); e mesmo dos “vínculos tendentes a dilatar a incidência quantitativa
de um produto (ou linha) no sortido do comerciante” (v.g., aquisição de quotas mínimas).
Existe, contudo, um elemento de discrepância: toda a análise que parte do quadrante dos
contratos de distribuição assinala implicitamente – e a doutrina de PARDOLESI não é excepção –
ao distribuidor o estatuto de parte mais fraca (sobre o ponto, cfr. o nosso já citado A indemnização de
clientela do agente comercial, em especial pp. 367, ss.). O que se reflecte, desde logo, na escolha da
perspectiva e da terminologia empregada: os vínculos são “impostos ao distribuidor” mediante
contrapartida, (e não por ele simplesmente “assumidos”); o distribuidor é “chamado a participar”
nas acções publicitárias do fornecedor; o produtor “exerce influência” sobre a exposição dos
produtos e “constrange o distribuidor” a comercializar toda uma linha de artigos.
Não discordamos de que esta perspectiva seja a mais adequada à compreensão do
fenómeno nos contratos de distribuição, nos quais é norma semelhante assimetria (económica,
financeira, técnico-jurídica) de posições entre as partes. Queremos apenas destacar que, nos
sectores onde se verifica predominantemente um equilíbrio, quando não uma assimetria inversa
(i.e., o predomínio do distribuidor), certos tipos de vínculos acordados entre as partes podem
reconduzir-se a categorias idênticas.
Isto sucede, em nosso entender, pelo carácter transversal das necessidades sentidas pelos
produtores na configuração do canal distributivo: reduzir a distância ao consumidor e acompanhar o iter
distributivo do produto. Assim, independentemente da tónica e das consequências eventualmente
impostas pela subjacente relação de forças empírico-económica, detectamos, em todos os contratos
do arco da distribuição comercial, a presença de estipulações através das quais, de modo tecnico-
juridicamente muito semelhante, os produtores logram satisfazer o essencial daquelas necessidades.
22 Pense-se na cedência de espaços, no interior do ponto de venda, para a realização (a

cargo do fornecedor) de acções de divulgação de produtos – hipótese em que estará presente um


elemento de clara matriz locatícia.

10
lhes aprouver” (n.º 1), reunindo eventualmente, no mesmo contrato, “regras de
dois ou mais negócios total ou parcialmente regulados na lei” (n.º 2)23.
E trata-se, em nosso entender, de um autêntico contrato misto, porquanto,
além da pluralidade prestacional, estamos em presença de uma verdadeira fusão de tipos:
as prestações estão “entre si unidas numa causa-função comum (mista) diversa
dos factores típicos concorrentes mas resultante deles como um produto”24.
Na verdade, também aqui os elementos utilizados – correspondentes aos
tipos da compra e venda, fornecimento e prestação de serviços25 – se encontram
“de tal modo amalgamados que se fundem organicamente numa figura nova e
unitária, correspondente a interesses autónomos, a que as concepções da vida
atribuem já uma certa ‘tipicidade social’, diante dos elementos em que se analisa,
anterior a qualquer tipificação legislativa”26.
O fenómeno do contrato misto corresponde, pois, ao exercício da liberdade
contratual, aqui reportado a um domínio em que a dinâmica comercial já fez
surgir diversas figuras, algumas posteriormente acolhidas pelo legislador27. Mas o
critério da sua identificação passa sempre pela análise da causa, ou seja, da função
económico-social que o contrato visa preencher, e do respectivo confronto com a
causa dos contratos típicos ou nominados, cujos elementos funde num todo
unitário substancialmente diferente da soma aritmética 28. Para o Direito, “tudo se
passa como se a função constituísse um dado objectivo ou o dado objectivo por

23 Na sugestiva linguagem de RUI PINTO DUARTE, Tipicidade e atipicidade dos contratos,

Almedina, 2000, p. 49, “o contrato misto não corresponde a nenhum dos tipos de que é misto;
tem aspectos deles. Alguns desses tipos não se verificam porque o contrato concreto fica aquém
de cada um deles; os outros também não se verificam porque o contrato vai para além deles”.
24 ORLANDO DE CARVALHO, Negócio jurídico indirecto, Coimbra, 1952, separata do vol. X do

Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 83.


25 Apesar da fluidez do molde da prestação de serviços que, para P. PAIS DE

VASCONCELOS, op. cit, p. 163, configura não um autêntico tipo mas uma “classe de contratos”, i.e.,
uma repartição de contratos em função de determinadas características, na qual se incluem,
nomeadamente, o mandato, o depósito ou a empreitada.
26 M. J. ALMEIDA E COSTA, Direito das Obrigações, cit., p. 339. Também para I. GALVÃO

TELLES, Direito das Obrigações, 7ª ed., Coimbra Editora, 1997, p. 86, “os contratos mistos resultam
da fusão de dois ou mais contratos ou de partes de contratos distintos, ou da inclusão num
contrato de aspectos próprios de outro ou outros. Em qualquer dos casos há fusão e não simples
cúmulo. O contrato misto é um contrato só, não se identificando com a união de contratos”
(sublinhados conforme o original).
27 Assim o leasing já foi entre nós contrato misto, antes de ser regulado pelo legislador – J.

M. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., Almedina, 2003, p. 281. O Autor
detém-se ainda (pp. 297, ss.) no exemplo do contrato de integração de lojista em centro comercial,
que qualifica de atípico ou inominado, na medida em que engloba elementos que não pertencem
apenas a contratos típicos (como considera acontecer com o genuíno contrato misto).
28 J. M. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, cit., pp. 293-294. Também para

A. VAZ SERRA, “União de contratos. Contratos mistos”, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 91, pp.
11-145, p. 28, “o supremo critério é sempre a apreciação dos interesses legítimos das partes e do
fim por eles prosseguido, vistas as circunstâncias do caso”.

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excelência, aquele que, na verdade, individualiza e contradistingue o conjunto do
negócio”29.
Em virtude do que acabamos de ponderar, torna-se evidente que a causa ou
função económico-social dos “contratos de fornecimento” actualmente celebrados
com a grande distribuição deixou de se articular, primacialmente, em torno da utilidade
económica usufruída pelo revendedor – satisfação das suas necessidades contínuas ou
reiteradas de abastecimento – para passar a acomodar as utilidades económicas
proporcionadas ao próprio fornecedor com vista a incrementar o escoamento – imediato ou
mediato – dos produtos fornecidos.
Esta dilatação da função do contrato foi acompanhada por uma inevitável
recompreensão da contrapartida financeira a pagar pelo distribuidor, apurada nos termos da
conta corrente coligada30.
Com efeito, todas as utilidades económicas obtidas pelo fornecedor (desde a aquisição
de maiores quantidades pela contraparte até à disponibilização de espaços
privilegiados no ponto de venda do distribuidor, passando por muitas outras)
determinam, em função do mecanismo de compensação típico da conta-corrente,
um abatimento no preço de compra dos artigos fornecidos.
Daí que todos os bónus ou descontos que analisámos, independentemente
da sua designação concreta ou da sua estrutura técnico-jurídica, consubstanciem
tanto do ponto de vista económico (dada a unidade da sua função), como do ponto de vista
jurídico (por acção do mecanismo da conta corrente), autênticas reduções ao preço de factura.

8. Esta nova figura construída sobre a base do contrato de fornecimento


tem vindo a deparar com alguns obstáculos levantados pelo direito positivo, em virtude
dos quais os distribuidores, no exercício da sua legítima e constitucionalmente
garantida liberdade de fixação de preço31, se vêem impedidos de revender os bens
por um valor que reflicta a real contrapartida que tiveram de pagar.

29 ORLANDO DE CARVALHO, Negócio jurídico indirecto, cit., p. 17.


30 Sobra a coligação de contratos, i.e., as situações em que os contratos, mantendo a sua
individualidade, estão ligados entre si, segundo a intenção dos contraentes, por um nexo funcional
que não é puramente exterior ou acidental, ver, entre muitos, J. M. ANTUNES VARELA, Das
Obrigações em Geral, vol. I, cit., pp. 282-284.
31 Sobre a liberdade de fixação de preço enquanto refracção da liberdade de iniciativa económica

privada tutelada pelo art. 61º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, veja-se o que dizemos
no nosso «Vendas com prejuízo», Estudos de Direito do Consumidor, n.º 5, Coimbra, 2003, pp. 207-
242, p. 213. Aí recordamos o carácter de direito fundamental daquela liberdade, bem como a posição
da nossa melhor doutrina no sentido de lhe reconhecer natureza análoga à dos direitos, liberdades e
garantias, ficando, deste modo, abrangida pelo regime do art. 18º da CRP no que toca à
legitimidade material das restrições legais ao seu pleno exercício (cfr. J. J. GOMES CANOTILHO /
VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra Editora,

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Isto sucede porque o actual regime da venda com prejuízo32 perfilha uma
concepção demasiado estreita de desconto – concepção que deriva, em linha
directa, de uma basilar incompreensão do contrato misto que acabamos de descrever.
Esta incompreensão apresenta duas vertentes.
Em primeiro lugar, ignora-se uma realidade secular: o contrato de fornecimento
é de execução reiterada e é comum que as partes lancem em conta corrente o
respectivo deve e haver. Ao arrepio desta realidade, quando interdita a venda com
prejuízo, o legislador encara cada uma das singulares compras e vendas que
executam o quadro estipulado como uma entidade a se, umbilicalmente desligada da
relação duradoura de onde promana.
Em segundo lugar, ignora-se a mutação sofrida pelo próprio escopo do contrato, bem
como as alterações de conteúdo que a nova finalidade (o fomento activo das vendas do
fornecedor) lhe veio adicionar. O que explica tanto a relutância em contabilizar
descontos – i.e., abatimentos feitos pelo fornecedor ao preço efectivamente pago
pelo distribuidor – geneticamente ligados à remuneração de utilidades prestadas
pelo distribuidor, como a preferência pelos descontos estruturalmente ligados aos
produtos adquiridos. Quando a verdade é que todos os descontos desempenham,
através de mecanismos diversos, a mesma função: incentivar o escoamento dos
produtos do fornecedor.
Não subsiste, pois, desta perspectiva33, qualquer razão válida para impedir o
distribuidor de deduzir todos os descontos obtidos – o que corresponde, aliás, à
sensata posição adoptada no sistema alemão34.

Coimbra, 1993, em especial anotações III e IX e segs. ao art. 18º, pp. 141, ss., e pp. 151, ss., e
ainda anotação II ao art. 61º, pp. 326-327).
32 A figura jurídica da venda com prejuízo é regulada pelo art. 3º do Decreto-Lei n.º

370/93, de 29 de Outubro (com as alterações decorrentes do Decreto-Lei n.º 140/98, de 16 de


Maio, e do Decreto-Lei n.º 10/2003, de 18 de Janeiro). Para uma análise crítica do regime, veja-se
o nosso «Vendas com prejuízo», cit., pp. 214, ss., e 220, ss.
33 Nem (como já tivemos oportunidade de esclarecer noutra sede) de qualquer outra.

perspectiva. A proibição de venda com prejuízo revela-se ineficaz e mesmo contraproducente, no que
toca à protecção dos interesses invocados para a justificar – interesses que dispõem de tutela
adequada, proporcionada por outros dispositivos legais.
O que é mais grave, a aplicação do regime da venda com prejuízo produz consequências
nocivas para a concorrência e para os consumidores, não traz qualquer benefício real aos
concorrentes de menor dimensão e suscita um dispêndio questionável dos recursos públicos.
Acresce que a formulação adoptada pela lei para definir os contornos da conduta ilícita
(formulação que levanta, aliás, sérios problemas de constitucionalidade) é desprovida de qualquer
justificação económica, visando apenas facilitar a fiscalização por parte das autoridades
administrativas e judiciais – as quais têm vindo a privilegiar uma interpretação que aperta ainda
mais as malhas da proibição legal.
O direito comparado revela-nos a progressiva consolidação de uma atitude altamente crítica das
leis que proíbem a venda com prejuízo, sobretudo daquelas que, com a portuguesa, adoptam
formulações restritivas dos tipos de descontos susceptíveis de dedução. É de esperar, pois, de iure
condendo e a prazo, uma reforma ou mesmo uma revogação do regime vigente.

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9- Para terminar, convém salientar devidamente um aspecto da realidade
económica amiúde escamoteado – e que patenteia a desadequação de qualquer
proibição da venda com prejuízo de singulares produtos, por mais cuidada que seja a
fórmula utilizada para traçar o respectivo limiar.
É que a concorrência entre os distribuidores no sector do comércio a retalho generalista
(sejam eles hipermercados, supermercados ou minimercados) não se faz produto a
produto. Não há, para este efeito, um mercado relevante do iogurte, um mercado
relevante do arroz, um mercado relevante da lixívia; em suma, não existem tantos
mercados relevantes quantos os produtos que compõem o sortido do
distribuidor.
A concorrência faz-se, isso sim, no mercado global daquilo a que, à falta de
melhor, poderemos chamar “produtos de supermercado”, abrangendo um conjunto de
artigos (alimentares e não alimentares) normalmente disponíveis no comércio a
retalho generalista. Cada retalhista oferece um cabaz de produtos – é esse, afinal, o seu
“produto”35.
E é esta realidade incontornável que explica o próprio loss leader pricing
enquanto técnica de promoção de vendas36. O cliente tenderá a comparar o preço

34 Cfr. Bekanntmachung Nr. 124/2003 des Bundeskartellamtes zur Anwendung des § 20 Abs. 4 Satz

2 GWB (Angebot unter Einstandpreis), em especial o ponto 3.


De iure condendo, no horizonte da manutenção de uma norma proibindo a venda com
prejuízo, e uma vez admitida a relevância de todos os legítimos descontos oriundos do contrato de
fornecimento, deve, contudo, fazer-se a exigência – lógica e incontornável, a nosso ver – de que os
abatimentos sejam deduzidos no preço do produto segundo uma fórmula adequada. Isto é
particularmente importante nas situações, bastante vulgares, em que o revendedor adquire ao
fornecedor diversos produtos. O objectivo é, naturalmente, o de evitar duplicações (deduzir mais
do que uma vez o mesmo desconto) ou manipulações do mesmo cariz (v.g., concentrar nuns
poucos produtos o desconto relativo a vários artigos). No mesmo sentido, M. LIBERTINI/ G.
SCONAMIGLIO, “Alcune questioni interpretative sul regolamento in materia di vendite sottocosto
(d.p.r. 6 aprile 2001, n. 218)”, Contratto e impresa, n.º 2, 2002, pp. 828-839, pp. 835.
35 Não ignoramos que a grande distribuição tende, cada vez mais, a alargar as fronteiras

merceológicas da sua oferta, revendendo diversos produtos que escapam àquele núcleo tradicional
– v.g., electrodomésticos, livros, música. Neste caso, os concorrentes já não são, naturalmente, os
que se dedicam ao comércio retalhista genérico e tradicional, e, sim, os outros grandes distribuidores
generalistas que oferecem (também) esses produtos “novos” mas, sobretudo, os retalhistas
especializados – v.g., revendedores de elctrodomésticos, livrarias, discotecas. Aqui, sim, faz sentido
uma delimitação mais estreita do mercado do produto. E, nestes mercados especializados, nem
sempre a grande distribuição generalista será o concorrente mais forte.
36 A estratégia comercial conhecida como loss leader pricing – termo que pretende exprimir o

facto de determinados produtos serem vendidos a um preço baixo, de forma a actuar como traffic
builders (“construtores de tráfego”) ou loss leaders, ou seja, geradores de aditional store traffic
(“acréscimo de tráfego de loja”) – centra-se em produtos cuja procura é especialmente sensível ao
preço, ostentando marcas populares que os consumidores tendem a utilizar para comparar os
preços praticados pelos diversos pontos de venda. A compressão da margem de lucro do
revendedor nesses produtos é compensada pelas margens obtidas em outros artigos do seu
sortido, os quais se espera que o consumidor que se desloca ao ponto de venda também venha a

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de alguns produtos de grande consumo, na impossibilidade de comparar os preços
de todos os itens que compõem o sortido de cada distribuidor. O distribuidor, por
seu turno, recupera na margem de outros produtos a compressão que efectuou na
margem dos loss leaders.
E é por este motivo que se torna paradoxal utilizar a expressão “venda com
prejuízo” para designar uma técnica que os agentes económicos mobilizam para
obter um ganho imediato, traduzido não só no aumento do tráfico de loja como
na aquisição, simultânea ou complementar, dos outros produtos do sortido que
oferecem por parte dos consumidores atraídos.

adquirir. Os preços baixos são muitas vezes alvo de ampla divulgação publicitária, através de
folhetos ou de anúncios nos meios de comunicação social. Sobre o loss leader pricing cfr., por
exemplo, PHILIP KOTLER, Marketing Management, Prentice Hall, 2000, pp. 473 e 529.
O fenómeno do loss leader pricing não é exclusivo do comércio a retalho generalista. Sirvam
de exemplo os restaurantes, que podem comprimir a margem de lucro no preço das refeições – ou
de algumas ementas básicas, que utilizam como traffic builders – para compensar no preço das
bebidas, dos aperitivos, das sobremesas ou dos outros pratos. Ou os fabricantes de material
informático, que podem apresentar certos produtos de reposição dilatada (v.g., impressoras) a um
preço altamente competitivo, para depois recuperar a margem em artigos de reposição frequente
(v.g., tinteiros). Ou os estúdios de fotografia, que oferecem – a custo aparentemente zero para o
cliente – os rolos fotográficos tradicionais, compensando o “brinde” no custo da revelação.
Por último, esclareça-se que o loss leader pricing, enquanto técnica de promoção de vendas,
nada tem de ilícito ou de censurável. A versão inicialmente apresentada pela Comissão Europeia
da Proposta de Regulamento relativa às promoções de vendas no mercado interno – COM (2001)
546 – admitia abertamente esta técnica, advogando a supressão de todos os regimes de proibição
de venda com prejuízo em vigor nos Estados-membros (ideia que acabou por ser abandonada, em
virtude de fortes pressões políticas e sectoriais).
Apesar de uma primeira abordagem inculcar a impressão de que o loss leader pricing – que
assenta no carácter imperfeito da informação do consumidor no comércio a retalho generalista,
dados os custos incomportáveis de recolher e processar os dados relativos aos preços de todos os
produtos em todos os pontos de venda – permite ao retalhista extrair uma renda nos outros
produtos que comercializa (i.e., naqueles que o consumidor tenderá a comprar na mesma ocasião,
sem dispor de informação comparativa), o modelo dinâmico da teoria dos jogos demonstra que a
prática do loss leader pricing deixa intocados os níveis de bem-estar social – por todos, P. P. WALSH/ C.
WHELAN, “Loss leading and price intervention in multiproduct retailing: welfare outcomes in a
second-best world”, International Review of Law and Economics, vol. 19, 1999, n.º 3, pp. 333-347, em
especial pp. 343, ss.
Isto sucede porque os concorrentes são forçados – pela própria atitude do consumidor,
que passa doravante a privilegiar a comparação com base nos artigos concretamente vendidos a
preços mais baixos – a reduzir os preços dos “artigos de comparação” (known-value-items),
aumentando a concorrência de curto prazo nesses produtos. Ou seja, após a reacção dos concorrentes,
as rendas geradas pelos restantes produtos tendem a ser contrabalançadas pelos cortes
(supervenientemente) efectuados nos “artigos de comparação”. Tudo somado, o custo real para o
consumidor acaba por ser idêntico ao custo em que incorreria se dispusesse de total informação: o
simples custo correspondente à mudança de estabelecimento (switching cost).

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