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O QUE É NATUREZA?
CHARLES FEITOSA
1. PEQUENA HISTÓRIA DA IDÉIA DE NATUREZA
Hoje em dia, quando pensamos em natureza quase sempre nos vem à mente a imagem de
uma praia paradisíaca, com ar puro, mar cristalino e tranqüilidade absoluta. Para o homem
contemporâneo dos grandes centros urbanos, a natureza se tornou um refúgio contra as correrias
e as preocupações. Entretanto, essa noção de natureza como um "lugar de paz" é muito recente.
No passado, ela foi muito mais um mistério, um obstáculo ou até mesmo uma enorme ameaça. O
que mudou? Por que as "forças da natureza" não mais nos assustam tanto como antes?
Não foram os avanços tecnológicos que provocaram a mudança da idéia de natureza. Foi a
mudança da idéia de natureza que permitiu esses avanços. A physis ("natureza", em grego)
costumava ser compreendida na Grécia arcaica (VII-V a.C.) como a totalidade de tudo o que
existe, o conjunto de todos os acontecimentos, no céu ou na terra, envolvendo as pedras, as
plantas, os animais, o corpo e a alma humanos. Natureza era o nome para a realidade e por isso
as reflexões dos primeiros filósofos, empenhados em compreender a realidade que os cercava,
eram sempre peri physeos, quer dizer, em torno da natureza. Com o passar do tempo a natureza
começa a ser determinada em oposição ao que é cultural. Segundo Aristóteles, a natureza é o
conjunto das "coisas que têm em si mesmas a fonte de seus movimentos" (Metafísica, V, 4).
"Natural" tinha então o sentido de espontâneo ou autônomo, e opunha-se a tudo que era
"artificial", produzido tecnicamente por mãos humanas, segundo um plano ou intenção.

Estudar a physis, fazer física na Antiguidade, significava sempre buscar a essência, aquilo
que permanece, nos movimentos das coisas. A física de Aristóteles era uma investigação dos
diversos processos de alteração das coisas, tais como a geração, o crescimento, a metamorfose,
o deslocamento ou a corrupção, aquilo que era universal e necessário neles. Tratava-se de uma
investigação contemplativa, que não visava manipular ou controlar a natureza, mas apenas
compreendê-la, sem intervenções. O estudo aristotélico da natureza dispensava o uso de
instrumentos, tais como o termômetro ou o barômetro, não porque eles ainda não tivessem sido
inventados, mas simplesmente porque eles não eram necessários. A intenção não era nem medir
nem quantificar, mas observar e compreender.

Somente a partir de meados do século XVI, na época da já mencionada revolução científica


(ver capítulo 3), a "natureza" passa a ser vista não mais como a esfera dos movimentos
autônomos, mas principalmente como um reservatório de matéria-prima e de energia para a
produção e o consumo. Uma nova relação é estabelecida, expressa na famosa fórmula do
pensador inglês Francis Bacon: "saber é poder". O lema agora é compreender para controlar;
intervir para aperfeiçoar: "Engendrar e introduzir nova natureza ou novas naturezas em um corpo
dado, tal é a obra e o fito do poder humano" (Novum Organum, II, l). Essa nova idéia da natureza
exige também um novo tipo de conhecimento, mais adequado e mais aparelhado. A partir daí,
para a compreensão do funcionamento dos fenômenos naturais, serão necessários instrumentos
de fortalecimento da visão, tais como o telescópio (1606) e o microscópio (1595), ou de medição,
tais como o termômetro (1643) e o barômetro (c. 1667).

2. DA UTOPIA AO ENIGMA

Com o sucesso da nova ciência, um certo entusiasmo acerca das possibilidades infinitas
de progresso da civilização tomou conta da época. O entusiasmo durou somente até o século XX.
Com o advento da bomba atômica em 1945, considerado por muitos o acontecimento mais
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importante da história recente da humanidade, descobriu-se que a vontade de controle sobre a


natureza poderia gerar também catástrofes. Vivemos agora em um momento em que os recursos
de matéria-prima e de energia estão se esgotando rapidamente, fazendo com que a reflexão sobre
os rumos da nossa relação com a natureza ganhe urgência. Não sentimos mais tanto medo das
forças da natureza, mas sim de seu desaparecimento, por isso o desejo de preservá-la e de
retornar a ela. Entretanto, nas atitudes de combate, exploração ou mesmo de preservação,
permanece inquestionada a interpretação da natureza como sendo sempre um outro, um
estranho, um objeto exterior ao homem. Essa exterioridade da natureza em relação a tudo o que é
humano ou cultural é o solo do qual surgem os desafios ecológicos da atualidade. Mais do que
cuidados com preservação, será preciso reavaliar a tendência histórica do homem de se opor à
terra na qual habita e passar a respeitá-la como um enigma, que nunca poderá ser solucionado
definitivamente. Segundo o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty:
"A natureza é um objeto enigmático, um objeto que não é efetivamente um objeto, pois ela
não está simplesmente diante de nós. Ela é nosso solo, não como algo à nossa frente, mas como
algo que nos carrega". (A Natureza [1968], p. 20).
A crença no progresso da civilização através da ciência esmoreceu no século XX,
principalmente após as duas grandes guerras mundiais. A humanidade fez a experiência dolorosa
de que a tecnologia pode produzir, direta ou indiretamente, a destruição da natureza e
conseqüentemente do próprio homem. De modo surpreendente, a literatura não parou de produzir
obras utópicas, mas a crença no progresso irrestrito deu lugar a expectativas catastróficas. Em
livros, tais como o já mencionado Admirável Mundo Novo (1932) de Aldous Huxiey, ou 1984
(1948), de George Orwell (1903-1950), o futuro é descrito como um lugar sem liberdade, um
cenário de violência física e simbólica. Essas utopias, ou melhor "dystopias" (do grego dys-topos =
lugar ruim), são temas enfaticamente explorados pelo cinema de ficção científica e pela música
pop a partir da segunda metade do século XX. As utopias negativas contemporâneas
permanecem sendo, todavia, lugares que ainda não existem, mas que podem e vão se
concretizar, se nada for feito contra a continuidade do projeto técnico de dominação da natureza.

3. A SABEDORIA DOS ANIMAIS

Os animais são tradicionalmente divididos em três categorias: comestíveis ou não


comestíveis; ferozes ou mansos; úteis ou inúteis. São nossos principais vizinhos na Terra. Os
animais são como lembretes ambulantes de que há natureza em torno de nós. Embora estejamos
acostumados a conviver com cães, gatos, pássaros e outros animais domésticos, é muito difícil
tentar entender seu modo de ser sem cair em um certo antropomorfismo (literalmente, na forma
humana), ou seja, projetando no comportamento do animal características que são nossas.
Interpretamos sim os sons emitidos por golfinhos, como risos de alegria, ou o canto dos pássaros,
como uma forma de música. Entretanto, tal antropomorfização não enfraquece a crença de que há
uma fronteira fixa e imutável entre os homens e os animais. A déia de que o animal é um
"completamente outro" serve de justificativa para a caça, domesticação e consumo dos corpos
animais.
Sabemos que, em geral, o ser humano costuma rejeitar sua condição animal. Essa
tendência se expressa nas famosas definições do homem como sendo o único ser que pensa, que
fala, que ri, que chora, que brinca, que faz arte, que faz política, que faz cultura, que faz greve de
fome, que se mata. A cultura ocidental é antropocêntrica, quer dizer, tende a colocar o homem
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como o centro da natureza e como a medida de todas as coisas. De fato, o ser humano é dotado
de linguagem articulada, e isso o torna diferente. Imagine um pássaro que migra do hemisfério sul
para o hemisfério norte sempre em busca de comida e de temperaturas mais amenas. Embora ele
se desloque no espaço, não tem consciência de sua própria migração. Para o pássaro, cada nova
paisagem é absoluta, não há continuidade ou conexão entre os diferentes lugares percorridos. O
pássaro não viaja, apenas movimenta-se. Imagine agora um homem que tenha passado toda sua
vida em uma aldeia no interior da China. Mesmo sem nunca ter visitado outras cidades ou outros
países, ele sabe que há sempre algo mais do que o lugar onde vive. Ele sabe que sua aldeia está
inserida em um contexto geográfico, mesmo que não conheça mapas. Ele pode viajar, mesmo
sem sair de casa. O animal pode se alimentar, se defender, se reproduzir, mas só o homem é
capaz de habitar a Terra enquanto Terra, quer dizer, como um horizonte a partir do qual pode
desenvolver infinitas possibilidades de existência. O animal vive no ambiente, mas o homem existe
no mundo.
Embora a demarcação entre o homem e o animal pareça evidente, é preciso ter cuidado. A
linguagem nos faz diferentes, mas não completamente separados dos animais. Sabemos que
sentem algo, ainda que não seja possível determinar com exatidão o que eles sentem. Como não
reconhecer a enorme gama de gritos, gemidos, caretas, gestos e posturas dos animais como uma
forma de expressão? O estudo dos primatas já demonstrou que esses animais possuem
estruturas refinadas de organização simbólica, sendo capazes de realizar trabalho de luto, de
sepultura, de preservação da identidade familiar. Cometemos em geral a arrogância de reduzir a
impressionante variedade de seres vivos não humanos a uma única classificação homogênea de
"animal", desconsiderando assim diferenças abismais entre uma borboleta e um rinoceronte, por
exemplo.
É necessário desconfiar da necessidade do homem de confirmar a todo custo sua
superioridade diante dos animais. O filósofo e jurista Jeremy Bentham (1748-1832), famoso
ativista dos direitos humanos e dos animais, expressa de forma contundente essa desconfiança:
"A questão não é: os animais podem falar? Mas sim: eles podem sofrer?" (Princípios da Moral e
da Legislação [1789]). Parece que não suportamos considerar como semelhantes os animais que
tratamos como nossos escravos. As relações dos viventes humanos com os viventes não
humanos têm sido violentas e devem mudar. Será preciso reavaliar nossa responsabilidade ética
diante de nossos vizinhos na Terra: ficar atento, de um lado, para a pluralidade irredutível dos
animais, e de outro lado, para a dimensão animal que há no corpo de cada um de nós.
A diferença entre o silêncio dos animais e a linguagem humana não pode ser menosprezada.
Talvez seja uma diferença tão importante como a que existe entre os seres inanimados e os
viventes. Mas essa diferença não é rígida nem total. Para o pensador argelino Jacques Derrida
(1930-), a perspectiva da morte, por exemplo, faz com que a fronteira supostamente fixa e
imutável entre homem e animal fique enfraquecida, pois a linguagem humana esbarra no seu
limite: "A morte [...] é o lugar onde toda fronteira entre a fera e a existência do homem da fala
torna-se indeterminável" (Aporias: Morrer, 1994, p. 323). A morte não pode ser dita, expressa ou
explicada com as palavras. Diante da morte somos como que empurrados de volta à nossa
condição animal, pois só nos resta o silêncio.
Em uma famosa passagem, Nietzsche nos faz pensar acerca da sabedoria que pode haver
na vida animal: "Observe um rebanho, que pasta diante de ti. Ele nada sabe sobre o ontem ou o
hoje, ele corre daqui para ali, come, descansa, digere, corre novamente, e assim de manhã até a
noite, dia após dia, amarrado através de seu prazer e de sua dor à estaca do instante, e por isso
mesmo nunca melancólico ou deprimido" (Segunda Consideração Intempestiva [1874]). Segundo
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Nietzsche, o homem observa o comportamento do animal e fica com inveja, pois também gostaria
de não ficar triste. Pergunta então: "por que você só fica aí me olhando e não me fala da sua
felicidade? O animal quer responder e dizer: isso vem do fato de que eu sempre esqueço o que
queria dizer - mas ele já esquece também essa resposta e se cala. O homem fica admirado de seu
silêncio" (ibid).
O olhar oblíquo de Nietzsche sobre o rebanho no pasto faz com que também vejamos tudo
de forma insólita e surpreendente. O animal, que é sem passado e sem futuro, parece viver mais
intensamente que o homem, oprimido pelo excesso de memória e de "pré-ocupações". Para ser
feliz e fazer os outros felizes será preciso recuperar um pouco da sabedoria dos animais ou das
crianças: a sabedoria do esquecimento.

4. QUEM TEM MEDO DO CORPO?


No corpo de cada um de nós reencontramos a natureza no modo mais íntimo e mais
fascinante. Tradicionalmente, o corpo humano sempre foi considerado uma dimensão inferior.
Platão reproduz, no diálogo Fédon, um mito no qual o corpo é descrito como uma prisão para a
alma e a prática da filosofia como uma forma de liberação de suas amarras: "O corpo de tal modo
nos inunda de amores, paixões, temores, imaginações de toda sorte, enfim, uma infinidade de
bagatelas, que por seu intermédio não recebemos na verdade nenhum pensamento sensato"
(Fédon, 66c). Entendendo a morte como a separação da alma do corpo, Platão vai definir a
filosofia como um exercício de preparação para a morte, na medida em que o pensamento
pretensamente suspende as funções corpóreas. Aristóteles, por sua vez, não menospreza a
importância do corpo para o ser humano, nem nega a unidade necessária entre corpo e alma, mas
restringe seu valor a um "instrumento natural da alma, assim como o machado" (De Anima, II,
412b). O corpo em si não tem autonomia, só se move sob os desígnios da razão. Reproduzem-se
assim em relação ao corpo as mesmas atitudes diante da natureza, em geral, e dos animais, em
particular: exclusão ou exploração. Em ambos os casos o corpo humano é tratado como um outro
absoluto, uma coisa exterior, um objeto, que me perturba ou que me serve.
O filósofo francês Renée Descartes (1596-1650) radicalizou a interpretação do corpo
humano como um totalmente outro, que carregamos na existência, em suas principais obras, tais
como as Meditações (1641) e o Tratado sobre o Homem (publicado postumamente, em 1664).
Descartes vê o homem como uma estrutura composta de corpo e mente. Ambos seriam coisas
bem diferentes: respectivamente, a "coisa que sente" e a "coisa que pensa". Ainda que estejam
em contato, são substâncias completamente independentes uma da outra. Como explicar então a
conexão entre um e outro em tantas experiências da vida? Descartes ficou famoso por ter
colocado todas as suas verdades em dúvida até chegar àquela famosa certeza do Cogito (em
latim = eu penso). Se há dúvida, deve haver com certeza um sujeito que duvida: "enquanto eu
queria pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma
coisa. E, notando que essa verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as
mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia
aceitá-la sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia que procurava" (Discurso do
Método [1637], IV). Sobre a coisa que sente, o corpo, não é possível ter certeza absoluta, mas sim
sobre a coisa que pensa, a mente. Além disso, a coisa que pensa, pensa independentemente da
coisa que sente. Na verdade, Descartes parece pressentir que existe entre corpo e alma um liame
mais originário, pois confessa em certo momento que "A natureza me ensina pelos sentimentos de
dor, de fome, de sede, etc. que eu não sou alojado no meu corpo assim como um piloto em seu
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navio, que eu sou de tal forma misturado com ele, que componho um único todo com ele"
(Meditações, VI). Apesar dessa ressalva, Descartes não investigou mais profundamente o caráter
dessa "mistura". Ao contrário, no processo de questionamento de todas as suas crenças, não
hesitou em colocar em dúvida a veracidade não apenas de tudo o que seus olhos viam, mas dos
próprios olhos. Como imaginar um eu descarnado que ainda seja eu? Esse é o grande enigma do
pensamento cartesiano. Se o corpo pode ser desligado, ainda que provisoriamente, então isso já é
uma indicação do lugar que ele tem na determinação da essência humana no cartesianismo: o
homem é fundamentalmente um sujeito, que mesmo sem mãos, olhos, carne ou sangue pode
existir. Esse ser descorporizado, esse pensar sem sentir, representa a perspectiva de quem se
sente apenas "diante do mundo" e não "no mundo"; de quem acredita apenas "ter" um corpo em
vez de também "ser" determinado por ele; enfim, de quem tem medo do corpo e de suas
ambigüidades e oscilações.

5. NINGUÉM ESTÁ A SALVO E NINGUÉM ESTÁ PERDIDO

O episódio descrito pelo poeta grego Homero na Odisséia (XII, 184-200), envolvendo
Ulisses e as sereias, pode servir de indício para a compreensão do modo tradicional de interpretar
o corpo. O herói Ulisses quer voltar para a casa, onde sua mulher e filho o esperam, depois de
uma longa jornada de aventuras e batalhas. No caminho ele passa pela ilha das sereias, mas já
está avisado de que o formoso e doce canto não vem de lindas mulheres, mas sim de monstros
ávidos por seduzir (do latim seducere = desviar do caminho) e depois devorar os incautos
marinheiros. Antecipando o perigo, ordena que seus homens coloquem cera nos ouvidos.
Entretanto, é tomado de curiosidade e pede que o amarrem no mastro do navio, para que possa
ouvir a música das sereias, sem ser destruído. Sobrevive incólume ao encontro.

Ulisses é o protótipo do homem que tem uma meta fixa nos olhos, no caso retornar à casa,
mas poderia ser também a sobrevivência, a fama ou o poder. Para isso ele está disposto a
controlar astuciosamente todas as forças da natureza, mesmo aquelas que estão nele próprio. A
civilização humana ocidental se construiu sob a mesma economia: repressão dos instintos e das
paixões do corpo, substituindo a busca de prazer imediato, mas passageiro, pelo trabalho árduo
que garanta um futuro duradouro.

O corpo é a natureza que o homem mesmo é. A natureza em nós mesmos revela também
um pouco sobre a natureza que há em torno de nós. A filosofia, desde Nietzsche, tenta mostrar as
conseqüências igualmente catastróficas de uma desvalorização constante e radical do corpo e de
suas pulsões: debilidade da saúde e dos valores culturais, violência simbólica e institucional,
enfim, empobrecimento da existência humana. "Trata-se de um velho preconceito dos filósofos
acreditar que toda música é música de sereias", diz Nietzsche em A Gaia Ciência (§ 372).

“ Da cama ouve-se a voz de Iran:


- Eu não agüento ver tevê antes do café da manha. - Tecle 888 - disse Rick
-; o desejo de ver tevê não importa o quê.
- Eu não me sinto com vontade de teclar qualquer coisa agora - disse Iran.

- Então tecle 3.
- Eu não posso teclar um código que estimule meu córtex cerebral para querer teclar alguma
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coisa. Se não estou a fim de teclar nada, então esse seria o último código que eu gostaria de
programar. Sentir desejo de teclar algo seria agora para mim o mais inimaginável e estranho. Eu
quero apenas sentar aqui na cama e ficar olhando para o teto."

Esse é o diálogo de abertura da famosa obra de ficção científica Do Androids Dream of Electric
Sheeps? [Andróides Sonham com Ovelhas Eletrônicas?] (1968), do escritor norte-americano Philip
K. Dick (1928-1982), livro que inspirou o já mencionado filme Blade Runner. Nessa cena, que não
foi transposta para o cinema, o detetive e caçador de andróides Rick Deckard (vivido nas telas
pelo ator Harrison Ford) tem uma briga com sua esposa para decidir qual tipo de estado afetivo
eles vão agendar para si próprios naquele dia. O casal tem diante de si um moderno mood organ,
uma máquina que estimula eletronicamente humores e desejos, desde uma "atitude otimista em
relação ao trabalho", um "estado de superexcitaçâo sexual" ou o "desejo incondicional de ver
tevê". A briga só termina quando o detetive tecla a combinação 394 para sua mulher:
"reconhecimento agradecido de que o marido tem razão em todos os assuntos".

Talvez o mais assustador na época de hoje não seja mais a ameaça de catástrofe se nos
deixarmos levar pelas paixões, mas a sensação crescente e igualmente catastrófica de uma
ausência completa de desejos. Não ter vontade de nada, não sentir nada de vontade, exceto ter
vontade do próprio nada, essas são as características principais do niilismo, o grande desafio
histórico da nossa civilização. Contra essa vontade de nada, a recusa de assumir as
ambigüidades da existência, será preciso inventar menos máquinas de agendamento e
gerenciamento dos afetos, do que, inversamente, deixar o pensamento, a ciência, a educação, a
política e a ética se contaminarem irreversivelmente de desejos e de paixões. Será preciso
renaturalizar o homem, mas não com a natureza enquanto objeto de conhecimento e dominação
técnica ou enquanto lugar de férias e de repouso, mas com uma nova natureza, ainda a ser
inventada, como uma terra fértil para novos valores e novas verdades.
Dizer que o homem é seu corpo não significa crer que nosso destino esteja predeterminado
pela anatomia ou até mesmo pela herança genética. Em relação ao corpo e às suas múltiplas
dimensões, percepção sensível, afetividade, sexualidade, diz Merleau-Ponty: "Ninguém está salvo
e ninguém está completamente perdido" {Fenomenologia da Percepção, [1945] p. 182). Isso quer
dizer que nossa subjetividade é construída em parte pelo corpo, mas o corpo também é construído
pelas relações históricas e sociais, não sendo possível nunca determinar com absoluta precisão o
que pertence somente à natureza ou somente à cultura.

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