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Gilles DELEUZE, Foucault (1986) pp.

34-40 [sobre a concepção de “poder”]

Postulado da propriedade: o poder seria “propriedade” de uma classe que a teria conquistado. Mas o
poder é menos uma propriedade que uma estratégia, e seus efeitos não são atribuíveis a uma
apropriação.

Uma classe dominante não é uma abstração, mas também não é um dado prévio. Que uma classe
se torne dominante, que ela assegure sua dominação e que esta dominação se reproduza, estes são
efeitos de um certo número de táticas eficazes, sistemáticas, que funcionam no interior de grandes
estratégias que asseguram esta dominação. Mas entre a estratégia que fixa, reproduz, multiplica,
acentua as relações de força e a classe dominante, existe uma relação recíproca de produção.
Pode-se, portanto, dizer que a estratégia de moralização da classe operária é a da burguesia.
Pode-se mesmo dizer que é a estratégia que permite à classe burguesa ser a classe burguesa e
exercer sua dominação. Mas não creio que se possa dizer que foi a classe burguesa, como um
sujeito ao mesmo tempo real e fictício, que inventou e impôs à força, ao nível de sua ideologia ou
de seu projeto econômico, esta estratégia à classe operária. [...] A moralização da classe operária
não foi imposta por Guizot através de suas legislações, nem por Dupin através de seus livros. Não
foram também os sindicatos patronais. Entretanto, ela se realizou, porque respondia ao objetivo
urgente de dominar uma mão-de-obra flutuante e vagabunda. Portanto, o objetivo existia e a
estratégia desenvolveu-se, com uma coerência cada vez maior, mas sem que se deva supor um
sujeito detentor da Lei, enunciando-a sob a forma de um "você deve, você não deve". [Sobre a
história da sexualidade]1

Postulado da localização: o poder seria poder de Estado, estaria localizado ele próprio no aparelho
de Estado, e mesmo os poderes “privados” seriam aparelhos de Estado especiais.

Mas se a polícia como instituição foi realmente organizada sob a forma de um aparelho de Estado,
e se foi mesmo diretamente ligada ao centro da soberania política, o tipo de poder que exerce, os
mecanismos que põe em funcionamentoe os elementos aos quais ela os aplica são específicos. É um
aparelho que deve ser coextensivo ao corpo social inteiro, e não só pêlos limites extremos que
atinge, mas também pela minúcia dos detalhes de que se encarrega. O poder policial deve-se
exercer "sobre tudo": não é entretanto a totalidade do Estado nem do reino como corpo visível e
invisível do monarca; é a massa dos acontecimentos, das ações, dos comportamentos, das opiniões
[Vigiar e Punir, p. 187]

Postulado da subordinação: o poder encarnado no aparelho de Estado estaria subordinado a um


modo de produção, tal como a uma infraestrutura. Se é possível correlacionar os regimes punitivos
a sistemas de produção, no entanto é difícil ver ai uma determinação econômica “em última
instância” – as relações de poder não se encontram em posição de exterioridade com respeito a
outros tipos de relações.

Postulado da essência ou do atributo: o poder teria uma essência e seria um atributo, que
qualificaria os que o possuem (dominantes) distinguindo-os daqueles sobre os quais se exerce
(dominados). Mas o poder não tem essência, ele é operatório. Não é atributo, mas relação: a relação
de poder é o conjunto das relações de forças, que passa tanto pelas dominantes como pelas
dominadas.

O estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma
propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma
"apropriação", mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se

1
Microfísica do poder [1977] ed. bras. 1984. cap. 16, p. 243–76
desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade, que um privilégio
que se pudesse deter; que lhe seja dado como modelo antes a batalha perpétua que o contrato que
faz uma cessão ou a conquista que se apodera de um domínio. Temos em suma que admitir que esse
poder se exerce mais que se possui, que não é o "privilégio" adquirido ou conservado da classe
dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas – efeito manifestado e às vezes
reconduzido pela posição dos que são dominados. Esse poder, por outro lado, não se aplica pura e
simplesmente como uma obrigação ou uma proibição, aos que "não têm"; ele os investe, passa por
eles e através deles; apoia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder,
apoiam-se por sua vez nos pontos em que ele os alcança. [Vigiar e Punir, 29]

Postulado da modalidade: o poder agiria por violência ou por ideologia, ora reprimindo, ora
enganando ou iludindo; ora como polícia, ora como propaganda – mas repressão e ideologia nada
explicam, mas sempre supõem um agenciamento ou “dispositivo” no qual eles operam.

O que define uma relação de poder é um modo de ação que não age direta e imediatamente sobre
os outros, mas que age sobre sua própria ação. Uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou
atuais, futuras ou presentes. Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas; ela
força, ela submete, ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades; não tem, portanto,
junto de si, outro pólo senão aquele da passividade; e, se encontra uma resistência, a única escolha
é tentar reduzi-la. Uma relação de poder, ao contrário, se articula sobre dois elementos que lhe
são indispensáveis por ser exatamente uma relação de poder: que “o outro” (aquele sobre o qual
ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como sujeito de ação [...]. O termo
“conduta” apesar de sua natureza equivoca, talvez seja um daqueles que melhor permite atingir
aquilo que há de especifico nas relações de poder. A “conduta” é, ao mesmo tempo, o ato de
“conduzir” os outros (segundo mecanismos de coerção mais ou menos estritos) e a maneira de se
comportar num campo mais ou menos aberto de possibilidades. O exercício do poder consiste em
“conduzir condutas” e em ordenar a probabilidade. O poder, no fundo, é menos da ordem do
afrontamento entre dois adversários, ou do vínculo de um com relação ao outro, do que da ordem
do “governo”. [O sujeito e o poder, 243-244]

Postulado da legalidade: o poder de Estado exprimir-se-ia na lei, sendo esta concebida como um
estado de paz imposto às forças brutas, ora como resultado de uma guerra ou de uma luta ganha
pelos mais fortes. Foucault substitui a oposição lei-ilegalidade pela correlação final ilegalismos-lei.
A lei é sempre uma composição de ilegalismos, que ela diferencia ao formalizar (umas organizando
explicitamente os meios de não cumprir as outras).

Deleuze nota que Foucault “jamais participou do culto ao Estado de direito” e que a concepção
legalista não vale mais que a concepção repressiva. [GD, Foucault, p. 40, nota 10] [Cf. La volonté
de savoir, 109, 114-120 e 135]

“É como se, enfim algo de novo surgisse depois de Marx...” [GD, Foucault, p. 40]

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